A pornografia não é sobre o amor ou o erotismo. É apenas sobre poder e dinheiro. É uma transação, baseada na conversão das mulheres em objetos. É-lhes atribuído um valor monetário e são sexualmente exploradas para se obter lucro.
A violência dos que têm poder contra os que não têm, não é malvada nem cruel quando for chamada sexo; a escravidão não é malvada nem cruel quando for escravidão sexual; a tortura não é malvada nem cruel quando os torturados forem mulheres, putas, conas, Andrea Dworkin.
A violência, crueldade e degradação da porno, são expressões de uma sociedade que perdeu a sua capacidade de empatia, Chris Hedges.
Numa entrevista de 2008, a estilista da moda e “inventora” da minissaia, Mary Quant, dizia que a pornografia até podia ser boa, quando bem feita:
O dono da companhia Pain and Orgasm (Dor e Orgasmo), produtora e distribuidora de filmes pornográficos que comportam tortura, e que tem um Web site onde os subescritores podem ver filmes de sexo e submissão por 24,95 dólares mês, entende que o Governo é demasiado intrusivo neste ramo de negócio.
Segundo ele, tal não é correto, porque “as pessoas devem poder ver aquilo que quiserem desde que tudo se passe consensualmente entre adultos, e desde que não envolva crianças ou animais.Fiquem fora dos nossos quartos”.
Só nos Estados Unidos, no Vale de São Fernando, Califórnia, todos os anos são feitos 13.000 filmes pornográficos. Segundo a Internet Filter Review, em todo o mundo os lucros com os filmes pornográficos, foram em 2006, 97 biliões de dólares. O que é mais do que os lucros da Microsoft, Google, Amazon, eBay, Apple, Netflix e EarthLink.
Como não há uma monotorização precisa da indústria porno e como ela é tão lucrativa, algumas das maiores corporações participam dela. É o caso da General Motors através da DIRECTV, que distribui mais de 40 milhões de canais porno por mês. É o caso da AT&T e da Comcast Cable, através da Hot Network e da Adult Pay Per View. A AT&T e a GM arrecadam entre elas cerca de 80% de todos os dólares pagos pelos consumidores.
Patrice Roldan, conhecida nos filmes como Nadia Styles, já entrou em quase 200 filmes, nomeadamente no Senhor dos Cus (Lord of Asses), Anal Girls Next Door, Deep Throat Anal, Trophy Whores, e Young Dumb and Covered in Cum, conta que durante as filmagens já sofreu um grande número de penetrações anais por variadíssimos homens. Chegava a ter um homem no ânus, outro na vagina, enquanto fazia uma mamada a um terceiro. Os homens ejaculavam na sua cara. Ela foi repetidamente “face-fucked”, com os homens a forçarem violentamente os pénis para dentro e para fora da sua boca. Fez também o que na gíria da indústria se chama de “ATM”, ass-to-mouth, do cu-para-a-boca, quando um homem retira o pénis do ânus e o mete diretamente na boca.
Shelley Lubben, também estrela porno, confirma e acrescenta:
“Durante as filmagens, temos de fazer o que eles querem. Eles podem sempre arranjar outras raparigas. Elas querem sentirem-se como atrizes, querem notoriedade. Não se apercebem da degradação. Além do mais, esta é uma geração criada na porno. Caem diretamente nela. Consomem drogas para deixarem de sentir. Ficam com os seus cus rasgados. Com hemorragias no útero. Apanham HIV e herpes, desligam-se emocionalmente e acabam por morrer. Mentalmente ficam transtornadas. Ficam com stress pós-traumático como os veteranos da guerra. Não sabem quem são. Vivem uma vida de compras e droga. Não compram propriedades. É só festas, e no fim não têm nada para mostrar a não ser, como eu, herpes genital”.
E, continua:
“Porno é como outra qualquer dependência aditiva. Primeiro, ficas curiosa. Depois, cada vez necessitas de drogas mais fortes para sentires qualquer coisa. Necessitas muitos homens à vez, bestialidade e porno infantil. A porno torna-se cada vez mais forte”.
“A vida de uma atriz porno é gastar o dinheiro o mais depressa possível em erva, álcool, cocaína, ecstasi e Vicodin. Tomava isso para não sentir nada. Mas no ano seguinte, em vez de tomar só Vicodin, comecei a beber Vodka, a garrafa toda. Todas as raparigas que conheci bebiam álcool. Bebíamos para não sentir a dor física e emocional”.
O corpo e as emoções é que pagam a crueldade que vai sendo exercida sobre as atrizes porno. A maior parte sofre de severos rasgões na vagina e no ânus, requerendo cirurgias. Grande parte das profissionais não comem na noite anterior às filmagens. Com laxativos ou clisteres limpam os intestinos. Diz Roldan:
“Prefiro ter fome a ter que chupar a minha própria merda. O pior é quando ela vem de outra rapariga que não teve o mesmo cuidado que eu”.
Quando perguntaram à atriz ex-porno, Jan Meza, que já fizera uma cena de sexo com 25 homen, o que pensava sobre os produtores e realizadores da indústria porno, ela resumiu: “Xulos.”
Elas não se limitam às cenas para os filmes: são transportadas para hotéis de outras cidades, onde ficam uma semana num quarto, onde são organizados encontros com homens que querem sexo com as estrelas dos filmes. Elas são alugadas por 1.500 a 3.000 dólares à hora. As atrizes porno mais famosas podem fazer 30.000 dólares por semana como prostitutas de hotel.
Ariana Jollee, foi a principal atração do filme 65 Guy Cream Pie, cuja filmagem levou seis horas, durante as quais Jollee fez sexo oral, sexo vaginal, penetração dupla, e dupla penetração anal, com sessenta e cinco homens. Eles ejacularam nos sítios e por todo o corpo dela. Quando as filmagens acabaram, ela estava com o corpo todo coberto de sémen, cabelo inclusive. Daí o título.
Os atores pornos masculinos ganham cerca de um terço das mulheres. Eles têm o particular talento de manterem uma ereção durante longos períodos frente a uma audiência de atores, realizadores, produtores e assistentes. Todos eles tomam Viagra ou injetam Caverject numa veia do pénis. Os que se injetam, têm uma ferida aberta na base do pénis. Normalmente sangram para cima das mulheres. Rapidamente acabam por não poderem passar sem as injeções. Cada vez que querem ter sexo, têm de se injetar.
Eles são encorajados a serem brutos e hostis. “Alguns odeiam as mulheres”, continua a relatar Patrice Roldan. “Eles cospem-me na cara. Fiz filmagens com homens que detestava, cujo suor e cheiro me enojavam. E quando as luzes se apagavam e as câmaras paravam, saía do palco com dores, com a cara coberta de sémen. Alguns estendiam-me uma toalha de papel para que limpasse a cara; mas outros diziam para não lhes tocar, por estar toda porca. Recordo-me da primeira vez que se vieram na minha cara. Fiquei furiosa, mas aguentei-me. Fingi que gostava de tudo o que me fizessem. Senti orgulho em ser uma boa atriz porno. A minha fama veio disso”.
Se se definir sexo como um ato partilhado entre dois parceiros, então a pornografia não promove o sexo. Por isso a nenhuma das mulheres lhes é permitido manifestar qualquer traço de personalidade. A única emoção que podem manifestar é a do propalado ansiado desejo em satisfazer os homens, especialmente se isso conduzir à degradação física e emocional.
A pornografia, que se publicita como sendo sexo, não passa de uma mentira encenada, sem qualquer correspondência à realidade. As cenas apresentadas vão muito para além das possibilidades humanas. Os cenários são absurdos. Os corpos e as posições ensaiadas para que as câmaras as possam captar no que seria a intimidade do ato, as enormes mamas artificialmente insufladas, os pelos púbicos rapados para que as mulheres se pareçam mais com adolescentes ou bonecas de borracha. Não há um momento de ternura, não há nenhuma honestidade nas emoções.
A pornografia não é sobre o amor ou o erotismo. É apenas sobre poder e dinheiro. É uma transação, baseada na conversão das mulheres em objetos. É-lhes atribuído um valor monetário e são sexualmente exploradas para se obter lucro.
