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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(143) Do todo e das partes

Se desmontarmos todas as partes de uma bicicleta (guiador, selim, quadro, rodas, etc.) e as pusermos na bancada, o que ali temos não é uma bicicleta, mas partes de uma bicicleta.”

 

Nenhuma espécie de ser vivo tem mais direito de viver que qualquer das outras espécies”, Arne Naess.

 

“A cognição engloba todo o processo de vida, não necessitando necessariamente de um cérebro ou de um sistema nervoso”, Maturana e Varela.

 

O mundo natural não passa de uma subtil balança de inter-relações complexas onde a existência dos organismos está dependente da existência dos outros, dentro de ecossistemas.

 

 

           

É muito conhecida a afirmação segundo a qual “o todo é maior que a soma das suas partes”. Mas como é que o todo é maior que a soma das partes?

Para os estudiosos de biologia, desde sempre este problema intrigante lhes apareceu como sendo da preponderância da forma sobre as partes ou o da preponderância das partes sobre a forma. É um organismo só a sua forma? É um organismo mais do que a configuração estática das suas partes?

            Durante alguns séculos a resposta a estas perguntas foi sendo dada por duas escolas de pensamento, a dos mecanicistas e a dos vitalistas.

 Os mecanicistas diziam: "O todo não é mais que a soma das partes. Todos os fenómenos biológicos podem ser explicados por leis da física e da química”.

Os vitalistas discordavam e diziam que para se poder explicar um fenómeno biológico seria necessário entrar em consideração com uma força vital, um campo não-físico, para além da soma das partes.

 

            No início do século XX aparece no campo da biologia, uma escola de pensamento que se vai opor tanto aos mecanicistas como aos vitalistas. Embora concordasse que algo teria de ser adicionado às leis da física e da química para se compreender a vida, esse algo não teria de ser forçosamente uma entidade, alma ou espírito. Esse adicional teria origem na organização do sistema vivo, ou seja, proviria das interações e das relações entre as partes, das suas “relações organizativas”.

             Sempre que dissecamos um sistema, fisicamente ou teoricamente, separando-o em elementos isolados, destruímos as propriedades que caraterizam o todo. Embora possamos diferenciar as partes individuais de um sistema, essas partes não se encontram isoladas, daí a natureza do todo ser sempre diferente da mera soma das partes.

As propriedades essenciais de um sistema vivo são as propriedades evidenciadas pelo todo e que nenhuma das partes tem.

 

            Nos anos 20 do século XX, a recém-aparecida ciência da ecologia começa a trabalhar com os novos conceitos de ‘cadeias alimentares’ e de ‘ciclos de alimentos’, vendo as comunidades ecológicas como organismos interligados em rede devido a relações de alimentação. Aparece assim, o novo conceito de ‘rede’.

            À medida que este conceito de rede se foi impondo na ecologia, os cientistas de sistemas começaram a tentar aplicar modelos de rede a todos os outros níveis, tratando os organismos como redes de órgãos e células. Em breve concluíram que a rede era também um padrão comum a toda a vida. Sempre que virmos vida, vemos redes.

            1ª Conclusão: O todo é mais que a soma das suas partes, sendo que o ‘mais’ são as relações que se estabelecem.

 

            A partir de então, pensar em sistemas é pensar em termos de relações. Em vez de nos concentrarmos em objetos temos de nos concentrar em relações.

 E esta não é uma mudança fácil, porque vai contra tudo o que estava estabelecido pela cultura científica ocidental. Segundo a ciência, tudo tinha de ser medido e pesado. Só que as relações não podem ser medidas ou pesadas. Mas, talvez pudessem ser mapeadas.

Quando se mapeiam as relações, vamos obter certas configurações que acabam por ocorrer repetidamente. Origina-se assim um ‘padrão’. Padrões, são configurações de relações que aparecem repetidamente.

 O estudo das relações conduz ao estudo de padrões.

