“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida: e o homem foi feito alma vivente”, Bíblia, Génesis 2.7.
O Pártenon, aquela estrutura de proporções e graça,fora construído para glorificar a prática primitiva do sacrifício de crianças, em honra de Atena.
O que fazer com obras de arte altamente apreciadas, mas cujas origens são repulsivas?
Como é possível ler-se Rilke à noite, ouvir-se Schubert de manhã e torturar ao meio-dia? Steiner.
Sem barro provavelmente não existiria a humanidade ou, pelo menos, seria diferente. O que faz do barro o elemento essencial para esta humanidade. Recordemos o que nos diz a Bíblia, Génesis 2.7:
“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida: e o homem foi feito alma vivente”.
Há muito que se sabia isto, só que devido à evolução que a sociedade foi tendo, o barro, o material primeiro, foi sendo esquecido e substituído pela forma que o artista lhe imprimia.
Contudo, nos curtos últimos tempos, tem-se assistido ao despertar de um interesse sobre o destino do barro, e sua ligação ao artista.
A professora e escritora francesa Camille Laurens (1957- ), publicou em 2017 o ensaio La petite danseuse de quatorze ans (A pequena bailarina de catorze anos), onde conta a história do relacionamento entre Edgar Degas (1834-1917) e Marie van Goethem (1865-?), a pequena bailarina de catorze anos modelo da célebre escultura, “La Petite Danseuse de Quatorze Ans, c.1881”.
De Degas e as suas mais de 2000 obras sabe-se quase tudo, especialmente da sua fixação pelas bailarinas do corpo de ballet da Ópera de Paris, as quais pintou obsessivamente a partir de 1870. Chamavam-lhe “o pintor das bailarinas”.
Acompanhando as jovens aspirantes a bailarinas desde as suas primeiras lições, apercebia-se das enormes dificuldades por que elas passavam. Para fixar esse momento mágico que finalmente lhes permitiria ascender a bailarinas, imaginou que o melhor meio para o fazer, seria através da escultura.
Começou por realizar uma série de estudos, em que apresentava o modelo (a muito pequena e jovem Marie) vestida e nua, para assim poder melhor compreender os seus movimentos e a estrutura do corpo.
O bronze ou o mármore eram os materiais correntemente utilizados para uma escultura. Mas Degas optou pela cera, material pouco nobre, perecível e onde seria impossível alcançar a perfeição do mármore. Mais: vestiu a sua bailarina com um tutu verdadeiro e um corpete feito de cera amarela.
Apresentada numa caixa de cristal na Sexta Exposição Impressionista de 1881, a obra era inovadora e escandalosa para a sociedade, nomeadamente pelo combinação do material escolhido, pela desconstrução do ideal de beleza e feminilidade que em vez de representar a elegância e a impassibilidade mostrava uma muito pequena mulher impetuosa, cheia de vida, pela estranheza do pequeno tamanho do ser humano representado (“Parece um macaco, um asteca, um feto”, que deveria antes estar num museu de medicina ou de etnologia), e pelo próprio tema em si, dado que as bailarinas de balé eram muitas vezes ligadas à prostituição e escândalos sexuais. Aliás, os salões da Ópera de Paris eram pontos de encontro de homens ricos e poderosos que procuravam jovens amantes ou meros encontros sexuais. Ponto de encontro entre arte e prostituição.
Era na Ópera de Paris que se localizava a escola de dança, onde jovens eram aceites a partir dos dez anos. As bailarinas eram, em geral, filhas de operários e outros trabalhadores, que buscavam através da dança uma ascensão social e estabilidade financeira, eufemisticamente falando.
Foi assim que aos treze anos Marie van Goethem, filha de uma lavadeira e de um alfaiate que viviam com grandes dificuldades económicas, entrou, juntamente com as suas irmãs, para a escola de dança. Logo Degas se fixou nela.
Entre 1878 e 1881, Marie pousou exclusiva e exaustivamente para Degas. Para além da escultura já referida, pousou também para uma série de outros trabalhos, nomeadamente: “Lição de dança”, c.1879, “Dança com leque”, 1879, “Dançarina a descansar”, c. 1879-1880.
Não parece que Degas tenha abusado do seu poder no processo de criar arte fazendo sexo, consensual ou não. Está documentado que Degas era um celibatário conhecido pela sua abstinência sexual após na sua juventude ter contraído uma doença venérea num bordel, tendo grande desconfiança relativamente ás mulheres.
Para ele, as bailarinas que pintava, não passavam de “pequenas ratazanas” que, por se prostituírem com homens mais velhos, lhes poderiam transmitir sífilis, tal como os ratos.
O fato das jovens bailarinas fazerem sexo com homens mais velhos, não era por ele considerado como abuso por parte dos homens, mas antes, que elas eram pecaminosas. Para ele, isso significava que as jovens eram já capazes de manipularem os homens, o que o horrorizava e fascinava.
Esta ideia que ele tinha sobre as mulheres, está patente na sua escultura da Pequena Bailarina. Alterou os traços faciais para enfatizar a suposta degeneração moral de Marie. Achatou-lhe a cabeça, esticou-lhe o queixo, para a deixar com uma aparência de primitiva. Degas concordava com a doutrina que supunha que os comportamentos humanos eram geneticamente transmitidos, e que se manifestavam nos traços físicos das pessoas. “Um rosto doentio e acinzentado precocemente envelhecido e marcado”, como notara um crítico.