Todo o foco é posto cada vez mais no controle masculino e na crueldade. Segundo os especialistas (Robert Jensen, Getting Off: Pornography and the End of Masculinity), para conquistar mais mercado e agradar à audiência masculina, é a partir de 1980 que começaram a aparecer nos filmes as cenas de sexo anal e seus derivados (penetrações múltiplas, duplo anal, e outras modos de degradação física e psicológica), como forma de dominação dos homens sobre as mulheres.
Segundo Jensen, vivendo-se hoje num mundo saturado de sexo, é de surpreender a dificuldade existente em se falar sobre sexo. Tal acontece porque, devido à pornografia, somos forçados a discutir sobre coisas que nos deixam muito pouco confortáveis connosco:
“Aceitamos uma cultura inundada de imagens de mulheres que são meros objetos. Cada vez mais na pornografia as mulheres não são pessoas com sexo, mas corpos sobre os quais se praticam atividades sexuais de uma crueldade indiscritível. E muitos homens, a maioria, gostam disso”.
Aquilo que começou por ser a erotização ilimitada do poder do homem, passou hoje a ser a expressão do poder do homem através do abuso físico e tortura das mulheres. A porno reflete a crueldade inerente da nossa sociedade. Nota Chris Hedges: “A violência, crueldade e degradação da porno, são expressões de uma sociedade que perdeu a sua capacidade de empatia”.
Quando lucidamente há quase cinquenta anos, Herbert Marcuse escrevia no An Essay on Liberation (1969), que “o símbolo da obscenidade não era uma mulher nua a exibir a sua púbis, mas antes o general que exibia a medalha que ganhara no Vietname; não era o ritual hippie, mas a declaração de um alto dignatário da Igreja segundo o qual a guerra era necessária para a paz”, estava a prever o “progresso” obtido pela morte de centenas de milhar de inocentes no Iraque, Afeganistão, Síria, e de outros igualmente justificados “danos colaterais”, numa convergência cada vez mais clara entre guerra, tortura e pornografia.
As imagens de Abu Ghraib, são disso a prova evidente. Elas poderiam ser fotografias paradas de filmes porno. O homem nu ajoelhado frente a outro homem, como se estivesse a fazer sexo oral. O homem nu com uma coleira a ser conduzido, qual cão, por uma mulher soldado. Homens nus em cima uns dos outros como se se tratasse de uma pilha humana. As fotos de masturbação forçada. Bem como as de relações sexuais entre os guardas. Ninguém hoje se admiraria que fizessem parte de um espetáculo porno, de um combate de luta livre, de um reality show de televisão, de vídeos musicais.
Está lá tudo: a linguagem de um absoluto controle, dominação total, ódio racial, imagens fetichistas da escravidão, submissão humilhante. É a redução de outros seres humanos a puros objetos. Como na pornografia.
Na porno, os atributos de humanidade são retirados da mulher, pondo-a à mercê de quaisquer abusos. Sem identidade, o nome próprio desaparece substituído pelo nome artístico, ela não passa de uma boneca, brinquedo de dar prazer, que apenas existe para satisfazer os caprichos dos homens. Tal como uma escrava, ela é filmada a ser abusada fisicamente e psicologicamente degradada. O filme é depois vendido a consumidores que, por sua vez, se excitam com a ilusão daquilo que podem fazer para dominarem e abusarem as mulheres. Também eles podem ser torturadores.
O simples facto de três dos torturadores de Abu Ghraib serem mulheres, leva a concluir que tais comportamentos de humilhação sexual, abuso, violação, violência excessiva, são perfeitamente aceites socialmente.
Os filmes que mais sucesso têm na Internet, são aqueles que descobrem novas maneiras para humilhar as mulheres. Como os do site Slut Bus (O Autocarro das Putas), em que oferecem dinheiro para que mulheres entrem para um autocarro para serem filmadas a terem sexo, e depois são empurradas para fora do mesmo, deixadas à beira da estrada, sendo por vezes o dinheiro atirado pela janela fora enquanto o autocarro se desloca. Mensagem clara: as mulheres servem apenas para sexo. E não vale a pena pagar pelos seus serviços.
A pornografia glorifica a crueldade e a dominação da exploração sexual de mesma forma que a cultura popular glorifica a dominação e a crueldade da guerra. Como diz Jensen, ambas partem da mesma crença:
“Se tens a capacidade para usar a força para controlares os outros da forma que a ti te interessa, então tens o direito de usar essa força para os controlares”.
É a extinção do sagrado e do que se crê ser o humano, em favor do poder, controle, força e capacidade, intenção, indiferença, de provocar dor. É também o que vemos nas corporações económico-financeiras e no poder imperial. É a substituição da empatia, eros, compaixão, pela ilusão de que somos inevitavelmente deuses.
Nota: Grande parte das entrevistas citadas foram recolhidas do livro de Chris Hedges, Empire of illusion, The end of Literacy and the Triumph of Spectacle.
A vida é um estado de amnésia permanente, um mundo em busca de novas formas de escapismo e de rápida gratificação sensual, Chris Hedges.
Quando tivermos sessenta e cinco anos, teremos passado nove anos da nossa vida sentados em frente do televisor.
Os pseudoacontecimentos são os que têm a capacidade de aparecerem como reais, mesmo apesar de nós sabermos que são ensaiados.
A desinformação é muito mais perigosa quando é subtil.
A verdade é irrelevante.
São muito sintomáticas as estatísticas do U.S. Census Bureau, do National Institute for Literacy, e do National Center for Adult Literacy, relativas à literacia funcional dos Estados Unidos. Segundo elas, 7 milhões de americanos são iletrados, 27 milhões não conseguem ler o suficiente para completarem o processo de pedido de emprego, e 30 milhões não conseguem mesmo ler uma simples frase. Há 50 milhões que leem ao nível do quarto ou quinto ano de escolaridade, número este que tem vindo a aumentar ao ritmo de 2 milhões por ano. Um terço dos finalistas do liceu nunca mais leu qualquer livro após a sua graduação, o mesmo se passando com 42 por cento dos licenciados. Por ano (2007), 80 por cento das famílias não compram ou nem leem um livro.
Mas, por outro lado, sabemos que a televisão passou a ocupar o primeiro lugar entre os meios de comunicação de massa. A televisão encontra-se ligada em média, seis horas e quarenta e sete minutos por dia. O americano médio vê diariamente mais de quatro horas de televisão. O que dá vinte e oito horas por semana, ou seja, dois meses interruptos de televisão por ano. Ou seja, aos sessenta e cinco anos, teremos passado nove anos da nossa vida sentados em frente do televisor. Não é de admirar que sejamos todos Archie Bunker, do “Tudo em família”.
A televisão é o modelo que temos para nós daquilo que é uma forma coloquial e amigável de falar, que ao mesmo tempo que nos conforta com frases do senso comum e com imagens excitantes. Fornece-nos os assuntos para as conversas que iremos ter na interação com as outras pessoas. Cria-nos a falsa sensação de intimidade com a nossa elite, atores célebres, apresentadores, comentadores, políticos, grandes empresários e desportistas.
Tudo e todas as pessoas que passem na televisão, só pelo simples facto de serem por ela transmitidas, são validadas e valorizadas. A televisão confere autoridade e poder. Ela é o árbitro sobre aquilo que na vida é importante e que importa ver.
Somos diariamente, semanalmente, anualmente, bombardeados com uma manipulação de imagens e slogans que seduzem até os literatos funcionais que não leem, criando uma nova realidade. A propaganda torna-se o substituto das ideias e da ideologia.
Esta cultura da ilusão impõe-se, despojando-nos das ferramentas intelectuais e linguísticas que nos permitem separar a ilusão da verdade. Reduz-nos ao nível e dependência das crianças, reféns dos jingles e da manipulação de marcas familiares incessantemente repetidas pela cultura de consumo.
