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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(156) "Como fazer amigos e influenciar pessoas"

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Não era ainda a “arte” de enganar, a “conversa de cigano” passada a computador.

 

A análise de dados e a sua utilização para atingir um público alvo, há muito que são usados e não constituem hoje qualquer novidade.

 

O negócio base da Facebook é a exploração dos dados pessoais dos seus utilizadores.

 

 Os algoritmos da Cambridge Analytica, além de usarem a segmentação demográfica para identificarem grupos de votantes (tal como a campanha de H. Clinton fazia, e como já a de Obama fizera nas suas eleições), entravam ainda em consideração com as definições de classe, educação, emprego, idade e outros. Muito mais elaborada.

 

 

 

 

Vinte e quatro anos após dar aulas avulso, Dale Carnegie (1888-1955), decidiu-se a publicar em 1937 o livro que entendia fazer falta aos seus alunos, fruto das suas experiências de vida e de professor, Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, (How to Win Friends and Influence People). A sua intenção era ajudar as pessoas a conseguirem resolver os problemas de relações humanas no seu dia a dia, explicando ao mesmo tempo  que as boas relações estabelecidas entre as pessoas poderia conduzir a melhores empregos e a empresas de sucesso http://images.kw.com/docs/2/1/2/212345/1285134779158_htwfaip.pdf).

 

Segundo ele, desde que conseguíssemos pôr-nos no lugar da outra pessoa, vendo o seu ponto de vista, podíamos levá-la a fazer aquilo que nós queríamos. Podíamos aprender a fazer com que a outra pessoa acabasse por concordar com a nossa maneira de ver as coisas, sem que elas se sentissem ofendidas ou ressentidas.

O livro iria permitir que os alunos adquirissem novos entendimentos sobre a vida, descobrissem novas ambições, fizessem amigos mais facilmente e mais rapidamente, aumentassem a sua influência, prestígio, que se tornassem melhores oradores, conversadores mais divertidos. Ensinava ainda como evitar discussões, como lidar com reclamações, mantendo as relações com as outras pessoas num registo tranquilo e agradável. E cumpria.

O livro estava dividido em quatro partes: Técnicas fundamentais para lidar com as pessoas; Seis maneiras que levem as pessoas a gostarem de si; Como levar as pessoas a concordarem com o que você pensa; Ser um líder, Como mudar as pessoas sem que elas se sintam ofendidas ou ressentidas.

A título de exemplo, transcrevo a sua última página:

 

“ SÊ UM LÍDER (um resumo)

A função de um líder inclui muitas vezes o ter de alterar as atitudes e comportamentos dos seus empregados. Algumas sugestões para o conseguir:

  • Comece com um louvor e com uma apreciação honesta.
  • Chame indiretamente a atenção para os erros do pessoal.
  • Fale sobre os seus próprios erros antes de criticar outra pessoa.
  • Faça perguntas em vez de dar ordens diretas.
  • Deixe a outra pessoa salvar a face.
  • Louve a mais pequena melhoria qualquer que ela seja.
  • Dê à outra pessoa uma reputação que ela não se esqueça.
  • Faça com que a falta pareça fácil de corrigir.
  • Faça a outra pessoa feliz por fazer aquilo que ela julga ter sido iniciativa dela quando foi aquilo que lhe suge

 

Este fabuloso livro, escrito com as melhores das intenções, acabou por se tornar na Bíblia prática de todos os vendedores, fazendo parte de todas as bibliografias dos cursos de marketing, vendas. Um manual das técnicas de um bom vendedor. Não era ainda a “arte” de enganar, a “conversa de cigano” passada a computador.

 

 

A 9 de abril de 2013, a revista PNAS, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, publicou um artigo de M. Kosinski, D. Stillwell e T Graepel, professores da Universidade de Cambridge, com o título “Private traits and attibutes are predictable from digital records of human behavior” (Como predizer atributos e traços privados do comportamento humano através de dados digitais) (http://www.pnas.org/content/110/15/5802).

 

Nesse artigo, os autores demonstravam como dados digitais facilmente acessíveis (como os “Likes” do Facebook) podiam ser usados para, automática e corretamente, predizerem uma panóplia de características pessoais sensíveis, tais como a orientação sexual, a raça, religião, política, traços pessoais, inteligência, satisfação com a vida, uso de substâncias aditivas (álcool, drogas, tabaco), idade e género.

Dos 58.000 voluntários observados, muito embora muitos escolhessem não revelar algumas informações, como a orientação sexual ou a idade, essas informações poderiam ser obtidas por previsões estatísticas a partir de outros aspetos das suas vidas já revelados e através de outras atividades feitas (espetáculos, compras, interações sociais) utilizando serviços digitais.

 Por exemplo, uma grande cadeia de vendas a retalho nos EUA utilizava a listagem de compras efetuadas pelos clientes para predizer a gravidez das clientes, para depois lhes enviar vales-oferta específicos (vitaminas e roupa de bebé).

A própria personalidade da pessoa podia ser conhecida através dos conteúdos de sítios da Web frequentados, escolha de coleções de música, perfis no Facebook ou Twitter, ou do idioma utilizado.

Neste estudo, os investigadores avisavam já que:

 

 “A possibilidade de se conseguir prever o comportamento dos indivíduos através dos seus registos digitais, pode ter consideráveis implicações negativas, porque permite com facilidade a sua aplicação a um grande número de pessoas sem que elas deem o seu consentimento e sem que de tal se apercebam”.

 

E, diziam mais:

 

As empresas comerciais, as instituições governamentais, ou até mesmo os seus amigos do Facebook, podem usar programas que lhes permitam inferir atributos como a orientação sexual, a inteligência ou as simpatias políticas de indivíduos que não tenham tido a intenção de partilharem tais informações”.

 

 

Para alguns, isto apareceu-lhes como uma oportunidade de negócio. Em 2014, o diretor executivo da Cambridge Analytica, Alexander Nix, propõe a Aleksandr Kogan, um dos colegas dos autores do estudo acima citado (aparentemente, os outros investigadores recusaram a ‘oportunidade’), a formação de uma empresa privada, Global Science Research, GSR, para passar à prática o estudo.

Kogan, com os conhecimentos adquiridos do estudo feito na Cambridge University e com o acesso aos data cedidos pelo Facebook (apenas para investigação científica segundo a versão do FB), começou por desenvolver uma aplicação (app) no Facebook em que oferecia, gratuitamente, um teste de personalidade, “thisisyourdigitalelife” (estaéasuavidadigital), apenas para os utilizadores do FB com conta nos EUA.

 

Cerca de 270.000 utilizadores responderam voluntariamente ao teste. Só que a aplicação gravava não só os resultados de cada questionário, colecionando os data da conta dos utilizadores do Facebook que respondessem, mas também o dos seus ‘amigos’ parte da sua conta.

Como cada utilizador tinha uma média de 200 ‘amigos’, estamos a falar de um universo de cerca de 50 milhões de pessoas. Se emparelhássemos estes milhões de perfis com as listas eleitorais, teríamos aqui um maná político para explorar.

 

Avançou-se então para uma nova fase: foram selecionados e pagos (2 a 5 dólares) 32.000 utilizadores para fazerem um teste mais detalhado de personalidade e política.

Combinando os resultados desses testes com os “likes” do utilizador e dos seus amigos, foi possível construírem um modelo de predição de personalidades (padrões psicológicos) com base no comportamento digital.

Cruzando todos esses dados com outras fontes, como os registos dos eleitores, os algoritmos desenhados permitiam obter uma coleção particularmente afinada (inicialmente de 2 milhões de pessoas em 11 estados-chave) com centenas de dados por pessoa.

Esses eram os indivíduos que passariam a serem alvo de campanhas de anúncios altamente personalizadas (micro-targeting). A intenção era de através de um constante afluxo de ‘informações’ (notícias, fotografias, gráficos, opiniões avalizadas, etc.) levar as pessoas a mudarem de opinião.

 

Para isso, a Cambridge Analytica desenvolveu dúzias de variantes de anúncios sobre diferentes temas políticos tais como imigração, economia, direito de porte de armas, segundo os diversos perfis de personalidade.

A título de exemplo podemos ver a campanha usada no Político, empresa jornalística de referência nos EUA (http://www.politico.com/sponsor-content/2016/08/inconvenient-truths-about-clinton-foundation).