Um ano depois, em 1882, Marie van Goethem vê o seu salário ser reduzido pela Ópera de Paris, acabando posteriormente por ser demitida. Parece que o seu trabalho como modelo do artista prejudicara a sua assiduidade aos ensaios, ou uma outra razão não especificada.
A partir daí, perde-se-lhe o rasto, nenhum registo de casamento, filhos, prisão ou morte. “Marie desapareceu sem deixar rastro … é provável que os seus restos mortais não estejam em túmulo próprio, mas numa vala comum.”
E conclui Laurens:
“Se Edgar Degas não tivesse escolhido Marie como modelo para a sua Pequena Bailarina, ela provavelmente teria continuado a trabalhar na Ópera de Paris. Continuando com o balé, ela teria evitado o mergulho no inferno cujos indícios são tão claros”.
Em fevereiro de 2018, foi vendida na Christie´s de Nova York, uma pintura de Pablo Picasso, “Fillette a la corbeille fleurie”, por 115 milhões de dólares.
Pintado em 1905, é a figura de uma pré-adolescente nua vista de lado, ainda sem pelos, peitos insipientes, oferecendo uma corbeille de flores vermelhas, com um rosto já de mulher usada que nos fixa.
Dela sabe-se muito pouco: o seu sustento provinha de se vender a si e às flores, pousando por vezes para artistas como Amadeo Modigliani e Kees van Dongen. Mais nada. Até o próprio nome, Linda, não se tem a certeza se é nome, se é como a chamavam por ser linda.
De Picasso sabe-se quase tudo, inclusive o facto de ter batido de tal forma uma das suas “musas” que a deixou inconsciente, e ter ameaçado outra das suas “musas” de lhe queimar a cara de com cigarros.
Estas “musas”, que teoricamente são a “mediação” que permitiriam os artistas acederem ao ideal da arte escondido num sem lugar, a “chave” que o artista usava para aceder à ideia que intentava representar, acabavam no fim por serem mais um objeto desumanizado. Descartadas. Tudo em nome da arte interpretada pelo artista.
Movimentos feministas começaram ultimamente a porem em causa esta utilização das mulheres e crianças. Como escreveu Mia Merrill, diretora de talentos com mestrado em gestão social pela Columbia University, NY:
“Muitos críticos dizem que esta pintura é uma obra-prima, e talvez seja, mas isso leva-nos a pôr uma pergunta: porque é que temos a tendência de subestimar comportamentos desumanos e monstruosos quando se trata de artistas?”
Esta problemática é muito mais vasta, antiga e atual. Não se circunscreve apenas às mulheres e às crianças. Não se trata apenas de “interrogar o lugar da mulher na história da arte”, preocupação de Deborah de Robertis, a artista luxemburguesa de performance que participou de peito nu, pintada de prateado e com um véu vermelho na cabeça, numa “alegoria à liberdade da República”, na marcha dos coletes amarelos efetuada em Paris.
O problema mais geral é o que fazer com obras de arte altamente apreciadas, mas cujas origens são repulsivas. Ou, ainda dito de outro modo, como podemos ficar encantados com a beleza de castelos e palácios, sabermos e admirarmos os nomes dos seus donos e arquitetos, e ignorarmos o sofrimento e a miséria de quem os construiu? Que arte, que beleza é que nos ensinaram a admirar e a respeitar?
Um exemplo elucidativo é o do Pártenon de Atenas, que em parte já abordei no meu blog de 24 de agosto de 2015, “Grécia: o local divino”.
A imagem que temos vindo a conservar do Pártenon, foi-nos legada pela interpretação que o alemão Johann Winckelmann (1717 - 1768) fez dele, ligando-o à república de Péricles, à democracia, à noção de liberdade individual e ao refinamento intelectual, e que tem vindo a servir de exemplo a ser reproduzido em todo o mundo como modelo de dignidade da democracia, do conhecimento, da beleza e da intemporalidade. Exemplos: o Museu Britânico de Londres, a Caixa das Alfândegas de Wall Street em Nova Iorque, a National Portrait Gallery de Washington, o Panteão do Quartier Latin de Paris, o Capitólio de Havana.
O Pártenon foi construído por Fídias, durante a "idade de ouro" de Péricles (século V a. C.), em honra de Atena, a deusa da cidade.
Na parte superior da colunada exterior há um friso que o percorre e que se supunha ser a representação das várias fases de uma cerimónia solene. Soldados cavaleiros seguidos por pessoas que levavam animais para o sacrifício com ofertas de músicos, serviçais e idosos.
Ao aproximarem-se da cena central por cima da entrada oriental, podem ver-se entre outras figuras, um homem e uma criança oferecendo uma túnica (peplos) à deusa Atena.
Em 1675, o inglês Francis Vernon, após visitar o templo, desenhou e inventariou os frisos, vendo neles o relato de um sacrifício, com uma procissão de animais a caminho da oferenda.
Esta sua teoria caiu no esquecimento perante a leitura, mais consentânea para a época, feita por Wincklemann: Atenas, a razão, a democracia, a liberdade, etc.
Johann Joachim Wincklemann, considerado o pai da história da arte com a sua obra História da Arte Antiga (1764) era, acima de tudo, um helenista numa época que procurava libertar-se da estética do rococó e barroco tardio, apresentando e defendendo a arte helénica como modelo supremo da arte.