 

            O processo de estudo a utilizar quer para as relações de mapeamento quer para o estudo de padrões, não pode, portanto, ser feito por métodos quantitativos, mas sim por métodos qualitativos. O pensamento de sistemas implica uma mudança de foco da quantidade para qualidade.

 A parte da matemática que se dedica a este estudo é chamada de ‘análise qualitativa’.

            Mas o estudo das relações tem que ver, não só com as relações que se dão dentro dos componentes do sistema, mas ainda com aquelas que se dão entre o sistema e a totalidade dos sistemas que o circundam.

Às relações que se verificam entre o sistema e o ambiente que o rodeia dá-se o nome decontexto’. ‘Pensamento contextual’ é o que caracteriza o pensamento dos sistemas.

 

            Estes conceitos chave para o pensamento de sistemas começaram a ser desenvolvidos a partir dos anos 20 e 30 de 1900. Na década de 40 assistimos à formulação das teorias de sistemas, ou seja, à integração dos conceitos em quadros teóricos coerentes onde se descreviam os princípios da organização dos sistemas vivos. Chamadas de ‘teorias clássicas de sistemas’, incluem a teoria geral de sistemas e a cibernética.

 

            A teoria geral de sistemas foi formulada em 1940 pelo biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy. A sua maior contribuição foi o conceito de ‘sistema aberto’ que permitiu estabelecer a distinção entre fenómenos biológicos e fenómenos físicos. Para ele, os sistemas vivos eram sistemas abertos, que necessitavam de se alimentarem constantemente por um fluxo de matéria e energia para permanecerem vivos.

             Estes sistemas abertos mantêm-se estabilizados por essa corrente contínua de fluxo e sujeitos a mudanças que se verificam, encontrando-se assim muito longe de estarem equilibrados. Estariam como que num estado dinâmico estabilizado (“flowing balance”).

Como a termodinâmica clássica da altura apenas tinha à sua disposição a teoria dos sistemas complexos, Bertalanffy postulou que para se descreverem os sistemas vivos seria necessária uma nova termodinâmica para sistemas abertos. Só trinta anos mais tarde é que Ilya Prigogine conseguiu realizar este avanço.

 

            A cibernética, a outra teoria clássica de sistemas, foi formulada por um grupo interdisciplinar de cientistas, onde se incluíam matemáticos como Norbert Wiener e John von Neumann, o neurocientista Warren McCulloch, e os cientistas sociais Gregory Bateson e Margaret Mead.

            O foco central da cibernética concentrava-se nos padrões de organização, e em particular nos padrões de comunicação, especialmente em circuitos fechados e redes.

Estas investigações conduziram aos conceitos de ‘autoalimentação’ (feedback), ‘autorregulação’ e ‘auto-organização’.

 

            Numa rede, temos ciclos e circuitos circulares fechados (closed loops). Todos estes circuitos circulares fechados podem vir a ser circuitos de autoalimentação (feedback loops). Um circuito de autoalimentação é uma disposição circular de elementos causalmente ligados, e no qual uma causa inicial se propaga através das ligações do circuito de tal maneira que cada elemento exerça um efeito sobre o seguinte, até que o último elemento do circulo alimente de novo (daí o termo “feeds back”) o primeiro elemento do ciclo.

            Este fenómeno de feedback revelou-se extremamente importante para a compreensão dos sistemas de vida. É através dele que as redes de vida conseguem regular-se e organizarem-se por elas próprias.

 

 Por exemplo, uma comunidade pode aprender com os seus erros porque os erros viajam e regressam através desses circuitos circulares fechados de autoalimentação. Daí que a comunidade se consiga organizar e aprender por si.

Devido ao feedback, uma comunidade consegue ter a sua própria inteligência, a sua própria capacidade para aprender. Os conceitos de rede, feedback e auto-organização encontram-se assim bastante ligados.

            2ª Conclusão: os sistemas de vida são redes capazes de auto-organização.

 

            O desenvolvimento da matemática mostrou-se também crucial para que os cientistas conseguissem manusear a enorme complexidade envolvida nos sistemas de vida. Em particular o desenvolvimento da matemática não-linear.

