O conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo, e nem sempre progride em linha reta, sendo que a sua progressão se faz antes pela alternância entre fases “normais” e fases “revolucionárias”, Thomas Kuhn (1962).
Sempre que é assegurado o domínio de uma escola, em que a comunidade científica se estrutura e direciona na adoção de uma mesma matriz disciplinar, esse acontecimento é chamado de “paradigma”.
A ciência é obra de comunidades científicas, e é essa comunidade que define não só o meio de solucionar os problemas, como também os problemas que convém resolver.
A “ciência normal” pode não ser guiada por um sistema coerente de regras.
“Paradigma” é hoje um conceito, uma palavra que fica bem em qualquer discurso e situação, e dá estatuto. Ele é o “paradigma em si”, “o paradigma do futebol”, “o paradigma da política portuguesa”, “o paradigma dos incêndios”, etc.
Tal entendimento deriva de uma definição de paradigma que é de certo modo ambígua, pelo que não é de estranhar que tenha extravasado para o campo social, acabando por se poder aplicar a quase tudo.
Mas, a correta definição de “Paradigma”, como “modelo ou teorias das teorias que sustentam uma configuração científica”, diz apenas respeito aos estudos sobre o progresso das ciências.
Até há bem pouco tempo era convencimento generalizado que o progresso da ciência se devia, ou ao aparecimento de novos conceitos que se acumulavam aos conceitos existentes (a ciência progrediria descobrindo cada vez mais coisas sobre como o mundo funciona, em que nada desses conhecimentos se perdia, acumulando-se uns sobre os outros), ou a uma maior aproximação das teorias à verdade, ou ainda, à correção de erros passados.
Em 1962, Thomas S. Kuhn (1922-1996), professor emérito de linguística e filosofia no M.I.T., publica The Structure of Scientific Revolutions (A Estrutura das Revoluções Científicas), onde nos vem dizer que, contrariamente ao que era aceite, o conhecimento científico não crescia de modo cumulativo e contínuo, e que nem sempre progredia em linha reta, sendo que a sua progressão se fazia antes pela alternância entre fases “normais” e fases “revolucionárias” (na medida em que se dava o abandono de toda uma estrutura teórica, que era substituída por outra).
Tudo começou quando em 1947, Kuhn foi convidado para lecionar, num curso de letras na universidade de Harvard, uma disciplina sobre o que era a Ciência. Ao estudar a Física de Aristóteles verificou com espanto, quão errada ela estava, e contudo, embora os conceitos básicos fossem totalmente diferentes dos de Newton, acabou por concluir que a física aristotélica até tinha sentido. Isso leva-o a publicar em 1957, The Copernican Revolution, onde vai tentar transformar o sistema geocêntrico de Aristóteles no sistema heliocêntrico moderno.
Foi com base na aprendizagem das mudanças de estruturas contidas nesse livro, que vai depois escrever The Structure of Scientific Revolutions, que se veio a tornar uma obra fundamental para a compreensão da história da ciência, e não só.
Para Kuhn, o progresso científico tem essencialmente um carácter revolucionário, partindo do princípio que uma revolução implica o abandono de uma estrutura teórica e a sua substituição por outra que lhe é incompatível.
O progresso da ciência obedeceria ao seguinte esquema:
Pré-ciência --- ciência normal --- crise --- revolução --- nova ciência normal --- nova crise
A “pré-ciência” é toda aquela fase caracterizada pelo desacordo constante e pela discussão dos fundamentos das várias teorias existentes, uma atividade dispersa e desorganizada.
Eventualmente, esta fase pode vir a estruturar-se, e levar uma comunidade científica a aderir, adotar, uma única visão. Sempre que uma comunidade científica adotar, compartilhar, um conjunto de suposições teóricas gerais, determinada conceção metodológica, leis e técnicas para a aplicação dessas leis, tal visão do mundo, ainda que geral, constituirá um paradigma.
É, pois, a este acontecimento, em que é assegurado o domínio de uma escola, em que a comunidade científica se estrutura e direciona na adoção de uma mesma matriz disciplinar, que Kuhn vai chamar “paradigma”.
Todos os que se encontrarem a trabalhar dentro de um paradigma, estão a fazer “ciência normal”. Na ciência normal, os cientistas irão articular e desenvolver o paradigma, na tentativa de acomodarem todos os aspetos relevantes dos resultados das suas experiências com o mundo real.
Inevitavelmente encontrarão dificuldades, quer elas sejam provenientes de falsificações ou de anomalias, acontecimentos que não se enquadram no paradigma. A partir da altura em que essas dificuldades aumentam e escapam cada vez mais ao paradigma, entra-se num estado de “crise”.
Esta fase de “crise” só será resolvida quando aparecer um novo paradigma que vá permitir explicar todas as dificuldades insuperáveis do anterior paradigma e que atraia a concordância de cada vez maior número de cientistas, até que finalmente o paradigma original venha a ser abandonado. Estamos então perante a fase de “revolução”, que acabará por levar ao aparecimento de uma “nova ciência normal”.
Este novo paradigma formado irá servir de guia para a atividade científica normal até que ela venha esbarrar com dificuldades sérias, que virão originar uma nova crise seguida de nova revolução.
Na definição do paradigma, para além das leis fundamentais, das suposições teóricas, das metodologias para aplicar essas leis, bem como das técnicas e instrumentos necessários, são necessários princípios metafísicos muito gerais, que conduzam como que a uma conversão intelectual que nos faça ver o mundo de outra forma.
A mudança de fidelização que leva um cientista a mudar de um paradigma para outro (que na altura apareceria como alternativa incompatível), acontece quase como se tratasse de uma “conversão religiosa”, e isto por, segundo Kuhn, não existir nenhum argumento lógico que demonstre a superioridade de um paradigma sobre outro. O que vai deixar a opção de escolha do paradigma entregue à autoridade da comunidade científica. Daí, a importância do papel que a comunidade científica desempenha.
Daqui se percebe que o foco central do pensamento de Kuhn incida especialmente sobre a fase do desenvolvimento da ciência “normal”, onde as investigações científicas são orientadas e estruturadas por um “paradigma”, isto é, por “uma visão do mundo, que, sendo geral, inclui também, não só a teoria científica dominante, como também princípios filosóficos, uma determinada conceção metodológica, leis e procedimentos técnicos padronizados para resolver problemas”.
Kuhn reconhece que esta sua definição comporta em si dois tipos de conceitos, de paradigmas, um de maior e outro de menor alcance. Vai chamá-los, respetivamente, de “paradigmas exemplares” e “matrizes disciplinares”.
“Paradigmas exemplares” são, por exemplo, o tratado de Copérnico sobre a teoria heliocêntrica do sistema solar, a estrutura heurística de Galileu, a teoria mecânica e da gravitação de Newton, a teoria da eletricidade de Franklin, ou seja, descobertas concretas que definem pelo exemplo o curso de toda a subsequente investigação de uma disciplina científica.
“Matrizes disciplinares” são as matrizes que constituem o quadro teórico, metodológico e avaliativo com as quais os cientistas conduzem as suas pesquisas, ou seja, são aquele conjunto de problemas, métodos, princípios teóricos, conceções metafísicas, conceitos e métodos de avaliação presentes nos paradigmas “exemplares”.
Toda esta construção de Kuhn, gira à volta de um elemento essencial para a constituição da “ciência normal”: a existência de uma “comunidade científica”.
Para ele, a ciência é obra de comunidades científicas, sendo essa comunidade que define não só o meio de solucionar os problemas, como também os problemas que convém resolver.
Mas, ao considerar que uma disciplina científica é definida como uma comunidade particular, unida pela educação (mesmos textos, mesmos métodos de creditação), interação profissional e comunicação (mesmos jornais, mesmas convenções), interesses semelhantes por idênticos problemas, e aceitação, de acordo com uma certa amplitude, das soluções possíveis para os mesmos, Kuhn está a definir em termos sociológicos a “comunidade científica”.
Ao defini-la assim através de características sociológicas e psicológicas, Kuhn está a introduzir um elemento de forte subjetividade num estudo que pretende ser científico.
Além do mais, Kuhn considerava as ciências sociais como “pré-científicas”, na medida em que nenhuma das ciências sociais tinha estabelecido o corpus de conceitos, categorias, relações e métodos, genericamente aceites para formarem um paradigma. No entanto, foi pela observação da história das ciências sociais, que se apercebeu da existência de revoluções efetivas no pensamento humano.
É esta sua perceção que o leva a elaborar a sua tese sobre o progresso das ciências da natureza. E que depois, uma vez estabelecida, vai até ser extrapolada para as ciências sociais. A questão que se põe é a de saber se se pode aplicar esta teoria sobre as revoluções científicas à sociedade.
Kuhn defende a existência de tal paralelismo, fazendo notar que, quando as instituições de uma comunidade política deixam de resolver adequada e atempadamente os problemas que essa sociedade lhes coloca, torna-se natural o aparecimento de revoluções políticas; da mesma forma, quando uma comunidade científica nota que o paradigma existente deixa de funcionar adequadamente na resolução dos problemas, acabará por se produzir uma revolução científica. Em qualquer destes casos, é o sentimento de que algo já não funciona, que conduz à crise, pré-requisito da revolução.
