As propostas dos bancos e das companhias de pagamentos são apenas do interesse deles. A sua função é convencerem-nos que tais propostas são do nosso interesse.
Sempre que uma instituição poderosa quiser que as pessoas escolham uma determinada opção (que convenha à instituição), a estratégia empregue é a de dificultar a alternativa.
Face aos escândalos associados aos paraísos fiscais e às monumentais fugas ao fisco atuais permitidas pelos muito “seguros” sistemas de transferências digitais, dizerem-nos que o pagamento em dinheiro anda normalmente associado ao crime e à fuga ao fisco, é no mínimo tomarem-nos por ingénuos.
Há dois conceitos importantes de filósofos marxistas que, curiosamente, têm vindo a ser utilizados por cadeias de supermercados, bancos, instituições financeiras similares e outras megaempresas, e que têm servido de base teórica para as suas apregoadas tentativas de construção de uma sociedade em que tudo seja mais fácil para nós. Sempre a pensarem em nós.
Antonio Gramsci, (1891-1937), desenvolveu o conceito de “hegemonia” para nos explicar como os poderes instituídos conseguem condicionar o ambiente cultural e económico de tal forma que eles acabem por serem aceites pela população em geral como fazendo parte da inevitabilidade da natureza humana.
Louis Althusser, (1918-1990), desenvolveu o conceito de “interpelação” através do qual se pode fazer com que as pessoas possam interiorizar crenças, se forem interpeladas como se já tivessem essas crenças.
Quando os supermercados começaram a substituir os empregados da caixa por máquinas que prestavam serviço idêntico, fizeram-no inicialmente tentando convencer os clientes de que lhes estavam a oferecer uma alternativa conveniente. Quando alguns clientes começaram a usar essa alternativa, os supermercados começaram a invocar essa utilização como se tratasse de uma alteração de comportamento dos consumidores, o que lhes serviu como justificação para reduzirem o número de empregados das caixas. Como consequência da diminuição do número desses empregados, com o respetivo aumento dos tempos de espera para serem atendidos, os clientes começaram a preferir as caixas automáticas.
Também os bancos começaram a reduzir as delegações e o número de máquinas automáticas (ATM) para levantamento de dinheiro. A explicação que nos dão é que foram sendo obrigados a fazê-lo para responder às preferências dos clientes, porquanto uma maioria deles tinha vindo a aumentar a utilização das consultas e transações “on line”, através dos seus computadores.
É evidente que nenhum dos clientes lhes pediu para fecharem as delegações ou diminuírem o número de máquinas disponíveis. O que acontece, é que a diminuição das delegações e das máquinas disponíveis torna a vida mais difícil para os clientes que normalmente utilizavam esses meios, forçando-os a aderirem aos serviços “on line”.
Ou seja, sempre que uma instituição com poderes, quiser que as pessoas venham a escolher uma determinada opção (que convenha à instituição), a estratégia empregue é a de dificultar a alternativa.
É óbvio que a finalidade pretendida é fazer com que os pagamentos venham a serem feitos via digital, utilizando a infraestrutura digital do banco. Assim, além de cortarem nos seus custos aumentando os lucros, vão, acima de tudo, poderem controlar e monitorizar as ações desenvolvidas pelos clientes.
Para isso, começam por aumentar os inconvenientes da utilização do dinheiro físico, diminuindo o número de delegações e das ATM. Depois, promovem ativamente a alternativa. A finalidade é a de fazer primeiro com que as pessoas aprendam a lidar com o digital, e que depois passem mesmo a escolhê-lo por “vontade própria”.
Poucos são já os que se lembram que ao fim do mês, ou da semana, recebiam na pagadoria da empresa o salário em dinheiro. Ninguém na altura julgava que tal viria a ser considerado como “inconveniente”, “mau para a economia”, e que bom seria mesmo viver numa sociedade em que não se necessitasse de trazer dinheiro consigo. Mas é disso que nos estão a tentar convencer.
Uma sociedade desse tipo é apenas do interesse dos bancos e das companhias de pagamentos. A função deles é convencerem-nos que tal é do nosso interesse.
Dizerem-nos que o pagamento em dinheiro anda normalmente associado ao crime e à fuga ao fisco é no mínimo, face aos escândalos associados aos paraísos fiscais e às monumentais fugas ao fisco atuais permitidas pelos muito “seguros” sistemas de transferências digitais, tomarem-nos por ingénuos.
A monitorização e o controle permanente que esses sistemas exercem sobre “nós”, e que pelos vistos não os afeta a “eles”, porquanto raramente são apanhados e quando o são, o tempo que demora o processo é interminável, torna-se cada vez mais absoluto. Basta ver o descaramento com que nos avisam para termos muito cuidado com as objeções que levantarmos ao dinheiro virtual, para que a economia não venha a ser prejudicada por “entraves” que são contra o “natural” funcionamento do sistema.
Vejamos um exemplo possível e muito provável de acontecer num sistema totalmente digitalizado sem numerário: esse sistema poderá vir a permitir que em casos de manifestações “não desejadas”, através de uma simples ordem, se proceda ao não pagamento dos salários, transações e levantamentos, dos manifestantes intervenientes, o que será certamente muito mais efetivo do que uma carga policial.
Claro que em contrapartida já podemos pagar um café com o telemóvel.
Este é o fantástico mundo do dinheiro virtual. Este é o “nosso” mundo.
Isto e muito mais encontramos na leitura do livro de Brett Scott, The Heretic’s Guide to Global Finance: Hacking the Future of Money Paperback, que nos adverte contra os perigos de um sistema digitalizado sem numerário.
“À política o que é da política, à economia o que é da economia”.Não é por acaso que tudo isso nos faça lembrar a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.
O empresário, por não estar sujeito a quem mande nele e o explore, julga-se ‘livre’. Ele passa a explorar-se a si próprio: o explorador é simultaneamente o explorado.
Continuamos a ser escravos do amo e amos do escravo, mas não somos homens livres.
A aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros,implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade.
As Googles, Microsofts, Face Books, Intels, e outras similares, fazem parte de um conjunto de megaempresas onde se encontram os hackers/programadores modernos por elas contratados para que aí continuem a praticar os seus passatempos favoritos num ambiente legal e informal, sem restrições de maior, em espaços arquitetónicos e de grande envolvência que acrescentam sensações de bem-estar e liberdade, onde todos gostaríamos de estar.
