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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(200) “Ética não é conhecimento”

Tempo estimado de leitura: 10 minutos.

 

A ética é a investigação geral sobre o bom, Moore.

 

Nada há de bom nem de mau, se o pensamento não o tornar assim”.

 

Parece-me evidente que nada do que somos capazes de pensar ou de dizer, possa constituir o objeto da ética, Wittgenstein.

 

Um assassinato estará ao mesmo nível de qualquer outro acontecimento, como, por exemplo, a queda de uma pedra.

 

O que a ética diz, não acrescenta nada, em nenhum sentido, ao nosso conhecimento.

 

 

 

 

Na Universidade de Cambridge, entre 1909 e 1932, constituiu-se uma sociedade formada por estudantes e outros intelectuais, a Sociedade Herética de Cambridge (Cambridge Heretics Society), cujo propósito era pôr em causa as autoridades tradicionais e religiosas. Dela fizeram parte figuras proeminentes do pensamento, como os Huxley, Maynard Keynes, Bernard Shaw, Bertrand Russel, Virginia Wolf.

Foram, ainda são, famosas as suas conferências. Para uma delas, foi convidado Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Em novembro de 1929 (há noventa anos), dá aquela que foi a sua única conferência pública, e cujo tema seria: Ética (Lecture on Ethics).

Vale a pena seguir a sua clareza e simplicidade lógica,  de um autor normalmente tido como sendo hermético.

 

Começa por definir o termo “ética” de acordo com o enunciado dado pelo professor George Edward Moore (1873-1958) no seu livro, Principia Ethica, de 1903: “A ética é a investigação geral sobre o bom”.

Para  se perceber melhor qual o objeto da ética, diz-nos que vai tentar ampliar o seu sentido. Para isso, propõe-se apresentar-nos várias expressões mais ou menos sinónimas, cada uma das quais se poderia substituir pela definição anterior.

 

“Em vez de dizer que a ética é a investigação sobre o bom, poderia ter dito que a ética é a investigação sobre o valioso ou sobre o que realmente importa, ou poderia ter dito que a ética é a investigação sobre o significado da vida, ou daquilo que faz com que a vida mereça a pena ser vivida, ou da maneira correta de viver. De certa maneira, é de todas estas frases que se ocupa a ética.

 A primeira coisa que nos chama a atenção, é que cada uma destas expressões é, de facto, usada em dois sentidos muito distintos. Chamá-los-ei de sentido trivial ou relativo, e de sentido ético ou absoluto.

Por exemplo, se digo que esta é uma boa cadeira, tal significa que esta cadeira serve um propósito predeterminado, e a palavra “bom” aqui só tem significado na medida em que tal propósito tenha sido previamente fixado. De facto, a palavra “bom” em sentido relativo significa simplesmente que satisfaz um certo standard predeterminado.

Assim, quando afirmamos que este homem é um bom pianista, queremos dizer que pode tocar peças de um certo grau de dificuldade com um certo grau de habilidade. Da mesma forma, quando afirmo que para mim é importante não me constipar, quero dizer que apanhar uma constipação produz na minha vida certos transtornos; e se digo que esta é a estrada correta, estou a referir-me a que esta estrada é a correta relativamente a uma certa meta traçada.

 Usados desta forma, estas expressões não apresentam qualquer dificuldade e não põem qualquer problema profundo. Mas este não é o uso que a ética faz delas.

 

Suponhamos que eu não soubesse jogar ténis, e que um de vocês ao ver-me jogar, diria: “Você joga muito mal”. E que eu responderia. “Eu sei, estou a jogar mal, mas eu não quero fazê-lo melhor”. Tudo o que o meu interlocutor poderia contestar, seria: “Ah, então de acordo”.

Mas suponhamos que eu contasse uma mentira escandalosa, o que levaria a que um de vocês me dissesse: “Você está a comportar-se como um animal”. E que eu lhe responderia: “Sei que a minha conduta é má, mas eu não quero comportar-me melhor”. Poderiam então contestarem-me: “Ah, então de acordo”?

Certamente que não. Antes afirmariam: “Bem, você deveria comportar-se melhor”. Isto seria um juízo de valor absoluto, ao passo que o primeiro caso seria um juízo relativo. Em essência, a diferença parece obviamente ser esta: cada juízo de valor relativo é um mero enunciado de acontecimentos e, portanto, pode expressar-se de tal forma que perca toda a aparência de juízo de valor.

 

 […] O que pretendo sustentar é que, apesar de que se possa mostrar que todos os juízos de valor relativos são meros enunciados de acontecimentos, nenhum enunciado de um acontecimento pode ser, nem implicar, um juízo de valor absoluto.

Permitam explicá-lo: suponham que um de vocês fosse uma pessoa omnisciente, e que, portanto, conhecia os movimentos de todos os corpos animados ou inanimados do mundo e que conhecia também os estados mentais de todos os seres que tenham vivido. Suponham, para além disso, que este homem escrevera todo o seu saber num grande livro; tal livro conteria a descrição total do mundo.

O que quero dizer é que este livro não incluiria nada a que pudéssemos chamar de juízo ético. Por suposto conteria todos os juízos de valor relativo e todas as proposições verdadeiras possíveis de formular. Mas, tanto todos os acontecimentos descritos como todas as proposições estariam ao mesmo nível. Mas não conteria nenhumas proposições que, em sentido absoluto, fossem sublimes, importantes ou triviais.

Talvez algum dos presentes concordará com isto, recordando-se das palavras de Hamlet: “Nada há de bom nem de mau, se o pensamento não o tornar assim”.

Só que o dito de Hamlet pode dar origem a um novo mal-entendido. O que Hamlet diz parece implicar que o bom e o mau, embora não sejam qualidades do mundo exterior, são atributos dos nossos estados mentais.

 Mas o que eu quero dizer é que enquanto entendermos um estado mental como um acontecimento descritível, ele não será nem bom nem mau no sentido ético.

Por exemplo, se no nosso livro do mundo lermos a descrição de um assassinato com todos os detalhes físicos e psicológicos, a mera descrição de estes acontecimentos não contém nada que possamos considerar como uma proposição ética. O assassinato estará ao mesmo nível de qualquer outro acontecimento, como, por exemplo, a queda de uma pedra.

Certamente a leitura da descrição do assassinato poderá causar-nos dor ou raiva ou qualquer outra emoção; poderíamos também ler acerca da dor ou raiva que este acontecimento suscitara noutras pessoas que dele tiveram conhecimento, mas tal não passaria de acontecimentos, acontecimentos, acontecimentos, e não de ética. […] Parece-me evidente que nada do que somos capazes de pensar ou de dizer, possa constituir o objeto da ética.

 

[…] as nossas palavras, usadas tal como o fazemos na ciência, são recipientes apenas capazes de conter e transmitir significado e sentido, significado e sentido naturais. A ética, a ser algo, é sobrenatural e as nossas palavras só expressam acontecimentos, da mesma forma que uma chávena de chá só poderá conter o volume próprio de uma chávena de chá por mais que se deite nela litros de chá.