E assim se manteve o conhecimento do Pártenon até que em 2014, a professora da universidade de Nova Iorque NYU, Joan Breton Connelly, publica no The American Journal of Archaeology um artigo, ‘The parthenon enigma’, onde, após ter estudado o friso do Pártenon removido por Thomas Bruce (Lord Elgin) no início do século XIX e que se encontra em Londres no British Museum (existem pequenas partes do friso espalhadas nos museus em Paris, Roma e Atenas), conclui que existe uma nova explicação para o friso que nos “encoraja a reavaliar a nossa compreensão sobre o festival das Pan-Atenaicas como acontecimento que vai para além de uma celebração do aniversário de Atena”.
Depois de ler os fragmentos de uma tragédia perdida de Eurípedes sobre Erecteu, que fora escrita em 423 a. C. dez anos depois de acabado o Pártenon, e que acabara por ser encontrada em papiros que envolviam uma múmia egípcia do Louvre de Paris, a Dra. Connelly apercebeu-se que, contrariamente á interpretação tradicional que via no friso a oferta de uma túnica a Atena, a representação do friso central era antes a de Erecteu, rei de Atenas, da sua mulher Praxítea, e das suas três filhas, numa procissão sacrificial que conduziria à morte das meninas, a fim de salvar a cidade duma invasão, conforme pedido expresso pelo Oráculo de Delfos.
O rei ajuda a sua filha mais nova, à direita, a desdobrar a mortalha: ela seria a primeira a morrer. A segunda filha, atrás à esquerda, leva a mortalha ainda dobrada, à cabeça; a filha mais velha entrega a sua mortalha à mãe.
Atena ‘não estava, pois, a receber a túnica, mas sim as mortalhas que cobriam os corpos das filhas de Erecteu’.
Connelly sabe que esta nova interpretação tem ‘implicações muito grandes para o nosso conhecimento sobre o papel das mulheres nos mitos e cultura Gregos’. É que para o bem da cidade, os rapazes iam para a guerra, mas as raparigas iam para o sacrifício imediato.
E continua dizendo que ao tempo, a vida na república de Péricles ‘era muito mais obscura e primitiva do que se crê’. Era ‘um mundo cheio de ansiedade, dominado por uma obsessão egocêntrica em definir o seu lugar no mundo, saturado de espiritualidade e marcado pela necessidade de se estar de boas relações com os deuses’.
Um mundo ‘permanentemente ameaçado pela violência, pela guerra e pela morte’. O próprio Péricles era um homem marcado pela superstição.
Para Connelly, a particularidade de Atenas não era o gosto pela razão, mas antes o gosto por uma certa cultura da excelência. A república não era uma sociedade em que a religião fosse um conjunto de fábulas com deuses em vez de animais, que nos transmitiam conhecimentos, dando animação e divertimento à vida. Na Grécia, a religião era tudo.
A Acrópole era um recinto sagrado e não um monumento à razão. Atena, a deusa da sabedoria, não era aquela amiga sábia e compreensiva que nos têm posto na cabeça. O Pártenon, aquela estrutura de proporções e graça, fora construído para glorificar a prática primitiva do sacrifício de crianças, em honra de Atena.
Um dos problemas importantes destas interpretações é a de nos revelar a possibilidade de algo de bom (o embrião do sistema democrático, uma arquitetura equilibrada, um teatro e filosofias marcantes) poder comungar o mesmo espaço de algo de mau (deuses que exigem sacrifícios humanos, nomeadamente de crianças).
Exemplo mais recente é o da relação entre a cultura Alemã e o nazismo: já Steiner perguntava como era possível ler-se Rilke à noite, ouvir-se Schubert de manhã e torturar ao meio-dia. E a resposta é que os objetos culturais, por si só, nada podem contra a barbárie, quer agora quer então.
Só que possivelmente na Grécia Antiga a cultura era entendida como quadro de referências comuns, como cultivo de saber e de um encontro com outros, o que talvez tenha evitado a barbárie.
A perplexidade manifestada por Steiner aparecerá sempre que procedermos à análise de uma questão separando-a de tudo o que a rodeia. É por isso que Le Corbusier e a grande maioria dos arquitetos vê no Pártenon um tratado de geometria e de abstração ímpar, um edifício perfeito. Nem mais altura, nem mais corpo, nem mais profundidade. Tudo perfeito. Da mesma forma que os engenheiros construtores dos fornos crematórios nazis se orgulhavam das suas obras perfeitas, ao ponto de gravarem nas portas os nomes das firmas de proveniência: Thyssen, Krupp.
Ou seja: será correto não ter em consideração a finalidade das obras, sejam elas de arte ou outras? É possível extasiarmo-nos diante de uma obra que nos deveria provocar indignação e horror? Claro que sim, tudo isso até já foi há muito tempo, da mesma forma que temos em casa moinhos de café Krupp e andamos em elevadores Thyssen (e tomamos aspirina Bayer, que fornecia o Ziklon-B para as câmaras de gás).
Recentemente, Mia Merril, enviou uma petição ao Metropolitan Museum de Nova Yorque, para que este retirasse de exibição o quadro de Balthus, “Thérèse Dreaming” ou que indicasse claramente no texto da placa que o acompanhava, que se tratava de uma obra de uma natureza potencialmente perturbadora.
O quadro mostrava Thérèse Blanchard, vizinha de Balthus, que ele começou a usar como modelo desde os 11 anos, em que ela aparece reclinada numa cadeira, de olhos fechados, braços colocados atrás da cabeça, com os joelhos entreabertos e a saia ligeiramente subida de forma a ver-se uma cuequinha branca.