Podem continuar a ir para o emprego como se estivessem em casa, não há normas sociais de trajo e comportamento. Ténis, havaianas, skates, jeans, fato completo ou meio fato, camisa ou t-shirt, calções e sapatos, e tudo o mais que a imaginação à venda ditar, tudo serve para a realização dessa espécie de utopia proto socialista em que se pretende anular a oposição entre a atividade comercial alienada, mas pela qual se ganha dinheiro, e o passatempo privado que se leva a cabo por prazer.
A finalidade é fazer com que o trabalho apareça transformado em passatempo, fazendo assim que se passem longas horas no local de trabalho, sábados e domingos, à frente do computador: é que quando alguém é pago para desenvolver e finalizar o seu passatempo, fica exposto por ele próprio a uma maior pressão do que se estivesse a trabalhar segundo a ‘boa velha ética de trabalho protestante’.
No terceiro quartel do século passado, a transformação da sociedade começou a fazer-se sentir, nomeadamente no sistema económico. Há nitidamente uma alteração que vai levar a sociedade dita da ‘disciplina’, que formula proibições e onde o verbo é o ‘dever’, para uma sociedade de ‘rendimento’, em que o verbo passa a ser ‘poder’ (de possibilidade). Por várias razões (maior eficácia), o chicote e o mando são substituídos pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.
O ‘Estado mínimo’ proposto pelos neoliberais aparece como o epítome do ‘administrador da liberdade’, possibilitando enfim a liberdade do cidadão: ‘Vou procurar que tenhas a liberdade de seres livre!’.
O que acontece na prática é que por detrás desta aparente liberdade do indivíduo, este regime liberal esconde a sua estrutura coerciva: o ‘tu podes’ exerce muito mais coerção do que o ‘tu deves’.
Mais, se a pessoa fracassar no seu projeto, aparece (assume-se a si própria) como culpada. É que, como o sistema económico dominante (o capitalismo) não é nenhuma religião (onde há as categorias de ‘culpa’ e de ‘perdão’), a única categoria que nele existe é a de culpa (a dívida).
O neoliberalismo conduz à despolitização radical da economia. A necessidade de acabar ou reduzir ao mínimo a segurança social, a escola pública, os serviços de saúde públicos, as atividades culturais públicas, etc., são exemplos de como se pretende que a economia funcione: como simples manifestação do estado objetivo de coisas.
Ou seja, a aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade, que não exista qualquer forma de limitação radical da liberdade do capital, nem qualquer subordinação do processo de produção ao controle social.
À política o que é da política, à economia o que é da economia. Não é por acaso que tudo isso faça lembrar a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.
Na sua alegoria sobre o amo e o escravo, Hegel pretende demonstrar como o progresso histórico para a liberdade se torna possível através do jogo dialético entre o amo e o escravo: só com a libertação do escravo é que o amo se sentirá também libertado.
A história só chegaria ao fim quando fossemos na realidade livres de fato, quando não fossemos nem amos nem escravos, nem escravos do amo, nem amos do escravo.
O que acontece hoje é que nos encontramos numa fase histórica em que o amo e o escravo formam uma unidade. O escravo não trabalha para o amo, mas explora-se voluntariamente a si mesmo. Como empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.
Os empresários, os novos empreendedores, os free lancers, por não estarem sujeitos a quem mande neles e que os explorem, julgam-se ‘livres’. O que acontece é que passam a explorarem-se a eles próprios: o explorador é simultaneamente o explorado.
Ou seja, contrariamente ao jogo dialético das contradições imaginadas por Hegel, o que se alcançou foi um patamar superior onde a liberdade se encontra mais coartada.
Na Política, Aristóteles escreve:
“Em consequência, algumas pessoas supõem que é uma função da administração doméstica o aumentar a propriedade e vivem continuamente com a ideia que é um dever salvaguardar as suas posses monetárias ou aumentá-los para um patamar ilimitado. A causa desta atitude da mente reside no fato de os seus interesses se concentrarem apenas na vida, e não na vida boa”.
Traduzido para a atualidade, tal significará que o sistema económico de hoje, com a sua compulsão para a acumulação e para o crescimento, absolutiza a mera vida. O seu fim não é a vida boa.
Perdida esta teleologia da vida boa, o processo do capital e da produção acelera-se até ao infinito, perdendo a sua direção, a sua finalidade. É a vida obscena.
A passagem do grunhir para a fala como grunhido entendível pelos demais membros do grupo, parece ter demorado algum tempo.
Há quem defenda, por exemplo, que o amor tal como o entendemos hoje, só apareceu com os trovadores da Idade Média.
Há quase dois mil anos (muito provavelmente no ano 55), o apóstolo Paulo, escreveu sobre o amor o que se pode ler no Capítulo 13 da 1ª Carta aos Coríntios.
A passagem do grunhir para a fala como grunhido entendível pelos demais membros do grupo, parece ter demorado algum tempo. A fase que se lhe seguiu foi fazer com que a fala conseguisse transmitir um conceito (adquirido ou pré-existente) que também viesse a ser entendível pelo grupo, ou pelos grupos mais alargados que se iriam formando. Conceitos estes que supomos tivessem que ver com as limitações que eram postas e impostas pela vida prática.
Dada a complexidade desta co-elaboração, foi lento o desenvolvimento da racionalidade, acabando por se criar como que um quadro de conceitos que se manteve relativamente fixo. O que fez com que ao longo dos tempos se fossem utilizando esses mesmos conceitos, mas com atribuições diferentes.
É assim que as nossas peças de teatro, filmes e séries de televisão, mais não passam de variações de comportamentos humanos já todos anteriormente tipificados nas tragédias, dramas e comédias da literatura da Grécia Antiga e do Antigo Testamento.
É o que parece também acontecer com o conceito de amor e paixão. Muitas e variadas têm sido as obras que se dedicaram a estes temas, na tentativa da sua explicação e aparecimento. Há quem defenda, por exemplo, que o amor tal como o entendemos hoje, só apareceu com os trovadores da Idade Média. Invocam para isso o início da dedicação de versos e canções às damas da Corte, o que até pode ter uma justificação materialista: é nessa época que as terras começam a poderem ser herdadas pelas filhas.
O quadro dos conceitos parece, assim, não ter sofrido grandes alterações, havendo apenas uma mudança de sujeito. Como se verá, o exemplo abaixo apresentado, contém já toda a formatação da expressão dos sentimentos atualmente utilizados quando desejamos dar a conhecer a alguém o que é o “amor”, só que neste caso esses sentimentos são para com um deus e não para um ser humano.
Há quase dois mil anos (muito provavelmente no ano 55), o apóstolo Paulo, escreveu sobre o amor o que se pode ler no Capítulo 13 da 1ª Carta aos Coríntios:
“Se nas línguas dos humanos e dos anjos eu falar, mas amor não tenho, bronze ecoante ou címbalo ruidoso me tornei.
