Um mundo onde nada é seguro, e onde tudo é possível.
O homem nada sabe, porque o homem não é nada, Montaigne.
Só quando se quer o que se pode adquirir, é que se pode adquirir tudo o que se quer, segundo a filosofia estoica.
Quando não se tem o que se ama, ama-se o que se tem, Bernard Shaw.
Em tempos de incerteza, confusão e grandes mudanças, em que temos dificuldade em saber onde nos apoiar, o que é certo ou errado, é normal que aos poucos as dúvidas se vão instalando. Tal acontece não só agora, como também aconteceu em vários outros períodos históricos anteriores, nomeadamente no século XVI, onde se assistiu à destruição da unidade política e religiosa da Europa, da autoridade da Bíblia e de Aristóteles, do prestígio da Igreja e do Estado, das “verdades” da fé pela nova ciência.
Privado das suas normas tradicionais de juízo e escolha, o homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. “Mundo onde nada é seguro, e onde tudo é possível”.
Montaigne, vai concluir que num mundo incerto, tudo não passa de mera “opinião”. E, na busca do equilíbrio que lhe permitisse minimamente entender-se, faz o balanço: “o homem nada sabe, porque o homem não é nada”.
Relembremos que esses foram os tempos em que Nicolau Copérnico (1473 – 1543) pôs a hipótese de ser a Terra que andava à volta do Sol, violando, assim, o princípio da física aristotélica aceite pela Igreja, segundo a qual toda a matéria da Terra convergia para o centro do universo, o que fazia da Terra um globo sólido rodeado de ar e água, que ocupava imóvel a posição central do universo.
Foram os tempos em que Galileu (1564 – 1642), olhando os céus através do recém-inventado telescópio, descobriu (1610) várias luas que circulavam à volta de Júpiter, pondo em dúvida o local privilegiado e único ocupado pela Terra. E, em que Kepler (1571 – 1630), publica novos trabalhos matemáticos no campo da ótica, explicando (1604 e 1611) que a lente do olho forma uma imagem na retina e como é que o telescópio funcionava.
Foram os tempos em que Descartes (1596 – 1650), após a sua formação em direito, afirma que o que lhe tinham ensinado não servia para nada, passa a dedicar-se à matemática e outras ciências, na tentativa de encontrar um método universal que permitisse, sem lugar a qualquer dúvida, separar o verdadeiro do falso. Estava convicto que poderia explicar “não apenas um único Fenómeno”, mas “todos os Fenómenos da natureza, ou seja, toda a Física”.
Com o trabalho quase concluído e pronto para publicação, chega-lhe a notícia que Galileu tinha sido condenado pela Santa Inquisição Católica (1633) por defender a hipótese de Copérnico, segundo a qual a Terra se movia à volta do Sol. Como nos seus trabalhos, Descartes, seguia a hipótese de Copérnico aplicada à Física, entendeu ser melhor suprimi-los, tendo mesmo considerado queimá-los.
Continuando, apesar de tudo, com o seu projeto de reformar as ciências, decide, quatro anos depois, tentar publicar apenas o prefácio dos três ensaios que se lhe seguiriam. Prudentemente e dissimuladamente, fá-lo como autor anónimo (apesar dos conhecidos saberem quem era o autor), e escrito em francês (à época, todas as obras científicas eram publicadas em latim). É o aparecimento do “Discurso do Método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências, mais a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria, que são os Ensaios deste método”, que, quando publicado na totalidade com os três ensaios, seria um volume de 527 páginas.
É na Terceira Parte deste famoso Discurso do Método, que Descartes vai tentar explicar-nos como se conseguir viver nos tempos de incerteza e ser feliz. Segundo ele, para “se não ficar irresoluto na sua conduta, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos juízos, e para não deixar de viver o mais felizmente possível”, teve de formar para ele próprio uma “moral provisória”, constituída por três ou quatro máximas.
Eis o que nos diz na sua terceira máxima:
“A minha terceira máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. E isto, por si só, parecia-me ser suficiente para me impedir, futuramente, de desejar algo que não pudesse adquirir e, assim, tornar-me contente.
Pois como a nossa vontade naturalmente só deseja as coisas que o entendimento lhe apresenta de algum modo como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que estão fora de nós com igualmente afastados do nosso poder, não lastimaremos mais a falta dos que parecem dever-se ao nascimento, quando deles privados sem nossa culpa, do que lastimamos por não possuirmos os reinos da China ou do México; e que, fazendo, como se costuma dizer, da necessidade virtude, não desejaremos mais ter saúde, quando doentes, ou ser livres, quando prisioneiros do que desejamos agora ter corpos de matéria tão pouco corruptível como os diamantes, ou asas para voar como as aves.
Mas confesso que são necessários um longo exercício e uma meditação muitas vezes repetida para nos habituarmos a encarar assim todas as coisas; e creio que é sobretudo nisto que consistia o segredo desses filósofos que outrora puderam subtrair-se ao domínio da fortuna e, apesar dos sofrimentos e da pobreza, disputar a felicidade aos deuses. Porque, ocupando-se constantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos próprios pensamentos, que só isso bastava para os impedir de terem alguma afeição por outras coisas; e dispunham deles tão absolutamente que, de certo modo, tinham razão em considerarem-se mais ricos e poderosos, mais livres e felizes do que quaisquer outros homens que, não tendo essa filosofia, por muito favorecidos que fossem pela natureza e pela fortuna, nunca dispõem assim de tudo o que querem.”
Em resumo, e tal como os filósofos estoicos já tinham exprimido, só quando se quer o que se pode adquirir, é que se pode adquirir tudo o que se quer. E só quando se quer que as coisas exteriores aconteçam como acontecem, é que acontecem sempre como queremos.
Na mesma linha, transpondo-a agora para o campo das relações amorosas, dizia Bernard Shaw (1856 – 1950), que “quando não se tem o que se ama, ama-se o que se tem”.
Os desenhadores de programas trabalham para ficarem desempregados pelo programa que criaram.
A utilização dos métodos da IA servem como desculpa para as decisões do Poder. Esta é a realidade escondida dos métodos da IA.
A pobreza é o resultado de maus hábitos pessoais, não dos choques económicos.
A pobreza poderia acabar se esterilizássemos um décimo da população mais pobre, Harry Laughlin.
A elite americana “acreditava que a pobreza poderia, e deveria, ser resolvida em parte, deixando os pobres morrerem”, Walter Trattner.