 

[…] o bem absoluto, se é um estado de coisas descritível, seria aquele que todo o mundo, independentemente dos seus gostos e inclinações, realizaria necessariamente ou sentir-se ia culpado por o não fazer. Na minha opinião, tal estado de coisas é uma quimera. Nenhum estado de coisas tem, em si, o que gostaria de denominar como o poder coativo de um juiz absoluto.

Então, o que é que temos na mente e que tentamos expressar, aqueles que como eu sentimos a tentação de usar expressões como “bem absoluto”, “valor absoluto”, etecetera?

 

[…] No meu caso, ocorre-me sempre que a ideia de uma particular experiência se me apresenta como se, em certo sentido fora, e de facto o é, a minha experiência ‘par excellence’. Por esse motivo, ao dirigir-me agora a vocês, usarei esta experiência como o meu principal exemplo. Na medida do possível, vou descrever essa experiência de maneira a que vos faça evocar experiências idênticas ou similares, a fim de poder dispor de uma base comum para a nossa investigação.

 Creio que a melhor forma de a descrever é dizer que quando a tenho, assombro-me perante a existência do mundo. Sinto-me então inclinado a usar frases como “Que extraordinário que as coisas existam” ou “Que extraordinário que o mundo exista”.

Outra experiência que conheço, e que estou certo que a alguns de vocês também é familiar: trata-se do que poderíamos chamar da vivência de sentir-se absolutamente seguro. Refiro-me àquele estado anímico em que nos sentimos inclinados a dizer: “estou seguro, aconteça o que acontecer, nada me pode fazer mal”.

O que primeiro tenho a dizer é que a expressão verbal que damos a estas experiências carece de sentido. Se afirmo “Assombro-me perante a existência do mundo”, estou a usar mal a linguagem. Explico-me: é perfeitamente claro dizer que me assombra que algo seja como é. Todos entendemos o que significa que me assombre com o tamanho de um cão que seja maior que qualquer que eu tenha antes visto, ou de qualquer coisa que, no sentido vulgar do termo, seja extraordinária. Em todos os casos deste tipo, assombro-me de que algo seja como é, quando eu poderia conceber que não fosse como é.

Assim, podemos, por exemplo, assombrarmo-nos por uma casa quando a virmos muito tempo depois de a não visitar e termos imaginado que já teria sido demolida. Mas parece-me falho de sentido dizer que me assombro pelo mundo existir, porque não posso representá-lo como não existindo. Naturalmente, poderia assombrar-me por o mundo que me rodeia ser como é. 

 

[…] O mesmo se pode aplicar à outra experiência mencionada, a experiência de se ter a segurança absoluta. Todos sabemos o que quer dizer na vida ordinária o que é ter essa segurança.  Sinto-me seguro na minha casa, uma vez que aí não posso ser atropelado por um autocarro. Sinto-me seguro por ter tido tosse convulsa, porque já não vou poder tê-la outra vez.

Na essência, sentir-se seguro significa que é fisicamente impossível que determinadas coisas me possam acontecer, pelo que é sem sentido dizer que me sinto seguro aconteça o que acontecer. Uma vez mais, trata-se de um mau uso da palavra “seguro”, do mesmo modo que no outro exemplo era um mau uso da palavra “existência” ou “assombrar-se”.

 

Quero agora convencê-los que um característico mau uso da linguagem está subjacente em todas as expressões éticas e religiosas. Todas elas parecem, prima facie, ser apenas símiles.

 Assim, parece que quando usamos, num sentido ético, a palavra correto, se bem que o queremos dizer não é correto no seu sentido trivial, é algo similar. Quando dizemos: “É uma boa pessoa”, ainda que aqui a palavra “boa” não signifique o mesmo que na frase “Este é um bom jogador de futebol”, parece haver uma alguma semelhança. Quando dizemos: “A vida deste homem era valiosa”, não o entendemos no mesmo sentido se estivéssemos a falar de uma joia valiosa, mas parece haver uma certa analogia. Deste modo, todos os temas religiosos parecem utilizar-se como símiles ou alegorias.

 Quando falamos de Deus e de tudo o que ele vê e quando nos ajoelhamos e oramos , todos os nossos termos e ações se assemelham a partes de uma grande e complexa alegoria que o representa como um ser humano de enorme poder e cuja graça tratamos de ganhar para nós, etc., etc.

Mas esta alegoria descreve também a experiência a que acabo de aludir. Porque a primeira delas é, segundo creio, exatamente aquilo a que a gente se refere quando se diz que Deus criou o mundo; e a experiência da segurança absoluta é descrita como quando dizemos que nos sentimos seguros nas mãos de Deus. Uma terceira vivência deste tipo é a de nos sentirmos culpados, descrita com a frase: Deus condena a nossa conduta. É, pois, assim que parece que, na linguagem ética e religiosa, estamos constantemente a usar símiles.

 

 Mas um símile deve ser um símile de algo. E se posso descrever um acontecimento mediante um símile, devo também de ser capaz de o abandonar e descrever os acontecimentos sem a sua ajuda. No nosso caso, logo que deixarmos de lado o símile e enunciarmos diretamente os acontecimentos que se encontram por detrás dele, vamos verificar que não há tais acontecimentos. Assim, aquilo que num primeiro momento parecia ser um símile, manifesta-se agora como um mero sem sentido.

 Talvez que para aqueles que tenham vivido as três experiências que mencionei, estas pareçam continuar a ter algum sentido, um valor intrínseco e absoluto. Mas, a partir do momento que digo que são experiências, certamente são acontecimentos; que decorreram num lugar e demoraram um certo tempo, sendo, por conseguinte, descritíveis. A partir daqui e do que atrás disse, devo admitir que carece de sentido afirmar que têm um valor absoluto.

 

Precisarei a minha argumentação dizendo: é um paradoxo que uma experiência, um acontecimento, pareça ter um valor sobrenatural. Há, contudo, uma via a que me sinto tentado recorrer para solucionar tal paradoxo. Permitam-me reconsiderar em primeiro lugar, a nossa experiência de assombro ante a existência do mundo, escrevendo-a de forma ligeiramente diferente; todos sabemos que na vida quotidiana poderia denomina-la de milagre. Evidentemente, é um acontecimento de tal natureza que nunca vimos nada de semelhante parecido a ele.

 Suponham que tal acontecimento teve lugar. Pensem agora no caso de a um de vocês lhe ter crescido uma cabeça de leão e que comece a rugir. Certamente isso seria uma das coisas mais extraordinárias que sou capaz de imaginar. Tão depressa nos refizéssemos da surpresa, o que eu sugeriria era irmos buscar um médico e investigar cientificamente o caso e, se não fosse porque haveria a possibilidade de provocar dor, sugeriria uma vivificação. Onde estaria então o milagre?