O culminar de tudo isto é o que se passa com os pseudoacontecimentos. Os pseudoacontecimentos são, por exemplo, as produções dramáticas orquestradas por publicistas, por máquinas políticas, pela televisão, por Hollywood ou por anunciantes, que têm a capacidade de aparecerem como reais, mesmo apesar de nós sabermos que são ensaiados.
Essa capacidade deve-se ao facto de poderem conseguir evocar uma poderosa resposta emocional de um realismo avassalador, que permite que essa narrativa ficcional possa substituir a realidade, passando a ser aceite como a verdade.
O exemplo clássico é o da fotografia ensaiada dos fuzileiros americanos a colocarem a bandeira no topo de Iwo Jima. Mesmo quando desmascarada, só lhe aumentou a fascinação e poder. Esta é a base em que se apoia a maior parte do que passa na televisão, com as imagens, com os candidatos a, com os comentários.
É assim que para os produtores de informação, já não interessa saber se a mensagem que transmitem é verdadeira, mas antes se aquele pseudoacontecimento que transmitem, funcionou ou não. O que lhes interessa é saber se a manipulação foi efetiva, ou seja, se foi credível. É isso que lhe confere, ou não, o reconhecimento por parte da empresa e dos seus pares.
Não é, pois, de admirar que a maior parte daqueles que têm sucesso na política, e na maior parte da cultura, sejam aqueles que criam as fantasias mais convincentes. A verdade é irrelevante.
Variadas são as técnicas utilizadas. A mais vulgar é, por exemplo, iniciar a peça a transmitir com um título, pequeno comentário em que se afirma o que se diz ter passado ou acontecido, inserindo-se depois uma pequena entrevista cortada e montada em que o entrevistado diz muitas vezes o contrário, a que se segue o fecho da peça onde se volta a enunciar o que se disse em título, que é a ideia com que acabamos por ficar. Sucesso. Mais um triunfo de um pseudoacontecimento.
Outra técnica é a do recurso aos títulos enviesados, como, por exemplo, a que foi utilizada pelo diário Guardian UK, teoricamente independente e que se diz conotado com a esquerda, quando sobre os recentes acontecimentos na Palestina, titula a sua reportagem:
Gaza /Oficial de Israel abatido durante a operação em que morreram sete palestinos (Israeli officer killed during raid in which seven Palestinians died).
Ou seja, durante a mesma operação referida, o que ressalta é que um oficial israelita foi abatido e outros sete palestinos morreram. Ou seja, um oficial israelita foi abatido pelos palestinos, e os palestinos morreram por causa desconhecida. Isto é a forma encapotada para menorizar a morte dos palestinos, meras pessoas desconhecidas, com funções menores (o que não era verdade), face ao relevo dado à morte em combate, não de um israelita qualquer, mas de um oficial.
Embora a reportagem do acontecimento fosse correta, o título da mesma induzia os leitores noutra direção. Sabem hoje os jornais que os títulos dos artigos são o que mais formam a opinião, porquanto cerca de metade dos leitores só leem os títulos. E não é só por preguiça.
É o que nos explica Maria Konnikova, licenciada em psicologia e escrita criativa pela Harvard University, doutorada em psicologia pela Columbia University, no seu artigo da revista The New Yorker, “Como os títulos alteram o modo como pensamos” (How Headlines Change The Way We Think), (https://www.newyorker.com/science/maria-konnikova/headlines-change-way-think):
“Há muito que os psicólogos sabem que as primeiras impressões contam muito, seja no que se vê, ouve, sinta, experiencie. O mesmo se passa com os artigos. E, da mesma maneira com que vestimos para a impressão que queremos causar num primeiro encontro, também o arranjo do título dum artigo pode subtilmente mudar a perceção do texto que se lhe segue. Ao chamar a atenção para certos detalhes ou factos, o título pode afetar o conhecimento previamente existente dentro da nossa cabeça. Pela escolha do fraseado, um título pode influenciar o seu estado de espírito enquanto o lê, de forma a que posteriormente se recorde de detalhes que coincidam com o que é por si já esperado”.
Mas, o caso relatado do Guardian, assume ainda uma dimensão bastante mais perigosa.
Numa outra série de estudos, Ullrich Ecker, psicólogo e neuro cientista, da University of Western Australia, vem demonstrar que a desinformação nos títulos das notícias é muito mais perigosa quando é subtil (http://psycnet.apa.org/record/2014-44652-001).
Ou seja, quando um órgão de comunicação é visto como sendo abertamente e despudoradamente defensor de certos interesses, ele é menos perigoso que um outro que se diz ser “editorialmente independente” e sem dependências comerciais. Evidentemente, os editores dos órgãos de comunicação social, sabem perfeitamente o que estão a fazer.
Quando não se conseguir distinguir entre opinião e facto, quando não se conseguir determinar o que é verdade ou opinião nos relatos dos acontecimentos diários, na ciência ou nas leis, o mundo passa a ser um lugar onde as pessoas acreditam naquilo que quiserem acreditar.
A um público que não consiga distinguir entre verdade e ficção, só lhe resta interpretar a realidade através da ilusão. Para além do mais, quanto pior for a realidade, quanto maior for o número de falências e de desemprego, mais as pessoas procuram refúgio e conforto nas ilusões.
Este é o perigo dos pseudoacontecimentos. Eles não explicam a realidade, eles substituem a realidade. Pior: eles redefinem a realidade segundo os parâmetros que os seus mandantes, direta ou indiretamente, lhes fornecem.
As palavras, as imagens, as histórias, e as frases usadas para descrever o mundo através de pseudoacontecimentos, não têm qualquer relação com o que está a acontecer à nossa volta.
Transportamos connosco sentimentos, perceções sobre celebridades, políticos, o nosso país, a nossa cultura, que não passam de miragens geradas por pseudoacontecimentos, que não são só de agora. Como resultado, vivemos hoje em mundos imaginários e virtuais criados por grandes corporações que lucram com a nossa credulidade.
E tudo isto devemosàquele herói anónimo,o primeiro bípede que teve a necessidade de limpar o rabo, afirmando uma clara distinção para com os outros animais. Finalmente nascera o homem.
Um provérbio grego antigo acabou por lançar luz sobre o assunto: “Três pedras são suficientes para limpar o cu”.
Uma advertência importante:não defecar olhando para uma vaca.
Só nos Estados Unidos, o consumo de papel higiénico atinge os trinta e seis mil milhões de rolos por ano, o que implica deitar abaixo quinze milhões de árvores e usar mil e oitocentos milhões de métricos cúbicos de água.
O modo como os animais se desfazem dos resíduos que já não lhes interessam, embora variando de espécie para espécie, são dentro da mesma espécie, o mesmo: expelindo-os quase que indiferentemente, sem perderem tempo a tentarem inventar processos alternativos. Como dizia por outras razões aquele major aviador que afinal deveria era ter sido filósofo, antropólogo e sociólogo:
“Cagando e andando, e nem se olha para trás para tapar”.
Exatamente pelo facto de o fazerem sempre da mesma maneira, mesmo que em alguns casos até pareça tratar-se de uma aplicação da física e de um manual de cortesia, como acontece com a pequena cauda do hipopótamo movendo-se à velocidade de uma ventoinha a espalhar para os lados as dezenas de quilos de resíduos, para assim, educadamente não atingir os companheiros mais próximos, é que não podemos tratar tal função como ato cultural.
Já com os seres humanos tal uniformidade não se verifica, possivelmente dependendo da dieta, do clima, da religião, e até do sentimento artístico. E tudo isto devemos àquele herói anónimo,o primeiro bípede que teve a necessidade de limpar o rabo, afirmando uma clara distinção para com os outros animais. Finalmente nascera o homem.
Inicialmente, lançando mão do que estivesse mais perto e mais a jeito: folhas, ervas, cascas, feno, maçarocas de milho, areia, paus, pedras. Depois, foram-se especializando, dependendo das regiões e culturas: os polinésios usavam cascas de coco, os viquingues usavam lã de ovelha, os esquimós usavam o musgo, na península ibérica os marinheiros usavam as extremidades desfiadas das cordas.