Outra dificuldade que necessita de clarificação: saber como é que o novo paradigma se impõe e é aceite. O próprio Kuhn admite que essa aceitação não é uma questão de lógica, sendo antes como que um “salto de fé”. É então baseado em quê?
Fica-se com a sensação de que o conhecimento científico aparece independente do contexto histórico materialista, quando se sabe que o pensamento científico está fundamentalmente relacionado com as atividades materiais da manipulação da natureza para servir os interesses do homem.
Mas talvez, o grande calcanhar de Aquiles, venha da ambiguidade resultante do conceito de “paradigma” ser usado com dois significados diferentes (“paradigmas exemplares” e “matrizes disciplinares”).
É o que acontece com os “paradigmas exemplares”, em que o paradigma é apenas um exemplo, uma singularidade, que pode ser repetida, e que, no entanto, adquire a capacidade de poder tacitamente modelar o comportamento e a prática dos cientistas, decidindo se um dado problema pode ser considerado científico ou não.
Ou seja, as regras podem derivar de paradigmas, mas os paradigmas podem guiar a investigação mesmo na ausência de regras. O que significa que a “ciência normal” pode não ser guiada por um sistema coerente de regras.
Este calcanhar de Aquiles, esta ambiguidade não resolvida do paradigma, fora já percecionado na filosofia da Grécia Antiga.
Sabia-se que o conhecimento podia ser acedido através da “dedução”, que ia do universal para o particular, e através da “indução”, que ia do particular para o universal. Mas, para Aristóteles, existia ainda um outro conceito que permitia o acesso ao conhecimento: o “Paradigma”, cuja tradução literal seria “exemplo”, e que ia do particular para o particular.
Ou seja, o paradigma seria, não a parte que tinha que ver com o todo, nem o todo que tinha que ver com a parte, mas antes a parte que tinha que ver com a outra parte.
O paradigma não era, assim, nem universal nem particular, nem geral nem individual, era uma singularidade que, ao mostrar-se como tal, originava um novo conceito ontológico que permitia ver “para além” (que era o significado etimológico de “para digma”).
O que levava Aristóteles, a considerar o “exemplo”, o “para além”, o paradigma, como “mais esclarecedor”. E, infelizmente para nós, por aqui se ficou.
Ainda hoje o “exemplo”, o paradigma, tem garantido o seu lugar como função de tornar mais compreensível um conjunto bastante alargado de problemas.
Também Kant se teve de defrontar com esta ambiguidade quando vai tentar definir a doutrina do “exemplo” na Crítica do Julgamento (1790). A exemplaridade do julgamento estético necessitava do acordo de todos os homens, o que podia ser visto como o exemplo de uma regra universal que não podia ser afirmada.
O “exemplo”, é o exemplo de uma regra que não pode ser afirmada. O exemplo, tem que ver com uma lei em falta ou que não pode ser dita, mas que, apesar de tudo, continua a fazer parte do império da lei.
Quando Kuhn pretende que o paradigma possa guiar a investigação mesmo na ausência da existência de regras ou leis, está a aproximar-se do legalismo de Kant, quando este subordina a lógica do exemplo à universalidade da lei.
Kuhn não está interessado na investigação das regras que constituem a ciência normal, mas apenas nos paradigmas que guiam o comportamento dos cientistas. Ou seja, ele não está interessado em saber o que é o paradigma; apenas lhe interessa o seu funcionamento normativo dentro de uma comunidade científica.
O que significa que, desde que Aristóteles considerou o paradigma como “mais esclarecedor”, infelizmente para nós, por aí ficámos.
Basta-nos ver como a sociedade mais desenvolvida do planeta segundo a nova ideologia ganhadora se tem vindo a desenvolver para ficarmos a saber como o futuro será.
A desigualdade de oportunidades está a converter-se em estrutural, os benefícios do crescimento vão parar às mãos de quem já vive desafogadamente. O bem-estar dos jovens depende cada vez mais da renda e da riqueza dos seus antecessores do que dos seus próprios esforços.
O Sonho Americano está rapidamente a transformar-se na Ilusão Americana, uma vez que os EUA apresentam agora a mais baixa taxa de mobilidade social entre os países ricos, Philip Alston.
“Os ricos são diferentes de tu e eu”, Scott Fitzgerald.
Nos últimos tempos tem-se vindo a assistir à realização de várias conferências, e ao aparecimento de inúmeros artigos e ‘plataformas’, que se propõem ‘adivinhar’ como virá a ser a sociedade no futuro, numa tentativa de acalmar as incertezas e o desconforto latentes, face, entre outros, à esperada substituição de um terço dos empregos por autómatos e ao possível desaparecimento de pelo menos mais outro terço daquilo que David Graeber chamou de “empregos de merda” (https://strikemag.org/bullshit-jobs/).
Tudo tentativas para a apresentação da ‘inevitabilidade’ de um certo futuro que dizem vir aí, numa sociedade na qual ‘todos’ seremos pagos para não trabalhar, andar de carrinho elétrico sem motorista e sem eletricidade, ter telemóveis com pelo menos três câmaras fotográficas e mais apps que nos permitem encostar a todos os lados e receber por conta não se sabe bem de quê, mas terá de ser assim. “La vie en rose” século XXI.
Contudo, todas essas construções têm lugar numa sociedade totalmente nova, onde todas as peças feitas encaixam perfeitamente e em que as pessoas correspondem a estereótipos com comportamentos determinados e sem passado. Ou seja, a sociedade atual e a que imediatamente a antecede, encontram-se completamente ausentes. Não contam, por obsoletas. Inexistentes.
E é isto que introduz um erro em todas essas projeções. Com mais ou menos botões, com mais ou menos comandos, com mais ou menos apps, a sociedade das próximas gerações terá de ter sempre em consideração o desenvolvimento tal como ele se tem vindo a verificar ao longo do tempo na sociedade atual.
Não me parece, portanto, que sejam necessários tantos estudos debruçados sobre a invenção do futuro, para conseguirmos antever essa sociedade. Basta-nos ver como a sociedade mais desenvolvida do planeta segundo a nova ideologia ganhadora se tem vindo a desenvolver, ver como ela tem caminhado. Quero com isto dizer que o futuro já começou.
Tentemos então ver o que se tem passado na sociedade norte americana, para sabermos para onde ela aponta.
A condição de “extrema pobreza” é considerada pelas Nações Unidas como sendo um fenómeno multidimensional, pelo que qualquer definição dessa condição tenha de ter sempre em conta os direitos humanos, tais como o acesso aos serviços básicos e à exclusão social.
Não basta uma mera definição baseada somente no rendimento por dia, tal como é feito pelo Banco Mundial, ao fixar em $1,25 o limiar abaixo do qual se considera estar a viver-se em extrema pobreza.
Por isso, as Nações Unidas, com vista a avaliarem as situações de extrema pobreza e do acesso dos cidadãos dos vários países aos direitos humanos, decidiram criar em 1998 o cargo de Relator Especial que, anualmente, submeterá relatórios das visitas efetuadas ao Conselho dos Direitos Humanos e à Assembleia Geral.
Na sua introdução começa por nos dizer que passou “as últimas duas semanas a visitar os EUA a convite do governo, a fim de me inteirar se a persistência de extrema pobreza na América impedia os cidadãos de terem acesso aos direitos humanos […] Agradeço à Administração Trump por ter facilitado a minha visita e pela sua continuada cooperação com o Conselho dos Direitos Humanos das NU.”
“[…] Os Estados Unidos são um dos países mais ricos do mundo, uma das mais poderosas e inovativas nações; mas, nem a sua riqueza nem o seu poderio nem a sua tecnologia têm conseguido focalizarem-se em resolver a situação em que 40 milhões de pessoas continuam a viver na pobreza.”
“[…] Durante as passadas duas semanas vi e ouvi muitas coisas. Encontrei muitas pessoas que dificilmente conseguem sobreviver em Skid Row, Los Angeles; presenciei um polícia de S. Francisco a dizer a um grupo de pessoas sem abrigo para saírem dali sem, contudo, lhes conseguir dizer para onde poderiam ir; ouvi como milhares de pobres são autuados por infraçõesmenores para que tal procedimento conduza a situações de dívidas impagáveis, levando à prisão e a encher os cofres municipais; vi esgotos ao ar livre nos estados em que os governos não consideram ser sua responsabilidade a sanidade; vi pessoas que perderam todos os seus dentes porque os cuidados dentais não fazem parte da maioria dos programas para os muito pobres […] “.
[…] Em conversas que tive nos diversos estados e territórios, foi-me muitas vezes perguntado como é que os EUA se comparavam com outros países. Muito embora essas comparações nem sempre sejam perfeitas, um varrimento de comparações estatísticas talvez nos consiga dar um retrato claro do contraste entre a riqueza, capacidade de inovação e ética do trabalho nos EUA, e os níveis sociais alcançados.
Segundo a grande maioria dos indicadores, os EUA são um dos países mais ricos. Gastam mais com a defesa nacional que a China, Arábia Saudita, Rússia, Reino Unido, Índia, França e Japão, combinados.
Nos EUA, as despesas de saúde por pessoa são o dobro das dos países da OCDE. Contudo, há menos médicos e camas de hospitais por pessoa que na média da OCDE.
A mortalidade infantil nos EUA era, em 2013, a mais alta entre todos os países mais desenvolvidos do mundo.