A solução proposta por Mia Merrill tem a sua lógica e racionalidade, não sendo muito diferente da dos islamitas radicais que destroem obras de arte ‘ocidentais’ por a sua finalidade ser contra o Islão. Contudo, neste último caso, dizemos que eles são fundamentalistas.
Deixem-nos matar, esfolar, e vender, até os búfalos serem exterminados. É a única maneira para se conseguir alcançar uma paz duradora e permitir que a civilização avance, general Sherman, 1875.
A Terra já passou por alguns cataclismos que quase levaram à extinção dos seres vivos …. Compreensíveis, mas impossíveis de evitar.
Com os drones polinizadores as abelhas deixam de ser necessárias.
Sabe-se que 90% das flores silvestres do mundo e 30% das colheitas são essencialmente polinizadas por abelhas, e ainda por morcegos, pássaros e outros insetos. Como tem havido um grande decréscimo nas populações de abelhas, muitos investigadores (leia-se projetos de investigação) procuraram no campo da robótica a alternativa que permitisse à humanidade continuar a produzir os alimentos que necessitava.
Desenvolveram-se protótipos de drones que, imitando as abelhas, começaram agora a chegar ao mercado: “robotic bees”, embora ainda controladas manualmente.
Projetos mais avançados ainda em estudo, (Harvard University School of Engineering and Applied Sciences), preveem drones miniaturizados que se comportem autonomamente e atuem em enxames sem necessidade de serem controlados individualmente. Atribui-se-lhes a missão e, eles encarregam-se de a desempenhar, sem chocarem uns com os outros.
Está solucionado o problema da polinização, sem necessidade das abelhas.
A Terra já passou por alguns cataclismos que quase levaram à extinção total dos seres vivos, resultante de alterações bruscas das condições que permitiam a vida, como as originadas por impactos de grandes massas vindas do espaço. Alterações enormes e bruscas, porque verificadas em espaços de tempo curtos. Compreensíveis, mas impossíveis de evitar.
No reino animal, existem dois grandes grupos: o dos invertebrados e o dos vertebrados. Os insetos, tal como as anémonas, os corais, estrelas do mar, caranguejos, lagostas, alforrecas, são invertebrados.
Os invertebrados constituem 97% do reino animal conhecido, dos quais cerca de 70% são insetos. Tal como o plâncton é fundamental para a vida dos seres marinhos, também os insetos são fundamentais para os animais terrestres. A tal ponto que cientistas consideram que “se os insetos desaparecerem, o ambiente que nos rodeia transformar-se-á num caos” (https://www.nytimes.com/2018/05/26/opinion/sunday/insects-bugs-naturalists-scientists.html).
Um grupo de investigadores alemães publicou em outubro de 2017, um exaustivo estudo sobre insetos, das joaninhas às abelhas, passando pelas traças, carochas e borboletas, (https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0185809), em que demonstram que nos últimos 27 anos tem havido um declínio de 75% da biomassa de insetos voadores.
As causas apontadas para tal declínio vão desde a interferência humana até à degradação e destruição do seu habitat natural, a utilização de pesticidas, a agricultura industrial, a poluição, incluindo a poluição luminosa (que desnorteia os insetos e interrompe o acasalamento), as alterações climáticas, em particular o aumento da temperatura.
Há zonas em que ao longo dos últimos 40 anos, a população de artrópodes, como aranhas e centopeias, diminuíram quase 98%, implicando concomitantemente uma diminuição drástica de pássaros, lagartos e outros similares que se alimentavam de insetos. Algumas das espécies desapareceram. Ver o estudo sobre este declínio de artrópodes (https://www.pnas.org/content/115/44/E10397).
Na mesma direção vão os estudos relativamente aos vertebrados. Os vertebrados constituem apenas 3% do reino animal, com as suas 62.839 espécies de peixes, anfíbios, repteis, pássaros e mamíferos.
O termo “aniquilação biológica” aparece pela primeira vez num estudo de 2017 sobre o declínio da população e extinção de vertebrados, “Biological annihilation via the ongoing sixth mass extinction signaled y vertebrate population losses and declines” ((https://www.pnas.org/content/114/30/E6089).
No passado mês de outubro saiu o extenso Relatório do Planeta Vivo, onde se incluem estudos sobre a biodiversidade, ecossistemas e as necessidades de recursos naturais. Uma das suas constatações é que, entre 1970 e 2014, a população dos vertebrados registou um declínio de 60% (https://www.worldwildlife.org/publications/living-planet-report-2018).
Como causas para este declínio aponta a “sobre exploração das espécies, agricultura, e conversão dos terrenos, devido ao crescente aumento do consumo humano”, apresentando ainda a alteração climática como uma ameaça crescente.
Não é a primeira vez que os humanos se entregam à extinção de populações. Recordemos a matança em massa das baleias do Ártico no século XVII, que originou uma riqueza tão grande que transformou a Holanda numa das nações mais ricas do seu tempo. Época das pinturas de Rembrandt e Vermeer.
Recordemos a matança em larga escala do bufalo americano no século XIX, que permitiu a expansão colonial para o oeste ao mesmo tempo que destruía os nativos americanos (índios) retirando-lhes a fonte de alimentação. Conta-se que em 1875, o general Sherman disse: “Deixem-nos matar, esfolar, e vender, até os búfalos serem exterminados. É a única maneira para se conseguir alcançar uma paz duradora e permitir que a civilização avance”. E assim se fez.