E “criou” também uma grande quantidade de contas de utilizadores fictícios do FB, com a função de comentarem e manifestarem o seu apoio às ‘ideias’ das campanhas políticas gerais desenvolvidas, como “amigos” dos indivíduos alvo. Dar corpo à indignação.

 

 

Os algoritmos da Cambridge Analytica, além de usarem a segmentação demográfica para identificarem grupos de votantes (tal como a campanha de H. Clinton fazia, e como já a de Obama fizera nas suas eleições), entravam ainda em consideração com as definições de classe, educação, emprego, idade e outros. O que fazia todo o sentido.

Duas pessoas com o mesmo perfil demográfico (por exemplo, brancos, meia-idade, empregados, casados) podem ter opiniões e personalidades diferentes. Conseguir-se adaptar a mensagem à personalidade de uma pessoa (aberta, introvertida, argumentativa, etc.) é meio caminho para fazer passar a mensagem.

Pelo que a empresa de análises de data usada por Hillary Clinton em 2016, a ADA, se revelou bastante inferior à Cambridge Analytica.

 

 

 

Como se depreende pela dimensão do projeto, a Cambridge Analytica teve de ter grandes investimentos e cobertura, daí que nos seus corpos gerentes se encontrem nomes importantes da sociedade inglesa e americana, nomeadamente Robert Mercer que foi seu fundador (através dos seus filhos), e outros especialistas conhecedores como Steve Bannon (que foi seu vice-presidente).

Robert Mercer, além de ser um cientista em computação que participou nos primeiros desenvolvimentos sobre Inteligência Artificial, é um mais que multimilionário, grande investidor em fundos de risco, sendo um dos principais contribuintes para o Partido Republicano.

Financia várias organizações da considerada direita ‘alternativa’, como a Breibart News, de que Steve Bannon era representante. Teve também papel de destaque na campanha para o Brexit, com a doação dos serviços de análises de data da Cambridge Analytica ao UKIP. Do conselho de administração do seu ramo britânico, a SCL (Strategic Communication Laboratories), faziam parte membros dos Lords, doadores do Partido Conservador, ex-oficiais das forças armadas e empresas fornecedoras da Defesa. Segundo o jornal Observer, “para todos os fins e propósitos, SCL/Cambridge Analytica são uma e a mesma coisa”.

 

Nos EUA, ainda antes das eleições intermédias, a Cambridge Analytica desenvolveu para os candidatos suportados por John Bolton (embaixador nas NU de George Bush, e atual recém-nomeado secretário da Defesa de D. Trump), uma série de anúncios de TV dirigidos a diferentes tipos de personalidade e postos no ar nas alturas em que se previa que eles estivessem a ouvir.

 Durante a campanha para as presidências, a Cambridge Analytica começou por estar mais envolvida com a campanha de Ted Cruz, que era na altura a que parecia ser a mais promissora para Mercer. Depois acabou por colocar toda a sua ‘influência’ na eleição de D. Trump.

 

 

Pelo que acima ficou exposto, na senda de uma tradição de obter o maior lucro com um produto usando de todos os meios para o tornar mais apetecível para os compradores, nada ou quase nada, se passou.  A análise de dados e a sua utilização para atingir um público alvo, há muito que são usados e não constituem hoje qualquer novidade.

Repreender com base nesta realidade o Facebook e congéneres, e querer que eles se controlem, é não entender que o FB não tem qualquer possibilidade de se reformar sem alterar a sua natureza. Observa bem Om Malik:

 

No seu núcleo, na sua política base, no seu DNA, cada decisão, cada estratégia tem por base o crescimento (a qualquer custo) e o engajamento (a qualquer custo). Mais crescimento e mais engajamento significam mais data, o que significa que a companhia possa fazer mais dólares com a publicidade, o que fará aumentar o seu valor na bolsa, o que vai permitir que ela se mantenha competitiva e se mantenha à frente dos seus rivais”.

 

A grande verdade é que o negócio base da Facebook é a exploração dos dados pessoais dos seus utilizadores. Querer que ela prescinda deles, no todo ou em parte, é como querer que a ExonMobil prescinda do negócio de petróleo e gás.

A realidade é que a ‘moral’ e o respeito pela ‘democracia’ nestas grandes companhias inclui, segundo o ex-diretor dos noticiários da BBC, James Hardings:

 

a facilitação do discurso de ódio e terrorismo, o permitir a pornografia infantil e os círculos de pedofilia, o resguardar a criminalidade e a corrupção defendendo a opacidade, o deitar abaixo a privacidade através da recolha de informação pessoal, […] a perseguição online; o dar empregos a robôs, tirando-os dos humanos; o esconder biliões em impostos, não os pagando por forma a com isso resolver os problemas da política pública; o concentrar de fortunas nas mãos de uns poucos e dominar o espaço da internet; o investir na IA que continua sem regulamentação, e que poderá vir a dirigir parte das nossas vidas. E isto é apenas uma pequena lista” (https://www.theguardian.com/media/2018/mar/22/james-hardings-hugh-cudlipp-lecture-in-full).

 

 

Das muitas questões possíveis de levantar perante a ‘descoberta’ destes acontecimentos, há uma que a todas se sobrepõe: a da destruição da privacidade.

A privacidade é uma conquista relativamente recente da humanidade, e, de certa forma teve que ver com a melhoria das condições materiais da vida. Não há privacidade numa vida nas barracas, na vida numa só divisão comum a todos (“feios, porcos e maus”). A privacidade é essencial para o desenvolvimento da personalidade, da individualidade, que posteriormente conduzirá ao apreço e luta pela liberdade, e outros valores que se crê serem intrinsecamente humanos.

O que estamos a assistir é à destruição deste conceito a troco de missangas (a facilidade de ‘tudo’ se conseguir pelo toque de um botão), com a consequente uniformização da personalidade. Um retrocesso civilizacional intencional, a bem de alguns muito poucos megalómanos que, no melhor, se julgam indicados pelo Senhor.

 

 

Aos adultos que se expõem nos Facebooks sem ser por razões profissionais, lembro-lhes a entrevista dada ao Playboy por um artista pornográfico (dava dois a três espetáculos por dia, em que se mantinha com uma ereção permanente), na qual confessava que a sua mulher tinha pedido o divórcio por ele não conseguir desempenhar em casa as suas funções de macho. Explicava a psicóloga, que o artista só conseguia a ereção se tivesse público: sem público a ver, ficava murcho.

 

 

 Então, e os russos? Se acreditarem que a empresa de análise de data fundada e apoiada por capitalistas americanos e ingleses, com técnicos americanos e ingleses, com segurança americana e inglesa, com a finalidade de fazerem eleger candidatos que lhes viessem a ser prestáveis, afinal é dirigida por russos, então os americanos e os ingleses são russos.

Não esquecer: a Rússia é um país de economia capitalista, onde o partido comunista (como aqui) tem 10% de votantes. Não é a URSS!

 

As ‘guerras’ são apenas guerras pela conquista de mercados, presentes ou futuros, cada vez mais futuros do que presentes, disputadas entre os vários oligarcas em presença, em que nós somos apenas peões, por enquanto necessários. Não tem qualquer sentido dizer que são americanos ou russos, as suas finalidades são as mesmas e os meios de que servem não divergem.

Por isso, os governos inglês e americano não expulsaram os milionários russos que lá estão. Pena os refugiados não serem todos ricos: era um ver se te avias para os receber, fossem africanos, islamistas, iranianos, sírios. Acabava-se o problema das quotas. Até mandavam iates para atravessarem o Mediterrâneo, escoltados pela marinha, para que nada lhes acontecesse. 

 

(155) Biodiversidade como guia da sobrevivência

Tempo estimado de leitura: 8 min.

 

É preciso dizer “basta” sempre que em vez de otimizar (o melhor) se preferir o maximizar (mais quantidade), Holmes Rolston III.

 

Em dez gramas de fezes há mais bactérias do que seres humanos no planeta!

 

A biodiversidade é um todo que nos mantém unidos, e que não pode ser retalhado porque não sabemos quais são as implicações.

 

Perante uma rápida alteração de meio ambiente, a existência de uma maior diversidade genética dá-nos mais opções para lidar com esses novos fatores.