A convicção da professora Rhema Vaithianathan de que os aperfeiçoamentos dos algoritmos irão permitir resolver vários (ou os vários) problemas que afetam a nossa sociedade, não leva em conta, (para além do discutido no blog anterior em que “os modelos matemáticos, pela sua natureza, têm por base o passado, e a assunção que os padrões se repetem” e “os padrões com que a IA trabalha, são reproduções de estereótipo que lhe fornecemos”) o problema maior e condutor da realidade: o do poder de quem a controla.
Todos os importantes “progressos” científicos, só são possíveis se estiverem de acordo com quem manda. O resto são gadgets, para o entretenimento de maiores ou menores.
Tal como a máquina a vapor, a eletricidade, as armas, etc., os métodos da IA são meios importantes para um fim que não dominam. De certa maneira, são como desenhadores de programas que trabalham para ficarem desempregados pelo programa que criaram.
Um dos problemas mais graves com que as sociedades se têm confrontado é o da pobreza. Ao longo da história, o debate principal que se tem vindo a travar é entre aqueles que se batem por eliminar e aliviar a pobreza, e aqueles que pretendem culpabilizar, aprisionar, e punir os pobres pela sua pobreza. Vejamos como os métodos da IA têm vindo a lidar com ele.
Após a Guerra de 1812 (mais conhecida como a “Segunda Guerra da Independência”), os EUA entraram numa catastrófica depressão económica (1819), com as habituais consequências, o colapso de bancos e dos negócios, a baixa dos preços agrícolas, a diminuição dos salários em 80%, a perca de valor das propriedades. Meio milhão de americanos ficaram desempregados, ou seja, um quarto da população adulta não escrava.
O principal método que os governos utilizavam para regular a pobreza era o de colocarem os indigentes nas “casas de pobres” (Poorhouses, idênticas às inglesas Workhouses), onde a troco de alojamento e refeição lhes era vedado casarem-se, votarem, ou exercerem uma profissão. A primeira destas “casas” surgiu em Boston, em 1662, com a intenção de acolher os doentes, fracos, anciãos, órfãos, deficientes físicos e mentais.
As famílias eram logo separadas à entrada porque os reformadores da altura acreditavam que os filhos dos pobres só podiam serem resgatados da sua ignomínia, pelo contacto com famílias com posses. As crianças eram retiradas aos pais e entregues nas casas que procuravam empregados domésticos ou aprendizes, ou enviadas em comboios de órfãos como trabalhadores gratuitos para propriedades agrícolas.
Grande parte das “casas de pobres” estavam superlotadas, mal ventiladas, sujas, com maus cuidados de saúde, faltando muitas vezes água, cama e vestuário.
Em 1856, cerca de um quarto dos residentes das “poorhouses” de Nova Iorque eram crianças. Outro quarto, era constituído por deficientes mentais, cegos, surdos. Os restantes eram anciãos, enfermos, incapacitados fisicamente, e mães pobres a recuperarem de parto.
Este problema tinha de ser resolvido. Só que, em vez de se preocuparem com o sofrimento dos pobres lançados no desemprego, os políticos e sua imprensa preocupavam-se antes com o “pauperismo”, com a dependência criada pelos benefícios públicos gratuitos (comida, combustível, cuidados médicos, vestuário, etc.) concedidos aos pobres.
Segundo eles, a pobreza era o resultado de maus hábitos pessoais, não dos choques económicos. Os pobres deviam de ser agrupados em “impotentes” (incapazes de trabalharem) e em “capazes”, porque o estar a sustentar-se indiscriminadamente todos os pobres iria levar à destruição da indústria e criar uma sociedade permanente de parasitas dependentes.
Uma das soluções propostas era a de apenas dar ajudas a quem voluntariamente quisesse ser admitido numa “poorhouse”. Outra solução era a conscientemente preconizada pela elite americana, que, segundo verificara Walter Trattner, “acreditava que a pobreza poderia, e deveria, ser resolvida em parte, deixando os pobres morrerem”.
Como escrevia o filósofo social de século XIX, Nathanial Ware, “Humanidade aparte, era do melhor interesse da sociedade que todos esses empecilhos fossem mortos”.
Em 1873, ocorre nova depressão económica (“O Pânico de 1873”). Centenas de milhar de trabalhadores são despedidos. Os governos locais esforçam-se por criar a “sopa dos pobres”, alojamentos gratuitos, distribuindo roupas e carvão. Em 1877 dá se a Grande Greve dos Caminhos de Ferro, quando os trabalhadores ficam a saber que os seus salários seriam de novo cortados ao passo que os acionistas receberiam dividendos aumentados em 10 por cento. Meio milhão de trabalhadores de vários sectores da economia entram em greve, no que foi a primeira greve nacional da história dos EUA.
A depressão afetou também a Europa, o que conduziu à introdução do estado social. Na América, os comentadores da classe média ampliavam os medos de uma luta de classes e do aparecimento de uma “grande onda Comunista”. Segundo eles, o principal responsável era o estado social, porquanto, perguntavam-se, como seria possível obrigar a trabalhar aqueles a quem ao mesmo tempo se dava sopa?
A resposta ao problema pareceu encontrar-se na Charity Organization Society (Sociedade da Organização de Caridade), uma organização científica de caridade com a finalidade de separar os pobres merecedores dos pobres não merecedores, utilizando métodos mais rigorosos baseados na recolha de dados. Estava criado o mecanismo para a classificação moral e para o controle social.
Por princípio, assumia-se que os pobres não eram testemunhas fiáveis. As suas histórias teriam de ser confirmadas pela polícia, vizinhos, comerciantes locais, párocos, enfermeiras, professores e outras sociedades de ajuda. Por princípio, a caridade científica tratava os pobres como se fossem criminosos.
Segundo os dirigentes da época, providenciar assistência a pobres que não eram merecedores iria permitir que eles sobrevivessem e pudessem reproduzir a sua genética inferior. A lógica do diagnóstico social base das Charity Organization era comumente aceite e explicado, porquanto “as ervas daninhas não podem ter os mesmos cuidados de cultivo que as flores”.
Este foco na hereditariedade era influenciado pelos movimentos eugénicos vindos de Londres, onde Sir Francis Galton encorajava o casamento entre as elites como forma de manter e apurar as “qualidades nobres” (lembremos a resposta da Madame Pompadour ao seu marido, quando este a confrontou com o que diziam dele na Corte: “É verdade, vós sois um cornudo. Mas, senhor, sois um cornudo real”. Bem sei, isso era em França).