Os animais de grande porte são, evidentemente, mais visíveis, pelo que o seu desaparecimento se torna mais notado. A nossa sociedade tem resolvido o problema através da conservação de algumas espécies em cativeiro, jardins zoológicos, reservas, matanças controladas.
Já a matança de outros animais mais pequenos tem passado despercebida. Se estivéssemos atentos, deveríamos ter dado por isso. Quando hoje viajamos de carro pelo país fora, os vidros ficam muito menos sujos de insetos esborrachados. Isso deve-se à enorme diminuição do número de insetos. E, contudo, fácil é atribuirmos tal ao aerodinamismo dos carros, à qualidade dos vidros, aos repelentes de insetos, enfim à técnica moderna.
De igual forma vemos a notícia da substituição das abelhas por drones polinizadores apenas como um grande avanço tecnológico. Se podemos prescindir das abelhas, para quê preocuparmo-nos com elas?
Em vez de tentarmos resolver os problemas pelo que eles são, propomos soluções parciais que irão mais tarde agravá-los. Face à enorme diminuição do número de insetos, vamos ainda agravar mais o problema ao apontarmos como solução para a alimentação, o comer-se insetos. E assim com tudo: animais, plantas, seres humanos.
Somos todos general Sherman em potencial. Só que mais democratas, pois estendemos a extinção a tudo o resto. E, desta vez, o cataclismo teria sido possível evitar. Mas não se preocupem: não vai ser para já. O tal problema das costas que folgam enquanto o pau vai e vem.
A verdadeira felicidade pode ser condicionada e, portanto, ensinada.
Vivemos em mundos criados pelas nossas interrogações, David Cooperrider.
Todas as organizações existem para eliminar os desvios, Kim Cameron.
A psicologia positiva tem como finalidadeacabar com o criticismo e formatar um grupo de forma a ele se tornar fraco e maleável, sonâmbulo suficiente para poder receber ordens.
A ideologia da harmonia é um assalto concertado à democracia.
Em vez de se pensar as empresas como sendo algo inanimado que a certa altura acabaria sempre por necessitar de remendos, arranjos, alterações, David Cooperrider (1954- ) começou a vê-las como organismos vivos cuja saúde dependia essencialmente das pessoas que nelas trabalhavam. Quanto melhor se sentissem, tanto melhor seria o estado das empresas. A questão seria como conseguir que os trabalhadores se sentissem bem numa empresa em mudança permanente.
A resposta explicitou-a ele na sua tese de doutoramento, (1985), Appreciative Inquiry: A Methodology for Advancing Social Innovation (Investigação Apreciativa: uma Metodologia para o Avanço Social da Inovação), em que vai propor a necessidade de se efetuar uma “Transformação Positiva”, para garantir o futuro das mudanças organizacionais das empresas, tendo como base o “pensamento positivo” que irá originar o otimismo como estado de espírito permanente.
Será através da aplicação da “Investigação Apreciativa”, que os trabalhadores acabarão por virem a tornar-se um conjunto feliz e harmonioso, que farão aumentar os lucros das empresas.
Haver harmonia nas empresas significa poder alcançar todos os objetivos. Tudo se torna possível. Os lucros podem sempre crescer. Precisamos apenas de ter a atitude certa, que é obtida quando fundirmos o nosso ser com o coletivo da empresa. Ao juntarmos o nosso querer ao de todos os outros que lá trabalham, acabaremos também por encontrar a felicidade pessoal.
Poderemos quase que religiosamente conseguir realizar o impossível. Para isso, basta pensar sobre as coisas, visualizá-las, desejá-las, e elas acontecerão.
A rápida aceitação deste princípio pelas principais corporações empresariais, Wal-Mart, Hewlett-Packard, United Way, Boeing, U S. Navy, American Red Cross, Carter Center, Nações Unidas, levou à explosão de conferências, palestras, workshops, para ensinarem, doutrinarem gestores, trabalhadores e suas famílias, bem como ao aparecimento de currículos variados nas principais universidades, algumas até com programas exclusivos de doutoramento em “Ciência de Psicologia Positiva” (Claremont Graduate University, University of East London, Universidade de Milão, Universidade Nacional Autónoma do México, etc.)
Mas, Cooperrider previa ainda um maior alcance para a Investigação Apreciativa:
“Por outras palavras, as instituições podem ser o veículo para trazer maior coragem ao mundo, para amplificar o amor no mundo, para amplificar a temperança e a justiça, e por aí fora”.
Vários cursos em Psicologia Positiva mostram que se nos focalizarmos em cultivar as nossas forças, otimismo, gratidão, e uma perspetiva positiva, conseguiremos prosperar mesmo nos tempos difíceis.
Recomendam mesmo, técnicas terapêuticas para alcançarmos a felicidade, como, por exemplo, escrever cartas de agradecimento aos que forem amáveis para connosco, escreverem para si próprios sobre o que fizeram de melhor quando se sentiram bem, referindo os seus aspetos positivos. Depois, devem rever essa história uma vez por dia durante uma semana e refletirem sobre as qualidades que identificaram. Tal conduzirá a um aumento de felicidade e a uma diminuição de sintomas depressivos.
Utilizam pequenas frases feitas que ficam no ouvido, como “Aprenda a falhar ou falhe a aprender”.