Comparados com as pessoas que vivem noutras democracias ricas, os americanos viverão menos tempo e com mais doenças, ao mesmo tempo que esse “diferencial de saúde” (health gap) continuará a aumentar relativamente a essas outras democracias ricas.
Os níveis de desigualdade nos EUA são muito maiores que nos países europeus.
As doenças tropicais, incluindo o Zika, são cada vez mais vulgares nos EUA. Estimam-se em 12 milhões os americanos que vivem com uma infeção parasítica não tratada.
Os EUA têm a maior prevalência de obesidade no mundo desenvolvido.
No respeitante ao acesso à água e à sanidade, os EUA ocupam o lugar 36 em todo o mundo.
A América tem o rácio mais alto de encarceramento do mundo, acima do Turquestão, El Salvador, Cuba, Tailândia e Federação Russa, sendo cinco vezes superior à média dos países da OCDE.
O índice de pobreza de jovens é de 25%, quando na OCDE esse índice é de 14%.
O Centro Stanford para a Desigualdade e Pobreza tem uma classificação para os países, baseada nos mercados de trabalho, pobreza, segurança, desigualdade de riqueza e mobilidade económica. Os EUA ocupam a posição 18 entre os melhores 21.
Em termos de desigualdade e pobreza, os EUA ocupam a última posição entre os 35 países da OCDE (https://data.oecd.org/).
Segundo a World Income Inequality Database, os EUA têm o rácio de Gini (medida da desigualdade) mais alto entre todos os países ocidentais.
Os rácios de pobreza de crianças dos EUA são os maiores entre os seis países mais ricos – Canadá, Reino Unido, Irlanda, Suécia e Noruega.
[…]”
Depois aborda a questão da dimensão dos direitos humanos:
“Sucessivas administrações, incluindo a atual, rejeitaram convictamente a ideia que os direitos económicos e os direitos sociais façam parte indissociável dos direitos humanos, apesar de terem sido assim reconhecidos em tratados ratificados pelos EUA […], e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que os EUA insistem que os outros países respeitem.
Mas a negação não elimina a responsabilidade, nem nega as obrigações. Os direitos universais reconhecem o direito à educação, aos cuidados de saúde, à proteção social para quem tenha necessidade, e o direito a um adequado nível de vida. Na prática, os EUA são o único entre os países desenvolvidos que, embora insistindo que os direitos humanos têm uma importância fundamental, não incluem neles o direito a impedir que se morra de fome, ou por falta de cuidados de saúde, ou ainda que se cresça num contexto de total depravação […]”.
E, passa a caracterizar “os pobres”:
“Fiquei espantado com a implantação de preconceitos que não duvidam em afirmar os ricos são pessoas diferentes dos pobres […] Os ricos eram trabalhadores interessados, empreendedores, patriotas, e eram as locomotivas do sucesso económico. Os pobres eram gastadores, perdedores, e sempre com esquemas. Daí que, todo o dinheiro empregue na assistência social seja dinheiro deitado fora.
Também nos foi dito que os pobres que quisessem singrar na América poderiam sempre fazê-lo facilmente, prosseguindo o sonho americano: bastava trabalharem arduamente.
Contudo, a realidade que eu vi, era muito diferente. Muitos dos cidadãos mais ricos não pagavam impostos à mesma taxa que os outros, colocavam grande parte dos seus rendimentos em paraísos fiscais, e utilizavam os seus ganhos em esquemas especulativos em vez de contribuírem para o conjunto da riqueza da comunidade americana.
Quem eram então os pobres? […] Seriam assumidamente os povos de cor, quer americanos africanos ou ‘imigrantes’ hispânicos. O que acontece, é que na realidade há mais 8 milhões de brancos pobres do que pretos pobres.
Do mesmo modo, também pensam que uma grande parte dos dependentes da assistência social vivem à custa dela confortavelmente instalados em sofás. Alguns dos políticos com quem falei, estão totalmente convencidos desta narrativa sobre os pensionistas a viverem nos sofás, a verem televisão e a utilizarem os seus telemóveis de ultima geração. Pergunto-me quantos daqueles políticos terão visitado os locais de pobreza, ou falado com quem neles viva […]
Entre os 40 milhões que vivem na pobreza, os que contactei eram pessoas que nasceram já em ambientes de pobreza, ou que para aí foram lançados por circunstâncias que estavam para além do seu controle, como seja, por deficiências físicas ou mentais, divórcio, doença, velhice, salários que não lhes permitia sobreviver, ou por discriminação no mercado de trabalho.
A face da pobreza na América não é só preta, ou hispânica, mas também branca, asiática, e de muitas outras cores. E não está particularmente confinada a um grupo de idade. A automatização e a robotização já estão a lançar no desemprego muitos trabalhadores de meia idade que julgavam estarem seguros.
Na economia do século XXI, apenas uma pequena percentagem da população se encontra imune à possibilidade de poderem cair na pobreza como resultado de maus acontecimentos sobre os quais não têm controle. O Sonho Americano está rapidamente a transformar-se na Ilusão Americana, uma vez que os EUA apresentam agora a mais baixa taxa de mobilidade social entre os países ricos.”
A extensão da pobreza nos EUA
“Para definir e quantificar a pobreza na América, o Departamento Oficial de Censo (US Census Bureau) usa ´limiares de pobreza’ ou Medidas Oficiais de Pobreza (OPM), atualizadas todos os anos. Em setembro de 2017, mais de um em cada oito americanos viviam na pobreza (40 milhões, ou seja 12,7% da população). E quase metade destes (18,5 milhões) viviam em grande pobreza, com rendimentos familiares abaixo de metade do limiar de pobreza.” […]
Obstáculos à democracia
“[…] A pedra de toque da sociedade americana é a democracia, mas ela tem vindo a ser progressivamente obstaculizada. O princípio de uma pessoa um voto é cada vez mais uma teoria afastada da realidade. Numa democracia, é função do governo facilitar a participação política dos seus cidadãos por forma a garantir que todos os cidadãos possam votar e que os seus votos possam ser contados de igual maneira que todos os outros.
[…] Há regulamentações que impedem as pessoas que tenham dívidas de votar, e em que a distribuição dos votos de certos locais tenham mais peso que outros (gerrymandering); há imposição de obrigatoriedades artificiais e ilegais de identificação; há manipulação nas localizações dos locais para votar; há relocalização de Departamentos de Veículos a Motor (onde se obtém a carta de condução que pode ser usada como identificação) por forma a dificultar para certos grupos a obtenção do documento de identificação; e há uma série de obstáculos colocados que tendem a impedir quem tenha poucos recursos possa chegar aos centros de votação. Como resultado, as pessoas que vivem na pobreza, minorias e outros grupos desfavorecidos são sistematicamente privados do seu direito de votarem. […]
A ênfase ilusória do emprego
As propostas que correntemente estão a serem feitas para diminuir a assistência social, são explicadas pela intenção de acabar com ela pondo as pessoas a trabalharem, partindo da assunção de que existem muitos bons empregos que aguardam para serem preenchidos por indivíduos com baixa escolarização, ou com deficiências físicas, ou mesmo com registo criminal (por serem sem abrigo ou não poderem pagar uma multa de trânsito).
Partem também do princípio de que os empregos que arranjarem lhes garanta viver sem subsídios do estado. Contudo, falando com trabalhadores da Walmart e outras grandes lojas, confirmaram que com o salário que lhes é pago não podem sobreviver sem recorrerem às senhas de refeição (food stamps). Estima-se que o estado despende 6 biliões de dólares com esses programas, o que significa um enorme subsídio dado às empresas.
[…] Em termos de mercado de emprego, a realidade é muito diferente da dos proponentes dos cortes na assistência. Tem havido um progressivo e constante declínio nos rácios de emprego […] os especialistas em pobreza concluíram que:
Devido ao aumento do desemprego, a população pobre dos EUA tem vindo a ter cada vez mais privações, deligando-se da economia, incapaz de conseguir alcançar as necessidades básicas […] 40 por cento da população pobre em 1999 vivia em extrema pobreza… [comparada com 46 por dento da população pobre em 2015] … pelo que, os rácios de extrema pobreza estão também a aumentar, de novo por causa do declínio do emprego e pelo “desligar” das redes de segurança.
Pobreza nas crianças
[…] Há um surpreendente grande número de crianças nos EUA a viverem na pobreza. Em 2016, 18% das crianças – perto de 133 milhões – viviam na pobreza, constituindo as crianças 32,6% de toda a pobreza. A pobreza é maior nos estados do Sul, com 30% para o Mississípi e o Novo México, e 29% para a Luisiana.
Contrariamente ao estereótipo assumido, 31% das crianças pobres são brancas, 24% são pretas, 36% hispânicas [..].
[…] Cerca de 21% dos sem abrigo são crianças. […]
Confiar na criminalização para escamotear o problema
Segundo o Departamento para a Habitação e Desenvolvimento Urbano, existiam em dezembro de 2017, 553.742 pessoas sem abrigo, dos quais 76.500 em New York, 5.200 em Los Angeles, e 6.900 em San Francisco. Estes números são considerados por quase todos os especialistas como muito baixos e não representativos da realidade, porquanto, sabe-se que só em San Francisco eles serão 21.000.