 

 

 

Para o professor de filosofia da ciência, Bryan Norton, a Terra é comparável a um doente cuja sobrevivência está totalmente dependente de uma máquina de suporte de vida a que se encontra ligado (http://www.ciesin.columbia.edu/docs/002-256b/002-256b.html).

O que o levou a fazer esta pergunta: imagine que um dia, os encarregados do Hospital entram no quarto do doente para lhe comunicarem que, a fim de aumentarem as receitas, vão vender alguns componentes da máquina. Perante a perplexidade do doente, tranquilizam-no dizendo que “Ela tem tantos fios e parafusos, que provavelmente não necessita deles todos”. Você arriscaria?

 

O que ele nos pretende dizer é que a biodiversidade é um todo que nos mantém unidos, e que não pode ser retalhada porque não sabemos quais são as implicações daí resultantes. A biodiversidade não é só a abundância da vida na Terra. Ela é, acima de tudo, aquilo que mantém a resiliência e a flexibilidade do meio como um todo, que permite que a vida aguente os vários embates por que passa.

 

A biodiversidade é normalmente definida como a variabilidade dos organismos vivos a três níveis: dentro das espécies, entre as espécies, e dos ecossistemas.

 

#Dentro das espécies”, o nível é o dos genes. Por exemplo, as cerca de 10.000 espécies existentes de formigas são constituídas por 10 elevado a 15 indivíduos (ou seja, 1 seguido de 15 zeros), em que cada uma delas tem a sua única combinação de genes. Se destruirmos metade das formigas em cada espécie, continuaremos a ter 10.000 espécies de formigas, mas teremos perdido 50 por cento da diversidade genética de cada espécie.

Na nossa espécie humana, podemos recorrer ao exemplo dos alelos, ou variações de genes, para a cor dos olhos, o grau de encaracolamento do cabelo, o tónus muscular e outros. Estes alelos podem ter vantagens num determinado ambiente e não ter noutros. Nos climas de pouco sol do Norte, ter pele clara é vantajoso porque permite receber mais vitamina D, mas nas regiões de muito sol é desvantajoso porque torna as pessoas mais propícias a queimaduras e cancros da pele.

Perante uma rápida alteração de meio ambiente, quer seja por alterações climáticas, por uma nova doença ou pelo aparecimento de uma espécie invasora, a existência de uma maior diversidade genética dá-nos mais opções para lidar com esses novos fatores.

 

#Entre as espécies” é o segundo nível da diversidade, para nós o mais evidente, pois refere-se ao enorme conjunto de animais, plantas e micro-organismo existentes. Calcula-se que existam mais de 9 milhões de espécies na Terra, das quais só ainda descrevemos 1.2 milhões (http://journals.plos.org/plosbiology/article?id=10.1371/journal.pbio.1001127). E entre as espécies desconhecidas, 90% habitam as profundezas dos mares.

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#Diversidade dos ecossistemas”, um dos níveis mais difíceis de delimitar, não só porque as espécies interagem umas com as outras, mas também porque interagem também com o sol, com o ar, com o solo e com a água, formando outros ecossistemas.

Além da imensidade de ecossistemas a que a Terra dá guarida, da tundra ártica às florestas equatoriais, dos estuários de rios até ao mar profundo, cada um desses ecossistemas pode ainda ser tão grande como o da Grande Barreira de Coral ou tão pequeno como a comunidade de algas, esponjas e vermes que se albergam na casca de um caranguejo.

Consideremos ainda que dentro de um ecossistema as espécies, não só competem umas com as outras por comida e luz, como também se apoiam umas nas outras.

É assim que das plantas com flor, 87% são polinizadas por animais, e que os corais marinhos dão abrigo a 25% da vida marinha. É assim que as bactérias reciclam matéria morta em nitratos, a partir dos quais as plantas ‘constroem’ proteínas. Os ecossistemas providenciam ‘serviços’ que suportam a vida dentro do ecossistema e para além desse ecossistema.

Os seres humanos não conseguiriam viver sem esses serviços prestados, que incluem ar limpo, água potável, decomposição de desperdícios, e polinização de plantas alimentares.

Da mesma forma que a diversidade genética provê as espécies com resiliência às alterações ambientais, também a diversidade das espécies aumenta a resiliência dos ecossistemas.

 

 

Exemplos que se passam connosco

 

Esta interdependência, interligação, entre espécies sempre existiu. Sabe-se hoje que um adulto humano tem aproximadamente tantas bactérias como células próprias, o que faz com que carreguemos cerca de dois quilos de micróbios.

As bactérias desfazem as membranas mais duras e processam certas moléculas complexas libertando nutrientes. Assim, as bactérias obtêm alimentos e lugar para viverem, e nós obtemos delas substâncias que de outro modo não conseguiríamos absorver.

Não é incorreto pensar que o genoma do ser humano se compõe do genoma do Homo sapiens e do genoma dos nossos hóspedes microbianos (isto para não entrarmos na ficção científica que faz de nós os hóspedes das bactérias).

A este complexo ecossistema cheio de bactérias que interagem umas com as outras e connosco, dá-se o nome de microbioma, e do seu controle (ou falta) dependem muitas das afeções que nos atingem, desde a fibrose quística (causada pela sobreabundância de bactérias da espécie Pseudomonas) até à colite pseudo membranosa (causada pela resistência aos antibióticos da espécie Clostridium difficile), passando pela obesidade, pelas alergias, por algumas doenças autoimunes (como a de Crohn) e pela depressão.

É tal a interdependência que algumas delas se resolvem com um simples transplante de fezes, como no caso do Clostridium. Se nos serve de consolo, pensemos que em apenas dez gramas de fezes há mais bactérias do que seres humanos no planeta!

 

 

Exemplos que se passam com as sociedades

 

As ruínas monumentais deixadas por algumas sociedades do passado vítimas de colapsos totais, como foram os casos da Grécia micénica, da Creta minoica, do Grande Zimbabué, de Angkor Wat, das cidades maias, e da ilha de Páscoa, para além de um certo fascínio romântico que exercem sobre nós, deviam alertar-nos para as destruições que inadvertidamente algumas dessas sociedades fizeram sobre os recursos ambientais de que dependiam, exaurindo-os.

O caso mais mediático, porque mais visível, é o das 397 enormes estátuas abandonadas (algumas atingem 20 metros de altura, pesando 270 toneladas), representando de forma estilizada torsos masculinos sem pernas e com longas orelhas, descobertas pelo explorador holandês Jacob Roggeveen na ilha do Pacífico, que por ter sido avistada a 5 de abril de 1722, chamou de ilha de Páscoa.

A Ilha então redescoberta tinha um aspeto desolado, arenoso, sem uma única árvore ou arbusto, e cujos únicos animais de algum porte eram galinhas. A população da ilha que, no seu apogeu, foi estimada em 30 mil, encontrava-se reduzida a 2.000 em 1864.

Durante os primeiros 500 anos da ocupação polinésia, os agricultores permaneceram nas terras baixas a poucos quilómetros da costa, para ficarem mais próximos da água doce e da pesca.

 

Os primeiros vestígios da ocupação das terras altas, surgem por volta de 1300: as árvores foram sendo cortadas para darem lugar a hortas. Toda a floresta desapareceu e todas as árvores foram extintas. A desflorestação provocou a erosão do solo pela chuva e pelo vento, com a consequente diminuição do rendimento das culturas.

Com a destruição das árvores foi-se perdendo matéria prima, bem como alimentos colhidos diretamente da natureza. Escasseiam madeira, corda, casca para fabricar tecidos. A escassez de grandes árvores e de cordas põe fim ao transporte e levantamento de estátuas, e à construção de canoas capazes de enfrentarem o mar alto.

Os habitantes ficam também sem combustível para se aquecerem, vendo-se obrigados a socorrerem-se de gramíneas, fragmentos de cana-de-açúcar e outros resíduos de culturas como combustível. Até as práticas funerárias foram alteradas: a cremação tornou-se impraticável, dando origem a práticas de mumificação e de enterro de ossos.

 

As aves terrestres desapareceram por completo e as aves marinhas ficaram reduzidas a um terço. Foram sendo consumidos crustáceos de espécies cada vez mais pequenas e em número progressivamente menor. A única fonte de alimentos em estado selvagem que se manteve estável foram os ratos.