Está claro que, no momento em que encaramos as coisas assim, todo o miraculoso desapareceria; a menos que entendêssemos por este termo, simplesmente um acontecimento que, contudo, não tenha ainda sido explicado pela ciência, coisa que por sua vez, significa que ainda não conseguimos agrupar este acontecimento, juntamente com outros, no sistema científico.

Isto mostra que é absurdo dizer que a ciência tenha provado que não há milagres. A verdade é que o modo científico de ver um acontecimento não é o de o ver como um milagre.

 

Podem vocês imaginar o acontecimento que quiserem, mas não será por isso que esse acontecimento seja em si milagroso no sentido absoluto do termo. Damos agora conta que temos estado a usar a palavra “milagre” quer no sentido relativo quer no sentido absoluto.

 Vou agora descrever a experiência do assombro perante a existência do mundo, dizendo:  é a experiência de ver o mundo como um milagre. Sinto-me inclinado a dizer que a expressão linguística correta do milagre da existência do mundo é a própria existência da linguagem. Mas então o que significa ter a consciência deste milagre em certos momentos e noutros não?

Ao mudar a expressão do milagroso de uma expressão por meio da linguagem pela expressão pela existência da linguagem, tudo o que fiz, uma vez mais, foi mostrar que não podemos expressar o que queremos expressar e que tudo o que dissemos sobre o absolutamente milagroso continua a carecer de sentido.

 

Para muitos de vocês a resposta parecerá clara. Dirão: bem, se certas experiências nos incitam constantemente a atribuir-lhes uma qualidade que denominamos importância ou valor absoluto ou ético, isto só demonstra que aquilo a que nos referimos com tais palavras não é um sem sentido.

 Mas, depois de tudo, o que queremos realmente dizer quando referimos que uma experiência tem um valor absoluto, é que se trata simplesmente de um acontecimento com qualquer outro, e que no fim tudo se reduz a isto: que todavia não demos ainda com a análise lógica correta do que queremos dizer com as nossas expressões éticas e religiosas.

[…] Ou seja: vejo agora que estas expressões carentes de sentido não careciam de sentido por não terem ainda encontrado as expressões corretas, mas que era antes a sua falta de sentido o que constituía a sua própria essência.

A única coisa que pretendia era ir mais além do mundo, o que é o mesmo que ir mais além da linguagem significativa.

 O meu único propósito, e creio que o de todos aqueles que alguma vez intentaram escrever ou falar sobre ética ou religião, é o de arremeter contra os limites da linguagem. Este arremeter contra as paredes da nossa jaula é perfeita e absolutamente sem esperança.

 

A ética, na medida em que surge do desejo de dizer algo sobre o sentido último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente valioso, não pode ser uma ciência. O que a ética diz, não acrescenta nada, em nenhum sentido, ao nosso conhecimento.

Mas é um testemunho de uma tendência do espírito humano que pessoalmente só posso respeitar profundamente e que por nada do mundo ridiculizaria.”

 

 

Ocorre-me apenas acrescentar duas singelas considerações. A primeira, é que da mesma forma que a ética não pode ser ciência, também a ciência não pode ser ética.

A segunda, é melhor expressa pelas últimas estrofes de um poema de Rui Knopfli, “Carta ao Poeta Eugénio Evtushenko a Propósito de uma Suposta Autocrítica”, que diz assim:

 

“ A um poeta corta-se-lhe

a cabeça. E uma cabeça

cortada não dói, mas tem

uma importância danada.”

 

 

 

 

 

(199) "Cuidado com aquilo em que acreditam"

Tempo estimado de leitura: 6 minutos.

 

A mentira mais antiga que me lembro, tinha eu onze anos, foi quando a Inglaterra e a França anunciaram que iam invadir o Egito para acabar com a guerra entre o Egito e Israel, K. Livingstone.

 

Sabemos agora que quando Tony Blair nos disse que o Iraque tinha armas de destruição massiva que poderiam alcançar a Inglaterra em 45 minutos, e que quando o presidente Bush disse que o Iraque possuía uma enorme quantidade de uranio, tais afirmações eram completamente falsas, K. Livingstone.

 

Vinte anos depois a verdade veio ao de cima e soube-se que afinal nunca nenhum navio de guerra americano tinha sido atacado no golfo de Tonquim, no Vietname do Norte, K. Livingstone.

 

Será que toda aquela fixação e construção ideológica ocidental contra o comunismo, afinal não passava de uma estratégia e tática para se conseguirem ganhar novos mercados?

 

 

 

 

Recentemente, Ken Livingstone, membro do partido trabalhista inglês que foi presidente da câmara de Londres de 2000 a 2008, publicou um artigo que intitulou de “Tenham cuidado com aquilo em que acreditam” que, apesar de ser dirigido ao público inglês, julgo ser suficientemente importante para o traduzir.

 

 

Atualmente parece que estamos de novo a viver numa Guerra Fria […] Tendo crescido após a Segunda Guerra Mundial, as nossas notícias eram dominadas pela ameaça da União Soviética, mas quando em 1991 a União Soviética se desfez, nunca imaginei que apenas passadas duas décadas estivéssemos de novo a falar da ameaça russa.

 Todos aqueles que só recebem as notícias pelos media de comunicação ingleses e americanos são mantidos na ignorância da verdade; as acusações sem fim sobre o envenenamento dos Skripal ou sobre o conflito da Crimeia são apresentadas de uma forma distorcida em que a maior parte dos factos são ignorados. Mas nada disto é novidade: relatos desonestos e mentiras dominaram o período da Guerra Fria na época da União Soviética.

 

Apesar da agenda de direita contida nas promessas eleitorais de 1960 que o presidente John Kennedy se comprometera cumprir, nomeadamente sobre a redução do défice americano no respeitante aos mísseis nucleares relativamente à União Soviética, rapidamente mudou de posição, passando a dirigir os esforços da sua administração para a luta contra o racismo nos estados do Sul. Estava também a planear, se não tivesse sido assassinado, a retirada das tropas americanas do Vietname caso viesse a ser reeleito em 1964, uma vez que concluíra que uma operação em grande escala na guerra do Vietname seria um desastre.

 

O que o fez alterar as suas políticas foram os conflitos que teve com os militares. Presidente ainda há poucos dias, foi confrontado com a necessidade de dar continuação à já planeada ação da invasão de Cuba, operação que seria feita por um pequeno número de dissidentes cubanos. Os militares disseram-lhe que a invasão conduziria a um levantamento popular e levaria à queda de Fidel Castro, pelo que a América não necessitaria de providenciar qualquer tipo de apoio aéreo para a invasão da Baía dos Porcos.