Estes especialistas em felicidade chegam a formular leis, como a “Lei da Atração”, segundo a qual conseguiremos coisas boas na vida, seja dinheiro, relações, ou emprego, se nos focalizarmos no que desejamos. Visualizemos aquilo que queremos, acreditemos que iremos conseguir.
Imensas escolas em todo o mundo estão a pôr na prática esta teoria. Por exemplo, a Geelong Grammar School, Austrália, segue um currículo de psicologia positiva, onde centenas de professores são ensinados, tal como se fossem missionários, para “espalharem a noção de educação positiva”.
O mesmo se passa para a resolução dos problemas educacionais e do convívio de pais e filhos. Afinal, a verdadeira felicidade pode ser condicionada e, portanto, ensinada.
Também não têm dúvidas que as ilusões positivas têm um efeito que pode ser mensurável nos rácios de sobrevivência nos doentes de cancro, sida, e doenças cardiovasculares ou cirurgias.
Os que não consigam exibir atitudes positivas serão considerados como doentes que necessitam de correção. “Pesquisas feitas com pessoas dos bairros degradados e com prostitutas, mostram que as emoções positivas têm menos a ver com os recursos materiais do que pensamos; têm muito mais a ver com a atitude e o modo como encaram as circunstâncias”.
Ou seja, as mulheres e crianças que são abusadas e batidas, os desempregados, os deprimidos, os doentes mentais, os iletrados, os abandonados, os que estão de luto pelos entes queridos, os esmagados pela pobreza, os doentes terminais, os que lutam contra a droga, os traumatizados, os que estão na armadilha dos empregos mal pagos, os que enfrentam o despejo ou a bancarrota por não poderem pagar as contas médicas, afinal apenas precisam de ultrapassarem a sua negatividade. A alquimia integral redescoberta.
Preciso é ter a atitude certa. E a atitude certa é nunca questionar as finalidades e os objetivos das empresas. Questioná-los é entrar no criticismo dos objetivos de um coletivo, é ser obstrutivo e negativo. As corporações é que têm o poder de determinar as suas identidades. As corporações dizem-nos quem nós somos e quem vamos ser. São o único caminho para o nosso preenchimento e salvação. Se não estivermos lá felizes é porque há qualquer coisa de errado connosco. Debater e criticar os objetivos e a estrutura da corporação é condenável, negativo e contraprodutivo.
Kim Cameron, professor de Gestão e Organizações, na Universidade de Michigan, explica como é que as corporações podem usar práticas “positivas e virtuosas” que levam ao aumento dos lucros:
“Todas as organizações existem para eliminar os desvios. A razão porque nos organizamos é para minimizar o não espectável, o caótico, o comportamento imprevisível. A organização existe para eliminar o desvio negativo.”
Cameron explicou aos executivos das empresas como através da felicidade, compaixão e bondade, conseguiriam aumentar os lucros. “Na organização ótima, o empregado é mais feliz, mais saudável, mais produtivo e mais barato. O trabalhador ótimo faz menos queixas. Obedece mais. Custa menos ao empregador em despesas com cuidados de saúde.”
Esta promoção de uma harmonia coletiva, debaixo da promessa de se alcançar a felicidade, é mais um outro mecanismo disfarçado para se conseguir a conformidade. A psicologia positiva tem como finalidade acabar com o criticismo e formatar um grupo por forma a ele se tornar fraco e maleável, sonâmbulo suficiente para poder receber ordens. Assim, por exemplo, quando ensinam aos gestores como falar com os empregados, não é para comunicarem com eles, mas para melhor os controlarem.
Quando os seus adeptos a apresentam apenas como “uma forma de gestão”, que até é bem melhor que a “gestão científica” de Frederick Taylor e a “engenharia social” de Henry Ford, estão mais uma vez a enganar-nos.
A desumanização a que conduziu a aplicação dos princípios de Taylor, “ao partir cada movimento dos operários num certo número de passos, para os reorganizar numa sequência mais eficiente, pela eliminação de movimentos desnecessários”, levou a que nos anos vinte do século passado, se tentasse uma nova aproximação com a finalidade do estabelecimento de uma nova ordem viável para as empresas.
Surgiram então os programas que permitiam a contratação coletiva, margens de lucro, seguros, planos de pensões, segurança na reforma, horas máximas de trabalho, e salário mínimo.
Sabemos que todos os sistemas de poder ao longo dos séculos, cujos exemplos mais recentes vão do colonialismo à globalização, têm usado a ideia da harmonia social como um mecanismo de controle. Qual, então, adiferença entre o que praticava Taylor, Ford, o acarinhado “amor à camisola” desportivo, e o que está agora sendo aplicado com esta teoria do “pensamento positivo”?
Resumidamente, são duas as grandes diferenças: a utilização de técnicas psicológicas específicas para motivar os trabalhadores, e o aumento cada vez maior do número de empresas que têm vindo a experimentar essas técnicas.
Dito de outra forma: há uma grande diferença entre harmonia social e ideologia da harmonia, entre positividade e ser genuinamente positivo. Esta caminhada para a harmonia conduz à censura encoberta e à autocensura. A tirania da harmonia levada ao limite, conduz a uma vida de fantasia que nos afasta da realidade presente. A ideologia da harmonia é um assalto concertado à democracia.