Outras consequências da desflorestação foram a fome, a queda abrupta na população e o recurso ao canibalismo.

 

O impacto ambiental humano (desflorestação, destruição das populações de aves), e os fatores políticos, sociais e religiosos subjacentes a esses impactos, tais como a impossibilidade de usar a emigração como válvula de escape devido ao isolamento da ilha, o foco na construção de estátuas e a concorrência entre clãs e chefes que levou ao levantamento de estátuas progressivamente maiores, exigindo mais madeira, cordas e alimentos”, faz da ilha de Páscoa o exemplo mais claro de uma sociedade que se autodestruiu sobre explorando os seus próprios recursos.

 

Será este cenário possível de repetir nos dias de hoje? Graças à globalização, ao comércio internacional, aos meios de transporte, à internet, todos os países da Terra partilham os seus recursos, afetam-se uns aos outros, da mesma forma como o fizeram os doze clãs da ilha de Páscoa. A ilha estava tão isolada no oceano Pacífico como a Terra está hoje no espaço: quando os ilhéus se encontraram em dificuldades, não tinham nenhum sítio para onde fugir, nem ninguém a quem pudessem pedir ajuda. Também nós agora, se os nossos problemas aumentarem, não temos para onde ir.

 

E, não se pense que agora estaríamos melhor do que na ilha. Pensemos que se alguns milhares de ilhéus, dispondo apenas de instrumentos de pedra, conseguiram destruir o seu ambiente e acabar com a sua sociedade, o que não poderão fazer agora os nossos muitos milhões de contemporâneos com todo o potencial destrutivo ao seu dispor?

 

 

Regras para a conservação da Natureza

 

Todos os cuidados para lidar com os ecossistemas, com a biodiversidade da Natureza, são poucos. E, não basta afirmar que a nossa relação com a Natureza deve ser harmoniosa. Para passar à prática esta boa intenção, vou socorrer-me das dez propostas apresentadas por Holmes Rolston III (1932 -), contidas na sua obra Conserving Natural Values:

 

            #1. “Enfatizar a ausência de rivalidade entre os valores culturais (valores que o homem descobre ou atribui enquanto inserido numa cultura) e os valores naturais (valores da Natureza que o homem pode e deve reconhecer)”.

            #2. “Ter cuidado com os compromissos”, pois um compromisso pode não significar uma decisão equilibrada.

            #3. “Proteger os valores das minorias”. As decisões por maioria nem sempre protegem os interesses das minorias. Deve ser ponderada a utilização da regra de 2/3 ou do veto.

            #4. “Completar o quadro económico com análises ecológicas”.

            #5. “Basta”. É preciso dizer “basta” sempre que em vez de otimizar (o melhor) se preferir o maximizar (mais quantidade).

            #6. “Identificar todas as partes afetadas”, incluindo as plantas e animais que não tendo voz, pertencem à Natureza e fazem parte do nosso ambiente.

            #7. “Insistir na sustentabilidade” aumentando a utilização de recursos renováveis e limitando o recurso às energias não renováveis.

            #8. “Evitar a mudança irreversível”, decidindo tanto mais lentamente quanto maior for o impacto da mudança, para não se correr o risco dos erros irreversíveis.

            #9. “Reconhecer à alteração o ónus da prova”. Quem quiser introduzir alterações é que vai ter de provar que elas otimizam.

            #10. “Tornar explícitos os juízos de valor latentes”, dando sempre a conhecer os valores naturais existentes, não aguardando para os expressar apenas na altura em que uma ameaça surja.

 

 

Rolston chama-nos ainda a atenção para a multiplicidade de valores da Natureza:

 

Valor de sobrevivência (life-support), valor económico, valor recreativo, valor científico, valor estético, valor da diversidade genética, valor histórico, valor da simbolização cultural, valor da construção do carácter, valor da diversidade-unidade, valor da estabilidade e da espontaneidade, valor dialético, valor da vida e valor religioso.

 

 

Perante toda esta avalanche de valores da Natureza, percebe-se melhor a preocupação do professor Bryan Norton e da sua pergunta: você arriscaria?

Qual será a resposta da Inteligência Artificial dos donos da água e das outras matérias primas do Planeta?

           

 

(154) As máscaras das oligarquias

Tempo estimado de leitura: 13 min.

 

Oligarcas, são só os que são suficientemente ricos para poderem utilizar a sua riqueza para influenciarem o poder do estado na defesa dos seus rendimentos e património.

 

A democracia é apenas uma das formas da política que os oligarcas utilizam para a defesa da sua riqueza.

 

A democracia e a oligarquia podem fundir-se desde que os muitos pobres não ameacem os poucos ricos através de instituições representativas, e os poucos ricos não concentrem riqueza ao ponto dos muito pobres se tornarem politicamente explosivos, Aristóteles.

 

 “As sociedades organizadas têm três formas para expropriar a riqueza […]: ou pela revogação dos direitos de propriedade, ou através do sistema de impostos, ou pela alteração das regras que afetam o equilíbrio entre o trabalho e o capital”, Citigroup Global Markets Inc.

 

 

 

 

Uma “oligarquia” é vulgarmente definida como sendo “o governo de alguns”, citando a tipificação dos vários modos de governar inicialmente feita por Aristóteles nos seus escritos sobre Política.

Mas, o que ele nos diz é que se se governar apenas tendo em vista os seus próprios interesses, então, conforme as pessoas que governarem forem só uma, algumas ou muitas, teremos uma “tirania”, uma “oligarquia” ou uma “oclocracia” (demagogia); mas, se se o fizer tendo em vista o bem comum, então teremos uma “monarquia”, uma “aristocracia” ou uma “democracia” (república).

Pelo que a definição normalmente aceite de “oligarquia” como sendo o “governo de alguns” não nos diz tudo.

Por isso, o mesmo Aristóteles, já há 2.300 anos tentou corrigir essa interpretação, esclarecendo melhor:

 

Nas oligarquias ou nas democracias, o número de pessoas a governar, quer seja em maior número como na democracia, ou em número mais pequeno como na oligarquia, têm origem num acidente que vem do facto de os ricos serem sempre poucos, e os pobres serem sempre numerosos” (III viii 1279b 35-9).

 

O que o vai levar a não atribuir grande importância ao número de pessoas que governa como principal característica diferenciadora entre oligarquia e democracia:

 

A verdadeira diferença entre democracia e oligarquia está na pobreza ou na riqueza. Onde os homens governarem por intermedio da sua riqueza, quer sejam poucos ou muitos, isso é uma oligarquia, e onde os pobres governarem, isso é uma democracia” (III viii 1280a 1-3).

 

Ou seja, a oligarquia tem sempre que ver com a relação entre riqueza e poder. Tem sempre que ver com as políticas de defesa da riqueza.

 

 

Atenas

 

Em meados do século V a.C., a população de Atenas e arredores andava à volta de 300.000 pessoas. Destas, tinham direito a votar apenas 38.200 (9%). Excluíam-se as mulheres, os estrangeiros e os escravos.

A riqueza era detida por 1.200 eupátridas (etimologicamente, “os bem-nascidos”, oligarcas com dinheiro suficiente para comprarem, equiparem e comandarem uma trirreme – barco da marinha ateniense), seguidos de 13.000 hoplitas (lavradores ricos com pelo menos 2.000 dracmas, que lhes permitia comprar as suas próprias armas e equipamentos em caso de guerra), e por 24.000 thetas (os cidadãos mais pobres, normalmente camponeses, pequenos artesãos ou remadores da marinha). Finalmente vinham os mais de 120.000 escravos.

Quanto ao índice de concentração total da riqueza, se para a totalidade dos escravos atribuirmos o índice 1, os thetas teriam um índice de 5, os hoplitas um índice de 32, a que se seguiam os 900 oligarcas mais baixos com índice 60, os seguintes 290 oligarcas com 102, e finalmente os 10 maiores oligarcas com um índice de 2.432.

Os trezentos mais ricos oligarcas tinham um rendimento anual superior ao de todos os hoplitas. Esta riqueza extraordinária, permitia-lhes dominar os negócios da cidade, controlando todos as funções mais importantes do governo. E permitia-lhes ainda não necessitarem de estarem todos no governo. Bastava que alguns deles lá estivessem para que os interesses de todos fossem defendidos.