Em muitas cidades, os sem abrigo são efetivamente criminalizados pela situação em que se encontram. Há uma miríade de penalizações que são usadas contra eles, desde a proibição de dormir no chão, sentarem-se em parques públicos, apanhar panelas, urinar em público (em cidades onde quase não existem urinóis públicos).
Regulamentos mais exigentes levam à atribuição de infrações, que rapidamente se transformam em notas de culpa, conduzindo a ordens de busca, encarceramento, ao pagamento de multas impagáveis, e ao estigma de condenação criminal que acabará por não permitir qualquer possibilidade futura de emprego e acesso a habitação própria. E, contudo, as autoridades de cidades como Los Angeles e San Francisco encorajam muitas vezes este círculo vicioso. (…]
Em muitas cidades e municípios o sistema de justiça criminal é efetivamente um sistema para manter os pobres em situação de pobreza ao mesmo tempo que geram rendas para manterem não só o sistema de justiça, mas ainda outros programas. O uso do sistema legal, não para promover justiça, mas para conseguir rendas, como foi bem demonstrado pelo relatório do Departamento de Justiça no caso de Ferguson, é a norma seguida em todo o país. […]
Outra das práticas que afeta especialmente os pobres é a de estabelecer cauções elevadas para os acusados que queiram ser presentes a julgamento. Das 11 milhões de pessoas que são presas anualmente (em certos dias chegam a ser 730.000), cerca de dois terços estão a aguardar julgamento, e como tal, presumidas inocentes. Como as cauções são muito altas, os acusados ricos saem em liberdade, os outros vão para a prisão, com todas as consequências daí resultantes, nomeadamente no respeitante à perca dos empregos, à falha na assistência familiar, à não possibilidade de pagarem a renda da casa, etc. […]
Finalmente, uma menção para a prática comum de suspender a carta de condução por um sem número de delitos que nada têm que ver com o código da estrada ou com o carro. Esta é uma forma perfeita para garantir que os pobres, que vivem em localidades onde a comunidade se recusa investir num sistema de transportes público, não consigam ganhar a sua vida, o que lhes viria a permitir pagarem as suas dívidas. As suas escolhas serão: penúria, ou conduzirem ilegalmente, arriscando uma criminalização ainda maior. […]
Racismo e demonização dos pobres
A demonização dos pobres é feita de várias maneiras. Ela tem sido internalizada por muitos pobres que resistem orgulhosamente a pedirem os benefícios a que têm direito e lutam valentemente para sobreviverem contra tudo.
O racismo é uma dimensão constante e eu lamento que num relatório tão alargado não tenha espaço para me dedicar mais profundamente a este fenómeno. As disparidades sociais, já de si grandes, têm vindo a aumentar, entrincheiradas em muitos preconceitos e em diferentes contextos.
No Alabama, vi várias casas em áreas rurais, rodeadas por poças de dejetos, que fluíam a céu aberto de fossas séticas quebradas ou não existentes. O Departamento de Sanidade não tem ideia de quantas casas existem nessas condições, apesar das graves consequências para a saúde. Nem têm nenhum plano para virem a saber, ou mesmo para se virem a interessar por tal. Como a grande maioria dos brancos vive nas cidades, bem servidas por sistemas de esgotos governamentais, e a grande maioria de pessoas que vive nas áreas rurais com Lowndes County são pretos, o problema não aparece no radar dos políticos. “
No seu relatório, Philip Alston, vai ainda focar os temas relativos aos povos indígenas (índios), da pobreza das mulheres, das políticas sobre droga, a utilização da fraude como cortina de fumo, as privatizações, a sustentabilidade do meio, a reforma dos impostos, a reforma da assistência, as novas tecnologias, o sistema de vistos de entrada, e o recente caso de Puerto Rico.
Mas, se a este relatório, juntarmos alguns dados sobre a forma como a economia se tem comportado, ficaremos com uma ideia mais clara sobre o futuro que aí vem:
Em 1980, a percentagem dos rendimentos detidos por 1% da população era de 10%, em 1989 subiram para 14,5%, em 1999 para 20%, em 2007 para 23,5%. Entre 1993 e 2007, o rendimento entre os 0,01% desses 1%, quase duplicou, passando de 3,4% para 6,2%.
A produtividade entre 1979 e 2009 aumentou 80%. No entanto, no mesmo período, os salários só aumentaram 7%. (Thomas Pickerty e Emmanuel Saez, “Income Inequality in the United States, 1913-1998”; Saez, “Striking It Richer: The Evolution of Top Incomes in the United States (Update Data on Income Inequality Including 2011timates) “).
Também no relatório que a OXFAM vai apresentar em Davos com o título “Premiar o trabalho, não a riqueza”, se diz que em 2017, os 1% dos mais ricos ficou com 82% da riqueza criada. Só 42 pessoas dessas 1% têm tanta riqueza como os 3,7 biliões das pessoas mais pobres. Nos EUA, as três pessoas mais ricas têm uma riqueza igual a metade das pessoas mais pobres.
Desde 2010 que a média anual de riqueza dos bilionários tem vindo a aumentar 13%, ao passo que o salário médio subiu apenas 2%. As consequências têm sido o empobrecimento, a redução da proteção social e o aumento da desconfiança dos cidadãos face às respostas políticas tradicionais.
A desigualdade de oportunidades está a converter-se em estrutural, os benefícios do crescimento vão parar às mãos de quem já vive desafogadamente (só nos primeiros 10 dias de 2018, a riqueza de Jeff Bezos aumentou $6 biliões de dólares). O bem-estar dos jovens depende cada vez mais da renda e da riqueza dos seus antecessores que dos seus próprios esforços.
Mas, se perguntarmos a Mark Littlewood, diretor geral do Instituto dos Negócios Económicos, o que pensa sobre isto, eis o que ele diz:
“A Oxfam está a promover uma corrida para o abismo. Os ricos são já altamente taxados – reduzir a sua riqueza abaixo de certo ponto, não irá conduzir a melhorar a redistribuição, vai antes destruí-la sem benefícios para ninguém. O aumento dos salários mínimos conduzirá também ao desaparecimento de postos de trabalho, afetando especialmente os mais pobres, aqueles que a Oxfam diz querer ajudar” (https://www.theguardian.com/inequality/2018/jan/22/inequality-gap-widens-as-42-people-hold-same-wealth-as-37bn-poorest).
Ou seja, não esperem mudanças, pois a direção está traçada. Este é o futuro.
O ‘pensamento’ que serve de base a este tipo de discurso já há muito foi identificado. Escrevia Scott Fitzgerald:
“Os ricos são diferentes de tu e eu”. A sua riqueza faz deles “cínicos onde nós somos confiáveis”, julgando-se que “são melhores que nós”.
Razões houve para que Cristo tenha sido cruxificado e para que continue a ser cruxificado todos os dias que passam. E não foi, nem é, por desavenças religiosas.
Adenda
Lista ‘confidencial’ de quem este ano está presente em Davos:
“É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus”, Mateus, 19:24.
Há muita riqueza que vem dos “negócios de Buda”, Jacques Gernet.
O que é que terá levado os romanos ricos a começarem a transpor a sua riqueza para o Céu, através de ofertas à Igreja ou aos pobres?
“Os ricos existem para suportarem as obrigações para com o mundo secular, sendo os pobres mantidos pela riqueza das igrejas”, édito de Constantino.
O estudo sobre o aparecimento e crescimento do cristianismo torna-se cada vez mais importante, na medida em que se vão estreitando as saídas para a atual sociedade. É urgente tentarmos saber como se formou aquela organização ultraminoritária dos confins do império romano, como vivia e escapava ao controle existente, como se relacionava com a população e como cresceu de forma a passar, em pouco mais de três séculos, de “um obscuro culto oriental” a religião do império.
A resposta normalizada e vulgarmente aceite e propalada, simples e mais ‘lógica’, é a de que tal aconteceu por ser desejo de Deus. Ponto. O que inibe o aparecimento de quaisquer novas organizações que se proponham lutar contra as injustiças, desigualdades, imoralismo, a não ser que tenham o Seu consentimento.
Nada, contudo, nos impede de tentar conhecer melhor esse tortuoso caminho seguido. Um dos indicadores que pode ser utilizado como prova de afirmação e crescente implantação da Igreja é o do seu enriquecimento, especialmente, ou por isso mesmo, no período instável em que se verificou.
Para o perceber, temos de nos livrar de três ideias-feitas que nos têm sido apresentadas como verdadeiras, e que não correspondem à realidade. A de que o Estado Romano era muito bem organizado, cobrindo todos os aspetos da sociedade; a de que a Igreja Cristã enriqueceu a partir da conversão do imperador Constantino; e a de que as Invasões Bárbaras foram horrorosas e destruíram tudo e todos.
Organização do Estado Romano
O Estado Romano era organizado de forma a assegurar que o Imperador vivesse dos impostos cobrados, deixando que as elites, senadores e outros, vivessem de rendas da terra.
Apenas o Exército e a Justiça Superior eram controlados e dirigidos pelo Estado. Quase todas as outras tarefas, nomeadamente a polícia, a manutenção de estradas, as fortificações, e especialmente a coleta de impostos, eram delegadas para a autoridade dos governos locais e municípios. Ou seja, a organização do Estado do Império Romano, quando comparada com a dos Estados atuais, assentava numa estrutura minimalista.