Mas assim que os rebeldes alcançaram terra, o Pentágono insistiu com o presidente concordasse com a utilização de bombardeamentos aéreos americanos a Cuba. Kennedy concluiu que lhe tinham mentido e recusou. Muito gostaria eu de ter podido voltar atrás no tempo para lhe dizer que o regime de Castro acabaria por perdurar o reinado de doze presidentes dos EUA, oito dos quais, incluindo Kennedy, autorizaram várias tentativas de assassinato de Castro, todas elas falhadas.

 

Kennedy já tinha ficado chocado quando descobriu que as suas promessas para encurtar a diferença que os americanos tinham relativamente aos mísseis estratégicos nucleares dos soviéticos, eram desprovidas de senso. No seu primeiro briefing militar, foi-lhe dito que a União Soviética tinha quatro mísseis nucleares capazes de atingir os EUA, ao passo que os EUA tinham trezentos e cinquenta mísseis capazes de obliterarem a União Soviética.

 

Isto deve dizer-nos muito sobre quanto nos têm mentido: quando um homem, que fora senador durante oito anos e nas vésperas de se tornar presidente, estava completamente na ignorância sobre a verdade no respeitante à enorme superioridade nuclear dos americanos, então o que seria de nós?

O imediatamente anterior presidente, o republicano Eisenhower, no seu último discurso na televisão, tentara avisar os americanos acerca do crescimento do poder do complexo militar industrial, mas nada mudou. Se alguma coisa mudou, é que esse complexo se tornou cada vez mais poderoso, porquanto se na altura metade do orçamento ia já para as forças armadas, atualmente o valor é muito superior. Dado que o presidente Eisenhower era o oficial mais prestigiado e de maior patente da América antes de ser presidente, o seu aviso é notável e bastante significativo.

 

As mentiras sobre o predomínio militar Russo está hoje de novo na ordem do dia quando se fala sobre a Crimeia. Nunca vi em nenhum órgão dos media ingleses o facto de mais de noventa por cento da população da Crimeia ser russa. Nem também nunca vi relatado nos media que a Crimeia nunca fizera parte da Ucrânia até 1954, altura em que o leader da União Soviética, Nikita Khrushchev, resolveu incluir a Crimeia na Ucrânia. Talvez por ele ter nascido e sido criado na Ucrânia, ou talvez, segundo rumores, porque estava muito bêbado quando tomou essa decisão.

Apesar da Inglaterra e da América terem imposto sanções à Rússia por ela ter incorporado a Crimeia, a história do que aconteceu é bastante diferente. A região centro e ocidental da Ucrânia é dominada pelos ucranianos, e durante a Segunda Guerra Mundial muitos desses ucranianos colaboraram com o regime nazi depois de estes terem invadido a Ucrânia a caminho de Moscovo. Poucos anos depois, o exército soviético começou a empurrar os nazis, tendo muitos ucranianos ajudado os nazis a lutarem contra os soviéticos. Não é de admirar que a população da Crimeia e da região oriental da Ucrânia dominada pelos russos, ficasse com preocupações e dúvidas sobre qual seria a atitude do governo ucraniano após a dissolução da União Soviética.

O que despoletou a crise não foi a invasão russa, mas o derrube do governo ucraniano do presidente Viktor Yanukovych. Em novembro de 2013, Yanukovych anunciou que tinha dúvidas em assinar o tratado económico com a União Europeia, porque tal implicaria o fim das relações económicas e de comércio com o seu principal parceiro, a Rússia. Porque é que a EU fazia tal exigência que obviamente degradaria a economia da Ucrânia, nunca foi revelado.

Após o anúncio feito por Yanukovych, a praça principal da capital da Ucrânia, a praça Maidan, foi invadida por demonstrações protestando contra essa decisão. As manifestações tornaram-se violentas e levaram à queda do presidente a 22 de fevereiro de 2014.

Os protestos foram liderados por nacionalistas ucranianos radicais e por grupos paramilitares cuja política fazia lembrar muito a ideologia fascista, desde o uso de símbolos nazis e de slogans racistas pedindo uma limpeza étnica dos russos que viviam na Ucrânia.

A Inglaterra, os EUA e a EU apoiaram o golpe que depôs o presidente Yanukovych. Há já agora um considerável grau de evidência sobre o envolvimento de agências de inteligência no encorajamento desses grupos de extrema direita desde o fim da Segunda Guerra.

O novo governo ucraniano afirma que as pessoas mortas em Maidan foram vítimas das forças de segurança do governo deposto e pelos russos a fazerem-se de ucranianos. Essa alegações caíram por terra quando a televisão italiana exibiu um documentário com uma entrevista a ex-militares snipers da Geórgia que admitiram terem sido contratados pelos insurgentes e foram parcialmente responsáveis pelas mortes (https://www.youtube.com/watch?v=wR1NFI6TBH0&feature=youtu.be).

 

A destituição forçada do governo e a sua substituição por um regime de extrema direita anti russo, despertou medos de uma próxima limpeza étnica, levando a maioria da população russa da Crimeia e da Ucrânia Oriental a decidirem se queriam ou não permanecer debaixo do novo regime ucraniano. Os russos que viviam na Crimeia e na Ucrânia Oriental tinham o mesmo direito à autodeterminação que o resto dos casos que ocorriam no mundo.

 

Nada disto é novidade. Poucos anos antes, em julho de 2014, um avião da Malásia foi abatido quando sobrevoava a Ucrânia. De imediato os media ocidentais disseram que tinha sido abatido por um míssil russo. Mas nenhum deles disse que o míssil utilizado era tão antigo que já anos antes tinha sido retirado do arsenal balístico russo. Após a caótica queda do regime soviético era muito possível que vários desses antigos mísseis tivessem permanecido na posse de várias regiões, talvez mesmo na posse de grupos de extrema direita da Ucrânia.

 

A verdade leva décadas até vir a ser descoberta. Sabemos agora que quando Tony Blair nos disse que o Iraque tinha armas de destruição massiva que poderiam alcançar a Inglaterra em 45 minutos, e que quando o presidente Bush disse que o Iraque possuía uma enorme quantidade de uranio, tais afirmações eram completamente falsas, mas foi isso que levou à morte de centenas de milhar de iraquianos.

 

Quando ainda jovem, lembro-me que em 1964 o governo americano anunciou que um dos seus navios de guerra tinha sido atacado no Vietname do Norte, o que levou ao bombardeamento em massa e a uma guerra a sério que conduziu à morte de mais de três milhões e meio de pessoas. Vinte anos depois a verdade veio ao de cima e soube-se que afinal nunca nenhum navio de guerra americano tinha sido atacado.

 

A mentira mais antiga que me lembro, tinha eu onze anos, foi quando a Inglaterra e a França anunciaram que iam invadir o Egito para acabar com a guerra entre o Egito e Israel. Todos os políticos que estiveram por trás dessa mentira já tinham falecido quando se descobriu a verdade: a Inglaterra e a França tinham pedido a Israel que invadisse o Egito, para que assim a Inglaterra e a França pudessem intervir no conflito eliminando o governo de Nasser, por forma a poderem vir a retomar o controle do Canal de Suez.