 

Com esta estrutura social e com os arranjos que conseguiam para governarem, as potenciais ameaças que os eupátridas (oligarcas) enfrentavam para a defesa das suas riquezas, só poderiam vir de outros oligarcas ou de outros estratos mais baixos da sociedade.

A fim de evitarem os ataques dentro da própria oligarquia, impuseram a regra de desarmamento parcial entre os oligarcas que governavam, reduzindo assim a capacidade de indivíduos ou pequenos grupos ameaçarem o poder instituído. Além disso, ao permitirem que a classe média de pequenos proprietários constituísse a grosso das forças armadas, retiravam aos oligarcas individuais a possibilidade de contratarem forças mercenárias para defenderem Atenas contra a oligarquia reinante.

 

Já as intervenções de oligarquias de outras cidades, sozinhas ou acompanhadas por potências exteriores (Pérsia, Macedónia), punham problemas mais complicados para a defesa da riqueza acumulada.

Em teoria, a condição mais gravosa seria a de uma revolta de escravos. Só que devido à condição de cidadania concedida aos tetas e aos hoplitas, qualquer tipo de revolta de escravos seria impensável e abertamente contrariado por todos os que se consideravam como cidadãos. Isto mostra-nos que a principal divisão na sociedade de Atenas era entre ser-se cidadão ou escravo.

Por estes motivos, em que a maioria dos cidadãos não constituía nenhuma ameaça aos oligarcas, a “democracia” era possível.

 

 

Roma

 

Roma não tinha que enfrentar os mesmos perigos exteriores que Atenas ou Esparta enfrentavam, pois eram não existentes. Os maiores perigos para os oligarcas reinantes de Roma, eram internos, nomeadamente vindos de outros oligarcas.

Embora a cidade de Roma tivesse cerca de um milhão de habitantes, estimava-se que a população total dominada por Roma era de 55 milhões (ou seja, 150 vezes mais que Atenas), e em que o número de cidadãos seria de 5 a 6 milhões, 10% da população total.

Os escravos e os trabalhadores do campo constituíam a formação social mais baixa. Havia mais de oito milhões de escravos, e devido ao tratamento que lhes era infligido, Roma tinha todos os anos de capturar ou comprar, meio milhão de escravos para manter o seu número.

Só na capital os 600 senadores tinham 250.000 escravos, ou seja, 400 por senador, isto sem considerar os escravos que tinham nas suas propriedades fora de Roma.

O controle de tal quantidade de escravos, era, evidentemente feito através da coerção mais violenta, da tortura ao empalamento. Dizia Catão, “um escravo, ou trabalha ou dorme”. Quaisquer tentativas de revolta eram de imediato suprimidas. Não havia revoluções vindas de baixo.

 

Apesar de bem pagos, centuriões e comandantes de legião, muito raramente conseguiam o suficiente para comprarem terra (97% da população romana não possuía terra).

A concentração de riqueza entre os super-ricos era extrema. A riqueza média dos senadores era de 55 milhões de dólares (em Atenas era de 2,3 milhões), com uma renda anual de 3,3 milhões.

É possível estimar que os oligarcas de topo valiam 2,2 biliões, ou seja, 40 vezes o possuído pela média dos senadores, 200 vezes mais que os cavaleiros, 500 vezes mais que um senador municipal e 400.000 vezes mais que um cidadão romano do escalão inferior.

Quando Júlio César regressa vitorioso da sua campanha na Gália, os despojos que apresentou em Roma pela sua pilhagem são estimados entre 13,2 biliões de dólares e 38,5 biliões.

 

Para protegerem as suas riquezas da cobiça dos seus pares, os senadores de Roma criaram vários esquemas que iam desde a nomeação de ditadores apenas por um ano para assegurarem a defesa do território, até à proibição dos mesmos poderem entrar com as suas legiões na cidade de Roma.

Contudo, para conseguirem os seus fins, e com os poderes discricionários que tinham sido dotados, esses ditadores nomeados, ou chefes militares, acabam por serem eles a pagarem às próprias tropas em numerário, ou em terras, substituindo-se a Roma, o que acaba por ocasionar uma série de ataques a outros oligarcas.

 É assim, que na ditadura de Sila, se vai assistir a um período de redistribuição massiva de propriedades e de riqueza dentro da oligarquia romana, com o consequente aumento de assimetrias como jamais se vira.

 

As famosas “proscrições” eram mesmo isso: proscreviam a existência de outros oligarcas, redistribuindo as suas riquezas e propriedades. Era o roubo aos “amigos” que não se conseguiam defender.

Antes de atravessar o rio Rubicão com as suas legiões, César assegurou-se da lealdade das suas tropas. A cada um dos seus veteranos, César deu perto de 50.000 dólares, para o acompanharem na sua tomada de Roma.

A partir daí, embora se continuasse a falar na defesa do império e da sua glória, as legiões lutavam pelo seu pagamento, pela promessa de despojos, e pela promessa de terras nas colónias.

 

O caso de Roma revela os limites da tentativa de autorregulação entre os oligarcas por forma a, coletivamente, conseguirem controlar as tentações individuais ou de fação, que levassem à predação material vinda lateralmente dos seus pares.

 

 

 

Os Estados Unidos

 

Em 2005, o Citigroup Global Markets Inc., enviou uma “Industry Note” aos seus clientes mais ricos de vários países, sobre as ameaças com que as oligarquias tinham de se defrontar, onde se podia ler:

 

As sociedades organizadas têm duas formas para expropriar a riqueza […], pela revogação dos direitos de propriedade ou através do sistema de impostos”. As boas notícias são que “nos mercados de capital desenvolvidos, os governos aprenderam as lições das certezas das regulamentações e da santidade dos direitos de propriedade.” Os estados têm ainda a possibilidade de revogarem os direitos de propriedade. Contudo, esse passo é “excecional e geralmente contraproducente”, e, segundo os analistas do Citigroup, nas atuais condições dos países de capitalismo avançado, não fará qualquer sentido, até porque “o maior meio de expropriação é feito através do sistema de impostos”.

 

Reconheciam ainda que a posição das oligarquias poderia também ser ameaçada pela alteração das leis sobre o trabalho, se se lhe viesse a conferir uma maior fatia dos excedentes da economia:

 

Há uma terceira forma para alterar o estado das coisas, não necessariamente pela expropriação, mas pela desaceleração da criação do ratio da riqueza ou da acumulação pelos ricos – através de uma redução da percentagem do lucro relativamente ao PIB. Isto poderá ser feito através da alteração das regras que afetam o equilíbrio entre o trabalho e o capital. Exemplos clássicos disto serão a regulamentação dos mercados de trabalho através dos salários mínimos, a regulamentação do número das horas de trabalho, a decisão sobre quem pode ou não trabalhar, etc., ou regulamentando quais as mercadorias e serviços que podem ser importados e donde (protecionismo).”

 

Contudo, como muito bem explicava a nota do Citigroup, a linha principal de defesa dos interesses materiais dos oligarcas neste tipo de oligarquia, vai principalmente incidir no controle e na luta contra o sistema de impostos.

Fazem-no recorrendo à contratação de um exército de profissionais – advogados, economistas, contabilistas, lobistas, agências de gestão de fortunas – todos com conhecimentos especializados do sistema de impostos e demais regulamentações pertinentes, que os aconselham sobre como esconder e fugir aos impostos “devidos”.

Fazem-no ainda através do “controle” de um sistema de impostos que conseguem manter suficientemente poroso, devido à sua complexidade e incerteza. Por exemplo, em 1913 o número de páginas do Standard Federal Tax Reporter da CCH (Commerce Clearing House) que regulamentava o sistema de impostos era de 400, em 2010 tinha já 71.684 páginas!

O sistema é tão complexo que ninguém se atreve a dizer que o compreende na sua totalidade. O presidente Obama (2009) descrevia-o como um labirinto, “um sistema de impostos esburacado, escrito por lobistas com boas ligações, em nome de interesses bem instalados”.

 

É bom notar que nem todas as pessoas ricas podem ser consideradas como sendo oligarcas. Ser oligarca, não significa necessariamente o mesmo que ser capitalista, dono de uma empresa ou CEO. Oligarcas, são só os que são suficientemente ricos para poderem utilizar o seu dinheiro por forma a influenciarem o poder do estado na defesa da sua riqueza e rendimento.