De acordo com esta delegação e autonomia, o principal dever dos municípios era serem agentes de extorsão em nome do império. A forma como o faziam, era problema deles. Podiam até serem tiranos.
O Império era constituído por cerca de 2.500 cidades estados, que se viam como repúblicas autónomas debaixo da proteção dos exércitos do império romano. Era como se agora a Europa fosse constituída por vários principados como o de Mónaco ou San Marino, com a diferença que enquanto hoje essas sobrevivências têm como finalidade propiciar a fuga de impostos, no império romano era precisamente o oposto: cooperavam obrigatoriamente com o império na recolha de impostos.
Fazer parte do corpo de uma administração local era importante e muito bem visto, pois tal significava que se pertencia àquele grupo que se “preocupava” com que o Imperador e Roma vivessem bem. Conseguir-se entrar para os quadros da ‘Câmara’ de uma cidade, ou seja, ter o dinheiro mínimo para comprar o lugar ou ter pago favores para o obter, era uma carreira desejável.
O Império dependia grandemente dos membros destes conselhos municipais. Contrariamente ao que acontece na sociedade moderna, em que o poder depende grandemente da riqueza, na sociedade romana é a riqueza que depende grandemente do poder.
A economia do Estado Romano
Na sociedade romana, os grandes senhores viviam de rendas das suas propriedades. A “riqueza” encontrava-se essencialmente ligada à terra; no caso dos ricos, essa riqueza era transformada em dinheiro suficiente para alcançarem privilégios e poder.
Cada ano, mais de 60 % da riqueza do império romano era gerada no tempo das colheitas por uma força de trabalho estimada em 80% da população total. A colheita de cereais começava no Médio Oriente durante a primavera e prolongava-se até ao fim do verão no norte da Europa.
Apesar da diferente estrutura fundiária das regiões, sabe-se que a maior fatia da riqueza tinha origem nas rendas pagas pelas inúmeras pequenas quintas: o minifúndio, e não o latifúndio, é que constituía a base dos campos romanos.
A ascensão social
Como se progredia socialmente, como se alcançavam riquezas, poder e privilégios? Por um sistema de Benfeitorias ou Patronagem, “através de favores pedidos ou concedidos, relacionando-se com quem estava no poder”.
Séneca descreve o sistema na sua obra De Beneficiis (que mil anos mais tarde – 1429 -- o “nosso” Infante D. Pedro, irmão do rei D. Duarte, vai em parte seguir no seu Livro da Virtuosa Benfeitoria).
Tomemos como exemplo a carreira de Agostinho, futuro bispo de Hipona e mais tarde santo.
Como jovem professor, foi suportado financeiramente por Romanianus, tendo ficado livre dos deveres que teria para com a cidade de Tagasta por ser filho de um conselheiro da cidade. Passando de ‘patrono’ em ‘patrono’, conseguiu chegar a Roma. Aí, em 384, com o apoio de um grupo sectário de maniqueus, entra ao serviço de Symmachus, senador pagão, que o coloca em Milão para ensinar. Um ano depois, através de “amigos colocados em posições elevadas”, vai procurar obter o cargo de governador.
Este mecanismo de patronagem era extremamente importante, pois era ele que ia permitindo manter a elite da sociedade romana dentro de uma certa estabilidade e sem grandes fraturas.
Constantino e o enriquecimento da Igreja
Com a conversão de Constantino em 312, são garantidos à Igreja privilégios para que ela intercedesse e rezasse pelo império e para que tomasse conta dos pobres.
Podemos ler no seu édito de 329: “Os ricos existem para suportarem as obrigações para com o mundo secular, sendo os pobres mantidos pela riqueza das igrejas”.
Na prática, os privilégios concedidos incluíam pouco mais que a isenção de prestação de certos serviços públicos e a isenção de alguns impostos.
Não foi, pois, essa conversão que fez com que a igreja cristã enriquecesse, nem que obtivesse um estatuto idêntico ou superior que distinguia os mandantes tradicionais da sociedade romana.
Com Constantino, o cristianismo passou a ser uma religião com privilégios, mas tal não significava que fosse socialmente dominante.
A maior parte dos habitantes da classe superior do Império Romano do Ocidente continuavam a seguir as normas da tradição que os levava a exibir a sua generosidade através de doações e construções para com as suas cidades e para com os seus cidadãos, e não para com as igrejas e ainda menos para com os pobres.
Para os romanos ricos, mesmo cristãos, o Cristianismo não introduzia uma tão grande alteração à sua vida: tratava-se apenas de adorar um deus único superior a todos os outros deuses. Além do mais, o seu reino não era deste mundo, pelo que os seus negócios na terra não sofriam qualquer alteração. A diferença foi que a partir de Constantino, Cristo passara a ser também o deus do imperador.
Mudanças a partir do final do século IV
Só após o final do século IV (a partir de 370) os mais ricos começaram a afluir à igreja em grande número, chegando mesmo alguns a virem a ser bispos e escritores cristãos.
Esta entrada da riqueza e dos ricos, provocou problemas e conflitos de doutrina que tiveram de ser acomodados. Grandes foram as controvérsias e atitudes radicais que esta entrada de ricos e das suas riquezas provocaram na altura, bastando lembrar as controvérsias de Prisciliano (380), Jerónimo (380, 390) e de Pelágio (400).
O que é que levou os romanos ricos a começarem a transpor a sua riqueza para o Céu, através de ofertas à Igreja ou aos pobres?
Alarico, o rei dos Visigodos, não atacou diretamente Roma. Tal qual qualquer outro general romano durante as muitas guerras civis, deambulou e estacionou o seu exército nos arredores das grandes cidades de Itália. E foi pedindo dinheiro através de resgates, ameaças e pilhagens. Chegou aos subúrbios de Roma em novembro de 408, e aí permaneceu sugando o Senado e os ricos proprietários. Só em agosto de 410 é que as suas tropas entraram em Roma.
É nesta época de grande instabilidade e pilhagem, com a invasão dos Visigodos e posterior saque a que a Itália estava a ser submetida, incluindo Roma, que levou a que grandes fortunas desaparecessem num instante, que se começaram a verificar casos de transferência de grandes riquezas da aristocracia romana para a Igreja.
Dois casos exemplares permitem-nos entender melhor o que estava em jogo:
O primeiro é o de um jovem casal cristão, Valerius Pinianus e Melaniaa Jovem, que decidiram verem-se livres da sua enorme fortuna, doando-a à Igreja.
Para se ter uma pálida noção sobre o que era a sua fortuna, ouçamos o que Melania escreve (conforme memórias escritas pela própria e recolhidas pelo padre Gérontius em 452, Laurence, Gérontius: La vie latine de sainte Mélanie):
“E mais uma vez arrecadámos uma enorme quantidade de ouro e doámo-la aos pobres e aos santos – 45.000 moedas de ouro. Quando entrei no átrio, pareceu-me que […] toda a casa se tornara resplandecente, como se estivesse em fogo, dado o imenso brilho que emanava da massa das moedas.”
A riqueza do casal era tão grande, que a própria sociedade romana não aceitava a sua decisão. Nunca acontecera que devido a um acidente de transmissão de duas grandes fortunas (terras em Espanha, Itália, Sicília e África) de duas grandes famílias de Roma, a herança fosse parar às mãos de um casal muito jovem que não queria ter herdeiros.
Devido a não serem ainda maiores de idade, a sua intenção de doar a herança à igreja, só podia ter efeito se contasse com a aquiescência dos seus pares e do apoio das autoridades imperiais. Por isto, a sua renúncia transformou-se num assunto público.
Eis o que aconteceu: por volta de 408, Pinianus e Melania resolveram vender as suas propriedades nos subúrbios de Roma. Propriedades dedicadas à agricultura intensiva para o abastecimento do mercado urbano, logo com muita mão de obra.
Resolveram também libertar 8.000 escravos. Acontece que os escravos recusaram a liberdade, e os que ficaram nas propriedades que eram para serem vendidas a outros donos também se revoltaram porque não queriam ser vendidos a outras pessoas.
Os escravos não queriam ser libertados numa época em que teriam de procurar trabalho que seria sempre trabalho forçado. À liberdade preferiam a proteção que lhes garantia comida. Por outro lado, para os proprietários romanos das terras, a quantidade de escravos libertados faria com que as terras ficassem incultas, e que a instabilidade reinasse entre os pequenos proprietários, numa época de invasões bárbaras.
Perante a oposição dos familiares à venda das propriedades, o jovem casal procurou, através de influências, “apelar” para o imperador. E souberam “apelar” bem. Este publicou um édito colocando as propriedades do casal como “posição proscritiva”, pelo que tecnicamente, as propriedades passavam a estarem confiscadas pelo imperador.
Tal significava que as propriedades passavam a poder serem vendidas apenas em ofertas públicas, o que responsabilizava os governadores, finanças e câmaras de cada província, pela sua venda. Só que o dinheiro arrecadado iria para o casal e não para os cofres do imperador.
Teoricamente, as propriedades pertenciam ao “divino” imperador. Mas, também podiam ser vistas como pertencendo a um “Imperador Maior”. Como uma propriedade dada a Cristo para os Seus pobres. O que as tornava invioláveis. Como diziam Pinianus e Melania: interferir com a disposição da riqueza dedicada desta forma aos pobres era “roubar os altares de Deus”.