            Por exemplo, a corrente da água num rio que se escoa suavemente e onde não há obstáculos, pode ser resolvida por uma equação linear. Mas se houver uma rocha no rio, a água começa a rodopiar, tornando-se turbulenta. Aparecem vórtices, turbilhões, tornando o movimento da água de tal modo complexo, quase caótico, que só poderá vir a ser estudado com o recurso a equações não-lineares.

            O aparecimento nos anos 70 de computadores de alta velocidade, veio permitir a resolução dessas complexas equações não-lineares, vindo a revelar a existência de padrões por baixo dos comportamentos caóticos.

 A teoria do caos é uma teoria da ordem, uma ordem que não é vista pelos nossos olhos, mas que é revelada por estas novas matemáticas.

            Quando se resolve uma equação não-linear, o resultado não é dado por uma fórmula, mas por uma forma visual, um padrão traçado pelo computador. Estas novas matemáticas são matemáticas de padrões, de relações. Apresentam a dinâmica de um sistema particular como formas visuais.

 

            Resumindo: os cientistas de sistemas têm vindo a afinar o conceito de padrão de organização. Começaram por definir padrão como uma configuração de relações. Depois os ecologistas reconheceram a rede como o padrão geral da vida. Os cibernéticos identificaram no feedback o padrão circular dos enlaces causais. Finalmente os matemáticos apresentam a nova matemática como sendo de padrões visuais.

 

            O padrão de organização de qualquer sistema, vivo e não vivo, é a configuração das relações entre os componentes que determinam as caraterísticas essenciais do sistema.

Ou seja, para que algo possa ser reconhecido como uma cadeira, uma bicicleta, há certas relações, não todas, que têm de estar presentes. A configuração de relações que for essencial para permitir reconhecer as caraterísticas do sistema é o padrão de organização.

            Se desmontarmos todas as partes de uma bicicleta (guiador, selim, quadro, rodas, etc.) e as pusermos na bancada, o que ali temos não é uma bicicleta, mas partes de uma bicicleta. Para ser uma bicicleta temos de as colocar não só juntas, mas com uma certa ordem (não devemos por o guiador no selim, as rodas no guiador). Esta ordem, esta configuração das relações entre as partes, é o padrão de organização.

 

            Contudo, o estudo destes padrões de organização, não são só por si, suficientes para se compreender a vida. Eles dão-nos as relações, a ordem, a qualidade, mas faltam os estudos sobre a estrutura.

            Ou seja, para descrevermos a organização da bicicleta basta indicarmos de um modo abstrato as relações. Não é preciso dizer que o quadro é feito de alumínio ou carbono, ou de que borracha serão os pneus. Os materiais físicos não fazem parte da descrição do padrão de organização. Fazem parte da descrição da estrutura, do material que dá corpo ao sistema do padrão de organização.

 

            Necessitamos, pois, de proceder à integração do padrão de organização com a estrutura do sistema.

 Para uma bicicleta, tal é relativamente fácil. Para um sistema vivo, para além de envolver milhares de processos químicos interligados, há ainda o problema adicional do fluxo sem fim de matéria que o percorre, originando crescimento, desenvolvimento e evolução.

            Estas propriedades espantosas que os sistemas vivos têm, sugerem a necessidade de um terceiro critério para que se compreenda a natureza da vida. O processo da vida é a atividade que permite que seja dado continuamente corpo ao sistema do padrão de organização. Só através de um critério do processo que faça a ligação entre o padrão e a estrutura será possível entendê-la.

 

            Todos estes três critérios do fenómeno da vida, o padrão de organização, a estrutura e o processo, são totalmente independentes, muito embora inseparáveis.

 

Já vimos que Ilya Prigogine reconhecera os sistemas vivos como sistemas abertos estáveis capazes de manterem o seu processo de vida em condições de não-equilíbrio.

Um organismo vivo é caraterizado por um metabolismo de fluxo contínuo e de mudança, no meio de milhares de reações químicas. O equilíbrio químico e térmico existe quando tais processos deixarem de ocorrer. Ou seja, um organismo em equilíbrio é um organismo morto. Os organismos vivos mantêm-se sempre num estado que não é de equilíbrio, é um estado de vida.