 

Utilizando o seu exército de agentes pagos e não pagos – profissionais de defesa de rendimentos, comunicação social, demonstrações, milícias -, os oligarcas emitem diretivas que deverão serem seguidas por todos esses atores.

A influência política ficará, então, a partir daí, a cargo desses agentes pagos, retirando-se pessoalmente os oligarcas do processo. Isto para que no caso de virem a ser apontados, citados ou auditados, não poderem ser acusados de incumprimento ou interpretação errónea da legislação, contrariamente ao que acontecerá às firmas e aos agentes.

Só nos EUA, existiam em 2004, mais de 2500 grandes firmas de advogados que se ocupavam da “preservação da riqueza”, da “gestão da riqueza”, do “planeamento da riqueza”, que incentivavam e aplicavam esquemas de encobrimento e evasão fiscal (“The Global Wealth Management Industry”, editado pelo Wealth Resource Center).

Os oligarcas estão assim, verdadeiramente equipados para lutarem durante anos, negociando compromissos e pagamentos. Excecionalmente irão a tribunal, rarissimamente serão condenados ou serão presos.

 

Em 1894, o Partido Democrata e Partido Populista, após grande mobilização dos cidadãos pobres relativamente aos excessivos impostos sobre o consumo que pagavam, propuseram pela primeira vez, um imposto sobre os rendimentos (IRS) de 1/10 dos 1% mais ricos. As críticas foram tantas (“um imposto sobre uma pessoa só por ser rica, não é democracia, é comunismo”, “é uma vergonha ver os bem-sucedidos serem vítimas legais dos que não têm sucesso”, “é uma expropriação dos mais ricos, só porque são poucos comparados aos muitos pobres”), que só em 1913 o conseguiram ver aprovado.

 

A segunda metade do século XX assistiu a uma explosão de novos instrumentos e técnicas visando salvaguardar os oligarcas do pagamento do imposto. Entre eles, a utilização de “paraísos fiscais” que proliferaram após 1970.

Num estudo de 2005, a Tax Justice Network (www.taxjustice.net) estima que 60 por cento de todas as trocas comerciais globais são feitas através de paraísos fiscais (off-shore), o que permitiu a evasão de 400 biliões de dólares por ano de impostos devidos. O FMI estima, num estudo de 2009 que apontam como conservador, que existem 18 triliões de dólares de rendimentos colocados em paraísos fiscais.

 

O termo off-shore cria-nos a impressão de se tratar de um local distante fora (off) das nossas costas (shore), e que por isso a maior parte dos países se encontra impossibilitada de perseguir oligarcas e corporações, segundo dizem devido a um problema de soberania internacional.

Nada mais errado. John Christensen diz-nos em “Follow the Money: How Tax Havens Facilitate Dirty Money Flows  and Distort Global Markets” (“Siga o dinheiro: como os paraísos fiscais facilitam o fluxo do dinheiro sujo e distorcem os mercados globais”):

 

Por exemplo, na economia britânica, a grande maioria das transações para paraísos fiscais são controladas pela City de Londres (o distrito financeiro de Londres), apesar de muitos dos intermediários financeiros da City operarem em centros localizados em territórios ultramarinos do Reino Unido e em dependências da Coroa. Esses centros são tangíveis, têm bancos funcionais, escritórios de advogados, empresas financeiras, mas na prática não funcionam autonomamente das economias principais. Eles servem para que a City consiga garantir a alguns dos seus depositantes impostos perto do zero e segredo sobre os seus proprietários.”

 

Dadas estas relações político-económicas tão estreitas, é de facto estranho que países como os EUA e GB não tomem medidas mais duras para controlar o problema. Os seus próprios políticos poderiam, pelo menos, incluir nas suas intervenções o apelidar esses oligarcas de antipatriotas, ou chamar a atenção para as ameaças à segurança financeira nacional.

E não é certamente por não terem meios para bloquear tais transações, bastando lembrarmo-nos do bloqueio imposto a Cuba, segundo o qual qualquer cidadão americano que visitasse ou negociasse com Cuba só o poderia fazer mediante autorização especial.

 

Em vez disso assiste-se antes ao discurso da “legalidade” e “legitimidade” dessas fugas para os paraísos fiscais, considerando-se até a sua denúncia como uma invasão à privacidade pessoal e empresarial.

Aos paraísos fiscais chamam-lhes até de “entrepostos de liberdade” por servirem para os oligarcas guardarem as suas poupanças de impostos que lhes estariam a ser “indevidamente” cobrados, não só por serem excessivos como também por apenas serem especialmente dirigidos aos super-ricos. Veem-se como perseguidos, o que, convenhamos, não é democrático.

 

Em vez disso assiste-se com impunidade ao desenvolver de todo um marketing agressivo de firmas dirigidas aos muito ricos oligarcas para os levarem a evadir o fisco. Exemplo notório é o da KPMG, que tem centros de telemarketing com pessoal especializado para contactarem milhares de corporações e indivíduos (clientes-alvo com o mínimo 20 milhões de dólares de rendimento passível de pagamento de impostos), com a finalidade de lhes apresentarem produtos apropriados às suas evasões fiscais.

Tudo isto feito sempre dentro do maior secretismo, complexidade, e compartimentando a informação, para que assim os especialistas de aconselhamento (advogados, economistas, gestores de produto, contabilistas, etc.) possam sempre legalmente invocarem que não sabiam que a totalidade da transação era fraudulenta.

 

Em 2003, esta indústria montada para a evasão fiscal vai ser verbalmente criticada pelo Senado dos EUA, só que este criticismo não percebe (porque será?) que essa indústria só existe porque os oligarcas lhe fornecem os meios para se manter. É assim, que das trinta e cinco más práticas encontradas e das vinte e sete recomendações incluídas nos relatórios do Senado (2003, 2005, 2006) sobre a KPMG, nenhuma delas contempla a culpabilidade ou atividade criminosa dos oligarcas.

Em vez de sugerirem novas medidas para se proceder ao acompanhamento dos oligarcas e do seu dinheiro, ou proporem novas penas de prisão mais severas, o foco foi dirigido para a KPMG e outras empresas similares, que acabaram por serem condenadas ao pagamento de 456 milhões de dólares pelos quatro paraísos fiscais que disponibilizaram para 350 clientes.

Julgava ser entendimento comum que, quando um assassino fosse contratado para matar uma pessoa, quem o contratasse fosse igualmente culpado, quer o tivesse ativamente procurado, quer por acaso o assassino lhe tivesse aparecido a dizer “Ouvi dizer que queria que uma pessoa fosse morta”. Bem sei: entendimento comum, de gente comum, para gente comum.

 

As máscaras com que se dotam

 

O projeto político central comum a todos os oligarcas é o da defesa da sua riqueza e património. E, são essas concentrações de riquezas que os expõem a um certo número de ameaças. A natureza dessas ameaças e o modo como os oligarcas respondem a essas ameaças, é que irão definir  os vários tipos de oligarquias ao longo da história.

Elas podem surgir vindas de baixo, pelos mais pobres, vindas lateralmente por outros oligarcas, ou vindas por cima, por um estado ou por um ditador. Os oligarcas podem responder a estas ameaças diretamente ou indiretamente, armados ou desarmados, agindo individualmente ou coletivamente. Podem também governar diretamente para defenderem as suas propriedades, ou deixarem essa função ser desempenhada externamente através de um sultão governante ou por um estado impessoal armado.

 

Podemos, genericamente, considerar vários tipos de oligarquias:

As oligarquias dos senhores da guerra (África, Europa Medieval, China no início do século XX, Somália, Serra Leoa, Libéria entre 1980 e1990) em que a fragmentação entre os oligarcas é máxima, cada um querendo ser o senhor à vez.

 As oligarquias das normas e formas de conduta (Atenas, Roma, Veneza, Génova, Siena, Mafia) em que os oligarcas governam coletivamente através de instituições caracterizadas por normas ou códigos de conduta a fim de imporem pessoalmente a coerção necessária, e em que os oligarcas cedem a maior parte do seu poder a um coletivo de oligarcas.

 As oligarquias sultanistas (Indonésia com Suharto, Filipinas com Marcos) onde o monopólio dos meios de coerção se encontra nas mãos de um indivíduo que em representação dos oligarcas vai impor a coerção necessária.