Já os japoneses usavam uma espátula de bambu de uns vinte centímetros de comprimento por dez a vinte milímetros de largura, com variados nomes, mas que resumidamente todos queriam literalmente dizer “pau de merda”.
Os romanos utilizavam já bancos corridos de pedra com buracos suficientemente largos para se pudessem sentar sem cair, por baixo dos quais corria água: era o tersorium. Para a limpeza, usavam, na extremidade de um pau, uma esponja humedecida em água ou vinagre, que era deixada imersa para o próximo utilizador.
Para emergências, os civilizados gregos e romanos tinham ainda pequenos discos de argila, que durante anos os arqueólogos julgaram tratar-se de pedras que fariam parte de um jogo similar ao xadrez. Finalmente, um provérbio grego antigo lançou luz sobre o assunto: “Três pedras são suficientes para limpar o cu”.
Parece que entretanto na China já se usava papel (invenção por eles feita no século II) para essa finalidade, mas tal só aparece relatado no ano 589, quando Yan Zhitui escreveu envergonhadamente: “Não me atrevo a utilizar para asseio, o papel onde existem escritos ou comentários de Os cinco clássicos ou os nomes dos sábios”.
É no século IX que os árabes tomam conhecimento que os chineses “não se lavam com água após fazerem as suas necessidades, mas que se limpam com papel”.
Na Europa, a primeira menção à utilização do papel higiénico aparece apenas no século XVI, nas novelas de François Rabelais, Gargântua e Pantagruel, onde ele vai descrever e apreciar os vários métodos para limpar o rabo, depreciando a utilização do papel, pois tinha o inconveniente de deixar troços. Para ele, a maneira mais correta, seria limpar-se a um pescoço de ganso.
Também as sociedades islâmicas e hindus, são favoráveis a lavar-se com água, em obediência ao texto sânscrito milenar, as Leis de Manu, onde se explica ao pormenor quando, como e onde se deve defecar e urinar, e como se deve de lavar depois, incluindo o lavar das mãos. Uma advertência que consideram importante: não defecar olhando para uma vaca.
Mas a limpeza com papel foi-se espalhando pela Europa, talvez acompanhando o ritmo da expansão das edições baratas de livros. Lord Chesterfield, século XVIII, nas Cartas ao seu filho, recomendava-lhe que levasse leitura para a retrete, exemplificando com o que um seu amigo fazia:
“Ele comprou uma edição vulgar de Horácio, de que vai metodicamente arrancando as páginas, leva-as para a retrete, lê-as primeiro e logo as manda abaixo como sacrifício a Cloacina. Isto é tempo ganho e recomendo-te que lhe sigas o exemplo”.
De certa maneira, a utilização do bacio no quarto, acabou por ser o precursor do bidé, cuja forma estranha foi mais concebida para as mulheres. Vejamos a curiosa história do outro nome pelo qual é conhecido: bourdaloue. Louis Bourdaloue (1632 – 1704), era um sacerdote católico que dava sermões compridíssimos, de tal modo que as damas da aristocracia que os escutavam, pediam às suas criadas que lhes pusessem por baixo dos vestidos esses penicos adaptados para que pudessem verter as águas sem saírem dos locais de culto.
O bidé com o formato atual parece ter sido uma invenção francesa dos fins do século XVII. A referência mais antiga que se conhece data de 1726, e foi feita na Itália.
Devido aos melhoramentos introduzidos pelas canalizações de chumbo, nos finais do século XIX, inícios do século XX, os bidés são retirados dos quartos, passando a integrar a casa de banho.
Em 1928, nos Estados Unidos, John Harvey Kellog, registou a patente de um “douche anal”, um chuveiro para permitir a limpeza anal com água.
Em 1857, também nos Estados Unidos, Joseph C. Gayetty, pôs à venda o primeiro papel higiénico, o “Papel Medicinal para o W. C.” (https://www.loc.gov/resource/rbpe.13400600/?st=text), com aloé como lubrificante, produto medicinal anti-hemorroidas. Nos seus anúncios, publicitava-o como “A maior necessidade da época”, e advertia contra os perigos de se usarem outros papéis de cor ou tóxicos para se limparem as partes sensíveis do corpo.
Água ou papel, são os métodos preferidos, cada um deles esgrimindo os seus argumentos: a água pode causar fístulas anais se se usar a pressão e pode alterar a flora vaginal; o papel higiénico é atacado cada vez mais pelo impacto ambiental (recordemos que são mais de sete mil milhões de rabos a serem limpos).
As toalhitas húmidas seriam, em teoria, a melhor solução. O problema é que não são biodegradáveis e entopem as canalizações e sistemas de esgoto e água.
Voltando ao papel higiénico, só nos Estados Unidos, o seu consumo atinge os trinta e seis mil milhões de rolos por ano, o que implica deitar abaixo quinze milhões de árvores e usar mil e oitocentos milhões de métricos cúbicos de água, a que se deverá acrescentar o cloro e a eletricidade envolvida no processo. Ver o artigo “Wipe or wash? Do Bidets Save Forest and Water Resources? (https://www.scientificamerican.com/article/earth-talks-bidets/).
Foi na Exposição Mundial de Londres de 1851 que pela primeira vez foram instaladas sanitas públicas com descarga integral de água, obra do engenheiro sanitário George Jennings. Inicialmente só para homens, e posteriormente para mulheres, foram utilizadas por 827.280 visitantes.
Mas como dizem que tudo pode ser arte, também este singelo ato cultural tem os seus artistas. Do portuguesíssimo abade de Jazente, de seu nome Paulino António Cabral de Vasconcelos, nascido em 1720 em Reguengo, Amarante:
“Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Mas ver cagar, contudo a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!
Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta de amores de alimpadura
Serviu àquela parte mal cheirosa:
Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito de amor que, lisonjeiro,
Afectos move, corações incita:
Para o ir ver servir de reposteiro
À porta onde o fedor e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!”
Nota: para quem queira especializar-se neste tema, sugiro como primeira leitura, o estudo do British Medical Journal, “Toilet hygiene in the classical era”, (https://www.bmj.com/content/345/bmj.e8287).
A “ética não é a ciência da bondade, é a ciência da ação humana, boa ou má”.
Quem sabe o que é o bem não realiza o mal, pois se realizar o mal, tal quererá dizer que não sabe o que é o bem, segundo Sócrates.
A vida de um homem não tem mais importância para o universo do que a de uma ostra, David Hume.
Cada macaco no seu galho, Azevedo Pinheiro, ex-Primeiro ministro de Portugal.
Pergunta de controle: É Hitler um ser ético?
Ética primeira
Parece ser ponto assente, desde as primeiras cosmogonias aos pensadores e poetas da Antiguidade, que para eles o princípio de tudo era o caos. O que lhes punha o grande problema de conseguirem explicar como é que de algo desordenado, sem forma e indiferenciado, pudesse vir a originar um universo ordenado (do gr. Kosmos, ordem) regido por leis, fossem elas o destino, a fatalidade, a justiça, os mandamentos divinos ou a necessidade racional?
O receio relativamente ao caos, associava-se a outro problema que também muito os preocupava: a noção de vazio, porque a existir, fatalmente o seu espaço seria ocupado pelo caos. Parménides e os Estoicos consideravam repugnante até o simples facto de se pensar nele. Mais de mil anos depois, ainda a racionalidade de Descartes o impedia de pensar sequer na hipótese da existência do nada como sendo o que constituiria o vazio.
Este “horror do vazio” é transversal a várias civilizações e, pode-se encontrar representado (pelo preenchimento total de todo o espaço disponível), em várias esculturas, pinturas e iluminuras ao longo dos tempos.
Hoje em dia, mesmo para a mecânica quântica, o espaço nunca é considerado vazio, encontrando-se antes cheio de partículas (ou serão vibrações?) latentes ou virtuais, prontas a serem alguma coisa conforme os vários tipos de acontecimentos físicos que tenham possibilidade de ocorrer.
Quanto ao estudo dos sistemas caóticos feitos pela ciência, é conhecido o exemplo do sistema da atmosfera, em que o bater de asas de uma borboleta, num determinado lugar e num determinado tempo, poderá vir, ou não, a provocar um furacão, noutro lugar e noutro tempo.