Na América, sempre prática, estas teorias-certezas levaram à tentativa de eliminação do que consideravam ser características negativas dos pobres: pouca inteligência, alta criminalidade, e sexualidade desbragada.
Organizada com fundos da Carnegie Institution e com a participação de organismos dos estados, de Vermont até à Califórnia, cientistas sociais percorreram os EUA para obterem informações sobre a vida sexual dos pobres, sua inteligência, hábitos e comportamentos. Preenchiam vastos questionários, tiravam fotografias, recolhiam impressões digitais, mediam as cabeças, contavam o número de crianças, desenhavam as suas árvores genealógicas, onde inscreviam comentários como “imbecil”, “espírito fraco” e “dependente”.
A eugenia e a caridade científica, recolheram centenas de milhar de casos exemplares de famílias, num esforço oficialmente caracterizado como a “forma de se conseguir classificar as famílias de acordo com o seu desenvolvimento intelectual, o seu mérito, cada uma delas com a sua etiqueta indiciária”.
As conceções eugénicas espalharam-se de tal forma na “sociedade”, que o Juiz Supremo Tribunal, Oliver Wendell Holmes, não tem qualquer rebuço em legalizar (1927) a esterilização involuntária (Buck v. Bell):
“É melhor para o mundo se, em vez de se esperar para ter de executar um degenerado por crime ou deixar que ele morra à fome pela sua imbecilidade, a sociedade possa impedir aqueles que sejam manifestamente desqualificados para dar continuidade à sua descendência. O princípio que existe para a obrigatoriedade da vacinação, é suficientemente geral para que possa cobrir a ablação das trompas de Falópio” (https://supreme.justia.com/cases/federal/us/274/200/).
Na mesma linha, Harry Laughlin, (1880 – 1943) escrevia que “A pobreza poderia acabar se esterilizássemos um décimo da população mais pobre” ( https://en.wikipedia.org/wiki/Harry_H._Laughlin).
Nos EUA, a aplicação dos princípios eugénicos, resultou em 60.000 esterilizações de pobres ou da baixa classe trabalhadora.
Mais tarde, durante a Grande Depressão, cerca de 13 a 15 milhões de americanos ficaram sem emprego (25% desempregados em toda a nação, com 60% em algumas cidades). A classe média é fortemente atingida. Uma vez que parte substancial dos desempregados eram de classe média, aquela separação entre os pobres que eram merecedores e ao que não eram, desaparece. Estavam todos no mesmo barco dos miseráveis.
Franklin D. Roosevelt, ensaia um programa de criação de emprego estadual, através do lançamento de enormes projetos de infraestruturas, construção de edifícios públicos, saúde pública, educação e artes, invertendo a tendência para os programas privados de caridade até aí desenvolvidos. Em 1934, os seus programas deram trabalho e alojamento a cerca de 28 milhões de pessoas.
Tal só foi possível não só pelas ajudas disponibilizadas pelo Estado, mas também por terem sido abandonadas as extensíssimas e invasivas investigações pessoais a cargo do programa da “caridade científica”.
A lei sobre a Segurança Social de 1935, passou a estabelecer como direito adquirido, o princípio do pagamento em numerário nos casos de desemprego, idade elevada, ou perca do chefe sustento de família, deixando de ter aplicação a sua concessão com base no carater moral individual.
Contudo, ao regulamentar as distinções entre desempregados e pobres, homem pobre e mulher pobre, trabalhadores industriais do Norte e os outros, criou um estado social bipartido entre a assistência pública e segurança social.
Ou seja, apesar das boas intenções de um programa universal de benefícios sociais, Roosevelt acabou por ressuscitar as investigações da caridade científica e de policiamento, que levou, por exemplo, ao aparecimento de novas categorias como a de “mãe empregada”, “casa conveniente”, “pai substituto” e à preconização de restrições de movimentação para fora da residência estabelecida.
Resumindo: O estado social exigia que os pobres trocassem os seus direitos, de participação política, mobilidade, privacidade, autodeterminação, integridade física, segurança no trabalho, por uma insignificante ajuda às famílias.
A partir dos anos 70, a introdução dos computadores e de novas tecnologias que prometiam uma distribuição mais eficiente das ajudas, com menores gastos, veio de novo incentivar uma maior necessidade de recolha de dados, sua análise e armazenamento, das famílias que recebiam assistência pública. Dados esses que ficavam acessíveis ao Ministério da Educação, dos Assuntos Sociais, da Defesa, da Justiça, dos governos estaduais, dos funcionários públicos, dos tribunais.
Com a introdução dos métodos da IA, o que se vem verificando é que as empresas e o governo decidem, através da aplicação de algoritmos, sobre questões fundamentais para a vida das pessoas (como por exemplo, a quem conceder ajudas, rendimentos sociais, a quem dispensar e a quem contratar, a quem vigiar, a quem prender, a predizer crimes, etc.), cujos critérios se mantêm voluntariamente totalmente opacos (“ninguém” sabe como funcionam, nem com que critérios).
Vejamos uma das suas manifestações práticas o que se passou na atribuição das ajudas do Estado às pessoas necessitadas. Ou seja, na “resolução” do problema da pobreza.
A troco de ficarem dentro da chamada lista de “elegibilidade automática” dos que recebem alimento, alojamento, ou assistência domiciliária, estas pessoas são obrigadas a disponibilizar às complexas bases de dados integradas, uma enorme quantidade de informações pessoais e privadas, com poucas salvaguardas no que respeita à sua privacidade ou à segurança dos seus dados.
Modelos preditivos e algoritmos vão depois classificá-las como “investimentos de risco” ou como “pais problemáticos” ou outro atributo entendido como importante, ordenando-as numa escala numérica.
A partir daí, essas informações passam a estarem visíveis aos serviços sociais (tornando, por exemplo, mais difícil o acesso ao alojamento subsidiado, à assistência médica, à assistência à infância, ou ao estágio de emprego), ao serviço da justiça, às vizinhanças dos locais de residência, ficando os seus comportamentos sujeitos ao escrutínio público em geral e aos comerciantes em particular (permitindo, por exemplo, uma maior exploração nos empregos apalavrados).
Este sistema de elegibilidade automática, por ser extremamente invasivo, tende a desencorajar as pessoas de pedirem a parte que lhes caberia nas ajudas públicas de que necessitam para sobreviverem e prosseguirem com a vida.