 E as oligarquias civis (EUA, Europa, Índia, Singapura) onde existe uma coletividade institucionalizada de agentes que governam segundo uma lei que se aplica a todos.

 

Estas oligarquias civis distinguem-se das outras formas de oligarquia por quatro ordens de razões:

 - Os oligarcas não estão armados. O mecanismo de coerção para a defesa das suas fortunas é providenciado pelas forças armadas do estado.

- Nenhum oligarca governa. Se estiver no governo, nunca lá está como oligarca ou a governar para os oligarcas.

- A defesa da propriedade dos oligarcas é feita impessoalmente pelo estado, através de coerção por instituições burocráticas. Os oligarcas “submetem-se” a sistemas de lei impessoais que os dominam, em vez de serem eles a dominarem (ou a serem) a lei. Esta transformação, vai mudar o caráter da posse sobre a propriedade: em vez de ser uma reclamação exigida pelos oligarcas, passa a ser um direito garantido pelo estado.

Ou seja, os oligarcas submetem-se às leis e em troca os estados garantem-lhes os direitos de propriedade. Isto vai dar origem ao aparecimento de um aparelho de estado pesado que conduz a novas ameaças para os oligarcas, na forma de impostos e da redistribuição dos rendimentos.

- Nas oligarquias civis em que a propriedade e as fortunas estão seguras, os oligarcas vão concentrar grande parte da sua atenção na defesa dos seus rendimentos.

 

As oligarquias civis são as formas que melhor convivem com uma participação democrática. Contudo, quando os estados falham na defesa dos direitos de propriedade, podem ocorrer reversões para oligarquias armadas ou para a governação direta pelos oligarcas, como temos repetidamente visto.

 

A democracia é apenas uma das formas da política que os oligarcas utilizam para a defesa da sua riqueza. Por isso, vemos na Grécia Antiga e Roma, oligarcas parcialmente desarmados governarem coletivamente praticamente sem sufrágio, e as Filipinas atuais governadas coletivamente com sufrágio universal. Vemos oligarcas totalmente desarmados na Indonésia, governados sultanescamente até 1998, e a partir daí por uma democracia com sufrágio universal, mas em que o sistema legal é distorcido e corrompido pelo dinheiro. Vemos os oligarcas nos EUA e em Singapura totalmente desarmados, que não governam, e têm garantias seguras sobre as suas propriedades, dadas por um sistema impessoal de leis. Contudo, os EUA são uma democracia eleitoral com sufrágio universal, o que não acontece em Singapura.

 

As oligarquias podem coexistir com a democracia.  Podemos ter uma democracia, especialmente se tal só significar implantar o método democrático, e continuar a viver numa oligarquia. Ou seja, não é por se adotarem formas de participação livres e democráticas que, automaticamente, as oligarquias acabam.

A única forma para acabar com uma oligarquia é fazer com que a fonte de poder dos oligarcas, a enorme concentração de riqueza, seja dispersa. Isso já foi feito algumas vezes ao longo da história quer por guerras, conquistas ou revoluções. O que nunca se conseguiu foi fazê-lo por decisão democrática.

 

Isto porque o principal problema não consiste tanto na resistência à dispersão do poder material dos oligarcas, da concentração da riqueza, mas antes no seu enorme poder social e político acumulado, que tem feito com que ideologicamente, ditaduras, democracias, monarquias, sociedades camponesas, sociedades pós-industriais, vejam a redistribuição radical da riqueza como uma proposta incorreta ou injusta.

E tal acontece, apesar de se saber que todas as teorias, ideologias e regras instituídas, como as da “conformidade com a Natureza” e da “confiança”, terem apenas servido para garantirem os direitos de propriedade, que são sempre baseados na força do poder.

 

Como notava Aristóteles, a democracia e a oligarquia podem fundir-se desde que os muitos pobres não ameacem os poucos ricos através de instituições representativas, e os poucos ricos não concentrem riqueza ao ponto dos muito pobres se tornarem politicamente explosivos.

 

 

 

 

Adenda: sobre “paraísos fiscais” aconselho a leitura do excelente relatório interativo da Tax Justice Network de 2018 sobre o “Financial Secrecy Index” (Índice de Secretismo Financeiro) relativo a 112 jurisdições com leis e sistemas que providenciam a prevalência de secretismo financeiro e legal

(https://www.financialsecrecyindex.com/introduction/fsi-2018-results).  

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

(153) "Mas fazemos amor de relógio de pulso"

Tempo estimado de leitura: 7 min.

 

 

É difícil provar que o sucesso das hipóteses de Copérnico tivesse feito abalar a crença dos homens em Deus, só porque a Terra deixasse de ser considerada como o centro do universo.

 

A partir de Einstein, o universo passou de novo a ser considerado curvo e finito, não só sobre o ponto de vista espacial, mas também sobre o ponto de vista temporal, calculando-se a sua duração em quinhentos mil milhões de anos.

 

” O homem nada sabe, porque o homem não é nada”, Montaigne.

 

A subjetividade, o critério mais sólido da verdade.

 

 

 

 

Das suas duas idas à Terra Santa em 1480 e 1483, o frade dominicano Felix Faber de Ulm, deixou-nos alguns conselhos práticos sobre o comportamento privado a ter durante as viagens:

 

 

“Como diz o poeta: merda que está presente é uma carga insuportável. Algumas palavras sobre a forma de urinar e de cagar num navio.

Cada peregrino tem perto de si, no seu beliche, um urinol – recipiente estreito de terracota – no qual urina e vomita. Mas como os lugares são apertados para a massa de pessoas que contém, e além disso escuros, havendo muitas idas e vindas, é raro que estes vasos não se vertam antes do amanhecer. Com efeito, regularmente, levado por uma premente necessidade que o obriga a levantar-se, um desajeitado, ao passar, vira cinco ou seis urinóis, espalhando um cheiro insuportável.

 

De manhã, quando os peregrinos se levantam e o ventre lhes pede misericórdia, sobem à coberta e dirigem-se para a proa, onde, de um lado e outro do talha-mar, estão organizados os locais para as necessidades.

Por vezes, à frente destes lugares forma-se uma fila de treze pessoas ou mais que esperam a sua vez, e não é a vergonha, mas a irritação que se exprime quando alguém se demora demasiado. Eu comparava naturalmente esta espera às das pessoas que se confessam na Quaresma, quando de pé se irritam com as confissões intermináveis e esperam de mau humor a sua vez.

 

De noite, aproximarmo-nos desses locais é uma aventura difícil, devido à quantidade de pessoas deitadas e a dormir, de uma ponta à outra da galera. Quem lé quiser ir tem de passar por cima de mais de quarenta pessoas, e a cada passo tem de encaixar as pernas por cima de alguém; em cada passo se arrisca a dar um pontapé a um passageiro ou a escorregar e cair em cima de algum adormecido. Se ao passar toca em alguém é logo coberto de injúrias.

Os que não têm medo nem vertigens podem subir à proa, trepando pela beira do navio e progredir, de cordame em cordame, coisa que fiz muitas vezes, apesar do risco e do perigo.

 

Mas é quando há mau tempo que as dificuldades se tornam consideráveis, quando as latrinas são constantemente cobertas pelos vagalhões e os remos se metem por cima dos bancos. Ir à sentina em plena tempestade, é arriscar-se a ficar completamente molhado, e assim muitos passageiros deixam as roupas e vão completamente nus.

Numa situação destas, o pudor sofre muito, o que dá ainda maior emoção às partes vergonhosas. Os que não querem desta forma dar nas vistas vão abaixar-se noutros sítios, que sujam, o que origina clamores, discussões, e desconsidera pessoas honradas.

Há também os que enchem os seus recipientes junto aos beliches, o que é infecto, envenena os vizinhos, e só se pode tolerar aos doentes, a quem não é possível criticar: algumas palavras não seriam suficientes para contar o que tive de suportar a um doente de um leito vizinho.

 

O peregrino deve ter cuidado em não se reter, levado por um falso pudor, nem tão pouco em descontrair o ventre: as duas atitudes são prejudiciais para o viajante embarcado. No mar é fácil ter prisão de ventre.

Darei ao peregrino um bom conselho de higiene, é o de ir duas ou três vezes aos lugares, mesmo se isso não for exigido por uma necessidade natural, a fim de, com esforços discretos, contribuir para desencadear a evacuação; e que não desespere se não acontecer nada à terceira ou quarta vez.