Apesar de muito diferente do estado de equilíbrio, este estado de vida é, contudo, estável. Ele mantém a mesma estrutura geral apesar das mudanças contínuas de fluxo e dos seus componentes. A estes sistemas abertos que conseguiam manter a sua estrutura no meio das mudanças (dissipação) chamou Prigogine de estruturas dissipativas.

Para ele, estas estruturas não só se mantinham estáveis muito longe do equilíbrio, como ainda podiam evoluir transformando-se em novas estruturas de complexidade aumentada. Este fenómeno – o aparecimento espontâneo de ordem – é também conhecido por auto-organização. Ele é a base do desenvolvimento, da aprendizagem e da evolução.

 

Temos assim que o padrão de organização de um sistema vivo é uma rede de relações na qual a função de cada um dos componentes é a de transformar e substituir outros componentes da rede. A rede “faz-se a si própria” continuamente. Este fazer-se a si próprio foi chamado por Humberto Maturana e Francisco Varela, de autopoiesis.

 

Para se entender o processo da vida através desta teoria dos sistemas vivos, torna-se necessário uma nova conceção de cognição ou espírito. Esta nova conceção foi inicialmente elaborada por Gregory Bateson e depois expandida por Maturana e Varela, sendo conhecida como a teoria de conhecimento de Santiago (por ter sido apresentada na Universidade em Santiago do Chile).

Nesta teoria procede-se à identificação da cognição, do processo de conhecer, com o processo de vida.

Segundo Maturana, a cognição é a atividade implícita na auto geração e na auto perpetuação das redes de vida. Por outras palavras, a cognição é o processo de vida em si. “Os sistemas de vida são sistemas cognitivos. O viver como processo é um processo de cognição”.

 O processo de conhecer é, portanto, um processo biológico.

 

O conteúdo do conceito de cognição amplia-se assim enormemente. Segundo este modo de ver, “a cognição engloba todo o processo de vida – incluindo perceção, emoção e comportamento – não necessitando necessariamente de um cérebro ou de um sistema nervoso.

 

Assim sendo, aquele problema cartesiano da separação do corpo e da alma deixa de ter significado por não serem já categorias separadas. Passam a representar dois aspetos complementares do fenómeno da vida, processo e estrutura.

 Seja a que nível de vida for, desde a mais simples célula, ‘espírito’ e ‘matéria’, processo e estrutura, estão inseparavelmente ligados. O ‘espírito’ é imanente à ‘matéria’ como processo de auto-organização. Pela primeira vez aparece uma teoria que unifica ‘alma’, ‘matéria’ e vida.

 

Quase tudo o que aqui deixei escrito, constitui um resumo do livro A Teia da Vida (The Web of Life, A new scientific understanding of living systems) do físico teórico austríaco Fritjof Capra (1939 -), diretor do Centro de Eco Literacia em Berkeley, Califórnia.

Foi a física que acabou por o conduzir à ecologia profunda de Arne Naess, ao campo da visão metafísica e ecológica onde tudo se interrelaciona, segundo o qual “nenhuma espécie de ser vivo tem mais direito de viver que qualquer das outras espécies”.

 

 O mundo natural não passa de uma subtil balança de inter-relações complexas onde a existência dos organismos está dependente da existência dos outros, dentro de ecossistemas.

 

           

 

 

 

 

(142) Natal como conforto da visão reduzida do mundo

“Ninguém acredita tão firmemente como aquele que menos se conhece”, Montaigne.

 

As pessoas gostam de explicações simples e claras.

 

O desconhecido assusta-nos e a complexidade esgota-nos.

 

O mundo é o local onde nos sentimos pequenos e vulneráveis.