Durante os anos oitenta, a indústria automobilística dos EUA utilizou estas táticas de cooperação entre trabalho e gestão, para competirem com a indústria japonesa. Passaram a ser afixados nas paredes das fábricas, os números de carros japoneses e americanos vendidos. Ao lado dessas listagens, afixavam-se cartazes que diziam, “Estão a entrar na zona de guerra. Qualidade e produtividade são as nossas armas”.
Por exemplo, os trabalhadores da GM passaram a ser agrupados em “autogestionados”, em “círculos de qualidade” ou em equipas que formassem uma identidade. As equipas competiam entre si e com outras equipas por forma a aumentarem a produtividade, cada uma delas com nomes dados à sua escolha.
Deixaram de haver espaços reservados para estacionar ou casas de banho para os executivos. Gestores e trabalhadores comiam na cafetaria comum. Os trabalhadores da produção passaram a ser chamados de “associados” ou “técnicos” em vez de “trabalhadores” ou “empregados”.
Foram introduzidos sistemas de prestígio que indicavam o grau de apreciação que a empresa tinha dos seus “associados”, como bonés de cores diferentes, braçadeiras ou mesmo divisas. Eram reconhecidas as “equipas do mês”, incentivando os “jogadores da equipa” (team player).
Contudo, “qualquer símbolo de estatuto que fizesse lembrar qualquer sentimento de consciência de classe, era removido do local de trabalho”.
A base desta teoria, que reflete a ideologia de um estado empresarial, assenta na afirmação/ilusão de que a realização do indivíduo só é possível de atingir quando estiver em sintonia perfeita e em conformidade social, uma conformidade que todas as estruturas autoritárias e totalitárias procuram impor à queles que dominam. Já vimos o que isso deu. Estamos a ver o que isso dá.
Notas:
# Exemplo interessante de “team player” é o mostrado no filme passado em 2077, Esquecido (Oblivion), em que a parelha constituída por Jack Harper (Tom Cruise) e Vika (Andrea Riseborough) é constantemente relembrada pela supervisora Sally (Melissa Leo) sobre o seu trabalho como equipa, essencial para o cumprimento da “sua Missão”.
# Sobre o funcionamento de uma fábrica da GM-Toyota, ver Robert Ozaki, Human Capitalism: The Japanese Enterprise System as World Model.
# Sobre as novas relações de trabalho, ver Roberto González, Brave New Workplace: Cooperation, Control, and the New Industrial Relations.
O facto essencial da Idade Moderna não foi a descoberta que a Terra andasse à volta do Sol, mas que o dinheiro andasse à volta da Terra.
O Palácio de Cristal representa a tentativa para integrar toda a vida social num habitáculo protetor.
No modo de operar do ‘apartheid’ universal, encontramos por um lado, o facto de tornar invisível a pobreza nas zonas de prosperidade, e por outro, a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.
É esta mudança uma utopia? Não, a verdadeira utopia é acreditarmos que conseguiremos sobreviver sem essa mudança radical, Zizek.
No Hyde Park de Londres, a 1 de maio de 1851, a rainha Vitória, inaugurou a primeira Exposição Universal do mundo. Para a albergar, ergueu-se uma enorme construção feita com elementos modulares prefabricados, de metal, vidro e madeira, qual estufa gigante, de acordo com o plano traçado pelo perito em horticultura, Joseph Paxton. Acolhia dezassete mil expositores, sete mil dos quais da Grã-Bretanha e das suas trinta colónias, além de fontes, jardins e climatização.
Em 1854, num novo alarde de prodígio tecnológico, a construção foi desmontada, aumentada, e transportada para Sydenham, South Kensington, subúrbio de Londres, onde permaneceu como uma grande estufa e museu imperial da cultura, local de concertos com programas de música clássica interpretados perante enormes audiências (percursor dos centros comerciais e dos concertos pop nos estádios). Em 1936, acabou totalmente destruída por um incêndio.
Anotemos duas pequenas curiosidades: é a revista Punch, que na sua edição de 2 de novembro de 1850, vai chamar pela primeira vez ao palácio da Exposição, “Palácio de Cristal”; o clube inglês de futebol, Crystal Palace, retira o seu nome do local para onde a Exposição fora transferida em 1854, e onde se veio a situar o seu campo de jogos.
Em 1862, quando Dostoiévski (1821-1881) visitou a Exposição Universal, já ela estava em South Kensington. As impressões dessa sua visita, encontram-se reunidas nas Notas de Inverno sobre Impressões de Verão, 1863, onde, entre outras considerações, zomba dos “sargentos-chefes da civilização”, e do “apego à estufa dos progressistas de orangerie”(uma referência jocosa e crítica, uma vez que já desde 1617 as arcadas do Palácio do Louvre tinham sido fechadas com grandes superfícies transparentes de vidro, por baixo das quais se plantaram laranjeiras que ficavam assim protegidas do inverno).
Mas Dostoiévsky, manifesta sobretudo o grande receio que lhe inspirava a ostentação do que considera ser o “culto jubiloso e triunfal de Baal” (numa antevisão do que no século XX se viria a chamar de consumismo) que, quanto a ele, impregnava todo o palácio daquela Exposição Universal.
Um edifício de luxo com ar climatizado, no qual devia reinar uma eterna primavera do consenso […] que haveria de levar a uma participação espontânea de todos no destino de todos”, “destinada a fazer da sociedade enquanto tal um objeto de uma exposição em si própria”.