Que aí vá muitas vezes, desfaça o cinto, desfaça todos os nós das roupas, no peito e no ventre, e conseguirá a evacuação mesmo que os intestinos tenham pedras.

Este conselho foi-me dado por um velho marinheiro, uma vez em que estive com uma terrível prisão de ventre por vários dias; e tomar pílulas ou supositórios no mar não é um meio seguro, porque purgar-se em excesso pode ter inconvenientes tão graves como a prisão de ventre.”

 

 

Por volta de 1370, um pintor de Siena, Mino, surpreendeu a esposa a cometer adultério. Desse episódio, aqui fica a cena tal como aparece descrita por Franco Sacchetti (1332 – 1400) nas Il Trecentonovelle:

 

 

“ELE. – Maldita puta, tratas-me por bêbado, mas és tu quem escondes o teu companheiro por detrás dos meus crucifixos [ele é pintor de crucifixos].

ELA. – É para mim que falas?

ELE. - Não, é para a merda do burro.

ELA. – Não mereces melhor.

ELE. – Estupor, tu não tens vergonha! Não sei o que me impede de te atirar com este tição a um sítio que eu cá sei.

ELA. – Não tentes … pela cruz do Senhor. Se me tocas vais pagar bem caro.

ELE. – Porca ignóbil e o teu companheiro.

ELA. – […]. Malditos sejam todos os que levam uma rapariga a casar com um pintor, tão doidos e tarados vocês são todos, sempre a embebedarem-se, bando de desavergonhados!”

 

 

Estes dois textos de há quase seis séculos, poderiam ter sido escritos hoje por um cronista de viagens e por um autor teatral da boémia intelectual. O que nos pode levar a concluir que, nos seus aspetos básicos, os homens são os mesmos.

 

 

Sabe-se hoje que a partir de Einstein, o universo passou de novo a ser considerado curvo e finito, não só sobre o ponto de vista espacial, mas também sobre o ponto de vista temporal, calculando-se a sua duração em quinhentos mil milhões de anos!

E olhando em volta, ninguém se parece importar com isso: não há comoção, nem desvario (o mais parecido foi o que aconteceu na passagem para o ano 2000, para se assegurar que os computadores entravam no milénio…). Será que as pessoas mudaram?

 

Ou será que o estado de dúvida, descrença e desespero que tem sido atribuído às pessoas no Renascimento e pós-Renascimento tem sido exagerado?

 

Não há dúvida que os avanços científicos dessa época devem ter tido um grande impacto, abrindo novos caminhos e propiciando novos interesses. Já é, contudo, mais difícil de provar que o sucesso das hipóteses de Copérnico tivesse feito abalar a crença dos homens em Deus, só porque a terra não pudesse ser considerada como o centro do universo.

 

 

O que o desenvolvimento da astronomia e da mecânica originaram foi a promoção do crescimento da visão mecânica do mundo, com reflexos no campo da filosofia.

 

O próprio Descartes, que considerava que todo o mundo material e suas alterações poderiam ser explicados pela extensão geométrica e pelo movimento (segundo ele, a quando da criação do mundo, Deus dera-lhe uma certa quantidade de movimento ou energia, que depois se iria transmitindo de corpo em corpo, obedecendo às leis da mecânica; e tratava os animais como sendo máquinas, obedecendo apenas aos princípios mecânicos), nunca duvida da existência de Deus (adiciona duas provas que testemunham a Sua existência) nem da Sua infinidade, reservando para o universo o termo de “indefinibilidade”!

 

 

Se aceitarmos o paradigma de Kuhn, poderemos compreender melhor como se deu a abertura do dito “mundo fechado”, como processo que se foi desenrolando lentamente ao longo de vários séculos até à sua entrada num período de crise que vai durar 150 anos, cinco gerações.

 

Cabe aqui lembrar que este período coincide com as grandes descobertas, que levam os seus aventureiros e viajantes a percorrerem todos os mares e continentes, e com os relatos das suas viagens que vão alterar a conceção da geografia e da etnografia.

Esse espírito da descoberta leva os seus eruditos a vasculharem todos os textos deixados nas bibliotecas monásticas, tudo leem e editam, trazendo de novo à luz os velhos filósofos, de Platão a Plotino, o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo, o pitagorismo, na tentativa de fundarem uma física nova, uma nova astronomia, uma ciência nova. “Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo”.

 

A outra face da moeda trouxe “crítica, abalo, dissolução, destruição e morte das antigas crenças, das antigas conceções que davam ao homem a certeza do saber”.

 

O mundo tornou-se incerto, onde nada é seguro, mas ao mesmo tempo onde tudo é possível. E se tudo é possível, então nada é verdadeiro.

 Montaigne (Michel de, 1533 – 92) concluirá que se nada é seguro, só o erro será certo! Para além da dúvida, instala-se o pessimismo.

 

 As próprias ciências são vãs, incertas: Não se sabe nada, nada se pode conhecer, nem o mundo nem a nós próprios. E faz o balanço:” O homem nada sabe, porque o homem não é nada. Ufff!

 

 

 

De certa maneira, pode-se dizer que Montaigne foi o verdadeiro mestre de Descartes, sendo também o seu adversário. O combate interrompido de Montaigne contra as superstições, contra as opiniões feitas, contra a falsa racionalidade escolástica, é levado até ao fim por Descartes, transformando a dúvida em método (dúvida metódica) como poderoso instrumento de crítica que lhe permitiria discernir entre o verdadeiro e o falso.

 

 

Em Descartes vamos poder encontrar a charneira a partir da qual se define o pensamento moderno. Com o seu “penso, logo existo” vai aparecer um novo critério da verdade como sendo aquilo que resiste à dúvida, aquilo de que um ser humano está absolutamente seguro: a certeza passa a ser um estado da nossa consciência subjetiva. A subjetividade como o critério mais sólido da verdade.

 

Por outro lado, ao colocar radicalmente em dúvida todas as ideias feitas, rejeitando conceitos e crenças vindas do passado, quer sejam as herdadas da família ou transmitidas pelas autoridades, quer sejam a dos professores ou da Igreja, fazendo tábua rasa do passado, Descartes está a definir o conceito moderno de revolução.

 

Era intenção expressa de Descartes fazer tábua rasa de tudo o que se tinha feito até então, de começar de novo, de filosofar “como se ninguém o tivesse ainda feito”, e, de construir, pela primeira vez, e de uma vez por todas, o verdadeiro sistema das ciências.

 

Mais: ao indicar que era preciso rejeitar todos os “argumentos de autoridade”, está a definir o conceito de liberdade de pensamento e o de espírito crítico. A partir daí ninguém mais era obrigado a aceitar uma opinião só porque ela fosse oriunda de uma autoridade.

 

Não podemos esquecer que tudo isto se passou pouco tempo depois do processo contra Galileu, numa época em que era a Igreja que decretava como a Terra se movia ou não.

 

No último parágrafo do livro citado de Alexandre Koyré pode ler-se:

 

 

“O universo infinito da nova cosmologia, infinito na duração e na extensão, no qual a matéria eterna, de acordo com leis eternas e necessárias, se move sem fim e sem objetivo no espaço eterno, havia herdado todos os atributos ontológicos da divindade. Mas somente estes: quanto aos outros, Deus, ao partir do mundo, levou-os com Ele”.

 

 

Sabendo os homens do mundo moderno que são mortais e que o cosmos ou a divindade já não estão presentes, ou seja, que não existe qualquer princípio exterior e superior à humanidade, então o problema da salvação não se põe. Provavelmente por isso é que para os contemporâneos lhes é indiferente que o universo seja fechado e limitado na duração, contrariamente ao que se verificou com os homens renascentistas.

 

 

 

Em apenas duas frases, Rui Knopfli, nas suas Mangas Verdes com Sal, tudo isto sintetiza no seu curtíssimo poema intitulado “Progresso”:

 

 

“Estamos nus como os gregos na Acrópole

e o sol que nos mira também os fitou.

Mas fazemos amor de relógio de pulso.”

 

 

 

 

 

 

Nota: este artigo é a continuação do blog 152, “A destruição do mundo finito” (http://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/152-a-destruicao-do-mundo-finito-40466).

 

 

 

 

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