 

Tenham sempre cuidado com aquilo em que acreditam.”

 

 

A principal curiosidade deste artigo de Ken Livingstone reside no facto de ele cobrir um período alargado de tempo, indo desde o tempo do regime comunista da União Soviética até ao regime capitalista da atual Rússia.

É que, a não ser que os russos sejam geneticamente violentos, agressores, mentirosos, invasores, desrespeitadores das normas internacionais, não se entende muito bem como é que regimes tão distintos e desfasados no tempo, possam ser atacados no “Ocidente” de forma igual. Hoje, contra a Rússia utilizam-se os mesmos argumentos usados contra a União Soviética. Nos meios de comunicação social são mesmo indistintos, é como se a União Soviética continuasse a existir.

Talvez a resposta para tal colagem tenha que ser procurada, não na política, mas na economia. O fator comum, que se mantém o mesmo, é o mercado. E aí, a eleição de Trump veio tornar tudo muito mais claro: a venda de armas que têm de ser obrigatoriamente compradas pelos “aliados” aos EUA (por exemplo, quem comprar à Rússia os sistemas de mísseis S-400 sofrerá sanções fortemente punitivas); o gás líquido que terá de ser comprado muito mais caro aos EUA, prescindindo dos fornecimentos russos; as transações comerciais com a Rússia que terão de ser diminuídas, passando a serem preferidos produtos americanos; etc.

 Ou seja, com Trump acabou-se o eufemismo da grande comunidade de “aliados”; os “aliados” passam a serem tratados como o que na realidade são: “satélites”. Não é por os “satélites” serem capitalistas que são tratados de forma diferente.

 

Todos os meios são usados nesta guerra de conquista de mercados. Da mesma forma que antigamente todo o mal vinha dos comunistas, agora todo o mal vem dos russos. E outros se seguirão, dependendo dos objetivos a atingir.

E isto põe um problema muito interessante: será que toda aquela fixação e construção ideológica ocidental contra o comunismo e a União Soviética, afinal não passava de uma estratégia e tática para se conseguirem ganhar novos mercados?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(198) "Como pode um homem ser culpado?"

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Todo o homem, pelo simples facto de viver, pode ser sempre posto em causa e vir a ser acusado.

 

Como é que o homem conseguiu conceber a ideia que as suas próprias ações o pudessem culpabilizar? De onde vem esta autoacusação?

 

A maneira mais simples para eliminar o crime no mundo seria abolir o código penal.

 

Aldraba-se o burro à vontade do dono.

 

 

 

 

É n’O processo que Kafka aborda uma das dúvidas escondidas mais interessantes que sempre tem acompanhado a sociedade humana. Nele, o protagonista, Joseph K., apesar de não ter cometido qualquer crime, é, contudo, acusado de o ter feito.

Não sabendo porque está a ser acusado  (aliás, a acusação nem sequer fora formulada), e com o intuito de poder ver e contactar com quem o acusava, e  para saber quem eram os juízes que o iriam julgar, dado que todos eles o evitavam e ignoravam, não hesita ele próprio em acusar-se.

 

Como não existia nenhuma sentença nem declaração da falta cometida, o processo poderia vir a prolongar-se indefinidamente no tempo, o que faria com que “o próprio processo acabasse por se transformar, aos poucos, numa sentença”. Ou seja, o próprio julgamento era a sentença.

 

Tal implicaria na prática, e para todos os efeitos, que não fosse sequer necessária qualquer acusação precisa. O que faria com que todo o homem, pelo simples facto de viver, pudesse vir a ser sempre posto em causa e ser acusado.

 

Foi esta situação que aparecia a Kafka como inaceitável, inevitável e impenetrável, e que o levou a questionar-se: “Como pode um homem ser culpado?

 

Por trás deste questionar, encontra-se um problema maior, posto à humanidade como um todo, que é o de tentar saber como é que o homem conseguiu conceber essa ideia de que as suas próprias ações o pudessem vir a fazê-lo culpado? De onde vem esta autoacusação?

 

 

 

Para Giorgio Agamben, os conceitos de ‘causa’ e de ‘falta’, constituem os alicerces do edifício do direito. E, contudo, nenhum deles tem uma definição etimológica, o que faz com que os seus sentidos originais não sejam conhecidos. O que não quer dizer que se renuncie a definir o seu significado.

É do latim ‘causa que deriva o termo ‘coisa’, “o que está em questão numa querela”, o que está em ‘causa’ entre os homens. É, portanto, a ‘coisa’ que aparece como fonte de litígio do direito e que está na origem dum processo, o que faz com que só a partir daí os homens se inscrevam na esfera da Lei.

Por sua vez, o conceito de ‘falta’, corresponde a uma elaboração a partir da noção de dolo, “dolus”, intenção de fazer mal ou de praticar uma fraude.

 

 Já o posterior conceito de ‘culpa’ se refere ao comportamento de alguém, que não tendo a intenção de fazer mal, acaba por provocar por negligência, um dano ou perca a outra pessoa, tendendo, portanto, a opor-se ao conceito de dolo.

 A introdução deste conceito, vai fazer com que a não intenção de fazer mal possa ser vista como condição de menor responsabilidade, e conduzir assim ao aparecimento de uma gradação da falta cometida, dependente do grau de implicação do sujeito e da sua ação.

Esta evolução dará lugar ao princípio moderno segundo o qual a responsabilidade assenta, em última instância, na livre vontade do sujeito, o que é normalmente visto como um progresso.

 

A relação entre a ação e o agente, que inicialmente era definida de uma forma exclusivamente factual (a ‘falta’), passa agora a ser fundamentada sobre um princípio inerente ao sujeito (a ‘culpa’), a uma interiorização da falta que o constitui como culpado, assumindo ele a inteira responsabilidade.

Esta fundamentação da falta como uma vontade do sujeito e a elaboração concomitante desse conceito de vontade, são obra da teologia cristã.

 

Recordemos que, foi o facto de a partir de determinada altura se querer considerar o homem como possuidor de “livre-arbítrio”, uma vontade do sujeito, sem o qual não poderia ser perfeito, pondo, portanto, em risco a intenção da criação do homem e da perfetibilidade do próprio Deus.

 

 

Agamben, vai explicar-nos que ‘pecado’, significa etimologicamente “passo em falso”. E que da análise dos documentos bíblicos, o ‘pecado’ tinha apenas que ver com um erro do homem na sua relação com Deus, um passo em falso, nada tendo que ver com uma vontade culpável.

 Tratava-se apenas da transgressão de um mandamento divino, mas a razão porque era feita, mantinha-se inexplicável e inexplicada.

Recorda-nos que no Génesis nunca aparece o termo ‘pecado’. Aparece sim, a relação puramente factual entre o ato cometido por Adão e Eva e as suas consequências: a tomada de consciência da sua nudez, a expulsão do jardim de Éden e a condenação ao sofrimento e ao trabalho.