E se eu tiver profecia e souber todos os mistérios e todo o conhecimento; e se eu tiver toda a fé a ponto de mover montanhas, mas amor não tenho, nada sou.
E se eu transformar em comida para os que têm fome todos os meus bens e se eu entregar o meu corpo para que me vanglorie da minha própria coragem, mas amor não tenho, de nada sirvo.
O amor é paciente, prestante é o amor: não inveja, não fanfarrona, não se incha de vaidade;
não é indecoroso, não procura as coisas que são do interesse dele; não se irrita nem contabiliza o mal que lhe é feito;
não se alegra com a injustiça, mas alegra-se pela verdade.
O amor nunca falha. Se existem profecias, elas serão anuladas.
Se existem línguas, cessarão. Se existe conhecimento, será anulado.
Pois o nosso conhecimento é parcial e parcial é a nossa profecia.
Quando vier o perfeito, o parcial será anulado.
Quando eu era criança, falava como uma criança, pensava como uma criança, contava como uma criança. Mas quando me tornei homem, anulei as coisas da criança.
Pois nós vemos agora através de um espelho enigmaticamente; mas depois, será cara a cara. Agora conheço as coisas parcialmente; mas depois conhecerei na medida em que também eu fui conhecido.
O que fica agora é: fé, esperança, amor -estas três coisas. Mas desta a maior é o amor.”
Tradução que se pode ler em Frederico Lourenço, Bíblia, volume II, Novo Testamento, Apóstolos, Epístolas, Apocalipse.
Para o casamento a branca, para o prazer a mulata, para o trabalho a negra, provérbio brasileiro.
Quanto mais a sociedade está próxima da escravatura, menos invejável é a sorte das mulheres.
A África está vazia, a escravatura é encorajada, a América ocupada, e a Europa próspera industrializa-se com este afluxo de capitais.
Há um preconceito natural que leva o homem a desprezar aquele que foi seu inferior, mesmo muito tempo depois dele se tornar seu igual, A. De Tocqueville.
Contratada a peso de ouro, a Pavlova dançou na ópera de Manaus, a poucos quilómetros dos primeiros seringueiros e dos últimos índios.
No reino da cana-de-açúcar
“Espanhóis e portugueses introduzem a cana-de-açúcar nas ilhas Canárias, na Madeira e em Cabo Verde. A partir do século XV esse açúcar faz séria concorrência ao do Levante. Veneza perde a sua supremacia europeia em benefício de Lisboa.
Mas tudo vai soçobrar com a descoberta do Novo Mundo. Porque aí a cana do mel existe já, crescendo em estado selvagem. Os portugueses do Brasil são os primeiros a explorá-la. Mas bem cedo se seguirão os espanhóis, franceses, holandeses e ingleses. O Brasil primeiro, depois Cuba, México, e as ilhas das Antilhas. O mundo vai mudar de aspeto.
As empresas coloniais fundadas unicamente sobre a troca, voluntária ou imposta, com os indígenas, transformaram-se em ocupação agrícola. […] É por isso preciso, conquistar e ocupar as terras de cana e conservá-las: a Europa a isso se dedica. É preciso cultivar a cana: a Europa deporta a África para as Américas.
A África está vazia a escravatura é encorajada, a América ocupada, e a Europa próspera industrializa-se com este afluxo de capitais.[…]
[…] Em três frases, o génio de Colbert reuniu vários séculos da política colonial: “que a metrópole não mantenha colónias senão para obter o que ela própria não produz; que as companhias beneficiárias do monopólio do comércio, metropolitanas por definição, são obrigadas, por um lado, a trazer para a mãe-pátria todos os produtos que recolhem – e só esta pode revendê-los - e por outro lado, a comprar na metrópole tudo aquilo de que as colónias têm necessidade”.
[…] havia a proibição à colónia de fabricar ela própria os produtos industriais de que tivesse necessidade e a obrigação de vender e comprar a preços impostos pelo mais industrializado.
[…] Para lá do Equador não há pecado, resumiu em Recife o capelão (Gaspar Baelus) de Maurício de Nassau […] Tudo estava corrompido pelo açúcar e pela escravatura. As mulheres brancas dos senhores dos engenhos de açúcar, reclusas, submissas, tremendo ao falar ao seu marido e senhor, fumando cachimbo como as camponesas, casadas aos 12, 13 ou 14 anos, empanturradas de doces e de aborrecimentos, desdentadas aos 25 anos … são a outra face desta fornicação animal. Ainda hoje, os fazendeiros do Nordeste que permanecem nas suas terras, quando se procura por eles ou estão em sua casa ou na casa da amante. E hoje como ontem, eles praticam o provérbio brasileiro:
“Para o casamento a branca, para o prazer a mulata, para o trabalho a negra”. […] Quanto mais a sociedade está próxima da escravatura, menos invejável é a sorte das mulheres.
[…] A cana-de-açúcar veio e chamou o Negro. O açúcar e o Negro fizeram o Nordeste brasileiro e os latifundiários. Isto é de todos os tempos, a agricultura esclavagista gera o latifúndio, como o arquiteto o betão armado. […] Portugal ditava os preços […] E (os latifundiários) proibiram qualquer outra cultura que não fosse a cana nas suas terras. A monocultura da cana expulsou os rebanhos para o sertão, como se se tratasse de bestas malditas. Expulsou os rebanhos, como expulsou as florestas, os pássaros e as plantas. Daí, quatro séculos de fome.
[…] Esta fúria da cana sem outra preocupação além do lucro imediato, devastou e desequilibrou. A desmatação pelo fogo, a cultura repetida da mesma planta, a supressão de toda a vida animal, a desaparição de qualquer vegetação que não fosse a açucareira, arrastaram o esgotamento rápido da terra, uma erosão intensa; daí novas áreas sujeitas a corte, a novas desmatações, um alargamento da pilhagem, ao ponto de alterar-se o clima, a temperatura e o regime hidrológico. Que resta disso hoje em dia? A fome.
[…] Desde 1584, a região do Recife exportava 200.000 arrobas de açúcar. Trinta engenhos, de escravos ou de bois, esmagavam a cana em 1576; 700, em 1584; 120, em 1600. E, em 1600, a população europeia, que não ultrapassa as 30.000 pessoas, partilha entre si uma renda do açúcar de cerca de 2 milhões de libras. “A pequena colónia era fabulosamente rica”.