Por outro lado, como o método com que trabalha este sistema automático de decisão é dito ser feito “sem intervenção humana”, faz com que as suas decisões sejam vistas como sendo infalíveis, afastando muitos dos possíveis reclamantes. Qualquer dúvida que tenham ou apresentem, não é nunca resolvida na altura, pois, ou “o sistema nunca se engana”, ou “nada posso fazer, está no sistema”, e qualquer reclamação será enviada para um sistema central para análise sem qualquer garantia de resposta em tempo útil. É falar para as paredes.
Por tudo isto, este sistema de elegibilidade automática tem vindo a ter grande impacto sobre os mais pobres, os beneficiários da segurança social, os sem abrigo, as famílias com poucos recursos, como se pode inferir das estatísticas abaixo indicadas.
Em 1973, quase metade das pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza, recebiam assistência social. Em 1983, após a introdução das novas tecnologias, a proporção desceu para 30%. Hoje, é menos de 10%. Entre 1996 e 2006, foram retirados da assistência pública cerca de 8,5 milhões de pessoas. Em 1973, quatro em cada cinco crianças pobres, recebiam assistência. Hoje, apenas uma em cada cinco.
Entre 2006 e 2008, só no estado de Indiana foram negadas mais de um milhão de pedidos para senhas de refeição, assistência médica, o que representou um aumento de 54% quando comparado com os três anos que antecederam a entrada em vigor da elegibilidade automática.
Mais grave: até 1996, os processos da assistência social apenas eram disponibilizados à polícia, através dos canais legais. Hoje, quaisquer processos da assistência social podem ser cedidos à polícia por um seu simples pedido, mesmo sem qualquer suspeita, causa provável, ou processo judicial, o que faz dos serviços de assistência social uma extensão do sistema da justiça criminal.
Não é de admirar que a utilização de dados pessoais pelas empresas tecnológicas tenha vindo a contribuir para a marginalização das minorias, o que, mais tarde ou mais cedo, acabará por se refletir na qualidade da democracia para todos nós. “Os que vão ficar pobres, te saúdam”.
Apesar de atualmente as poorhouses terem sido fisicamente demolidas, o seu legado mantém-se vivo nestes sistemas de decisão automáticos, em que as pessoas se vêm na mesma encurraladas. Com toda a sofisticação de alta tecnologia, estes sistemas de gestão da pobreza – mineração de data (data mining), tomada de decisão automática (automated decision-making) e analítica preditiva – partem de princípios muito semelhantes aos que regiam as poorhouses: visão moralista sobre a pobreza e sistema de contenção e investigação idênticos.
Eles continuam a por restrições para que os pobres possam aceder aos recursos públicos, continuam a policiar os seus trabalhos, gastos, sexualidade e paternidade, continuam a tentar predizer os seus comportamentos futuros, continuam a punir e a criminalizar os que não cumprem com as suas recomendações. Estas coleções de data dos pobres sem abrigo são muitas vezes o ponto de partida num processo que conduzirá a criminalização dos pobres.
Estes sistemas tecnológicos atuam como muros, interpondo-se entre os pobres e os seus direitos legais. Atuam como verdadeiras novas poorhouses.
Apesar da grande percentagem de pobreza existente na maior economia do mundo (segundo Mark Rank, One Nation, Underprivileged: Why American Poverty Affacts Us All, pp 102-103, 51% dos americanos entre os 20 e os 65 anos, passam pelo menos um ano abaixo do limiar da linha de pobreza), os próprios americanos consideram que a pobreza é uma aberração que acontece a apenas uma pequena minoria da população.
E, contudo, a pobreza não é invisível. Vê-se, mas olha-se para o lado. É aquele problema descrito no velho aforismo de “não haver pior cego que aquele que não quer ver” hoje já sociologicamente e eruditamente conhecido como “negação cultural”. Como saber o que não devemos saber.
Mas, atenção: Não se trata de um simples problema individual. É um processo social organizado e suportado pela escola, pelo governo, pela religião, pelos media, e por outras instituições.
E é justamente aqui que a utilização dos métodos da IA aparecem como desculpa para as decisões do Poder, dando-lhe cobertura. Esta é a realidade escondida dos métodos da IA.
Outro aspeto particularmente importante e influente na sociedade presente e do futuro em que os métodos da IA estão presentes, é o do modo como os processos de seleção de empregados estão a serem feitos pelas empresas.
Nos EUA, é a empresa Hirevue que procede ao estabelecimento dos perfis de recrutamento usando a IA, para algumas grandes companhias, como por exemplo a Goldman Sachs, a Unilever.
Durante a entrevista gravam e monitorizam 250.000 pontos do rosto do entrevistado, para futura análise das expressões. É assim que irão determinar as capacidades de liderança, ou a honestidade dos entrevistados. Estudam também o tom da voz, para daí retirarem padrões de comportamento.
O problema é que não há nenhuma base científica que permita saber como alguém é, apenas pelas suas expressões. É retroceder até ao século XIX, em que a frenologia pretendia decifrar aspetos da personalidade através da análise do rosto.
Pior: para manterem a imagem de marca, as empresas procuram nas suas contratações, pessoas que se pareçam aos seus empregados atuais, mantendo assim uma mesma diversidade, o que as torna, a elas e à sociedade futura, mais anquilosadas e propícias às monoculturas. A normalização que impedirá a reação perante o diverso, causa provável do seu desaparecimento por falta de adaptação.
As pessoas mudam. Aparecem movimentos. As sociedades alteram-se. É importante e necessária a capacidade de evoluir, mas os métodos da IA empregues (não esquecer que a parcialidade deles é sempre introduzida pelas escolhas previamente feitas) tem tendência para bloquear com base no passado os padrões a alcançar.
Dadas as limitações dos métodos da IA, e da sua implicação no presente e futuro da sociedade, torna-se urgente que esses métodos de IA sejam tornados sistemas abertos e transparentes. Pelo menos para os sistemas públicos, já que para as grandes empresas privadas de IA tal não é possível de conseguir, uma vez que elas se refugiam na proteção do segredo industrial.
Nota: a maior parte dos dados e das estatísticas aqui utilizados, referem-se aos EUA, país de vanguarda que nos deixa entrever o caminho para o futuro. Note-se também que a diminuição do número de pessoas recebendo assistência social pode ser interpretado como o reflexo de uma melhoria pelo aumento da qualidade de vida. Entra o hino da Mocidade Portuguesa: “Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim”.