 

 

 

Talvez seja um erro pensar que crescemos e que nos tornamos adultos. Vejamos: quando crianças, o mundo aparece-nos como um lugar incompreensível e caótico, onde as coisas acontecem sem qualquer causa conhecida. Poderá ser fascinante, mas é acima de tudo complicado e muitas vezes amedronta. Tudo necessita de ser aprendido, apesar de muitas das perguntas ficarem sem resposta.

 

Quando querem ficar confortáveis, as crianças regressam ao conhecido. Daí que queiram sempre ver o mesmo filme, ouvirem sempre as mesmas histórias, agarrarem-se sempre aos mesmos bonecos. Optam assim por algo que conhecem bem e sem quaisquer aberturas, onde não se consideram pequenos nem vulneráveis. Nesses momentos, objetivamente, não querem o que nós crescidos entendemos como mundo, porque intuem, “sabem”, que esse nosso mundo é isso mesmo: local onde nos sentimos pequenos e vulneráveis.

 

O nosso cérebro está equipado para procurar relações causais, inferindo e inventando automaticamente motivos e intenções. Este mecanismo evoluiu por ser útil, mas à custa de um preço: não admite a ambiguidade, suprime a dúvida e exagera o valor da coerência.

As pessoas gostam de explicações simples e claras.

 

Para nós, uma explicação será tanto mais convincente quanto mais as peças encaixarem (coerente) sem procurarmos que existam mais peças para encaixar (quantidade de informação). Por isso, as explicações pouco informadas aparecem-nos como mais convincentes. E isto acontece-nos a todos: a ignorância torna-nos atrevidos.

 

É assim que entendemos que as matanças nos países ocidentais são apenas devidas às sementes que o imperialismo plantou, ou aos islamistas que nos odeiam, ou aos negros, ou aos ciganos, ou aos homossexuais, ou ao fato do multiculturalismo ser incompatível com os nossos valores, ou por não seguirmos os mandamentos de Deus, etc. etc.

Todos estes são argumentos simples e claros. Se lhes juntarmos mais elementos explicativos, tornam-se confusos, menos convincentes, apesar de poderem estar mais próximos da verdade.

 

Gostamos de explicações fáceis.

E, é provavelmente isso, que nos conduz ao fundamentalismo e às barbáries, que na sua visão do mundo só têm certezas. Apoiam-se na religião, na ideologia, na tradição, para construírem a sua visão reduzida do mundo, com muito poucas peças, mas com uma coerência totalitária que satisfaz o primitivo, a criança, que habita em nós.

 

O desconhecido assusta-nos e a complexidade esgota-nos. Tal como acontece com a criança. Talvez seja um erro pensar que crescemos e que nos tornamos adultos.

 

 

(141) Vias para a imortalidade

“Enquanto esperamos viver, a vida passa por nós”, Séneca.

 

Não podendo alterar a ordem do mundo, resta-nos alterar os nossos desejos.

 

Pela doutrina estoica de salvação o indivíduo passa a ser tranquilamente integrado no Universo, passando a fazer parte dele de uma outra forma anónima e impessoal, possivelmente para um outro recomeço

 

O cristianismo prometia uma imortalidade pessoal (não é só a alma, é aquela própria pessoa que no fim dos tempos vai ressuscitar, em carne e osso, tal como Lázaro) e prometia ainda, a salvação dos nossos familiares e amigos (no fim dos tempos, estaríamos todos reunidos).

 

 

 

 

             O homem é o único ser que tem consciência da sua mortalidade, da sua finitude e das suas limitações no espaço e no tempo. Preocupa-o não só a sua morte, mas também a morte daqueles que ama. E para aqueles que o amam, o seu desaparecimento também é difícil de entender, não sabendo muito bem o que se passou, para onde foi, o que vai acontecer.

Para os animais, o problema da morte não se põe. O mesmo se passa com as crianças, que quando à noite adormecem, não sabem se no dia seguinte vão acordar, daí a sua dificuldade em adormecerem e a sua grande alegria ao acordarem no dia seguinte.