Mas, para os teólogos, o que é fundamental é que “os dois se apercebam que podem violar, se o quiserem, o mandamento de Deus”. Tal não passa de uma interpretação forçada com o objetivo de inscrever a recitação bíblica na esfera da falta (como livre arbítrio e vontade culpável), de acordo com o sentido moderno do termo.

 

No direito canónico arcaico, a violação de um mandamento, “Dado […] que comeste da árvore que te tinha ordenado para o não fazeres […]”, era imediatamente seguida pelo enunciado da pena, do castigo.

Pelo que se não houvesse castigo, não haveria também falta, ou seja, o castigo só poderia ser aplicado em consequência de um ato cometido. Mas a falta só existe em virtude do castigo que a sanciona, logo, “Não há falta sem castigo”. O que faz com que essencialmente a lei consista, em última análise, na sanção.

 

Coube ao famoso jurista alemão infelizmente preferido de Hitler, Carl Schmitt, pôr em questão esse princípio jurídico fundamental segundo o qual “não há falta sem castigo”. Segundo ele, “o castigo precede logicamente a falta, uma vez que não haveria qualquer falta se ela não fosse punida”. O que acarreta que “não há castigo sem falta”.

Pelo que a maneira mais simples para eliminar o crime no mundo seria abolir o código penal.

 

Mas, será então que é possível existir uma lei sem sanção? Teoricamente sim. Aliás, tal era perfeitamente concebível para os juristas romanos, que distinguiam as leis de acordo com a existência ou não de sanções:

 

 “Diz-se perfeita a lei que proíba qualquer coisa de ser feita, mas se for feita, anula-se […], imperfeita a lei que proíba que se faça qualquer coisa e que, se for feita, não a anula nem se inflige um castigo a quem agir contra a lei […], e menos que perfeita a lei que proíba que se faça qualquer coisa e que, se for feita, não a anula, mas inflige um castigo a quem agir contra a lei”

 

A lei perfeita é, pois, a que afirma a sua omnipotência perante a inexistência jurídica daquilo que a viole. Percebe-se a preferência de Hitler por tal interpretação.

 

Como conclui Agamben, “é singular que a cultura que nos transmitiu os princípios fundamentais do direito, veja a sanção como uma imperfeição, ou pelo menos como uma menor perfeição da lei”.

 

 

Mais terra a terra, menos intelectualmente, bem diz o povo:

 

Albarda-se o burro à vontade do dono”.  Ou, como contemporaneamente se faz: “Aldraba-se o burro à vontade do dono”.

 

Alteram-se palavras, mas o conceito permanece: o burro é quem acaba por pagar, quem carrega. O burro, animal humilde sempre à disposição. Para a guerra, os mandantes montam antes o cavalo. Talvez por isso (e também para cumprimento de uma profecia), Jesus montou um burro com que entrou em Jerusalém, indicação que não ia para conquistar. Foi preso.

 

(197) A inutilização do “livre-arbítrio”

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

“Não acredito no livre-arbítrio … Tal como disse Schopenhauer: podemos fazer o que desejarmos, mas só podemos desejar o que podemos”, Albert Einstein.

 

O livre arbítrio não é uma realidade científica. É um mito que o liberalismo herdou da teologia cristã, Yuval Noah Harari.

 

Governos e empresas conhecem-nos melhor que nós próprios, pelo que nos podem vender tudo aquilo que quiserem.

 

Agora utilizamos as teclas do medo, ódio, cobiça e desejos preexistentes, para vendermos políticos e ideologias.

 

 

 

 

O que acontece quando se conjugam sólidos conhecimentos de biologia, uma imensidade de dados e uma grande capacidade informática? Uma das coisas que acontece é a possibilidade de os seres humanos serem pirateados por empresas e governos, para assim conseguirem predizer as decisões que iremos tomar, como inclusivamente para poderem manipular os nossos sentimentos.

Quando navegando na Internet, premimos num determinado conteúdo que nos interessa, conteúdo esse que pode ser de uma notícia falsa aí posta por uma rede com a finalidade de captar mais tráfego e assim aumentar os seus ganhos por publicidade, ou por um ‘trol’ aí voluntariamente colocado para provocar uma discussão ou para nos destabilizar ou enfurecer.

 E aqui começa o problema: é que quando premimos nesse determinado conteúdo, estamos convencidos que o fizemos de livre vontade, livre-arbítrio, quando na realidade fomos induzidos a fazê-lo, fomos pirateados.

 

Ao passo que no tempo de Hitler ele era obrigado nos seus discursos radiofónicos a dirigi-los para o menor dominador comum para assim atingir as debilidades concretas de cada pessoa, agora, pode-se saber através do algoritmo a predisposição de cada pessoa relativamente a cada assunto. Da mesma forma que inicialmente tal forma de piratear o cérebro humano através do premir em determinados anúncios conduzia a um aumento de vendas de produtos, agora utilizamos as teclas do medo, ódio, cobiça e desejos preexistentes, para vendermos políticos e ideologias.

 

Já não se está na fase da análise dos produtos que compramos, dos lugares que visitamos, das palavras que procuramos na Internet. Agora, através de sensores biométricos, o nosso interior torna-se acessível. Isso vai permitir, por exemplo, correlacionar o ritmo cardíaco com os dados do cartão de crédito e a pressão sanguínea com o historial das buscas efetuadas.

Ou seja, ao mesmo tempo em que estão a ler estas linhas, os Governos e as empresas também estão a saber que o estão a ler e a correlacioná-lo com todas as outras informações que têm sobre si. Ou seja, conhecem-nos melhor que nós próprios, pelo que nos podem vender tudo aquilo que quiserem, produtos, políticos, políticas e ideologia.

O que significa que os seres humanos são animais pirateáveis, o que faz do livre arbítrio uma ilusão do passado, onde os conceitos de “liberdade” e “individual” já não têm sentido.

 

O problema do “livre arbítrio” aparece quando os teólogos quiseram tentar justificar porque é que Deus fazia o bem quando castigava os pecadores por tomarem decisões erradas e recompensava outros por decisões acertadas. A única solução foi introduzir o conceito de livre arbítrio, através do qual os humanos tinham a capacidade para tomarem livremente as suas decisões, resposabilizando-os pelos seus atos, ilibando Deus.

 Se Deus não nos tivesse criado sem o livre arbítrio, então a sua criação não teria sido perfeita. É por aqui que começa a aparecer o conceito de “liberdade humana”.

 

O conceito de livre arbítrio mostrou-se particularmente útil a quando das lutas contra a Inquisição, contra o direito divino dos reis, na luta contra os regimes autocráticos e ditatoriais. O próprio conceito de “liberal”, que hoje incorretamente se usa como correspondendo a “conservador”, assenta na ideia base da liberdade humana. Por exemplo, se se acredita que devemos ter um governo eleito em vez de obedecer a um rei, se acreditamos que devemos procurar uma mulher (homem) para casar em vez de aceitarmos a decisão dos nossos pais, então somos liberais.