[…] Em 1624 os Holandeses ocupam a Baía, mas são rechaçados um ano depois. Em 1627, Piet Hein, o Terror dos Mares, reincide. Em 1618, o mesmo Terror dos Mares lança a mão sobre a fabulosa “frota da prata”, o comboio anual, para Madrid, das minas da Nova Espanha e do Peru. A Companhia das Índias, holandesa, embolsa 9 milhões de ducados e, prudentemente, investe 2 ou 3 numa frota de 61 navios e num exército de 7300 homens, que se apresentam diante do Recife e entram na cidade em 2 de março de 130.
O Brasil holandês prolongava-se ao longo da costa, desde o rio S. Francisco, ao sul, até ao Maranhão e ao Amazonas, ao norte, abrangendo quase a metade do Brasil então conhecido. […] Em 1637 os holandeses convidam o príncipe da Casa de Orange, Guilherme de Nassau, para governá-los. […] Mas o seu triplo monopólio imposto, asfixia os senhores do açúcar: monopólio do transporte dos negros, monopólio da compra do açúcar, monopólio do fornecimento das mercadorias do exterior. Em 1646, as tropas holandesas debandam nas duas batalhas dos Guararapes; em 1654 Amesterdão perde definitivamente os seus entrepostos brasileiros. Ficam Wanderley, mestiços de olhos azuis e os canais do Recife abertos por Guilherme de Nassau.
O retorno à posse de Portugal é pouco apreciado. […] Em resumo, colónia portuguesa, colónia holandesa e outra vez colónia portuguesa, o Brasil permanece dependente. Tanto mais que se Portugal, em 1640, sacudiu a ocupação espanhola, para sobreviver como metrópole comercial, deverá ligar-se a uma grande potência, o que há-de necessariamente significar a alienação duma parte da sua soberania. Os acordos concluídos entre a Inglaterra e Portugal, em 1642, 1654 e 1661, estruturam esta aliança, que marcará profundamente a vida política e económica de Portugal, como do Brasil, durante os dois séculos seguintes.
Os privilégios concedidos aos comerciantes ingleses em Portugal eram de tal ordem (jurisdição extraterritorial, liberdade de comércio com as colónias, controle das tarifas sobre as mercadorias importadas de Inglaterra) que eles acabaram por constituir um grupo poderoso e influente, com um ascendente cada vez maior sobre o Governo português.
Sintetizando: expulsos os holandeses pelos brasileiros, portugueses e ingleses, apoiando-se mutuamente, partilham entre si o monopólio do Brasil.
E o açúcar baixa nas cotações do comércio mundial. As Índias Orientais e, sobretudo, as Antilhas entrem na concorrência. […] O centro de gravidade vai deslocar-se com a descoberta do ouro de Ouro Preto e da mineração intensa de Minas, que começa no século XVIII. A primeira epopeia agrícola do Brasil vai terminar com terras devastadas pela monocultura, terras essas que, lentamente, os negros vão percorrendo na nudez das suas peles escuras. O Banco de Inglaterra acaba de fundar-se em 1694.”
“A mortalidade infantil no Recife, entre o nascimento e a idade dum ano, atinge 300 por mil; no interior do Estado, 500 por mil. Nas escolas do Recife, 77 por cento das crianças têm o ventre roído por, pelo menos, duas espécies de parasitas intestinais devastadores: ancilostomose ou cisticercose.
No interior, 80 por cento da população é portadora dum dos dois parasitas, pelo menos. E assim vai, ainda hoje, o mundo do açúcar.”
“[…] Napoleão invadiu Portugal em 1807 e D. João VI fugiu num navio inglês, evidentemente. E os ingleses obtêm: uma esquadra inglesa permanente no Brasil; livre residência para os ingleses, liberdade de comércio em todos os portos … e juízes ingleses, eleitos pelos ingleses, nos portos e cidade do Brasil, com capacidade para julgar qualquer causa na qual estivesse envolvido um súbdito britânico (Tratado de 1810, art. X). Será necessário traduzir? Bem depressa o leão britânico deixaria de partilhar o império brasileiro com o minúsculo Portugal.”
Feijão preto, carne seca e mandioca
“A dona da casa, a Senhora Pioger, enumera as suas pacientes lições para ensinar a cozinheira mulata a alimentar-se. Semanas de esforços para lhe fazer engolir um sumo de frutos, meses para habituá-la aos grelhados…qualquer alimento novo é uma batalha. Josué de Castro comenta:
“Durante séculos o senhor repetiu aos escravos que o açúcar era desastroso para a barriga, provocava vermes e fazia cair os dentes. Para defender o exíguo vergel à roda da sua habitação e reservado à família, multiplicou as proibições e as falsas prevenções. As saladas e os legumes são bons para os lagartos: ‘O feijão preto, a carne seca e a mandioca, isso sim, isso faz homens!’
E as superstições permanecem, incrustadas por quatro séculos de ordens, de ameaças, de falsos avisos e, finalmente, por força do hábito: as melancias provocam a pedra, a fruta faz cólicas, o leite misturado com a manga envenena…”
A caça aos índios
Para perseguirem os franceses de S. Luís do Maranhão, os portugueses fundam Belém em 1616. Mas só em 1637 é que o português Pedro Teixeira sobe o mar doce (do Amazonas) até Quito com 70 barcos e 1200 homens matando os índios que avistava – “descer índios”, mencionavam as suas instruções – cuja lenda persistente dizia que escondiam o ouro e as pedras pediosas. […] Iniciou-se o genocídio; as margens estavam antão densamente habitadas. O piloto-chefe da expedição escrevia:
“Os índios são tão numerosos que se se lançasse uma flecha no ar, ela não cairia no chão, mas sobre a cabeça de algum”.
[…] “Tudo o que se pudesse escrever sobre a barbárie dos primeiros colonos, ficaria abaixo da verdade”. Em poucos anos as margens do Amazonas ficaram desertas: em fuga, escravos ou mortos, os índios tinham desaparecido. Fora os cativos, os soldados e os padres, Belém só tinha, em 1650, 80 habitantes: praça forte na entrada doo Amazonas, porta real do inferno verde, base da pirataria, ela impede a vinda de estrangeiros aos lugares de caça dos portugueses e permite a estes, expedições intermitentes ao interior.
Por exemplo, em 1664, o capitão Pedro da Costa Favela, só ao longo do rio Urubu, incendiou 300 aldeias, matou 800 índios e trouxe 400 como escravos.