 

            Mas a morte não é só biológica, nem é só instantânea. Não é só aquele momento. Não é só o passamento. É também aquela sensação de que há coisas que nunca mais voltam: a brincadeira da infância, os amores da adolescência, o grupo de amigos, as viagens, tudo isto faz parte de uma morte anunciada, de uma sensação de desconforto, de angústias que nos impedem de viver bem.

Essa sensação de irreversibilidade das coisas que já não voltam mais, tende a arrastar-nos para um passado onde imperarão a nostalgia, a culpa, o arrependimento e o remorso. Mesmo aqueles momentos de felicidade que recordamos, arrastam-nos para o passado, impedindo-nos de apreciar o presente.

A nostalgia, como apego ao passado e a esperança, como preocupação com o futuro, impedem-nos de viver sem medos. Aquele que ficar preso ao seu passado ficará sempre incapaz de usufruir e de agir. Aquele que viver sempre à espera da concretização de algo que considere imprescindível para a sua felicidade, vive à espera de uma felicidade adiada. Como dizia Séneca, enquanto esperamos viver, a vida passa por nós”!

 

            As religiões e a filosofia foram tentando dar respostas, salvar-nos das angústias provenientes destes problemas que a morte nos punha: a religião, através do amor e da fé, promete-nos a imortalidade; a filosofia, através da utilização da nossa razão, explica-nos a imortalidade sem a ajuda de Deus.

 Na atualidade, também a ciência se tem pretendido insinuar neste campo da imortalidade, quer seja através da conservação congelada, da hibernação prolongada, da paragem do envelhecimento ou, ainda, pela transferência da ‘nossa’ personalidade individual para o computador (que nos permitiria viver indefinidamente enquanto não faltasse a eletricidade), evidentemente tudo isto sem dor, desde que se tenha muito dinheiro e pouco senso!

 

A doutrina da salvação estoica

 

            Para a filosofia Grega, o “cosmos” era entendido como um ser organizado e animado, considerado como “divino” (“theion”), uma estrutura ordenada do universo.

Este “divino” confundia-se com a própria ordem do mundo; não era um ser exterior ao universo que existiria antes dele ou que o tivesse criado. Era exatamente por as coisas estarem ordenadas, pela existência dessa ordem (“logos”), que a nossa razão tinha a possibilidade de o vir a compreender, de o vir a decifrar.

Ou seja, ao afirmarem que o universo era divino, queriam com isso dizer que existia uma ordem lógica por detrás do aparente caos das coisas, que poderia assim ser revelada pela razão humana.

Por outro lado, afirmar essa ordem, implicava a consideração da existência de uma harmonia na natureza, o que vem fazer da natureza o modelo de conduta para os homens, que a vão tentar imitar em tudo, desde o plano moral, ao político e ao estético. Era a ordem natural e não a vontade dos homens, que se sobrepunha a qualquer consideração. O bom, era o que estava de acordo com a ordem cósmica. Era o exemplo a seguir, não cabendo, pois, ao ser humano decidir por ele sobre o que seria o bem e o mal, o justo e o injusto.

Como fazia notar Marco Aurélio, essa ordem harmoniosa, só poderia ser justa e boa, dando a cada um o que lhe era devido, pondo cada qual no seu lugar, o que pressupunha a existência de um “lugar” para cada um de nós. Encontrar esse lugar era o que nos permitiria alcançar a felicidade.

 

            Para os estoicos, e é deles que temos estado a falar, como a única vida real é a do presente, e como a vida está em constante mudança, então mandava a sabedoria contentarmo-nos com o presente, vivê-lo o suficiente para nada mais desejar ou lamentar.

 Não podendo alterar a ordem do mundo, resta-nos alterar os nossos desejos.

 Não se trata de ser indiferente ao mundo, mas antes de ter um desapego face aos sentimentos de posse. Assim, graças às capacidades que nos foram dadas pelo viver no presente, de amar com desapego o mundo tal como ele é, quando chegar a nossa hora, estaremos preparados.

 

 Verdadeiramente, a morte de um ser humano não existia: tratava-se de uma mera passagem de um estado a outro. Isto porque fazendo nós parte do universo, e sendo o universo eterno, então nós próprios nunca deixaríamos de existir.