Embora se dedicassem à “pobreza”, Pinianus e Melania conseguiram assim assegurar as suas propriedades, vivendo o resto das suas vidas recebendo as suas rendas que iam entregando aos monges e aos pobres.
Outro caso também muito célebre foi o da renúncia de Pontius Meropius Paulinus. Após a morte do seu único filho, ele e a sua mulher, Therasia, decidiram levar uma vida de abstinência e vender as suas muitas, enormes e antigas propriedades.
No dia de Natal de 394, Paulinus é ordenado padre em Barcelona (da mesma forma que Agostinho fora ordenado em Hipona três anos antes, por aclamação do povo Cristão, e por inspiração do Espírito Santo). Em 395, atravessam o Mediterrâneo para se fixarem na Campânia (Itália) onde já tinha sido governador, quedando-se em Nola.
Paulinus representa para os cristãos o símbolo das palavras de Jesus para o Jovem Rico que se Lhe dirigiu. Paulinus, seria o grande camelo, que tinha conseguido passar pelo buraco da agulha ao abandonar toda a sua fortuna. Eis como Agostinho o apresenta no primeiro livro da Cidade de Deus:
“O nosso Paulinus […] que, sendo rico como só os ricos podem ser se tornou voluntariamente extremamente pobre”.
Mas que pobreza era essa?
Já vimos que Pinianus e Melania viveram o resto das suas vidas recebendo as suas rendas que iam entregando aos monges e aos pobres.
Também Paulinus continuava a receber rendas das suas propriedades. Continuava a assumir que os seus arrendatários lhe deviam obediência. Continuou a doar para a construção de igrejas, como se tratasse de um dever cívico de um bom romano. Construiu uma basílica para os cristãos locais “como prova do meu amor pela cidade e em memória das propriedades que a minha família aqui tinha”. Ou seja, a sua renúncia tinha-lhe permitido regressar à terra natal, ainda que de forma diferente.
A sua pobreza, era uma pobreza relativa quando comparada com o seu estatuto anterior. Não tinha já o esplendor senatorial romano, não se tornava notado. A caraterística da ‘sua’ pobreza era a humildade. Não se exilara para uma ilha deserta, não vivia em reclusão. Estava no mundo. Citava Isaías 42:14:
“Tenho estado calado, mas certamente não ficarei calado para sempre”.
Não é de admirar que o historiador inglês, Peter Brown (Through the Eye of a Needle), chame a esta época, em que muitos ricos entram para os ‘quadros’ da Igreja, “a Era do Camelo”, glosando a resposta dada por Jesus ao jovem rico de que seria “mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus” (Mateus, 19:24).
A mudança de atitude da Igreja
As igrejas e outras instituições pias recebiam legados porque eram lugares nos quais todo o povo Cristão orava pedindo absolvição para os seus pecados.
A riqueza das igrejas desde a época de Constantino fora crescendo devido a pequenas doações feitas pelas populações locais às suas congregações.
Na sociedade da época, quer para pagãos, judeus ou cristãos, a dádiva religiosa era encarada como uma transação. A renúncia à riqueza não era o único modo de estar de bem com Deus. Ofertas aos pobres, doações à igreja, ofertas semanais, ofertas para pagamento de votos, tudo isto fazia parte desse universo que juntava o céu e a terra.
Mas as comunidades cristãs desejavam basílicas maiores, um clero mais bem pago, mais fundos para o alívio dos pobres, só que tudo isso só podia ser feito se se conseguissem atrair benfeitores ricos. Sem os donativos, os monges de cada mosteiro deveriam trabalhar para se suportarem a eles próprios. Acontece que os mosteiros nunca conseguiram a independência económica sem os donativos.
Este “realismo” da Igreja deu lugar a várias e profundas lutas que se estenderam ao longo de muitos anos.
Vejamos como Agostinho ‘resolveu’ o problema. Para ele, a grande divisão do mundo não era entre os ricos e os pobres, mas sim, entre os orgulhosos e aqueles que permitiam que a graça de Deus os tornasse humildes perante Deus e perante os seus.
Na prática, tal significava que se podiam aceitar essas desigualdades desde que elas estivessem ligadas ao abandono das coisas más que a riqueza trazia: arrogância, violência e abuso do poder.
A enfase era posta na renúncia ao orgulho e não na renúncia da riqueza. Em resumo: podiam ser ricos, desde que fossem generosos para com os ensinamentos da igreja.
As chamadas “invasões bárbaras”
Este período só poderá ser entendido se retirarmos a carga ideológica com que as “invasões bárbaras” têm sido descritas. Se elas tivessem sido aquilo que nos têm dito que foram, não se percebe como é que em Itália, e nas outras partes do mundo romano ocidental, se conservassem os imperadores em Roma e Ravena com as suas cortes senatoriais, e como é que os campos se mantiveram povoados e produtivos.
Quando a 31 de dezembro de 405, uma grande confederação de grupos bárbaros, Vândalos, Suevos, e Alanos, atravessam o Reno, fazem-no para pilharem e procurarem trabalho. Para que os bárbaros sejam contidos no norte da Gália, os exércitos da Bretanha elegem um imperador, Constantino III.
Mas Constantino III queria mais, tencionava vir a ser imperador do ocidente, e em 407, deslocou-se rapidamente para sul, para Itália, invadindo-a literalmente, querendo aparecer como o salvador que a protegia do medo que tinham dos bárbaros. Nada que não se continue a fazer agora com os refugiados, com os islamitas, com os ciganos, com quem for preciso: os ‘papões’ para os civilizados.
Esta sua movimentação fez com que a confederação bárbara se deslocasse para sul, para a rica Aquitânia, onde se instalaram. Ou seja, Constantino III o que fez foi, implicitamente ou explicitamente, dar-lhes como pagamento autorização para pilharem a Aquitânia.
Em outubro de 409, alguns desses grupos atravessam os Pirenéus em direção a Espanha. Mais uma vez, a convite de um pretendente a imperador, em Saragoça. Seguiram-se as pilhagens habituais. Pilhagens em tudo iguais às que apareciam nas províncias de Roma sempre que havia desordens, quer originadas pelas guerras civis, quer pelos bandos dos mercadores de escravos.
Os próprios Godos, depois de terem saqueado Roma em 410, dirigiram-se para o sul da Gália. Os seus homens e os seus serviços militares eram muitas vezes postos à disposição de presumíveis futuros imperadores. Aí permanecem, com direito a pilhagem, por terem participado com as suas milícias de bárbaros do lado de quem ganhou a década da guerra civil (e não esquecer que as guerras civis são sempre épocas de grandes confiscos e de acerto de contas entre os notáveis locais).
O fato mais importante desta época dá-se quando em 429, os vândalos de Genserico atravessam, a partir de Espanha, para o norte de África. Tal conduziu à tomada de Cartago em 439. Foi o fim de uma época.
A guerra civil tinha desestabilizado as províncias da Bretanha, Espanha e Gália. Mas a conquista de Cartago foi o quebrar da coluna dorsal do abastecimento de cereais e da coleta maior dos impostos do império ocidental.
Em resumo: o fim do império é a história da destruição do poder romano central. Mas o que o substituiu não foi a barbárie dos bárbaros, mas um poder romano local, uma ordem social que se implantou e em que as elites regionais romanas optaram por chefes locais, exércitos locais, sistemas locais de patronagem, muitos dos quais oferecidos por reis bárbaros e seus seguidores.
Os séculos V e VI
As igrejas cristãs, tendo passado de uma fase de relativa sobrevivência para uma fase de afluência, à medida que o século V se vai desenrolando e se vai verificando a crise do desmembramento do Império, acabam por se encontrarem num mundo de pobreza generalizada, pelo que as críticas radicais contra a riqueza vão sendo abandonadas. Aquele primeiro enriquecimento da Igreja foi-se evaporando.
Em vez de denunciarem as origens malévolas da riqueza e de insistirem na sua renúncia total, passaram a ver a riqueza como uma possibilidade para se consolidar a comunidade cristã.
Acresce ainda um conjunto de fatores que vieram favorecer essa mudança de atitude.
As classes altas romanas seguiam normalmente nos seus processos de herança o chamado “captatio”, a caça à herança, segundo a qual o testamentário era encorajado a incluir os seus amigos entre os beneficiários do testamento. Como tal, os membros da família do quase defunto, desconhecendo que parte da herança lhes seria atribuída, viviam num permanente estado de ansiedade não fossem virem a ser “roubados” pelos amigos do defunto.
Assim, a renúncia a favor da igreja, aparecia-lhes como não sendo uma má ideia, na medida em que reduzia os competidores. Para começar, as raparigas eram obrigadas a tornarem-se freiras. Os rapazes iam juntar-se ao clero da igreja, ou seguiam para monges, na condição de perderem a sua parte da herança a favor dos seus irmãos e irmãs casados.
O passar as propriedades para a igreja era, como vimos, uma forma de as assegurar para a família e obterem proteção da igreja Romana, numa época de mudanças violentas de regime. As terras só estariam seguras quando protegidas por privilégio imperial.
Todos aqueles que trabalhassem nessas terras tinham certas imunidades no pagamento de corveias e outras imposições. A igreja reclamou também para si esses e outros privilégios. Assim, os exércitos que se encontravam de passagem não podiam requisitar bens da terra nem trabalho de quem trabalhava nessas terras.