[…] em 1729, Belchior Mendes de Morais, passava pelas armas 20.800 índios, segundo a sua própria comunicação ao governador de Belém. Os índios retiravam-se cada vez para mais longe e as flotilhas seguiam-nos: entre 1725 e 1750 o governo de Belém trouxe do alto do Rio Negro, para os seus trabalhos, tribos inteiras que não regressaram mais. […] Belém crescia lentamente… até à aventura da borracha.” […]
A borracha: o ouro líquido
“Tudo começou pela curiosidade do matemático francês La Condamine, que fazia o levantamento dum grau de meridiano no Equador, em 1735, e que trouxe, com os seus números, uma bola acinzentada e pegajosa conhecida no local sob o nome de cauchu. Nada realmente novo: os espanhóis de Colombo já haviam visto, um século e meio antes, os indígenas divertirem-se com bolas elásticas.
Alguns laboratórios trituram o novo material. Em Boston, em 1820, a aparição de um par de sapatos sugere aplicações industriais. O índio já fabricava calçado sob medida: espalha sobre o seu pé nu uma primeira camada de látex, depois uma segunda e uma terceira, separadas entre si por um intervalo para secagem e assim por diante até atingir um centímetro de espessura. Ei-lo provido de calçado à exata medida.
O par de sapatos, flexível e resistente, estimulou as imaginações civilizadas e deu origem a baldes, seringas, bolsas para tabaco e impermeáveis. Mas […] parece não ter grande futuro. Foi então que surgiu Goodyear, que inventou a vulcanização em 1840. A aventura começa: entre 1860 e 1870, a Amazónia exporta 65.000 t de borracha.
[…] Com o aparecimento do automóvel no fim do século, o mundo tem fome de borracha e só a Amazónia pode fornecê-la […] Inicia-se a corrida ao ouro líquido.
[…] Mas, os índios sobreviventes … acostumados a cuidar da seringueira, a defumar o látex e a transportá-lo em pirogas até ao lugar de trocas …não percebem que o mundo precisa de borracha … com regularidade, montanhas de borracha em datas fixas.
[…] Então os revendedores de Manaus expedem aventureiros pesquisadores para a floresta; uma espécie de polícia da borracha invade e controla os caminhos da Amazónia. Um armazém de víveres, alguns pistoleiros e um livro de contas. Distribuem-se bugigangas a troco de borracha. Mas o que eles (os índios) apanham jamais liquida a dívida do livro. O homem da floresta, aprisionado pelos números, perdia fôlego a tentar saldar as contas falsificadas.
Os que protestavam eram chicoteados ou obrigados a sentar-se sobre formigueiros, ou amputados de uma orelha. Os que fugiam eram perseguidos e apanhados e, como exemplo, atirados aos cães, esquartejados, torturados até à morte. Ou então, no meio desta vida monótona entre a água e o látex, era pretexto de distrações: amarrado, o indígena servia de alvo, e, a revólver ou a carabina, o divertimento consistia em arrancar-lhe sucessivamente uma orelha, um dedo, o nariz ou o sexo, ou regá-lo de petróleo antes de lhe deitar o fogo, ou violar, na sua frente, a mulher dele.
William Price avalia em 2 mortos por tonelada de borracha o custo da colheita de 1899, e nesse ano a Amazónia exportou 16.000 toneladas, o que dá quase 100 mortos por dia. A fuga dos índios fazia rarear as fileiras; por isso se organizaram “as correrias”, expedições para a caça e captura de escravos. […] Constituindo 52 por cento da população amazónica em 1852, desceram a 4 por cento atualmente.
[…] enviam-se então engajadores da goma mágica que recorrem aos brancos das terras secas do sertão, dos portos famintos da costa do Nordeste: dinheiro, álcool e promessas fáceis […] Centenas, milhares de barcos abarrotando de voluntários empilhados nas cobertas, dispersam pelo mato um milhão de sedentes de esperança, os novos seringueiros (substitutos dos índios).
[…] Uma vez por semana, uma ida e volta ao entreposto e ao armazém de abastecimentos: levar a bola de 50 kg e trazer farinha e o peixe seco. E a dívida aumenta a cada viagem. Tal como aconteceu com o índio, o livro de contas do armazém aprisionou o trabalhador. Escravos dos números falsificados, fica condenado a morrer ali, sangrando as seringueiras.
Menos treinados que os índios nas ciladas do inferno verde, impedidos de caçar e pescar, reduzidos à alimentação pobre e debilitante dos armazéns, os seringueiros foram dizimados às levas inteiras. […] Era o beribéri que fazia a sua aparição… Eram as “pernas de cristal” e o corpo secava. A pele desaparecia, os músculos derretiam. Não se conhece o número exato de esqueletos enterrados nos pantanais da floresta amazónica.
Entre 1900 e 1910, supõe Pierre Joffroy, 500.000 desses ludibriados, um em cada dois, morreram, só de beribéri.
Mas em Manaus era a loucura, a bacanal, a orgia. A brutal aristocracia da borracha … acendia os seus charutos com notas de banco, dava aos seus filhos brinquedos em oiro e às suas mulheres diamantes para todos os dedos, tomava banho de champanhe, encomendava as suas roupas em Londres e mandava-as lavar em Portugal, construía palácios com mármores trazidos de Itália e mobilava-os com antiguidades escolhidas em Paris.
Cada barco, antes de carregar a borracha, desembarcava mulheres de virtude fácil chegadas dos bairros especializados de Londres, de Paris ou de Nova Iorque. Partiam ao fim de um ano, com a fortuna feita. O bairro reservado tornou-se um dos mais cotados do mundo, crescendo de tal maneira que, em 1911, duas habitações de cada três eram, em Manaus, casas de tolerância.
Pavimentaram ruas de Manaus, instalaram o telégrafo e o telefone, a eletricidade e a água corrente, fizeram um porto flutuante capaz de resistir a ondas de 15 m, lançaram o primeiro comboio elétrico da América Latina e, cúmulo do delírio, construíram uma ópera de 1400 lugares, prefabricada na Inglaterra e transportada até este recanto da selva, toda mármores e frescos de anjinhos bochechudos e rosados. Dois milhões de libras esterlinas, o teatro mais caro do mundo. Num elenco de 18 cantores, que trouxeram a sua companhia até este recanto 8 morreram de febre amarela.
Contratada a peso de ouro, a Pavlova dançou em Manaus, a poucos quilómetros dos primeiros seringueiros e dos últimos índios.
O fim estava próximo. Os barões, seguros do seu monopólio, tinham elevado o preço da borracha até 3 dólares por quilo, multiplicando por 16 o seu preço inicial e aborrecendo os ingleses. Uma coisa que jamais deveria fazer-se, como muito claramente lhes fizeram saber.