 

A doutrina cristã da salvação.

 

            A filosofia estoica é o exemplo de uma doutrina da salvação tendo por base o exercício da razão. Sendo o estoicismo a filosofia mais instalada e seguida pelas classes dirigentes, por que razão a sabedoria estoica não conseguiu impedir a progressão do cristianismo?

            Apesar de muito do estoicismo ser aceite e absorvido pela doutrina cristã, a base para se alcançar a salvação, a imortalidade, era totalmente distinta: na doutrina cristã, a imortalidade, era conseguida através do amor e da fé.

Quando Cristo ressuscita o seu amigo Lázaro pretende provar que a morte, para aqueles que amam e têm confiança (“fides” em latim, fé) na Sua palavra, não passa de uma mera aparência, de uma passagem. Para se ter esta fé, era preciso acreditar que o divino – o “logos” – deixava de ser representado por uma estrutura do mundo, passando a ser encarnado numa pessoa excecional – Cristo.

 É assim que nos Evangelhos a tradução do termo “logos” utilizado pelos estoicos, passa a ser “Verbo”; eis o que diz João no quarto Evangelho:

 

No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tudo começou a existir por meio d’Ele, e sem Ele nada foi criado”, e mais à frente: “E o Verbo fez-Se homem, e habitou entre nós, e nós vimos a Sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como filho único cheio de graça e de verdade”.

 

O divino deixa de ser uma estrutura impessoal, passando a uma pessoa singular. O divino aparece encarnado em Jesus. Mais, os discípulos de Cristo são apresentados como testemunhas desta transformação do logos (Verbo e Deus) em homem (Cristo), sendo Cristo, filho do primeiro.

Tal alteração não podia ser compreendida pela razão, só pela fé. Não tinha qualquer sentido para os estoicos atribuir o carácter de divino de uma ordem cósmica universal e racional, a uma pessoa em particular.

 Por isto, até Marco Aurélio se viu forçado a condenar à morte o seu amigo Justino (estoico que se tornou no primeiro padre da Igreja, no primeiro filósofo cristão e depois Santo) por ele não querer admitir a irracionalidade e loucura daquela religião.

Para os cristãos o acesso à verdade já não é feito em primeiro lugar pela razão, mas antes pela confiança (fé) na palavra de um homem, Cristo, o filho de Deus, o logos encarnado.

 

Por outro lado, São Paulo vem mostrar na “Epístola aos Coríntios”, uma imagem de Deus totalmente diferente da proposta no Antigo Testamento: em vez de um Deus colérico, aterrador, todo-poderoso, grandioso (O Deus dos Judeus), apresenta-nos um Deus humilde, fraco (que se deixa martirizar e crucificar), misericordioso, porta-voz dos fracos, dos pequenos e dos pobres. A humildade e a irão suplantar a razão, o que conduzirá a filosofia a vir ser considerada como “serva da religião”.

 Porque é que a filosofia não aceitava, com humildade, a submissão às leis de uma doutrina de salvação com Deus?

A filosofia chega mesmo a ser considerada como obra do diabo por levar o homem a separar-se das crenças para fazer uso da razão. Entendamos que “diabo” etimologicamente significa em grego “aquele que separa”, neste caso, aquele que nos separa de Deus, e não aquele que nos afasta do bom caminho: se a serpente quer que Adão e Eva comam a maçã, não é para que desobedeçam a Deus, mas para os separar Dele!

 

 

Pela doutrina estoica de salvação o indivíduo vem a ser tranquilamente integrado no Universo, passando a fazer parte dele de uma outra forma anónima e impessoal, possivelmente para um outro recomeço (não devemos esquecer que para toda a filosofia grega e romana o tempo era considerado cíclico).

 Assim era a eternidade prometida pela doutrina estoica. Para se ser salvo, vencer o medo da morte, era preciso compreender a ordem cósmica, fazer tudo para a imitar e reconciliar-se com ela para aí encontrar o seu lugar, alcançando assim uma forma de eternidade.