É, ainda, o primeiro a comparar a civilização ocidental a esse “palácio de cristal”, onde a burguesia se pretendia rever como equação pós-histórica da humanidade, convencida da detenção do poder de compra, e segundo a qual: “Possuir dinheiro [era] a maior virtude e o maior dever humano”.
Passado pouco mais de um século, Peter Sloterdijk (1947-), já não tem dúvidas em considerar que o Palácio de Cristal representava “uma tentativa para integrar toda a vida social num habitáculo protetor”.
Essa camada protetora estaria para o capitalismo de então como a globalização está hoje para o sistema capitalista atual: determina-lhe as condições de vida, permitindo a construção e expansão de um mundo interior cujas fronteiras são invisíveis, e sem as quais ele não poderia subsistir, e que hoje é “habitado internamente” por um bilião e meio de vencedores. Fora dele são deixados mais de três vezes esse número.
Esse espaço interior capitalista global a que se chama geralmente “Ocidente ou esfera ocidentalizada”, “não constitui uma estrutura arquitetónica coerente: não é uma entidade semelhante a um prédio de habitação, mas uma instalação de conforto com a qualidade de uma estufa, … composto de enclaves pretensiosos e de cápsulas acolchoadas que formam um único continente artificial”.
“Embora seja concebida como um universo ‘indoors’, a grande estufa não precisa de epiderme fixa […] Só em casos excecionais concretiza as suas fronteiras num material duro, como no caso da barreira que separa o México e os Estados Unidos ou na chamada barreira de segurança entre Israel e a Cisjordânia. Mas as suas divisões mais eficazes… erige-as sobre a forma de descriminações, muros constituídos pela possibilidade de acesso à capacidade financeira que separam os possuidores e os não possuidores, muros erigidos pela repartição extremamente assimétrica das possibilidades de vida e das opções de emprego.
Na face interna, a comuna dos detentores do poder de compra põe em cena o seu sonho acordado de uma imunidade global que se acrescenta a um conforto de altitude estável e em expansão; na face externa, as maiorias mais ou menos esquecidas tentam sobreviver, entre as suas tradições e improvisações.
Há boas razões para afirmar que o conceito de ‘apartheid’, tendo sido eliminado na África do Sul, passa-se a ser generalizado a todo o espaço capitalista, após se ter desfeito da sua formulação racista e ter passado para um estado económico-cultural dificilmente compreensível.
Neste ‘modus operandi’ do ‘apartheid’ universal, encontramos por um lado, o facto de tornar invisível a pobreza nas zonas de prosperidade, e por outro, a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.”
Por tudo isto se pode dizer que a expressão “mundo globalizado” diz apenas respeito à instalação dinâmica que serve de invólucro do “mundo da vida” à fração de humanidade com poder de compra.
Para Sloterdijk, “o facto essencial da Idade Moderna não foi que a Terra andasse à volta do Sol, mas que o dinheiro andasse à volta da Terra”.
Essa primeira globalização não trouxe consigo apenas abertura e conquista, mas também a separação entre os que ficaram dentro e os que ficaram fora desse globo limitado. São processos inseparáveis, daí que o capitalismo global tenha introduzido uma divisão radical de classe, separando aqueles que tinham a proteção da esfera dos que ficavam fora da cúpula.
Após esse processo que transformou o mundo numa cúpula, “a vida social só passou a ser possível num interior expandido, num espaço interior domesticado e artificialmente climatizado”.
É por isso que, por exemplo, quando as televisões nos trazem as imagens das migrações miseráveis em terras fora da cúpula, devemos lembrarmo-nos que, pelo menos, somos também corresponsáveis por esses horrores.
Quais são as respostas possíveis para este estado das coisas?
Uma primeira resposta, é tentar protegermo-nos do que está a acontecer “lá fora”, construindo muros de vários tipos. Um deles, mais sofisticado, é o apontar para a criação de uma “Nova Ordem Mundial” que garanta a coexistência pacífica de civilizações, aceitando “tolerantemente” as várias maneiras de viver de cada uma delas, desde que sejam nas suas regiões. O que implica aceitar que nos seus países, por exemplo, se realizem casamentos forçados de crianças, se pratique a homofobia, ou a violação de mulheres se forem sozinhas a locais públicos.
Ao aceitar esta “tolerância”, o que o sistema nos está a dizer é que já não lhe interessa, já não comporta uma visão positiva da emancipação da humanidade. O problema é que falhando essa visão universalista, aparecerão as visões populistas, nacionalistas, de direita ou de esquerda.
A segunda resposta é a fornecida pelo capitalismo global de rosto humano, de grandes empresas socialmente responsáveis, personificadas nas figuras de Bill Gates, George Soros, e que na sua forma extrema podem até chegar a advogar a abertura das fronteiras para os refugiados, tratando-os como se fossem um de nós.
Com isso apenas minoram os sintomas do problema, deixando na mesma a situação global. Trazer todos para dentro da Cúpula poderá resolver os problemas sob o ponto de vista humanitário, mas já não resolve o problema maior que é o da sobrevivência do planeta Terra. Emigrar para o palácio de cristal já não resolve o problema.
A terceira resposta será a de termos a coragem para impor uma mudança radical que nos leve a assumir todas as consequências de vivermos numa só Terra, num único mundo. Pergunta e responde Zizek:
“É esta mudança uma utopia? Não, a verdadeira utopia é acreditarmos que conseguiremos sobreviver sem essa revolução”.