Apesar das proibições oficiais, o inglês Wickham conseguiu fazer sair, em contrabando, 70.000 sementes de seringueira escondidos num fardo de lã. Direção: Ceilão e Malásia. Bem semeadas, tratadas e agrupadas em países de mão-de-obra abundante, os seringais de Colombo e Singapura davam quatro vezes mais látex que as suas irmãs selvagens da Amazónia e a um preço três vezes menor.
[…] E foi a debandada. Dos revendedores, primeiro; dos senhores da selva, depois; por último, dos seringueiros com forças ainda para isso. A ópera fechou as portas, as raparigas trocaram os seus diamantes pelo preço de uma passagem e os palácios italianos ficaram votados aos lagartos. A Amazónia fornece hoje 1 por cento da produção mundial de borracha.
Petróleo
[…] Foram empreendidos enormes esforços para encontrar petróleo. Os agrupamentos estrangeiros e os seus representantes brasileiros respondiam: não há petróleo em parte nenhuma. É inútil gastar dinheiro e perder tempo. […] Em janeiro de 1938 é criado por Getúlio Vargas o Conselho Nacional do Petróleo. Dois anos mais tarde, no Recôncavo, o nosso primeiro petróleo jorrava da terra. Já alguns mortos juncavam o terreno, entre ouros o dr. Bach, um geólogo, assassinado em Alagoas, quando, depois de ter provado a existência de uma base sedimentar, demarcava a localização dos futuros furos. […] a prova estava feita.
A campanha mudou então de frente de ataque: os brasileiros são incapazes de pesquisar e de explorar com proveito, não têm capacidade técnica, vais ser uma barafunda. O melhor será uma concessão à Esso, à Standard Oil, ou a outras. Houve ainda mais violência. Mortos, manifestações nas ruas, até que […]
“O monopólio estatal da Petrobrás data de 1953 e foi assinado por Getúlio Vargas. Depois de lançar um projeto de lei tentando limitar os superlucros dos monopólios estrangeiros (500 por cento de lucros anuais), Getúlio dava de presente ao Brasil o seu próprio petróleo. Por isto e por aquilo … um ano mais tarde ele era forçado ao suicídio e deixava um panfleto testamento sem ambiguidades: “Lutei contra a exploração do brasil sem ambiguidades; ofereço-vos, agora, a minha morte”.
[…] mas a Petrobrás sobreviveu. Mas eles não nos largaram e continuam a não nos largar! A queda da empresa anuncia-se sempre para breve e foram-nos impostos técnicos norte-americanos que, evidentemente, não encontraram petróleo (como o sr. Link).
[…] Quem é o sr. Link? É um americano, geólogo da Standard Oil durante cerca de 30 anos. É a Standard Oil que fornece boa parte dos dois terços do petróleo que vêm do estrangeiro. O sr. Link não encontrou nada. Afirmou que o Brasil não tem petróleo fora daqui.
[…] Atualmente acusam-nos duma produção insuficiente. Nós somos, evidentemente, a ovelha ranhosa. E um exemplo perigoso: que outros o sigam na América Latina e que catástrofe!”
Políticas
“Em 1951, Getúlio Vargas, é levado à presidência por uma vaga eleitoral popular. E o exército não se mexerá. Mas Getúlio está encurralado entre a burguesia nacional apoiada pelo povo e a trilogia conservadora: latifundiários, exportadores e filiais americanas. Procura apoiar-se na jovem indústria brasileira, tenta limitar a exportação dos superlucros estrangeiros, reprimir os malefícios da faturação fraudulenta e cria a Petrobrás. […].
Para Getúlio, apoiar-se no povo, ir mais além, é romper com os americanos todo-poderosos e aceitar ricos de levantamentos, incluindo a guerra civil. Apoiar-se nos americanos, é admitir os latifundiários … A recusa de uma opção conduziria à sua própria destruição política. Uma tonitruante campanha de imprensa, dirigida por Carlos Lacerda, tirou partido dum escândalo para arrastá-lo na lama; a aviação levantou-se contra o presidente, apoiada pela marinha, o exército ficou na expetativa e Getúlio suicidou-se com única solução, deixando algumas palavras garatujadas antes de dar um tiro no coração. […] Eis a sua carta-testamento:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decénios de domínio e espoliação dos grupos económicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao Governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Electrobrás foi obstaculizada até ao desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeira alcançavam até 500% por ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentámos defender o seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo, não será mais escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado a peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.”
“O Sr. Claude Julien em Le Monde […] notara que em agosto de 1961 o informador do Departamento de Estado em Washington acusava o presidente Quadros de ter conferido uma alta condecoração ao cubano Che Guevara; e que, 6 dias mais tarde, os ministros militares constrangiam-no a partir; e que o mesmo Departamento de Estado, nos fins de março de 1964, ao apresentar um relatório à Câmara dos Representantes acusando o presidente Goulart de “tolerar” infiltrações comunistas no seu Governo, 4 dias depois era deposto por um golpe de força militar.”
“Em 1831, o imperador D. Pedro I declarou crime o tráfico de negros, e livre qualquer novo escravo que pusesse pé em terra brasileira. […] Em 1886, o imperador dava carta de alforria a todos s seus escravos. Em setembro de 1871, por iniciativa de D. Pedro II, o Congresso aprovava a Lei do ventre livre(que determinava que os filhos duma escrava não sofreriam o trabalho forçado) defendida pelo visconde do Rio Branco.
O embaixador dos Estados Unidos, que assistia aos debates, apanhou um ramo de flores (dos que foram atirados no Congresso ao visconde) e, dirigindo-se ao auditório: “O que custou uma guerra ao meu país, acaba aqui com rosas …”. A 13 de maio de 1888, a condessa de Eu, regente do Império, assinava na ausência de seu pai, a Lei de Oiro, dois artigos duma simplicidade autoritária:
1º A escravatura é declarada como abolida no Brasil a partir do dia da promulgação desta lei.
2º São ab-rogadas todas as disposições em contrário.
A multidão, em delírio, desfilava nas ruas do Rio; José do Patrocínio atirava-se de joelhos da princesa e o amargo, profético, barão de Cotegipe, primeiro-ministro, murmurava: “Vossa Alteza ganhou a partida, mas essa vitória perdeu o trono…”
Os fazendeiros abandonavam a coroa. Em novembro de 1889, a família imperial era exilada.”
Adenda: A organização Global Witness (Testemunha Global) refere 207 como o número de ativistas ambientais mortos em 2017. A grande maioria deles ocorreu na América Latina, que continua a ser a região mais perigosa, onde se verificaram 60% das mortes. Só no Brasil, foram mortos 57, o maior número verificado em qualquer parte do mundo. (https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/at-what-cost/).