Recomendados:
Black, Edwin. IBM and the Holocaust:The Strategic Alliance between Nazy Germany and America’s Most Powerful Corporation, New York, Crown Publishers, 2001.
Broussard,Meredith.ArtificialUnintelligence:HowComputersMisunderstand the World, The MIT Press, 2018.
Cohen, Adam. Imbeciles: The Supreme Court, American Eugenics, and the Sterilization of Carrie Buck, New York, Penguin Press, 2016.
Eubanks, Virginia. Automating Inequality, How High-Tech Tools Profile, Police, and Punish the Poor, New York, St. Matin’s Press, 2018.
Massey, Douglas S., and Nancy A. Denton. American Apartheid: Segregation and the Making of the Underclass, Cambridge, Harvard University Press, 1993.
O’Neil, Cathy. Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy, New York, Crown Publishers, 2016.
Reisman,Dillon, e Schultz, Jason, e Crawford, Kate, e Whittaker, Meredith. “Algorithmic Impact Assessments: A Pratical Framework For Public Agency Accountability”, N.Y., 2018 (https://ainowinstitute.org/aiareport2018.pdf).
Trattner, Walter. From Poor Law to Welare State. A History of Social Welfare in America, Free Press, 1998.
Dois meses do verão de 1956 deveriam ser suficientes para “assegurar que todos os aspetos do conhecimento ou de qualquer outra característica da inteligência humana pudessem ser descritos e programados de tal forma que uma máquina os pudesse vir a simular”, John McCarthy.
Um sistema com comportamento inteligente é fundamentalmente diferente de ser inteligente, John Searle.
Os modelos matemáticos, pela sua natureza, têm por base o passado, e a assunção que os padrões se repetem, Cathy O’Neil.
Os padrões com que a IA trabalha, são reproduções de estereótipos que lhe fornecemos.
Acabou-se o “ver para crer”.
A ideia da fabricação de um ser mecânico idêntico ao humano, tem acompanhado desde sempre a chamada civilização ocidental. Não é, pois, coisa de hoje. Talvez a primeira referência explícita se possa encontrar na mitologia grega, com Talos, o gigante automático feito de bronze, colocado por Zeus na ilha de Creta para garantir a segurança da bela fenícia Europa, que ele, como macho alfa (nesse caso disfarçado de touro, o minotauro), raptara.
Este ideário tem permanecido latente, reavivado aqui e ali, de tempos a tempos: só nos últimos dois séculos, recordemos os casos mais conhecidos de Mary Shelley e o seu Frankenstein ou o Moderno Prometeu, (1818), de Carlo Collodi e as Aventuras de Pinóquio (1883), bem como o famoso filme de 1927, Metropolis, do alemão Fritz Lang. A partir dos últimos anos do século XX, têm-se sucedido obras, literárias e cinematográficas, que exploram esse aparente desejo permanente de se ter um empregado para todo o serviço, nem sempre obediente, mas quase sempre derrotado.
Com a fabricação da bomba atómica (prova do domínio humano sobre o átomo) e após a Segunda Guerra Mundial, assistiu-se ao grande desenvolvimento da ciência na área da computação, o que fez surgir um número de deslumbrados académicos, filósofos e cientistas, acreditando na possibilidade de poderem replicar a consciência humana num programa de computador.
Coube a John McCarthy (1927-2011), um jovem professor americano de 29 anos, do Dartmouth College, a ideia de convidar, para trabalharem com ele durante o período de verão de 1956, alguns dos cientistas mais avançados nos campos da robótica, das redes neurais e da programação de linguagens. O convite enviado, tinha como título Inteligência Artificial, termo usado pela primeira vez.
O plano apresentado previa que o trabalho de 10 cientistas, apenas durante os dois meses do verão, seria suficiente para “assegurar que todos os aspetos do conhecimento ou de qualquer outra característica da inteligência humana pudessem ser descritos e programados de tal forma que uma máquina os pudesse vir a simular”.
Após os dois meses de trabalho, McCarthy e a sua equipa, foram forçados a encarar a realidade: ensinar um computador a compreender a linguagem, usar a criatividade para resolver um problema, melhorar por si próprio, eram tarefas impossíveis de concretizar naquele espaço de tempo. McCarthy tinha subestimado a complexidade das funções do cérebro. A experiência de Dartmouth falhara na sua intenção de produzir uma máquina inteligente.
Isto levou a que muitos dos colegas de McCarthy começassem a duvidar de que alguma vez fosse possível produzir uma máquina que pensasse como uma pessoa. Para eles, o futuro estava antes na produção de sofisticadas ferramentas eletrónicas capazes de desempenharem autonomamente certas tarefas específicas.
Estávamos, portanto, perante duas conceções diferentes relativamente à Inteligência Artificial (IA), o que veio a conduzir ao aparecimento de dois termos: “IA Geral” (Artificial General Intelligence), que procurava desenvolver uma máquina que conseguisse desempenhar toda e qualquer tarefa intelectual, e “IA Restrita” (Narrow AI), que se propunha apenas investigar sistemas que ajudassem na resolução de problemas práticos sem perguntar se eram inteligentes ou se se comportavam como se o fossem.
Dado que ao longo destes mais de 50 anos a IA Geral não ter conseguido apresentar qualquer progresso, foi sendo abandonada por quase todos os investigadores. Todos os métodos de IA que hoje usamos são de “IA Restrita”, o que acabou por relegar a “IA Geral” para o domínio da ficção científica.
Parece ser hoje reconhecido que um sistema com comportamento inteligente é fundamentalmente diferente de ser inteligente, o que já desde 1980 vinha demonstrando Jonh Searle (1932-)(https://plato.stanford.edu/entries/chinese-room/).
Além do mais, os resultados obtidos com base na IA Restrita têm sido espetaculares. Graças ao aumento da capacidade dos computadores possibilitando o armazenamento de “Big Data”, ao desenvolvimento da teoria dos jogos, à aplicação das “regras de Bayes” para lidar com a incerteza e probabilidade, à “aprendizagem de máquina” (machine learning) que permitiu através de estatísticas extrair conhecimento a partir das grandes quantidades de dados, e das suas técnicas de “aprendizagem profunda” (deep learning) que possibilitaram, através da imitação das redes neurais, o conhecimento de estruturas mais complexas sem a necessidade de utilização irrealista de grandes quantidades de data, têm sido possíveis os desenvolvimentos de algumas importantes e visíveis aplicações práticas, tais como:
Personalização de conteúdos, permitindo que grande parte da informação do nosso dia a dia seja personalizada. Alguns exemplos são o Facebook, Twitter, Instagram, e outos conteúdos dos media; anúncios online; recomendações de música no Spotfy; recomendações de filmes na Netflix, HBO, e outros serviços de streaming.