São considerados como caóticos os sistemas nos quais uma pequena diferença arbitrária nas condições iniciais pode provocar grandes perturbações arbitrárias em estádios posteriores. Estes sistemas podem ser determinados, mas não são previsíveis, exatamente porque uma qualquer variação não detetável poderá dar origem a uma grande diferença no resultado final.
Ética como ciência da ação humana
Relembremos que na Teogonia de Hesíodo (séc. VIII a. C?), este referia que a origem universal de tudo era o khaos. O khaos era o informe, o não-ordenado, a confusão. Isto punha o tal problema atrás referido: como poderia então ser o não-ordenado a origem do ordenado? Resposta: sendo o khaos a fonte de tudo, então o próprio khaos continha também em si não só a desordem, como a possibilidade de toda a ordem. Ou seja, o khaos poderá sempre ser uma coisa ou outra, dependendo da existência ou não, de uma ação humana.
É precisamente por este sentido de oposição ao khaos, que faz com que qualquer ação humana empreendida seja ética, independentemente da sua correção ou não.
Pelo que qualquer ato ético é em si, um bem, e não pode por isso mesmo ser considerado mau ou bom; pode até ser um ato mau, mas, pelo simples facto de se opor ao khaos, é ético.
O que vai permitir definir ética como o estudo do fundamento próprio da ação do ser humano, e não o estudo das normas de conduta. A “ética não é a ciência da bondade, é a ciência da ação humana, boa ou má”.
Pergunta de controle: É Hitler um ser ético?
Ética segunda
Esta conceção de ética liga-se à consideração de que a humanidade não apareceu com o primeiro homem, na medida em que a natureza humana foi sendo descoberta, pela intuição de princípios e de estruturas que a distinguiam dos outros animais, e que derivam de um conjunto enorme de potencialidades próprias de cada pessoa e de todas as pessoas.
Quando esse ser adquire a plena intuição que pela sua ação pode agir sobre o que lhe é exterior e interior, torna-se senhor da sua mesma interioridade como fonte de ação própria.
Ainda hoje, há sempre um primeiro momento na existência de cada ser humano em que se dá pela primeira vez uma intuição acerca da sua mesma grandeza como fonte e motor primeiro de sua mesma ação. A partir desse momento a pessoa torna-se verdadeiramente autónoma. A partir desse momento ela sabe que é, por absoluta oposição a não ser.
É, portanto, o agir que o define. A Ética trata precisamente de saber de onde é proveniente toda essa possível ação humana. Daí, que esta conceção de ética a ligue ao estudo das características mais gerais e necessárias que qualquer coisa deve ter por forma a ser considerada como “ser”, como uma “entidade” (ens).
Esta conceção de ética intimamente associada à realidade ontológica humana, é importante para nos entendermos a nós próprios como seres humanos como parte desta civilização ainda cristã e ocidental em que vivemos. Sabemos que não é a única conceção ética, mas é a que até agora nos tem formatado nos seus vários paradigmas.
Chegados aqui, o problema que se põe, é o de saber quais são essas características ontológicas do ser e como apareceram. Uma das possibilidades é recorrer a textos literários significativos da Antiguidade, tais como a Epopeia de Gilgamesh (a obra escrita mais antiga da humanidade), o Livro de Job, a Odisseia, os Édipos (Édipo rei, e o Édipo em Colona) e a Antígona, e ver se deles se poderão extrair conclusões sobre características do ser humano que possam ser válidas para toda a humanidade, independentemente dos particularismos etnocêntricos ou geográficos de tempo e lugar.
Job, como paradigma da bondade humana
A história da bondade de Job vem narrada no Livro de Job, o mais antigo texto escrito judaico e que faz parte do Antigo Testamento.
Job era um homem rico, que possuía terras e gado, sendo por todos considerado como bom e generoso, dedicado à comunidade e à família. Líder admirado da sua comunidade religiosa representava a combinação da riqueza e da virtude.
O Diabo vê aqui a sua oportunidade de lançar um repto a Deus, que o aceita, com o intuito de lhe provar que a Sua criação, o homem, quando posta em condições diferentes, se comportaria como uma outra besta qualquer.
Começam por o privar de tudo aquilo que não lhe é diretamente essencial: as possessões materiais. As suas terras são invadidas por estrangeiros que matam os seus criados e levam a maior parte do seu gado. Um incêndio destrói o resto, deixando-o na pobreza. A bondade de Job mantém-se, pelo que o primeiro teste é superado.
De seguida vai-se eliminar tudo aquilo que lhe era diretamente essencial, do que era realmente pessoal: uma tempestade faz a sua casa desabar, matando todos os seus dez filhos. Vai depois contrair uma doença que o deixa coberto de chagas, tão desfigurado que as pessoas não conseguiam reconhecê-lo. Mesmo assim, Job não se queixa de Deus, nada fazendo que desmereça a sua bondade. Estava assim provado que naquela íntima realidade que dele dependia, Job era bom.
Mas como não vivia sozinho, havia ainda que testar o seu comportamento perante a agressão de outros, ou seja, testar a sua vertente política. É assim que mesmo a sua mulher e os amigos que o vêm piedosamente reconfortar, depressa acabam por transformar essa piedade em acusação: não era possível que Job nada tivesse feito para que todos esses infortúnios lhe acontecessem. Alguma coisa ele fizera para merecer o que lhe acontecera.
Ou seja, os outros seres humanos ainda lhe acrescentam mais sofrimento. Ninguém lhe alivia a dor. Mas Job mantém-se na sua convicção própria de “que só ele e mais ninguém é que sofre o sofrimento que é dele; nada ou ninguém pode sofrer por ele, nem mesmo Deus”.
Finalmente, para que a sua solidão seja total, tornava-se necessário que Job fosse abandonado por Deus. Os seus amigos dizem-lhe que se ele não merecesse aqueles infortúnios, certamente Deus não permitiria que ele sofresse tanto. “Será que Deus perverte a justiça?” “Deus não iria rejeitar um homem inocente e tomar partido pelos malfeitores”. Ou então, Deus abandonara-o.
Job, que sabia estar inocente, não conseguia explicar por que razão Deus o tinha abandonado: não o consolava, não o aliviava, não o curava, e antes o vituperava e amesquinhava. Este era o momento em que nada fazia sentido e em que teria de optar por se manter fiel a si mesmo, aos seus atos, à sua bondade, ou optar por desistir submetendo-se e transformando-se em algo meramente passivo, ao sabor de um qualquer mau deus manifestado.
Ao manter-se fiel à humanidade com que fora criado, contra tudo e contra todos, mesmo contra Deus, Job provou que “o paradigma do homem, a humanidade na sua pureza, inteireza, bondade ontológica […] que encerra todo o potencial positivo da humanidade […] contém todas as suas possibilidades”, ou seja, o ser humano é, na sua essência, um ser bom. A criação de Deus era boa.
Ulisses (Odisseu), como paradigma ético e político
Ulisses aparece inicialmente apresentado como o homem proficiente, paradigma de inteligência e esperteza (o cavalo de Troia), não por qualquer ato de magia, mas porque não só percebe o sentido das coisas, interiorizando-o (o ético), como tem a capacidade de imediato poder passá-lo ao ato (o político).
Na sua viagem de regresso a casa, Ulisses é definido como “o homem que tudo aguenta” (tal como Job). Mas porque aguenta tudo?
Porque ao fim de dez anos de guerra a sua necessidade de regresso (“nostos” em grego) é tal, que o faz aguentar tudo, arrostando um qualquer regresso profundamente doloroso (nostalgia de “nostos + algia (dor) em grego). Mas esse regresso doloroso, nostálgico, só o é porque Ulisses o quer, não pactuando com nada que o afaste da plenitude da pessoa humana que se revê na relação interpessoal, na relação profunda com outra pessoa humana, no seu caso com Penélope, a sua co-metade essencial.