O futuro do Brasil é amanhã … mas amanhã é feriado, provérbio carioca.
Os negros fugiam, apesar dos castigos quando eram apanhados: orelhas, língua ou tornozelos cortados, castração, entranhas atulhadas de pólvora e depois o fogo chegado às nádegas.
Não há trabalho ou espécie de vida no mundo que mais se assemelhe à Cruz e à Paixão de Cristo do que a vossa, padre António Vieira.
Cada vez que 1 dólar vem dos Estados Unidos para o Brasil, partem 2 do Brasil para os Estados Unidos.
Em 1964, Pierre Rondière, escreveu uma das obras mais interessantes sobre esse enormemente diverso e rico país que é o Brasil, e que com ternura intitulou de Delirante Brasil. De Copacabana à Amazónia. Acabou de o escrever quando se deu o levantamento militar que fez cair o governo eleito do presidente João Goulart.
Revisitá-lo 54 anos depois, transcrevendo algumas das suas passagens, revela-se importante para a compreensão, não só do que passa no Brasil, mas para o que se passa neste nosso mundo.
Andar de autocarro no Leblon
“Mas o “lotação” bamboleante encanta-me. Mete passageiros a um simples sinal indolente que venha do passeio: o condutor trabalha à percentagem. E pára, para a saída, com a mesma simplicidade: uma sacudidela num fio que se alonga de um lado e de outro, só o tempo de travar e desce-se. Não há passageiros de pé. Proibido. Quando todos os assentos estão ocupados, não pára. É uma precaução elementar: nas curvas, os passageiros têm de agarrar-se ao assento da frente, e nos túneis, onde a corrida é da praxe, os trinta ocupantes têm a mesma atitude, na previsão de um choque possível. Nem um só carro particular se atreve a enfrentar este slalom violento, estes riscos perpétuos: encosta-se quanto pode. Toda a gente sabe no Rio o que pode a impetuosidade de um homem à percentagem. Era um prazer quotidiano que ainda hoje sinto a falta.”
Escala de preços e moeda nacional
“A escala de preços é vertical, no Brasil: desde 1957 os preços mais que quadruplicaram, 414 por cento exatamente. Só no ano de 1962, uma subida de 60 por cento. Um quilo de arroz saltou de 40 cruzeiros em 1956 para 600 cruzeiros atualmente […] em 1962, exasperados pela fome, (as famílias do Rio) invadiram lojas e armazéns e roubaram sacos de açúcar e de feijão, abandonando pelo chão quarenta e dois mortos e setecentos feridos.
[…] A moeda nacional afunda-se ainda mais depressa do que sobem os preços. […] E, contudo, o Brasil, em cinco anos, dobrou o volume das suas exportações. Façanha que não tem qualquer equivalente no mundo.”
Índices da miséria e riqueza
“Mais de 50 por cento dos habitantes do Rio morrem antes dos 19 anos. […] Na escola do Engenho de Dentro, no Estado do Rio, 4,3 por cento das crianças tomam leite uma vez por dia; 19,4 por cento uma vez dia sim, dia não; e 76,3 por cento jamais bebe uma gota que seja. O consumo médio, em todo o Brasil, não ultrapassa 20 g por dia, contra 1024 g na Suíça. […]
Segundo a estatística do último recenseamento do Brasil: 50 dos 70 milhões de brasileiros vivem no campo e 82 por cento deles não tem sequer uma jeira de terra. Em contrapartida, 1,6 por cento dos proprietários de terras possui 60,8 por cento das terras e, em 1950, só 10 por cento da superfície das propriedades era cultivada de maneira permanente.”
Ouro e Independência
“Para dar caça ao Índio e às pedras preciosas, punhados de aventureiros subiam e desciam os rios, e os Paulistas desbravavam os caminhos do interior. Em Ouro Preto um destes bandos, por acaso, como acontece em todas as grandes descobertas, encontrou uma mão-cheia de ouro. Era no ano da graça de 1700 e o século XVIII começava com este toque de trombeta.
Foi a inundação. O Brasil, que, entre 1600 e 1700, não registara mais de 30.000 entradas, viu afluírem mais de 3 milhões de voluntários. A tal ponto que o Governo de Lisboa teve de proibir a saída para o Brasil: o minúsculo Portugal esvaziava-se.
O Estado de Minas forneceu então quase a metade de todo o ouro do mundo: 1.500.000 kg num século […] A fome tinha acompanhado esta horda que não viera para fixar-se, mas para fazer fortuna. E ali, como no Lavrador um século mais tarde, um frasco de sal valia um frasco de ouro. O ouro só enriquece os traficantes de segunda mão, tal como nos exércitos só os fornecedores fazem fortuna.
[…] a corte de Portugal tinha retirado o máximo dessa fortuna inesperada. Logo que fora prevenida, Lisboa instituíra o imposto. O ‘quinto’ do ouro e das pedras preciosas pertencia-lhe por direito divino. Mas o ouro, como as pedras preciosas, é uma mercadoria facilmente escamoteável, e por isso se fixou um mínimo: 1.500 kg por ano. Quando o ‘quinto’ não atingia esse mínimo vital para a corte longínqua, era o terror, as rusgas, a prisão. […]
Contra esta pesada opressão levantaram-se os Mineiros. As conspirações sucederam-se, selvaticamente reprimidas. […] A opressão portuguesa chegava ao ponto de proibir a instalação de ourives na colónia. Tudo, absolutamente tudo, deveria chegar da metrópole e para lá seguir […] Em Minas, um médico, alguns poetas, militares, padres e um tenente, Joaquim da Silva Xavier, um pouco dentista também e poeticamente alcunhado de “Tiradentes”, conspiravam para implantar a república.
Denunciados e presos, o movimento abortou. Tiradentes […] foi enforcado a 21 de abril de 1792, às 11 horas”.
Bloqueio à reforma agrária
“Setenta por cento do Brasil está no campo e praticamente todos os deputados que de lá vêm são latifundiários, evidentemente. Isto constitui um grande naco deles na Câmara. Eles compram votos, forçam a votar à sua vontade, misturam os boletins … toda uma culinária que bloqueia as reformas. Um deputado de S. Paulo representa aqui 60.000 votos, um deputado de Maranhão vale 20.000 votos. E o Maranhão são 75 por cento de analfabetos, um médico para cada 5.000 habitantes no interior e, em todo o Estado, uma única cidade com esgotos: o reino absoluto dum punhado de grandes proprietários, de algumas famílias que se metralham de temos a tempos”.