Muitas das empresas de jornais online, websites de empresas de comunicação, e motores de busca como a Google, personalizam já os conteúdos que oferecem.
É assim, que ao passo que a primeira página dos jornais impressos é a mesma para qualquer leitor, as primeiras páginas das suas versões online são já diferentes para cada utilizador. Os algoritmos que determinam o
conteúdo que cada um de nós vê, estão baseados na IA.
Carros autónomos, carros que se guiam a si próprios, e que através da combinação de várias técnicas de IA procuram e planeiam o caminho mais conveniente para ir de A para B, identificando obstáculos, e tomando decisões (decidindo) perante a incerteza de certas condições complexas e dinâmicas.
Idênticas tecnologias são empregues noutros sistemas autónomos como os drones, os robôs de entrega, e os navios autónomos.
Processamento de imagens e de vídeo, permitindo que o reconhecimento facial possa ser já correntemente utilizado na identificação de clientes no comércio, nos negócios, e no governo, ajudando na organização de fotos por pessoas, segundo as classes em que se as queiram classificar, e, evidentemente, no controle policial de passaportes.
Técnicas semelhantes podem ainda, por exemplo, ser usadas para o reconhecimento de outros carros e de obstáculos à volta dos carros autónomos, ou para estimarmos as populações de animais selvagens.
A IA pode também ser usada para gerar ou alterar o conteúdo visual. Já hoje se pode mesmo alterar o estilo, permitindo que as nossas fotos apareçam como se tivessem sido pintadas por van Gogh, ou animar imagens geradas por computador, como as do Avatar e do Senhor dos Anéis, por replicação de gestos feitos por atores humanos.
Neste mundo azul em que estamos já submergidos, o seguimento digital (digital tracking) e os sistemas de tomada de decisão, tornaram-se rotina nas previsões políticas, no marketing, na consideração de concessão de crédito, na polícia, nas sentenças criminais, na gestão dos negócios, na finança, e na administração dos programas públicos.
Neste mundo azul, sabemos já perfeitamente que é por as empresas tecnológicas não quererem revelar os detalhes dos seus algoritmos, nem os princípios básicos que os fundamentam, que nos estamos a deparar com o aparecimento de novas formas de propaganda, das fake news, das troll factories, das câmaras de eco (echo-chambers), bolhas (filter bubbles), etc.
Sabemos já perfeitamente que devido à aplicação do processamento de imagens e vídeo, se torna cada vez mais fácil a realização de vídeos falsos de acontecimentos, impossíveis de distinguir de vídeos reais. Acabou-se o “ver para crer”.
Tudo isto são coisas que já se sabem, a que os meios de comunicação dão muito relevo, e a que nós já não damos muita importância, pelas vantagens do dia a dia que nos podem proporcionar.
Por tudo isto, é importante saber como minimamente operam essas empresas tecnológicas.
À partida, elas possuem ou compram bases de dados, de preferência com imagens. Uma das bases de dados mais utilizadas é a ImageNet, que contém mais de 14 milhões de imagens, em que a maior parte delas são de homens, na sua maioria brancos, (https://en.wikipedia.org/wiki/ImageNet).
É a partir destas referências que o sistema vai funcionar. Se a elas juntarmos a análise de milhares de textos que irão também servir de padrão, e nos quais os homens vêm normalmente associados a profissões como políticos ou programadores, e as mulheres associadas a donas de casa, mães, modelos, não é de espantar que ao fazermos uma pesquisa de imagens da palavra ‘médico’, nos apareçam fotografias de homens com bata branca. E, se pesquisarmos por ‘enfermeiro’, nos apareçam mulheres em hospitais. Esta é a consequência lógica da replicação dos algoritmos construídos a partir dessas bases.
No passo seguinte, para ensinar os sistemas de inteligência artificial a distinguirem um cão de um gato, fornecemos-lhes milhões de imagens de cada um desses animais. Depois, ‘treinamo-los’ (aos sistemas de IA, não aos cães e gatos) para que os aprendam a identificar.
Obviamente, exatamente o mesmo fazem também as polícias, que até usam o mesmo sistema de software. Neste caso, em vez de cães e gatos, treinam o algoritmo com fotografias de pessoas que tenham sido condenadas, com os bairros onde se registaram mais delitos ou com os bairros onde se registaram maior número de prisões.
Ou seja, os padrões com que a IA trabalha, são reproduções de estereótipos que lhe fornecemos. Trabalham com as nossas limitações, visões, e preconceitos, que normalmente utilizamos para marginalizar os outros.
Daí que, embora os sistemas de IA pareçam neutrais e objetivos, não o são. Dão-nos uma versão muito particular do que se passa.
Defensora do sistema, a professora da Escola de Economia da Universidade de Auckland e codiretora do Centro Social de Análise de Dados, Rhema Vaithianathan, entende que apesar destas limitações, assim que conseguirmos aperfeiçoar mais os algoritmos, o mercado livre e a informação gratuita poderão garantir os melhores resultados para o maior número de pessoas.
Donde se poderá concluir que, no limite, não será necessário qualquer tipo de governo.
O próximo blog, incidirá sobre aquilo que se pretende esconder por detrás da utilização da Inteligência Artificial.
Viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do futuro, viver apenas para nós próprios, sem nos preocuparmos com as nossas tradições nem com a nossa posteridade.
O narcisismo tornou-se um dos temas centrais da cultura americana para o qual muito contribuiu a perca de autoridade da família, o aumento de controlo terapêutico exterior sobre a família e a ascensão do feminismo, C. Lasch, 1979.
Só na aparência os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperantes; por trás dessa fachada de hedonismo e de solicitude, cada indivíduo explora cinicamente os sentimentos dos outros e procura o seu próprio interesse sem qualquer preocupação com as gerações futuras, G. Lipovetsky, 1980.
Segundo a versão expressa por Ovídeo nas Metamorfoses, quando Narciso nasceu, os seus pais, Cefiso, o deus dos lagos, e a ninfa Liríope, interrogaram o divino Tirésias sobre o seu destino. Tirésias disse-lhes que aquela criança “chagaria a velho, se nunca visse o seu rosto”.