Estes foram também garantidos pelos reis. Muito depois do império ter desaparecido, estes privilégios da “casa de Deus” como eram chamados, privilégios fiscais herdados da época imperial, foram renovados pelos reis locais.
A renúncia dos nobres a favor da Igreja punha, contudo, alguns problemas. É que a legislação romana, embora reconhecesse a existência de corporações, conselhos municipais, organizações de comércio e outras, não as reconhecia como elementos com riqueza própria. As igrejas cristãs do quarto e quinto século, herdaram esta lacuna.
Apesar de em 321, Constantino ter feito publicar um édito segundo o qual “qualquer pessoa deve ter a liberdade de deixar, após a sua morte, qualquer propriedade que deseje ao mais sagrado e venerável conselho da Igreja Católica”, a aplicação deste édito foi sempre legalmente contestada, porque, perto da morte, permitia que fossem excluídos da herança muitos dos familiares.
Por outro lado, a referência a “conselho da Igreja” era demasiado vaga. Salviano tentou ultrapassar o problema, pedindo aos cristãos que deixassem as suas heranças no nome de Cristo.
A ambiguidade só vai ser ultrapassada pelos advogados romanos quando, na interpretação da legislação de Justiniano segundo a qual o recetor devia ser “uma pessoa com reconhecidos méritos e conhecimentos, conhecedora das leis e da retórica”, vão indicar como recetores os bispos.
A partir daí, os bispos passam a não serem só os gestores da riqueza de outros, mas também a serem senhores, domini, com posses e deveres senhoriais atribuídos.
Há medida que a nobreza foi empobrecendo e a igreja enriquecendo, as posses dos dois grupos foram-se nivelando. As terríveis guerras em Itália como consequência da invasão do imperador Justiniano depois de 535 muito contribuíu para esse nivelamento.
Com o colapso das aristocracias tradicionais, os esforços administrativos e ideológicos de grande parte dos muitos bispos e clérigos, transforma-os em grandes administradores e construtores.
É assim, que nos finais do século V, os chefes das igrejas passam a ser senhores de grandes riquezas. Depois dessas guerras, a igreja passou a ser a grande possuidora de terras de Itália.
Foi Jacques Gernet que notou que estes ou outros mecanismos de transmissão de riqueza para a Igreja, foram também acontecendo com outras religiões noutras partes do mundo, o que o levou a dizer que havia muita riqueza que vinha dos “negócios de Buda” (Buddhism in Chinese Society: An economic History from the Fifth to the Tenth Centuries).
Se por um lado podemos pensar com algum desencantamento, perplexidade, num certo declínio moral da Igreja devido ao afastamento das suas retas intenções iniciais, podemos também, por outro lado, encarar a situação com uma certa complacência se entendermos que tal poderá ter sido um fenómeno mundialmente aceite pelos povos.
Há ainda uma outra interpretação alternativa: a de que a parábola do rico reflita antes uma verdadeira preocupação pela sua salvação. O que significa que Deus queria salvar os ricos da sua riqueza. Evidentemente apenas em intenção. De que dizem estar o inferno cheio.
“As mulheres devem evitar vestirem-se como vagabundas se não quiserem ser vitimizadas”, Donna Karen.
As pessoas necessitam de acreditar que há uma correlação entre o que elas fazem e o que lhes acontece.
Perante o sofrimento ou a “pouca sorte” de outra pessoa, é-se levado a acreditar que, de certa forma, essa pouca sorte ou sofrimento se deve a falta de merecimento da vítima.
“Porquê a mim?”
O que se pretende é transferir a responsabilidade do controle e poder do violador para a vítima.
No seguimento das experiências de Stanley Milgram sobre como uma ordem social conseguia levar pessoas vulgares a cometerem atos cruéis (já aqui referidas no blog de 09 de março de 2016, “Nazis nas escolas”, e no blog de 30 de março de 2016, “Autoridade, pilar da sociedade”), Melvin Lerner e Carolyn Simmons, da Universidade de Kentucky, publicaram em 1966, um estudo intitulado “A reação de um observador para com uma ‘vítima inocente’: compaixão ou rejeição?” (Observer’s reaction to the “innocent victim”: compassion or rejection?) (http://web.mit.edu/curhan/www/docs/Articles/biases/4_J_Personality_Social_Psychology_203_(Lerner).pdf).
Para tentarem saber como é que sociedades que viviam à custa de crueldade e sofrimento que impõem conseguiam manter um mínimo de apoio popular, Lerner e Simmons começaram por avaliar como é que qualquer cidadão normal, mero observador que não tinha feito qualquer mal a uma “vítima inocente”, se conseguia conformar com o sofrimento dela e com o que via à sua volta.
Já num estudo anterior, Lerner concluira que as pessoas tinham necessidade de acreditar na existência de uma correlação entre o que elas fazem e o que lhes acontece. Não acreditar nisso, acabava por lhes provocar problemas de sanidade mental, conduzindo-as virtualmente à incapacitação.
A maior parte das pessoas não consegue acreditar que vive num mundo onde essa correlação é meramente aleatória, umas vezes acontecendo e outras não.
Para manter essa crença de que há uma relação entre esforço despendido e a perspetiva de recompensa daí resultante, a pessoa constrói uma crença relativamente “objetiva” que vai aplicar a todos os casos, a todas as pessoas.
Assim, perante o sofrimento ou a “pouca sorte” de outra pessoa, é levada a acreditar que, de certa forma, essa pouca sorte ou sofrimento é resultante da falta de merecimento da vítima.
A vítima tende a ser desvalorizada. Pelo que quando uma pessoa abusa, trata mal, faz mal a outra pessoa, a justificação que tem para si desse seu comportamento, é que a vítima merecia o que lhe tinha acontecido.
Existiriam assim, dois modos de merecimento: ou porque se tinham comportado bem, de forma recomendável, ou porque eram em si boas. É como se as pessoas tivessem aquilo que mereciam, ou que merecessem aquilo que tinham. Ou seja, pelo desempenho ou pela valia pessoal.
A criação deste tipo de experiências em laboratório contou com um grupo voluntário de mulheres estudantes universitárias que se propunham “observar” (pois não eram elas que conduziam as entrevistas) e valorizar as prestações de um pequeno grupo de pessoas que poderiam virem a ser contratadas para desempenharem funções delicadas em ambientes de stress, nas forças armadas e em grandes empresas. Nas “entrevistas de avaliação”, as respostas corretas seriam recompensadas com dinheiro, e as erradas seriam punidas com choques elétricos.
Depois de verem as “vítimas” (atores pagos para teatralizarem as entrevistas) sofrerem durante 10 minutos, seguia-se um intervalo em que as “observadoras” iriam então contactar com as “vítimas” para as classificarem. Poderiam mostrar simpatia ou compaixão para com elas, ou considerar que a “vítima” merecia o que lhe estava a acontecer, não havendo razão para que não continuasse com nova sessão de entrevista, ou seja, com nova sessão de sofrimento.
As “observadoras” que entendiam que a experiência devia continuar, na classificação que faziam da “vítima” escolhiam desvalorizá-la e rejeitá-la. Até as poucas “observadoras” que desejavam parar o “sofrimento” da “vítima”, só o faziam por um ato de rebelião contra a experiência, muito embora considerassem a intenção correta. Ou seja, as pessoas têm uma grande necessidade de acreditarem que vivem num mundo bom e justo.
Interessante notar a razão porque para as experiências foram escolhidas para “observadoras” só mulheres (75). Tal teve que ver com dados previamente coligidos por Schopler e Bateson (“The power of dependence”, 1965) segundo os quais as mulheres mostram mais sinais visíveis de compaixão que os homens, o que facilitava o teste. Consequentemente, para fazerem de “vítimas” escolheram-se também mulheres, para não causarem nenhum constrangimento às “observadoras”.
“As mulheres devem evitar vestirem-se como vagabundas se não quiserem ser vitimizadas. Olhe-se para o que está a acontecer no mundo e veja-se como as mulheres se vestem e o que estão a pedir quando se apresentam assim. O que estão a pedir? Sarilhos.”
Segundo a Igreja (Lucas 15:22; Provérbios 7:10), o vestuário pode refletir respeito e honra ou desgraça. Cada pessoa deve ser responsável por se vestir modestamente, seguindo os ensinamentos de Deus (Timóteo 2:9-10). Aquilo que vestirmos (ou não vestirmos) importa a Deus. Deve-nos importar (Pedro 3:3-5).
É toda uma cultura que tem vindo, provavelmente desde sempre, a ser praticada em quase todas as sociedades, e até incentivada.
Na realidade, vemos, por exemplo, como desde muito cedo as meninas são industriadas a vestirem-se de forma a não chamarem a atenção dos rapazes e dos homens, condicionando ou condicionando-se, em grande parte, os códigos de vestuário impostos pelas escolas.
Até mesmo o seu contrário, o despido, que surge sob a capa de libertação sexual e afirmação feminina, não rompe com o modelo de dominação estabelecido. Que libertação badalada nos propõe a raper da moda Cardi B? (vale a pena ver os vídeos das suas canções que ocupam o primeiro lugar nos EUA, Bodak Yellow e Washpoppin:
Os que sustentam que o vestuário é o principal fator que contribui para as mulheres serem violadas, acabam por perder credibilidade perante os casos reais, em que há mulheres a serem violadas com todos os trajes, desde os mais reveladores até às burcas e aos fatos de neve.