 

O liberalismo defende a liberdade humana porque assume que as pessoas são entes únicos, distinguindo-se dos animais pelo livre arbítrio. Como consequência, os sentimentos humanos e as decisões humanas constituem a máxima autoridade moral e política no mundo.

Infelizmente, o livre arbítrio não é uma realidade científica. É um mito que o liberalismo herdou da teologia cristã pelas razões anteriormente apontadas.

 

As decisões que os seres humanos tomam, nunca são decisões independentes. Cada uma delas depende de condições biológicas e sociais que escapam ao nosso controle. “Posso decidir o que comer, com quem casar, em quem votar, mas essas decisões dependem dos meus genes, da minha bioquímica, do meu sexo, da minha origem familiar, da minha cultura nacional, etc. Nenhum destes elementos foi por nós escolhido.”

 

O que acontece agora, contrariamente ao que acontecia no passado em que ninguém entendia muito bem o que era a bioquímica ou a neurologia, é que acreditar no livre arbítrio é perigoso, porque tornam essas pessoas que acreditam no livre arbítrio, mais fáceis de manipular.

Ao acreditarem que “o espírito humano é algo mais que genes, neurónios e algoritmos, que ninguém alguma vez poderá piratear” e que “nada poderá predizer nem as minhas decisões porque elas são o reflexo do meu livre arbítrio”, adotam a atitude de não dar importância ao que se está a passar, de ignorar o problema, o que não vai fazer que ele desapareça. Serve apenas para se tornarem mais vulneráveis.

 

 

A solução passa por aceitar que somos animais possíveis de ser pirateados, e intentar um melhor conhecimento de nós próprios, um outro “Conhece-te a ti mesmo” sem contar com a proteção ilusória do livre arbítrio, para assim nos podermos dedicar mais ao conhecimento dos nossos pontos débeis, que é por onde entram quem nos quer piratear através  da inteligência artificial e da bioengenharia.

 

 

 

 

Nota: Blog com base em “Could Big Data Destroy Liberal Democracy” de Yuval Noah Harari

(http://www.wuwm.com/post/yuval-noah-harari-could-big-data-destroy-liberal-democracy).

 

 

 

 

(196) “Tudo é vão, porque tudo é em vão”

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

 

Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade, Eclesiastes.

 

O destino do tolo também a mim acontecerá. Então porque me tornei sábio?

 

Embora o ser humano se esforce para procurar, não encontrará o que procura.

 

Não existe coisa boa para o ser humano debaixo do Sol a não ser comer e beber e sentir prazer.

 

 

 

Com os conhecimentos científicos que atualmente temos, não parece apresentar grandes dificuldades a definição do que deve o ‘ser humano’ ser. Tudo parecemos já saber sobre a sua biologia, fisiologia, química, psicologia, etc., dando já quase como certo como deverá viver o seu futuro.

Ficamos (os que ficam), no entanto, sempre um pouco desconfiados com tanta recém-certeza, dado os presentes quase sempre adiados para um futuro que nos foram dizendo estar aí sempre à porta, com as perspetivas assentes em algoritmos científicos controlados às escondidas pelos que manhosamente se creem e autointitulam como sendo os merecidamente escolhidos novos donos disto tudo.

 

Há, contudo, uma outra forma para conhecermos, reconhecermos, quais são as características da vivência do ‘ser humano’, recorrendo antes a escritos milenares em que nos revemos revelados. Metodologia  já utilizada para tentar definir o que se considera serem os paradigmas da ética, utilizando os exemplos de Job, de Ulisses, de Édipo, de  Antígona, de Sócrates (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/188-eticas-49840).

 Esses escritos baseiam-se na ideia de que a experiência, trazida pelos muitos anos vividos, pode servir de guia para as gerações seguintes. Partem da observação da vida e da necessidade de lidar com os seus diversos problemas e situações humanas, muitas vezes com instruções práticas sobre a forma como a devíamos viver, outras vezes com críticas e reflexões interrogativas sobre o sentido da vida, morte, justiça, vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc.

 

Esses escritos inscrevem-se naquilo que se costuma catalogar como “literatura de sabedoria”. Não faltam exemplos que se reportam aos muito antigos tempos da Suméria, Babilónia, Assíria, Egito e Grécia. São, por exemplo, os casos do mito da criação Enuma Elish (c. 1800 a.C.) e do épico de Gilgamesh (2800 a 2500 a.C.), onde a descrição do Dilúvio e das indicações para sobrevivência ao mesmo, são muito anteriores às descritas na Bíblia. Outros exemplos: o poema sumério Instruções de Suruppak (2500 a. C.),e os Trabalhos e Dias (700 a.C.) do poeta grego Hesíodo.

 

Também a enigmática e, talvez por isso igualmente inesgotável Bíblia, contém vários destes escritos de sabedoria, apresentados como Livros Sapienciais do Antigo Testamento: Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Job, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Salmos de Salomão.

Um desses escritos que nos dá essa sensação de ser um escrito de sempre e para sempre, é o Eclesiastes, incorretamente atribuído a Salomão (990 a 930 a.C.)  e que os especialistas atuais datam de 580 a 200 a. C., do qual reproduzo aqui alguns excertos, começando pela sua afirmação inicial:

 

 

Palavras de Eclesiates, filho de David, rei de Israel em Jerusalém.

Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade.

 /Que vantagem existe para o ser humano/ em todo o seu esforço com que se esforça debaixo do Sol? / Uma geração passa; e uma geração chega; / e a terra fica de pé para sempre.

[…] Aquilo que aconteceu, isso mesmo irá acontecer. / E aquilo que foi feito, isso mesmo será feito. / Nada de novo existe debaixo do Sol. / Quem dirá e afirmará: “Eis que isto é novo”? /Isso já aconteceu nas idades que existiram antes de nós. / Não existe memória de pessoas anteriores, / nem dos que nasceram depois.

 

[…] “O destino do tolo também a mim acontecerá. / Então porque me tornei sábio?

[…] Não há nada de bom no ser humano.

 

[…] Para todas as coisas há um tempo; / e há um tempo para todo o assunto debaixo do céu. / Tempo de dar à luz e tempo de morrer; / Tempo de plantar e tempo de arrancar o que foi plantado; / Tempo de matar e tempo de curar; / Tempo de deitar abaixo e tempo de construir; / Tempo de chorar e tempo de rir; / Tempo de estar de luto e tempo de dançar; /Tempo de atirar pedras e tempo de juntar pedras; /Tempo de abraçar e tempo de estar longe de um abraço; /Tempo de procurar e tempo de perder; / Tempo de guardar e tempo de atirar fora; / Tempo de rasgar e tempo de coser; / Tempo de calar e tempo de falar; / Tempo de amar e tempo de odiar; / Tempo de guerra e tempo de paz.