Já homem feito, devido à sua grande beleza, Narciso era o objeto da paixão de muitas donzelas e ninfas. A todas se mantinha insensível. O mesmo aconteceu com a ninfa Eco, que desesperada, resolveu retirar-se e isolar-se da sociedade, emagrecendo a tal ponto que para o fim só se lhe ouviam os gemidos da sua voz. Todas as outras jovens desprezadas reúnem-se e resolvem pedir aos céus por vingança.
Némesis, a deus a vingança divina, acolhe os seus pedidos, esboçando um plano: num dia de muito calor em que Narciso fosse caçar, seria levado a debruçar-se sobre a água do lago para beber, o que forçosamente obrigaria a ver o seu rosto refletido. E assim foi: Ao encarar a sua imagem, tão bela, fica de imediato apaixonado por ela. Insensível a tudo o que o rodeia, insensível ao mundo, acaba por se deixar seduzir pela sua imagem. Desejando tocá-la, agarrá-la, inclina-se de tal forma que acaba por cair ao rio, deixando-se morrer. No local da sua morte acabou por nascer uma flor a que deram o seu nome, o narciso.
Posteriormente, e em termos médicos, foi dado o nome de narcisismo a uma desordem da personalidade definida como sendo uma condição na qual as pessoas se sentem cheias da sua própria importância, tendo ao mesmo tempo uma preocupação extrema para com elas próprias.
Exemplos de comportamentos narcisísticos podem ser vistos em alguns filmes e séries de televisão: “Dois homens e meio” (Charlie Harper), “O mentalista” (Patrick Jane), “O escritório” (Michael Scott), “O retrato de Dorian Gray”, “Atração fatal” (Catherine Tramell), “Nip/Tuck” (Dr. Troy), “O grande Gabsty” (Jay Gabsty).
Coube ao historiador americano Christopher Lasch, em 1979, a transposição deste termo clínico individual para o comportamento da sociedade, descrevendo-o como uma “doença” da sociedade, um narcisismo social.
Para Lasch que “o narcisismo tornou-se um dos temas centrais da cultura americana”. Segundo ele, tal aconteceu devido à perca de autoridade da família, ao aumento de controlo terapêutico exterior exercido sobre a família, e à ascensão do feminismo.
O problema da perca (demissão) da autoridade da família tem que ver com alteração que a industrialização provocou na vida familiar. A deterioração dos cuidados com os filhos (pelo facto de serem deixados em casa entregues a si próprios), conduz a uma segunda fase em que funções que deveriam ser desempenhadas pelos pais, passavam a serem feitas por várias instituições, desde as escolas, que se substituem às famílias na educação dos filhos, até a outras instituições prestadoras de cuidados de alimentação e saúde.
Os pais vão sendo assim obrigados a prescindir do papel de primeiros protetores, escapando-se-lhes as decisões sobre os filhos. A regulação sobre o bem-estar das crianças começou a passar para as escolas, organizações de proteção às crianças, tribunais juvenis, centros de educação para pais, etc., transformando os pais em meros subordinados.
Estes serviços sociais criados em nome da preservação da família, têm como reverso a insegurança, fraqueza, ansiedade, e a falta de confiança que introduzem nos pais e que levam a uma consequente demissão das relações pais-filhos.
O impacto da ascensão do feminismo tem a ver com as alterações dos papéis que a emancipação das mulheres provocou nas relações entre os casais, nomeadamente na destruição do conceito de dominação que o homem tinha.
Além disso, esta independência das mulheres, trouxe reflexos no campo sexual ao ponto de os homens temerem que nunca poderiam satisfazê-las, o que numa sociedade narcisística pode levar a um desencanto emocional, a uma dependência de técnicos especialistas, a um maior individualismo, à quebra da vida familiar.
Em conclusão, Larsh diz-nos que a autoridade paternal é desmantelada e a família vai sendo sucessivamente libertada das suas funções económicas e de proteção. Devido ao liberalismo do Estado Social, o modelo anterior baseado no controlo é substituído pelo de permissividade, hedonismo, disfrute e direitos adquiridos.
Um ano depois, em 1980, Gilles Lipovetsky publica no número 5 do Le Débat, o artigo intitulado “Narciso ou a Estratégia do Vazio”.
Começa por reconhecer que a esfera pública se encontra desvitalizada face a uma vitoriosa esfera privada, o que tem vindo a conduzir a um viver sem ideal e sem fim transcendente.
A perca de confiança relativamente aos dirigentes políticos, o clima de pessimismo e da catástrofe iminente, levam a uma fixação sobre o viver no presente, apenas no presente e não já em função do passado e do futuro, viver apenas para nós próprios, sem nos preocuparmos com as nossas tradições nem com a nossa posteridade.
É desta deserção generalizada dos valores e finalidades sociais, acompanhada de um processo de personalização, que surge o narcisismo. O esforço deixa de estar na moda; tudo o que significar coerção ou disciplina, é desvalorizado em proveito do culto do desejo e da sua realização imediata.
Sinais e sintomas que vão sendo visíveis nessa alteração social.
É assim, que representação social do corpo começa a sofrer uma mutação profunda, passando a objeto de culto, num investimento narcisístico legível através de práticas quotidianas como: angústia da idade e das rugas, obsessões com a saúde, com a “linha”, com a higiene, rituais de controlo (check-up) e de manutenção (massagens, saunas, desportos, regimes), consumo exagerado de cuidados médicos e produtos farmacêuticos.
A degradação das condições de existência das pessoas idosas e a necessidade permanente de valorização, de ser admirado pela beleza, pelo encanto, pela celebridade, tornam a perspetiva do envelhecimento intolerável.
No universo económico reina uma rivalidade pura, esvaziada de qualquer significação moral ou histórica: o culto do self-made man e do enriquecimento como signo de progresso individual e social terminou, o “êxito” tem agora só um sentido psicológico: suscitar admiração ou inveja.
O indivíduo adula os seus superiores para avançar na carreira, deseja mais ser invejado que respeitado; reina a manipulação e a concorrência de todos contra todos.
A vida privada reproduz este estado de guerra: as relações humanas tornam-se relações de dominação, relações conflituais assentes na sedução fria e intimidação. Só na aparência os indivíduos se tornam mais sociáveis e cooperantes; por trás dessa fachada de hedonismo e de solicitude, cada indivíduo explora cinicamente os sentimentos dos outros e procura o seu próprio interesse sem qualquer preocupação com as gerações futuras.