Capitais estrangeiros
“Os capitais estrangeiros […] que são essencialmente americanos […] controlam o Brasil: 50 por cento do ferro e dos laminados; 50 por cento da indústria de carnes; 56 por cento da indústria têxtil; 72 por cento da produção de eletricidade; 80 por cento da produção de aço; 80 por cento da produção de cigarros; 80 por cento da produção farmacêutica; 98 por cento da indústria automóvel; 100 por cento da distribuição de petróleo e de gasolina.”
A drenagem do capital do Brasil
“O montante de subsídios norte-americanos ao Brasil não é grande nem pequeno: é negativo […] Segundo Andrew Gunder Frank, especialista de economia internacional, diplomado pela Universidade de Chicago, e investigador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, vieram dos Estados Unidos 1 bilião 814 milhões de dólares para investimentos no Brasil e daqui saíram 3 biliões 481 milhões, quase o dobro […] pode daqui concluir-se que cada vez que 1 dólar vem dos Estados Unidos para o Brasil, partem 2 do Brasil para os Estados Unidos.”
Brasília funcional
“Aprecio sobretudo a diligência administrativa, a rapidez dos serviços da Presidência […] Brasília funciona! apesar de ter sido necessário, de princípio, que o ex-presidente Kubitschek, oferecesse a cada deputado e senador um apartamento gratuito para conseguir despega-los do Rio […].”
A fome no polígono da seca
“Quando a seca se instala, geral e progressiva, alargando-se por vários anos, como em 1876, 1915, 1932, 1951, o gado tenta primeiro arrancar, com os seus cascos e com a boca ensanguentada, os espinhos dos catos aquosos e acalmar, por algum tempo, fome e sede. Depois, aniquiladas pela inação, pela sarna e pela peste, as bestas caem e morrem às centenas, aos milhares, e os cursos de água secos transformam-se em jazigos, mais tarde num amontoado de esqueletos.
A fome ataca os homens: roendo-lhes as vísceras, abrindo-lhes buracos e chagas na pele, destruindo-lhes a mente […] Quando toda a esperança está perdida, então milhares de foragidos flagelados pregam portas e janelas e fogem, em longas filas, cambaleantes. Comem raízes, farinha de madeira, cascas muitas vezes tóxicas e mortais.; e torturados, vacilantes, destroçados pela diarreia e vomitando os horrores que ingurgitam, cabeça e pés escaldantes, avançam ofegando e gemendo. Crianças de 5 anos voltam então a gatinhar. Avançam esqueléticos, perdendo dentes e cabelo, a pele enegrecida e grudada aos ossos salientes, toa a carne digerida semeando de cruzes o caminho do sertão para o mar. Só no Ceará, em 1877-1879, houve mais de 500.000 mortos, metade da população […]
Em 1951-1953, a especulação multiplicou a tragédia. Os transportadores oferecem os seus ‘poleiros de papagaios’ aos flagelados. Famílias inteiras foram vendidas aos fazendeiros de Goiás, num total de 2.500 camiões carregados a transbordar.”
A escravatura
“Toda a gente se meteu no negócio: os Portugueses (subindo o rio Níger ao longo de 800 léguas, reuniam, só por si, e anualmente, 12.000 a 15.000 cativos, só em Angola), os Holandeses, os Dinamarqueses, os Franceses (só em Nantes, entre 1713 e 1792, foram feitas 1313 partida e 284.155 negros ‘oficialmente’ encaminhados) e os Ingleses (cuja Companhia Real embarcou em 10 anos 46.000 ‘fardos’ e os comerciantes particulares, em 3 anos 42.000 ‘cabeças’). Num único ano, 100 navios partiram de Londres e Liverpul, para percorrerem o triângulo. Primeiro lado: Europa-África com a bugiganga a bordo; segundo lado: África-América com o carregamento de carne; terceiro lado: América-Europa com o açúcar e, mais tarde, o algodão ou qualquer outro produto raro. Nada é mais lucrativo naquela época: o empate inicial fica multiplicado por dez. […]
Como outros diários de bordo assinalam: ‘700 cativos, 300 mortos’; ou ‘640 cativos, 105 mortos e 200 doentes’ […] O Atlântico é o ‘cemitério marinho’ da África.
[…] Por uma simples suspeita, escreve La Roncière, uma preta foi condenada à morte:
‘Suspenderam-na num mastro para chicoteá-la e depois, com as facas, cortaram-lhe cem filetes de carne até que os ossos ficassem a nu’.
[…] Nos Estados Unidos, quando a lei federal proibiu, em 1808, a importação de novos escravos, certas plantações do Estado de Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Tennessee e Missouri, praticaram a criação humana (‘breeding states’, ‘fazendas de criação’) para fornecer de mão de obra escrava a cultura algodoeira em plena expansão.
[…] Os negros fugiam, apesar de vigiados e perseguidos por toda a polícia, apesar das emboscadas mortais da floresta, apesar do direito de todo o homem livre de abatê-los sem aviso, apesar dos castigos quando eram apanhados: orelhas, língua ou tornozelos cortados, olhos furados, castração, entranhas atulhadas de pólvora e depois o fogo chegado às nádegas.
[…] E a mulher do senhor acrescentava uma nota histérica de sadismo: quebrando com os tacões, os dentes demasiados brancos duma mulata, fazendo-lhe arrancar as unhas, queimar as orelhas ou as feições demasiado regulares, cortar os seios demasiado tentadores …. Ciumenta uma vez por todas, ela mandava que à mulher demasiado amada do senhor fossem arrancados os olhos e que lhos trouxessem, sangrentos, à sobremesa.
Mas os negros fugiam para todo o interior do Brasil e chegaram mesmo a fundar uma república, a República dos Palmares […] uma república que viveu de 1630 a 1695, 65 anos, apesar de 16 expedições armadas … para a subjugar.
[…] Em 1865 foi necessária a artilharia. O que se seguiu, ninguém ousou escrevê-lo. Zumbi, o seu chefe, suicidou-se. O Banco de Inglaterra havia sido fundado no ano anterior e Luís XIV dava festas em Versalhes.
[…] Em 1839 um levantamento apaixonado agita o Maranhão, mas logo no começo á abafado. Jamais se saberá o nome dos heróis nem o número de pés cortados por uma pretensa fuga, ou de crânios esmagados por um olhar menos humilde.
Por epitáfio, uma frase do padre António Vieira num sermão aos escravos: “Não há trabalho ou espécie de vida no mundo que mais se assemelhe à Cruz e à Paixão de Cristo do que a vossa”.
Em tempo: este artigo continua no próximo blog, “Para lá do Equador não há pecado”.