Do episódio com o ciclope Polifemo (“muitas vozes”) que é cegado por Ulisses do único olho que possuía, o importante a reter é a assunção pessoal de Ulisses pela realização desse ato: é a primeira vez que “um ser humano assume plenamente a autoria de uma ação, não remetendo para terceiros, humanos ou não, a autoria do que fez”.
Do episódio com a bela deusa Calipso, em que esta oferece a Ulisses a vida eterna, em troca da satisfação erótica e sensual permanente a seu lado, o que convenhamos era uma proposta muito moderna de felicidade e a que poucos resistiriam, o importante a reter é a recusa da proposta por Ulisses. Para ele, “Penélope valia mais do que a vida eterna com uma deusa que lhe não era consubstancial”: é a primeira vez que se assume conscientemente que a plena relação de um ser humano só é possível quando feita com outro qualquer ser humano.
Estamos perante um símbolo da necessária relação de amor entre os seres humanos, sem a qual não é possível a mesma humanidade.
Édipo, o primado do ético sobre o político e sobre o religioso.
A família dos Labdácidas (“coxos” em grego) a que Édipo pertencia, nascera de um ato de perversão moral cometido por Zeus (um deus maior) ao raptar e violar a jovem virgem Europa! A partir daí todas as gerações dessa família não se conseguem livrar dessa semente de mal.
É assim que Édipo vai nascer da união amaldiçoada entre o seu pai, Laio, e a sua mãe, Jocasta. A maldição previa que se esse casal tivesse um filho, esse filho mataria o pai e casaria com a mãe. A única forma de escapar à maldição era não terem um filho, só que a tentação foi superior (o desejo natural é superior a toda a racionalidade).
O filho nascido vai então ser abandonado, exposto (vulgar naquele tempo e lugar), para que a natureza se encarregue dele (para morrer). Para evitar que ele fugisse gatinhando, atam os pés da criança, cosendo-os com um atilho na zona do tendão de Aquiles, o que lhe irá provocar um inchaço. Daí o nome Édipo, “pé inchado”. O criado encarregue de o levar para o local onde iria ser exposto, tem pena dele, e resolve entregá-lo a outro casal real, com o qual passou a viver como filho, como príncipe.
Já adulto, Édipo tem conhecimento da profecia sobre a sua maldição e resolve abandonar a casa dos pais (adotivos) que ele julgava serem os seus pais verdadeiros, para que nada lhes acontecesse. No seu caminho a sua comitiva cruzou-se com uma outra comitiva real numa estrada muito estreita, que só dava para passar uma delas. Como nenhum quis ceder a prioridade de passagem, o assunto resolveu-se por um confronto armado, em que Édipo mata todos, incluindo o rei (de Tebas).
E continua o seu caminho que o vai levar até a uma das sete portas da cidade de Tebas, na altura assolada por uma peste causada pela Esfinge, que também controlava as entradas na cidade: só entrava quem conseguisse responder a um interrogatório por ela feito. Quem falhasse nas respostas era devorado pela Esfinge. E todos falhavam.
Édipo resolve enfrentar o monstro, decifrando e enigma: “qual é o ser que, de manhã, anda com quatro apoios no solo; ao meio-dia, anda com dois; ao entardecer, anda com três?”.
A resposta era o homem, que quando bebé, gatinha, em adulto anda ereto e na velhice necessita de um bordão. Vencida a Esfinge, esta morre, e acabam-se os sofrimentos para a cidade.
Como presente, Édipo recebe o reino de Tebas, casando com a recente viúva do anterior rei falecido. Tudo corre bem durante muitos anos, têm quatro filhos, até que nova peste assola a cidade. As pestes eram normalmente consideradas como provenientes de atos de impiedade, que tinham de ser expiados.
A resolução deste problema por parte de Édipo é contada por Sófocles na sua obra Édipo rei. Édipo pretende encontrar rapidamente quem é o causador de tão grande mal, prometendo um castigo exemplar. Consulta oráculos e profetas da cidade, até que descobre ser ele o próprio causador de todo aquele mal, por ter morto o pai e casado com a mãe. Então ele próprio fura os seus olhos, cegando-se: não mais veria a luz dos homens, para assim concentrar a sua inteligência “no mundo interior em que teria de resolver a questão do bem e do mal da sua vida e dos atos de uma sua possível redenção”.
Expulso da cidade por dois dos seus filhos, vagueia durante vinte anos, acompanhado pela sua filha, Antígona. Neste período, ele estará entregue à mais pura solidão ontológica: radicalmente só, tal como Gilgamesh e Job, ele vai simbolizar toda a humanidade, que do ponto de vista ético, está absolutamente só.
E é esta solidão que lhe vai permitir encontrar-se a si próprio, encontrar o seu caminho, encontrar a ordem própria de seu ser que faz dele um ser autónomo. É o que Sófocles, já nos seus noventa anos, nos conta no Édipo em Colona.
O Édipo anterior à furação dos olhos era joguete de forças que não controlava ou que não podia controlar, e nada tinha a ver como este Édipo posterior à furação dos olhos que assume a sua autonomia ética, não como um dado natural, mas como “uma perene e dolorosa conquista de cada entidade humana, não mais submetida à tirania bestial do destino. Com Édipo, humanamente, nasce o próprio ser humano”.
Antígona e a “consciência moral”
Édipo conseguiu quebrar a cadeia pessoal do mal e a do mal como necessidade pessoal herdada. Mas isso não significava que tal feito se refletisse nos seus quatro filhos sobreviventes após a sua morte. Para que essa cadeia geracional do mal fosse quebrada era necessário que cada um deles procedesse como o seu pai, libertando-se dessa herança genética do mal, ganhando o estatuto de autonomia e liberdade, ou então que morressem sem descendência.
Após a morte de Édipo, a filha que sempre o acompanhara, Antígona, regressa a Tebas, onde residiam os seus dois irmãos que daí tinham expulsado Édipo. Para ver quem ficava a comandar a cidade, os dois irmãos digladiam-se, acabando por morrerem em combate. Creonte, que, entretanto, ficara como regente de Tebas, resolveu só proceder à liturgia que iria permitir o descanso eterno do defunto, o enterro, apenas para um dos irmãos.
Antígona discorda do tratamento diferenciado que Creonte queria impor, surgindo daí aquilo que ficou conhecido como o dilema da escolha entre a obediência à lei dos homens e a lei dos deuses.
A verdadeira questão não é esta, porquanto ambas as leis até podem ser más. A verdadeira questão é a de saber se o ser humano é fundamentalmente um ser capaz de decidir por si próprio a sua ação ou não. Ou seja, se a fonte para a ação humana está na sua interioridade ética ou em algo que lhe seja exterior, levando-o a ter de escolher entre princípios éticos e princípios políticos.
A escolha implicará ou o primado da ética sobre a política ou da política sobre a ética. “Que vale mais como princípio fundamental orientador para a ação: algo em que acredito estar certo em si e por próprio, não porque alguém mo disse, mas porque sei, por meio de uma qualquer intuição própria minha, que é o mais correto, ou algo que me é dado de fora?”
Os longos anos de sofrimento passados com o pai ensinaram-lhe o “logos” próprio da vida e do cosmos, sabendo muito bem o que deve ser feito por bem, não por qualquer coisa individual, mas pelo cosmos. Tendo em vista apenas o imperativo deste bem cósmico, vai desrespeitar uma lei que merece ser desrespeitada, uma vez que desrespeita o bem universal.
A sua opção representa o triunfo da ética sobre a política, demonstrando pelos séculos que se lhe seguiram, “que nenhuma política merece ser respeitada se não obedecer a imperativos éticos que respeitem, não uma qualquer vontade poderosa, mas o mesmo bem universal, para o qual não existe alternativa que não seja o próprio caos”.
Perante esta ousadia em desafiar a ordem do tirano, Antígona é condenada à morte. Com Antígona nasce assim a “consciência moral”, uma forma de intuição puramente ética definitória em cada ser humano daquilo que é o sentido axial do que é bem e deve de ser feito, e do que é não-bem e deve ser evitado ou combatido.