A dessubstancialização do real é assim feita aplicando sempre o mesmo método: acumulação e aceleração.
O exemplo mais claro, é o que se passa com o urbanismo: restauração dos bairros antigos, proteção dos locais, animação das cidades, iluminação artificial, “planos paisagísticos”. O real tem de ser transformado num lugar de trânsito, onde a deslocação é imperativa: a personalização é um pôr em circulação.
Todo o nosso ambiente urbano e tecnológico (parques de estacionamento subterrâneos, galerias de lojas, autoestradas, arranha-céus, desaparecimento das praças públicas) se encontra organizado de modo a acelerar a circulação dos indivíduos, a entravar a fixação e, portanto, a pulverizar a sociabilidade.
Climatizado, assoberbado por informações, o real torna-se irrespirável e condena ciclicamente à viagem: mudar de ares, ir não importa aonde, mas sair do lugar onde se está.
Uma vez tornado inabitável o real, resta a retração sobre si próprio, fechar-se sobre si próprio, neutralizar o mundo, nem que seja pela força do som: os ruídos e as vozes da vida transformam-se em parasitas, o que é preciso é que o indivíduo se identifique com a música e esqueça a exterioridade do real. Daí a proliferação de auscultadores aplicados sobre os tímpanos (do jogging ao ski), os carros equipados com colunas e amplificadores de 100 W, discotecas de 4000w, concertos com24000w. É a “indiferença dos ‘surdos’ ante o mundo”.
Ao nível das relações interindividuais, o perfil de Narciso vai no sentido de rejeitar ligações profundas, para não se sentir vulnerável, desenvolver a sua independência afetiva, viver sozinho.
O medo de ser dececionado, o medo das paixões incontroladas, traduz uma fuga diante do sentimento, processo que se manifesta tanto na separação íntima, como na separação entre sexo e sentimento: quando se prega o cool sex e as relações livres, quando se condenam o ciúme e a possessividade, trata-se de facto de climatizar o sexo, de o expurgar de toda a tensão emocional e de conseguir assim um estado de indiferença, de desprendimento, não só a fim de o indivíduo se proteger contra as deceções amorosas, mas também contra os seus próprios impulsos, que podem sempre ameaçar o seu equilíbrio interior.
A libertação sexual, o feminismo, e a pornografia, trabalham para um mesmo fim: erguer barreiras contra as emoções e manter afastadas as intensidades afetivas.
Impossibilidade de sentir, vazio emotivo, a dessubstancialização toca aqui o seu termo, revelando a verdade do processo narcísico como estratégia do vazio.
Por toda a parte encontramos a solidão, o vazio, a dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si; daí a fuga para a frente das “experiências”, que mais não faz do que traduzir esta busca de uma “experiência” emocional forte. Porque não posso amar e vibrar?
Desolação de Narciso, demasiado bem programado na sua absorção em si próprio para poder ser afetado pelo Outro, para sair de si, e, no entanto, insuficientemente programado, pois que deseja um mundo relacional afetivo.
Vinte anos antes, em 1958, já Hannah Arendt, na sua obra Condição Humana, sem nunca falar em narcisismo, mostrava o caminho que as sociedades estavam a atravessar. Transcrevo algumas das citações de Arendt:
“Todos os traços da psicologia da multidão descobriram no homem massa a sua solidão apesar da sua adaptabilidade; a sua excitabilidade e a falta de normas de aferimento, a sua capacidade para o consumo, acompanhada da sua falta de habilidade para ajuizar, ou mesmo para distinguir, e acima de tudo o seu egocentrismo e alienação irremediável do mundo…traços que já apareciam na sociedade que a antecedeu, onde não se punha o problema de massas”.
“A idade moderna, com a sua crescente alienação do mundo, levou o homem a uma situação tal, que para onde quer que vá, só se encontra a ele próprio…Esta dupla perca…deixou atrás uma sociedade de homens que, sem um mundo comum com que se relacionarem e separarem, ou vivem numa desesperada separação solitária ou são empurrados para a massa. E uma sociedade de massas não é mais que uma forma de vida organizada que se estabelece automaticamente com outros seres humanos, que continuam a ser relacionáveis entre si, mas que perderam o mundo que já lhes fora comum”.
“…O tempo livre do animal ‘laborans’ é todo empregue no consumo, e se mais tempo tivesse, seria ocupado em tornar o seu apetite mais guloso e ambicioso. Que esses apetites se tornem mais sofisticados para que o consumo já não se restrinja às necessidades vitais, mas se concentre nas superficialidades da vida, não muda o caracter desta sociedade, mas encerra em si o perigo de nenhum objeto do mundo, possa estar a salvo deste consumo aniquilador de tudo…A exigência universal de felicidade e a existência de infelicidade generalizada, são sintomas evidentes de que nos encontramos a viver numa sociedade predominantemente de labor, onde não há labor suficiente para manter todos contentes.”
“Quanto mais simples for a vida numa sociedade de consumidores ou de ‘laboradores’, maior será a dificuldade em manter-se desperta para as urgências das necessidades para onde estão a ser arrastadas, mesmo apesar da dor e do esforço, manifestações exteriores da necessidade, serem minimamente apercebidas. Nesta sociedade, deslumbrada pela abundância da sua própria fertilidade e convencida do seu funcionamento como de um processo sem fim, o perigo é que já não consiga aperceber-se da sua própria futilidade, a futilidade de uma vida que ‘não se fixe nem se realize com permanência em qualquer assunto que perdure, depois de passar a passado´”.
A aplicação do conceito de narcisismo, veio, no entanto, tornar muito mais fácil perceber e reconhecer esses comportamentos, já intuídos e explicados por Arendt em 1958 (já lá vão 60 anos).
Para ler, com tempo e paciência:
ARENDT, Hannah, (1958), The Human Condition, Chicago: University of Chicago Press.
-------------------------- (1977), Between Past and Future, New York: Penguin.
HABERMAS, J., (1999), The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society, Massachusetts: Thomas Burger.
LASCH, Christopher, (1979), The Culture of Narcissism: American Life in an Age of Diminishing Expectations, New York: Norton.
LIPOVETSKY, Gilles, (1983), L’Ère du vide:essais sur l'individualisme contemporain, Paris, Gallimard.
-----------------------------(1988), A Era do Vazio, Lisboa: Relógio d’Água Editores.