Na realidade, o vestuário nada tem que ver com o crime praticado. Afirmar o contrário, não passa de uma tentativa de transferir a responsabilidade do controle e poder do violador para a vítima.
Quando há meio século Lerner fazia notar sobre a necessidade, e dificuldade, que as pessoas têm para encontrarem uma explicação para a aleatoriedade da vida, estava também a dar resposta àquela pergunta que quase todas as vítimas de violação sexual continuam a fazer:
“À frente um precipício, atrás lobos: eis a vida”, provérbio latino.
“Imaginem homens acorrentados, todos condenados à morte, alguns dos quais sendo diariamente assassinados à frente dos outros; os que escapavam, viam-se na condição dos que tinham sido assassinados, e entreolhavam-se com desgosto e desespero, aguardando a sua vez. Esta é a imagem da condição humana”, Blaise Pascal.
“Primeiro viver, depois filosofar”, Aristóteles.
“Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível”, Píndaro.
Entre 1931 e 1938, Heidegger inicia os seus Cadernos negros perguntando:
“Que devemos fazer?
Quem somos?
Porque devemos ser?
Que é o ente?
Porque acontece o ser?”
Questões da mais alta importância, procura incessante do significado de vida e da vida, que são sem dúvida, as perguntas essenciais da filosofia. Questões sem resposta definitiva, fonte geradora de impotência racional.
Não é por se formular uma pergunta que forçosamente ela deverá ter resposta, ou mesmo que poderá ser considerada válida. Será que por algo ser pensado, que esse algo poderá ter uma correspondência no real. Será?
Pensar em dragões não significa que eles existam na realidade, mas já o facto de pensarmos em dragões significa que esse pensamento existiu. Trabalhemos esse pensamento do que é o pensamento que existiu ao infinito sem mesmo sabermos o que vamos concluir, isto se houver alguma conclusão. Exercício em futilidade?
Em termos racionais, esta questão do significado da vida dentro da filosofia tradicional do ocidente, só começou a ser equacionada nos finais do século XIX e século XX, com pensadores como Nietzsche e Schopenhauer.
Possivelmente porque para o Ocidente, ao ser dominado pela mundividência do cristianismo, tais questões sobre o significado da vida não eram consideradas problemáticas, na medida em que a resposta era óbvia e consensual. A finalidade da vida era conhecer, amar e servir a Deus, para vir a estar com Ele para sempre no Céu.
Quaisquer sofrimentos que viéssemos a ter neste mundo seriam sempre recompensados na outra vida após a morte, todas as dores porque tivéssemos passado teriam, no final, valido a pena, pois tinham-nos permitido a reunião em Deus.
Com o declínio da influência do cristianismo, esta questão do significado da vida, começa a pôr-se com cada vez maior urgência.
Albert Camus, abre assim o seu ensaio O Mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo:
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia”.
A vida só teria sentido se existisse um Deus ou uma crença numa outra vida ou ideias de valores eternos. A não ser assim, “a vida num universo subitamente privado de ilusões”, faz com que o homem se sinta estrangeiro. E, é este “divórcio entre o homem e a sua vida” que conduz ao sentimento do absurdo.
Que o mundo não tem sentido nem razão e que a vida é absurda e vã, é confirmado pelo primeiro sinal do que é o entediante e repetitivo dia a dia:
“Os gestos de levantar, o carro-elétrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, carro-elétrico, quatro horas de trabalho, refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta, quinta sexta e sábado no mesmo ritmo […] Só um dia o ‘porquê’ se levanta e tudo recomeça nessa lassidão tingida de espanto.”
Sendo este o futuro que nos espera, ansiamos pela morte. Mas, como ao mesmo tempo receamos a morte, caímos no absurdo. Perante esta inquietação da vida e a insensatez do sofrimento, ao olharmo-nos a nós próprios ou ao confrontarmo-nos com os outros, não é de admirar que tenhamos uma sensação de náusea. Tudo é absurdo.
E para os que acreditam poder alcançar a verdade, Camus socorre-se de Aristóteles quando este diz:
“A consequência muitas vezes ridicularizada dessas opiniões é que elas se destroem por si próprias. Porque se afirmarmos que tudo é verdadeiro afirmamos a verdade da afirmação oposta, e, em consequência, a falsidade da nossa própria tese (porque a afirmação oposta não admite que ela possa ser verdadeira). E, se dissermos que tudo é falso, essa afirmação também é falsa. Se declararmos que só é falsa a afirmação oposta à nossa, ou então que só a nossa é que não é falsa, somos, todavia, obrigados a admitir um número infinito de juízos verdadeiros ou falsos. Porque aquele que anuncia uma afirmação verdadeira, pronuncia ao mesmo tempo o juízo de que ela é verdadeira, a assim sucessivamente até ao infinito.”
Lá se vai aquele desejo de compreender o mundo através do pensamento humano. Da mesma forma que “o universo do gato não é o universo do papa-formigas”, também o pensamento do homem não corresponde ao pensamento do universo: é que “todo o pensamento não é antropomórfico”.
A única forma possível de reconciliação com o universo seria pensarmos que o universo também pode amar e sofrer, o que não deixa de ser estranho porquanto tal equivaleria afirmarmos a unidade total para com ele, para com o “Uno (qualquer que ele seja)”, o qual, por definição, é indiferente a tudo. Novo circulo vicioso no caminho da esperança.
O existencialismo de Sartre, ao afirmar que no homem a existência precedia a essência, queria significar que ele era sobretudo um projeto e não um objeto, que era, como se diz em filosofia, um ‘ser-para’ e não um ‘ser-em’. O homem era assim abertura e não fechamento, existência possível em lugar de existência definida.
Diante de um futuro em aberto, o homem projeta-se como uma existência cuja essência se concretizava à medida que o homem vai sendo e fazendo as suas escolhas. É por esta ausência de uma essência prévia à existência do homem que Sartre afirma que “o homem é liberdade”, “o destino do homem está nas suas mãos”.
A afirmação do homem como abertura, como liberdade, traz a evidência da responsabilidade inerente às suas escolhas. Não há desculpas, diz Sartre, para os nossos atos. Eles são escolhidos por cada um de tal forma que mesmo não escolher significa já uma escolha.
A única condição que não podemos evitar é o facto de sermos livres, é a nossa liberdade. O homem é responsável por tudo aquilo que faz, porque a única responsabilidade que não tem é a sua condição de ser livre. Daí Sartre afirmar que “o homem está condenado a ser livre”.
Mas para Camus, este problema da liberdade não lhe interessava. Interessava-lhe antes o que fazer com ela.
Para além da liberdade de espírito e de ação que o absurdo lhe proporciona, a perda da eternidade vai acrescentar-lhe uma maior disponibilidade para viver: é que os objetivos para viver passam a estar nele próprio. E é isso que lhe permite agir de uma forma inteiramente livre, pois o amanhã não existe.
A morte é a única realidade. A nossa vida é uma vida sem apelo. Não havendo Deus também não há qualquer ordem de valores. “Este mundo, absurdo e sem deus, povoa-se de homens que pensam claramente e que já nada esperam”.
Como diz no seu “Mito de Sísifo”, “os deuses tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança”.
Para esta vida absurda não há quaisquer princípios éticos, o homem absurdo deve estar pronto a responder palas suas ações e a sofrer as suas consequências.
Pelo que a vida não precisa de sentido para ser vivida. Daí que “Uma das suas únicas posições filosóficas coerentes é assim a revolta”.
Contudo, mesmo sem se considerar a questão da finalidade da vida como a questão mais importante, tal não significa que passemos toda a vida a pensar nela, ou que não consigamos fazer outras coisas importantes ou viver uma vida feliz.
Muitas pessoas viveram vidas felizes e boas sem nunca terem pensado profundamente sobre o seu significado, ou, até mesmo se puserem a questão, sem conseguirem encontrar resposta.
Aliás, se passarmos todo o tempo a pensar compulsivamente nela, poderemos acabar por afetar a nossa saúde mental. A vida é por demais curta para que se gaste todo o seu tempo a pensar nela.
Em resumo, os filósofos não devem sobrestimar a importância das suas ruminações. Como poeticamente escrevia Píndaro:
“Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível”.
Na mesma linha, mais redutor e pragmático, dizia Aristóteles: “Primeiro viver, depois filosofar”.
Quando Camus, sabendo que na vida todos os caminhos estão abertos e que não levam a nenhuma parte, escolhe a figura de Sísifo para o seu ensaio sobre o absurdo, talvez nos esteja a apontar uma saída para a sensação de angústia.
Por um lado, porque Sísifo, sempre conhecido pelas suas artimanhas, quando é condenado à morte por Zeus consegue convencê-lo a mudar a pena para aquele trabalho sem fim nem propósito de carregar montanha acima com um pedregulho que uma vez chegado lá acima escorregaria montanha abaixo para que Sísifo voltasse a carregá-lo montanha acima. Mas Sísifo sente-se contente porque o seu destino fora por ele traçado. Ele “sabe-se senhor dos seus dias”.
E por outro, porque Camus escolheu terminar o seu ensaio deste modo:
“Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.