Sócrates, paradigma da Ética racional
Até aqui temos acompanhado a descoberta por parte da humanidade, das suas dimensões ética e política próprias, o que nos leva a identificar o ser humano como um ser fundamentalmente ético e político. Tudo isso aconteceu em tempos remotos com contornos míticos, formas primeiras de uma racionalidade que se foi revelando em cada ser humano particular, característica de universalidade presente em cada um deles.
Estas descobertas acerca do próprio ser humano começam por estarem inscritas num registo narrativo mítico, onde não existe nenhuma prova real que demonstre a existência dessa mesma realidade, mas apenas da sua possibilidade teórica: Gilgamesh, Job, Ulisses, Édipo, não têm existência real concreta. Exatamente por isso não se encontram encerrados num tempo ou lugar quaisquer: são de todos os tempos e espaços possíveis, sendo de certa maneira eternos, podendo serem vistos como paradigmas da humanidade.
O aparecimento de alguém real que possa ser modelo real concreto e temporal da humanidade, não um herói mítico, mas um ser humano de carne e osso, acontece com a figura de Sócrates, como primado racional da ética.
A figura de Sócrates tratada por Platão na obra Apologia de Sócrates, vai tornar-se verdadeiramente universal por representar um ser humano qualquer, em qualquer lugar, em qualquer tempo.
A vida e ação de Sócrates tornam-se no paradigma de como um ser humano, honesto e interessado na salvação do ser humano total, pensa. Pode-se resumir aquilo que é costume chamar de “intelectualismo socrático” à posição que ele assume ao exprimir o conceito de quem sabe o que é o bem não realiza o mal, pois se realizar o mal, tal quererá dizer que não sabe o que é o bem.
Para Sócrates o papel do ser humano consistia em perceber o que é o bem, realizando-o, e defendendo-o até com a própria vida: condenado à morte, e tendo-lhe sido dada a possibilidade de fugir, Sócrates mantém a serenidade total de quem não troca a verdade e bondade, vivendo de acordo com os princípios éticos que proclamara. Morre, bebendo pela sua própria mão, a cicuta que o eliminará do mundo dos vivos.
Mostrou assim que é possível haver um homem, simplesmente homem, que seja bom: está aberto para o homem o caminho da bondade.
Ou seja, o caminho para o ser humano já não era um caminho determinado de fora, mas um caminho que ele próprio poderia seguir apenas orientado pela voz interior da razão, o seu caminho. É com ele que nasce a formulação racional de toda a tradição de liberdade e de autonomia da tradição ocidental.
Por todo este processo, mormente pelo modo infame e injusto como Sócrates foi assassinado pelo poder, dito democrático de Atenas, o seu discípulo Platão vai ficar a odiar para sempre a tirania e os tiranos, concluindo que enquanto existirem tiranos não será nunca possível a humanidade plena.
Platão, a Ética aristocrática das virtudes
Esta condenação de um homem bom, em nome do que seria bom para a cidade, vai conduzir Platão a uma reflexão ética e política sobre qual seria a relação existente entre o ser humano e o bem, sobre qual seria o estatuto do bem, numa tentativa para conseguir entender por que razão os seres humanos não conseguiam perceber o bem que estava presente entre eles, levando-os a escolherem o mal, numa manifestação de estupidez ética e política.
Para Platão, o ser humano é por essência um ser de relação com tudo: consigo próprio, pelo diálogo ético interior, e também com tudo o que não pertence a esta esfera de interioridade, o que faz dele um ser político.
O lugar onde é possível que a esfera da pura interioridade ética do ser humano possa comunicar com todas as outras diferentes interioridades éticas é a cidade, local que permite que esses mesmos seres humanos se entendam, por partilharem de um mesmo horizonte lógico e ontológico de sentido.
A cidade não é para Platão apenas o conjunto dos seus habitantes, mas a função integral e total da sua interação, dependendo a sua qualidade da qualidade de cada um e de todos os seus habitantes. Para que possa ser uma boa cidade, tem de ser constituída por bons seres humanos.
Para isso, há que educá-los no sentido do bem da cidade, que não é um bem imposto por capricho ou outra forma irracional, mas um bem que tem de ser de e para todos os que dela fazem parte e que para o bem dela queiram contribuir. A este bem chama-se o “bem-comum”. O bem-comum é o bem para todos os que dele quiserem participar.
A cidade é assim o lugar próprio do ser humano, onde ele poderá não só sobreviver, mas ainda viver de um modo consentâneo com a sua dignidade ontológica. A cidade é o único lugar em que os seres humanos podem usar as suas capacidades inatas para, numa inter-relação harmoniosa, crescerem tanto quanto lhes seja possível, tendo como horizonte o contribuir para que todos possam atingir o melhor possível de si próprios.
Tal obriga cada ser humano a ser o melhor no que de si pode dar ao todo do bem-comum de todos e para todos, ou seja, obriga-o a ser um autêntico nobre. Daí este ideal platónico ser aristocrático na medida em que cada ser humano, para que o bem-comum possa existir, tenha de agir com toda a nobreza dentro dos limites que a sua condição individual possa permitir, no sentido positivo de uma finalidade que é o bem de todos.
E, contudo, até agora, este bem-comum, embora reconhecidamente muito nobre e muito difícil, tem sido impossível de realizar. E isso tem que ver com o facto de haver sempre quem se oponha a que o bem-comum se realize. Tal não nos pode levar a concluir que a proposta de Platão é utópica, mas antes a concluir que a humanidade sem racionalidade é uma humanidade que não é verdadeiramente humana.
Daí que Platão, nas suas propostas concretas que faz para a constituição da cidade, parta sempre da constatação de uma propensão fortíssima para a irracionalidade existente na humanidade.
Era também evidente que para esta construção da cidade tornava-se necessária a existência de virtudes fundamentais entre os seus membros, de forma a tornar possível o respeito pelos limites da possibilidade própria de cada um na relação com as possibilidades dos outros. A existência individual das virtudes reflete-se no todo da cidade e uma cidade virtuosa é necessariamente uma cidade de seres humanos virtuosos.
A virtude é sempre uma possibilidade de algo, nomeadamente para uma ação no sentido de determinado bem, ou seja, a virtude é o que abre o horizonte para uma possível ação humana no sentido do bem, partindo do princípio de que há um bem possível e alcançável por meio da ação humana.
Filosoficamente, a virtude é o que introduz positividade ontológica. Contraditoriamente, o vício é tudo o que não introduz ou retira positividade ontológica.
Daí que a ação humana, ao poder ser criadora de novo bem ou impossibilitadora de bens, se revista sempre da maior gravidade.
Platão vai considerar três níveis estruturais do ser humano, cada um com uma virtude própria encarregue de promover o bem humano no seu nível.
Ao nível mais básico, que diz respeito a toda a vida material e biológica, a virtude é a “temperança”.
Exemplificando: se alguém necessita para viver bem, em todos os sentidos, de cem gramas de gordura por dia, deve apenas comer essa quantidade de gordura; se o não fizer, está a ser intemperado, e sofrerá, não só ele, mas toda a comunidade, os efeitos negativos de tal intemperança.
Atentando contra o bem do seu próprio ser, está a diminuir o seu bem individual e por consequência, estará a diminuir o bem da comunidade. O ser intemperado faz com que o ser humano se aproxime da condição da besta, pelo que Platão insiste na temperança como forma da humanidade se promover não se rebaixando ao nível das bestas.
O segundo nível corresponde ao nível de transição entre o puramente material e biológico e o espiritual. Não se trata já de um nível meramente relativo à manutenção física e biológica do ser humano, mas de um nível de uma vida mais arrojada, capaz de compreender coisas sem corpo, lugar da necessária força e resistência às paixões: é o lugar da “coragem”.
A coragem serve para moderar quer as paixões que tentam reduzir o ser humano à animalidade irracional, quer as paixões que querem fazer dele um “deus”. A coragem não é já o apanágio dos guerreiros, como a anterior tradição, mas é o apanágio de todos os seres humanos, naquilo que lhes vai permitir uma autonomia.