 

Que vantagem tem quem faz as coisas que faz?

[…] “Deus julgará o justo e o ímpio, / pois há um tempo para todo o assunto / e para toda a obra.”

[…] Acerca da fala de filhos do ser humano: / Pois Deus julgá-los-á / para mostrar que também eles são gado.” / Pois destino de filhos do ser humano / e destino do gado: / O destino de ambos é um. Assim como é a morte de um, do mesmo modo é morte do outro: / O espírito de todos é só um. / E o ser humano sobreleva em quê ao gado? / Nada. Porque todas as coisas são vacuidade. / Todas as coisas vão para um só lugar: / Todas as coisas vêm do pó; / e todas as coisas voltarão para o pó.

 

E eu voltei-me e vi a vacuidade debaixo do Sol. / Existe um solitário e não existe um segundo que lhe faça companhia: / pois não tem filho nem irmão. / Não há fim para todo o seu esforço; / e o olho dele não se satisfaz com riqueza. / “Para quem me esforço e privo a minha vida de felicidade?” / Pois, isto é vacuidade e uma preocupação negativa. / “Melhores são dois que um, / porque têm uma boa recompensa para o seu esforço. / Pois se caírem, um levantará o seu amigo. / E ai daquele que, quando cair, / não tenha outro para o levantar! / Pois se dois dormirem juntos, terão calor; / Um sozinho, como se aquecerá? / E se um for dominado, / dois estarão do lado dele; / E a corda tripla não será depressa quebrada. / Melhor é um rapaz pobre e sábio / do que um rei velho e tolo, / que já não soube dar atenção”.

 

Um bom nome é melhor do que azeite; / e o dia da morte de alguém é melhor do que o dia do seu nascimento. / É melhor entrar numa casa de luto / do que entrar numa casa de bebida, / porque esse luto é o fim de todo o ser humano / e o vivo dá-lo-á ao seu coração. / A ira é melhor do que o riso, / pois na má disposição do rosto o coração sentir-se-á bem. / O coração dos sábios reside em casa de sofrimento, / e o coração dos tolos, em casa de alegria. / É melhor ouvir a repreensão do sábio / do que um homem que ouve uma canção de tolos.

 

E louvei o prazer, / porque não existe coisa boa para o ser humano debaixo do Sol / a não ser comer e beber e sentir prazer.

[…] Foi então que vi todas as obras de Deus, / pois nenhum ser humano conseguirá / descobrir o feito que é feito debaixo do Sol. / Embora o ser humano se esforce para procurar, / não encontrará o que procura.

 

Vacuidade é algo que está em todas as coisas. / O mesmo destino existe para o justo e para o ímpio; / para o bom e para o mau; / para o puro e para o impuro, / para o que sacrifica e para o que não sacrifica. / O homem bom é como o pecador; / o que jura é como o que receia jurar. / Isto é um mal em tudo o que é feito debaixo do Sol: / o facto de ser só um o destino de todos.

 

[…] Pois os vivos saberão que vão morrer; / e os mortos não têm noção de nada. / Não há para eles recompensa, / porque foi olvidada a memória deles. / De facto, o amor deles e o ódio deles / e a inveja deles já pereceu; / E não lhes cabe nunca mais porção / em tudo o que é feito debaixo do Sol. / Vai, come o teu pão com prazer; / e bebe de bom ânimo o teu vinho, / porque Deus já aprovou as tuas obras. / […] Vê a vida com a mulher que tu amaste, / todos os dias da tua vida de vacuidade / que te são dados debaixo do Sol; / todos os dias da tua vacuidade, / porque isto é a tua porção na tua vida / e no teu esforço, com o qual te esforças debaixo do Sol.

[…] Que não é aos céleres que a corrida pertence; / nem aos fortes pertence a guerra; / nem aos sábios, o pão; / nem aos compreensivos, a riqueza; / nem aos inteligentes, a beleza; / porque tempo e destino acontecerão a todos eles.

 

[…] Vacuidade das vacuidades – disse o Eclesiastes -, tudo é vacuidade.” 

 

 

Eclesiastes, como aquele que preside ou convoca uma assembleia, foi opção para o título escolhido pelo autor (desconhecido), apresentando-se como se fosse o próprio rei Salomão a escrevê-lo, um pseudo-Salomão. Percebe-se a escolha:

 “confere credibilidade ao discurso cético acerca do valor da riqueza e dos bens materiais. Quem melhor que Salomão, detentor e dono de tudo (sabedoria, poder, riqueza, mulheres), para nos dizer que tudo o que acontece é ilusão? Para se compreender a profunda semelhança entre ‘tudo’ e ‘nada’, é preciso ter tido a experiência desse tudo. É preciso ter experimentado tudo”.

Alguns dos temas tratados referem-se ao propósito desta vida, à vida após a morte, à realidade do mal e da morte, à justiça retributiva das recompensas ou castigos de acordo com a obediência ou desobediência do ser humano.

Apesar de nas traduções tradicionais iniciarem o escrito com: “Palavras de Eclesiastes, filho de David, rei de Israel em Jerusalém: vaidade de vaidades – disse o Eclesiastes -, vaidade de vaidades, todas as coisas são vaidade”, Frederico Lourenço explica-nos que o termo grego “vaidade” não remete para a aceção narcisista de uma pessoa vaidosa, mas para a qualidade daquilo que é “em vão”. Pelo que optou traduzi-lo por “vacuidade”, ficando mais clara a afirmação de Eclesiastes, segundo a qual tudo é vão, porque tudo é em vão.

 

Surpreende a solução apontada por Eclesiastes para minorar a insatisfação humana, preconizando a contribuição do comer, beber e gozar do bem-estar, embora reconhecendo ao mesmo tempo que o apetite do ser humano não possa ser suscetível de satisfação.

 

 Apontando para a impossibilidade da felicidade individual, também não acredita que ela possa ser alcançada coletivamente. E uma vez que bons e maus são tratados da mesma forma, tal significará que não existirá o bem comum, pelo que não vale a pena lutar por ele.

 

Interessante uma das justificações para a vivência a dois: a cama ficar mais quente.

 

Outro ponto importante tem que ver com a consciência de que todos os seres vivos da terra têm um mesmo destino comum. Ou seja, homens e animais ao terem todos o mesmo destino, faz com que o ser humano não seja considerado superior ao animal.

 

Como é que tal escrito é repescado e sucessivamente integrado na Bíblia, é algo que só os teólogos poderão aclarar. Mas que se trata de um texto para todo o tempo, profundamente atual, ninguém poderá duvidar. Os algoritmos utilizados por Eclesiastes estavam corretos, e com a vantagem de não nos condicionarem.

 

 

Nota: Frederico Lourenço, Bíblia, Antigo Testamento, Os Livros Sapienciais.

                                                 

 

 

 

 

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