Segue-se o nível mais alto, do espírito, da inteligência, que é capaz de captar as coisas no sentido interior do ser humano, de forma a fazer que seja o cosmos exterior a pertencer ao foro interior do ser humano. A virtude que lhe corresponde é a “prudência” ou “sabedoria”, que vai mediar ponderadamente todas as paixões, que não são para anular na sua totalidade, mas apenas no que têm de exagerado, e que vai também mediar as relações entre toda a vida nos sentidos ético, políticos e de transcendência.
Aristóteles e a ética teleológica
Aristóteles vai pegar nas descobertas e sínteses fundamentais de Platão, aplicando-as ao detalhe do real, fundando neste processo quase todas as ciências maiores, que ainda hoje permanecem.
A sua filosofia ética e política assenta na descoberta de que a realidade é constituída fundamentalmente por duas facetas: uma realidade de carência e uma realidade de potencialidade atual. Daí que a realidade humana possa ser vista como uma dialética entre uma não-plenitude e uma tensão para uma plenitude própria possível.
Assim, cada ser humano é possuidor de uma potencialidade própria que corresponderá ao seu fim último possível ou, ainda antes de lá chegar, a uma situação imperfeita, mas sempre caminhando de um grau de perfeição possível para outro grau de maior perfeição possível, a realizar.
Ou seja, todo o ser humano tem como fim último a perfeição absoluta, o que implica a tese da possibilidade de qualquer ser humano poder realizar o melhor de si próprio.
Partindo do princípio de que o ser humano é imperfeito, mas perfectível, conclui que cada ser humano tem uma finalidade que lhe é própria, mas que contudo não o condiciona como se de um destino se tratasse, antes lhe conferindo uma infinidade de possibilidades de entre as quais pode escolher, para através da sua ação se poder aproximar da possibilidade melhor de si próprio.
Qual era a prática desta filosofia?
Na Ética a Nicómaco, Aristóteles diz-nos que os fins se encontram inscritos na natureza, ou seja, a natureza fixou fins a alcançar para o homem e que é na função que cada um desempenha que reside o bem, o conseguido.
Em qualquer profissão se torna pois necessário um certo exercício, uma certa prática, para se vir a ser o melhor; contudo, deve ter-se sempre em conta que não basta só descobrir esse talento, é preciso ter o cuidado em não ultrapassar o talento com que a natureza o dotou.
Esse talento deve, portanto, ser procurado de acordo com a natureza. Só esse dom natural que iremos descobrir é que nos pode indicar a via a seguir.
O ser virtuoso não é o que alcança um certo nível devido apenas aos esforços livremente por si intentados; é antes aquele que funciona bem, mesmo excelentemente, de acordo com a natureza e as finalidades que são as suas.
O bem é o alcançar o objetivo apropriado para cada um, a sua finalidade. Atuar virtuosamente é alcançar essa finalidade.
A virtude surge assim como uma atualização das predisposições naturais dos seres. E tal é válido quer para as coisas quer para os animais e seres humanos, para os quais a felicidade está ligada à descoberta e ao cumprimento em si desta finalidade. Para Aristóteles, um ser virtuoso é aquele que alcança os seus fins predeterminados.
Nesta visão ética, a procura da finalidade radicava na possibilidade de que cada um conseguisse encontrar no espaço social o seu lugar, para aí se manter e não correr o risco de vir a ser sancionado por quem estivesse encarregado de manter a ordem harmoniosa, segundo a fórmula famosa do direito romano de “a cada um no seu lugar”, ou na versão mais popularizada do século XX português e utilizada pelo ex-Primeiro-ministro Almirante Pinheiro de Azevedo, “cada macaco no seu galho”(em seu abono, também disse aos manifestantes: “Vão barda merda”).
É na função “trabalho” que se torna mais evidente esta teoria moral de uma certa visão aristocrática da organização da natureza, onde cada um deve encontrar o lugar próprio que lhe compete, em função da sua própria natureza, e onde o trabalho aparece como uma atividade própria das classes inferiores, nomeadamente dos escravos.
À aristocracia competia fazer a guerra, exercitar-se nas artes e desportos, e sobretudo contemplar, para se certificar sobre qual o lugar, certamente entre os melhores, que lhe competiria na ordem natural cósmica, e que certamente implicaria o não trabalhar.
Esta ética das virtudes elencava uma lista de virtudes onde se encontravam entre outras a honestidade, a coragem, a prudência, a generosidade, a integridade, a afabilidade, o respeito, que deveriam de ser cultivadas a fim de se conseguir ter um carácter virtuoso.
E a maneira de as cultivar era pela prática: assim, se se quisesse cultivar a virtude da honestidade para se vir a ser uma pessoa honesta, deveríamos de repetir vezes sem conta ações honestas até que essa virtude viesse a estar ligada ao nosso carácter. Inversamente, quanto mais se mentir mais se cultiva o vício da desonestidade.
A ética cristã
Para o Cristianismo, sendo a natureza humana dada por Deus (o que constitui a primeira graça divina, a graça da criação própria sua) bastará ao ser humano seguir essa natureza dada em sua mesma perfeição (também dada) para que se cumpra o desígnio de Deus. Se tal não acontecer é porque o ser humano não segue a sua natureza. Assim, fazer o bem é agir bem. Um ato é bom quando cumpre o bem que deve cumprir, sendo assim, virtuoso. Donde, ser o vício antinatural.
Daí que as virtudes da fé, esperança, caridade, temperança, coragem, prudência e justiça sejam consideradas como sendo naturais, muito embora a sua origem seja sobrenatural à semelhança com o que acontece com toda a natureza que embora seja “natural”, é produto de algo que a transcende e a acompanha (o mundo criado por Deus).
O Cristianismo, ao absorver na sua quase totalidade a ética teleológica de Aristóteles e ao juntar a isso as noções de que o universo fora criado por Deus segundo um plano divino e que Deus nos outorgara mandamentos sobre como devemos viver, vai-nos proporcionar um fundamento objetivo que irá servir de base para os nossos juízos, sobre o que está certo ou errado.
De certa forma podemos verificar que coube às religiões no geral esse papel de tentar encontrar e explanar esse fundamento objetivo.
Ponto de situação
Toda a exposição sobre ética até aqui feita, poderá levar-nos a crer que tal seria a ética seguida e praticada na Antiguidade Clássica, uma ética de elevação, apontada para o bem e onde se entrelaçavam e robusteciam o ser humano individual e a comunidade. Nada mais longe da realidade, bastando lembrar os factos da morte de Sócrates e da prisão e a venda de Platão como escravo. De facto, também nesse mundo antigo, a ética não passava de uma questão de opinião.
Trasímaco, particularmente combatido por Platão na República, negava que a justiça fosse algo de real e importante. Segundo ele, as pessoas acreditavam no certo e no errado apenas por terem sido ensinadas a obedecer às regras da sua sociedade, regras essas que não passavam de invenções humanas.
E acrescentava que o código ético das sociedades refletia os interesses das suas classes dominantes, pelo que as pessoas comuns estavam a ser estúpidas quando pensavam em ter de “fazer aquilo que está certo”.
O aparecimento da ciência moderna, mostrando-nos o mundo como um lugar frio e indiferente que não se importa connosco, em que o universo é visto como um domínio de factos alheios ao que está certo ou errado, vai permitir que Hume diga que “a vida de um homem não tem mais importância para o universo do que a de uma ostra”.
A conclusão óbvia é a de que a ética não passa de uma invenção humana. Exatamente o desafio que Trasímaco lançara a Sócrates para que este provasse que a ética tinha um fundamento objetivo
Haverá alguma forma para demonstrar que algumas coisas são boas e outras são más, independentemente das nossas atitudes e convenções sociais?
Mas há, ainda, um outro problema: até aqui temos considerado que a ética é apenas uma característica do ser humano, presente em todas as sociedades. Só que tudo parece cada vez mais indicar que existe ética em todas os mamíferos sociais, o que vem fazer com que a ética resulte de uma adaptação evolucionária com a finalidade de promover a cooperação do grupo. A apresentar em próximos blogs.
Notas:
Grande parte deste trabalho sobre Éticas, segue de perto os apontamentos das aulas do Professor Américo Pereira, da UCP, Lisboa.