 

Pela doutrina cristã, para se ser salvo, para se vencer o medo da morte, era preciso entrar em contacto com o Verbo encarnado, na humildade da fé, observar os seus mandamentos e praticar o amor em Deus, para que ele e os seus entes queridos pudessem entrar no reino da vida eterna.

O cristianismo prometia uma imortalidade pessoal (não é só a alma, é aquela própria pessoa que no fim dos tempos vai ressuscitar, em carne e osso, tal como Lázaro) e mais ainda, prometia a salvação dos nossos familiares e amigos (no fim dos tempos, estaríamos todos reunidos).

 Nestes termos, a soteriologia (o estudo da salvação humana) cristã é a única que permite ultrapassar não só o medo da morte, mas também a própria morte. Nem que fosse só por esta razão, estava assegurada a prevalência da doutrina cristã.

 

 

Em qualquer dos casos, estas preocupações com o tempo pós-morte têm muito mais que ver com a tentativa de atribuir significado ao tempo de vida.

 

 

(140) Os caídos do Céu

“Mostrem-me um francês, belga, ou alemão, que faça o tráfico de escravos entre a Nigéria e a Líbia. Não existem. A realidade é que são africanos que fazem escravos outros africanos”, Emmanuel Macron, novembro, 2017.

 

“Se não destruirmos os carros de combate de Gaddafi, a Europa virá a ter que lidar com uma onda de refugiados e com uma nova geração de jidaístas…”, David Aaronovitch, The Times, 18 março, 2011.

 

Não se trata de uma falha de planeamento; essa falha de planeamento faz parte do planeamento. Ela é mesmo a parte mais importante do planeamento.

 

 

 

Um dos problemas com que os israelitas, chefiados por Moisés, se depararam a quando da sua fuga do Egito, foi o da alimentação, especialmente durante a longa travessia do deserto. Problema que Deus resolveu, enviando o maná caído do céu, flocos brancos que eram recolhidos, cozidos e assados, transformados em pães doces.

Este maná era enviado diariamente, não podendo ser armazenado para o dia seguinte. Parece que também não era fornecido aos sábados, pelo que Deus reforçava o suprimento às sextas-feiras, único dia em que o maná podia ser guardado para o dia seguinte (Êxodo, capítulo 16).

 

Atualmente, o mesmo se passa com as pessoas que, no norte de África, são vendidas como escravos, e com os refugiados do Médio Oriente, que os canais de televisão tão bem acompanham nas suas rotas, e que, qual maná, nunca tendo existido anteriormente, também se desconhece porque apareceram, levando a supor que caíram do céu.

 

 

Felizmente que existem alguns políticos atentos para nos esclarecer, como foi o caso do presidente da França, Emmanuel Macron, prontamente ilibando a França e culpabilizando os africanos:

 

Quem são os traficantes? Perguntem-se a si próprios, vós que sois a juventude africana. Quem são os traficantes? Eles são africanos, meus amigos. Eles são africanos.”

“Mostrem-me um francês, belga, ou alemão, que faça o tráfico de escravos entre a Nigéria e a Líbia. Não existem. A realidade é que são africanos que fazem escravos outros africanos (https://www.rt.com/news/411220-macron-africa-people-trafficking/).

 

Como se a França nada tivesse a ver com a ação militar, o bombardeamento e a destruição do estado da Líbia em 2011. As razões publicamente invocadas para essa intervenção armada foi a de que Gaddafi exercia ditatorialmente o poder há 41 anos, estava a reprimir e matar oponentes em Bengasi instabilizando o país, e que, portanto, a continuar assim o preço por nada se fazer viria a ser demasiadamente alto:

 

Se não destruirmos os carros de combate de Gaddafi, a Europa virá a ter que lidar com uma onda de refugiados e com uma nova geração de jidaístas…” (https://www.thetimes.co.uk/article/the-price-of-inaction-in-libya-is-far-too-high-mqh9vjfsvq2).

 

A Líbia, embora governada ditatorialmente e torcionariamente, era o país de África com o maior Índice de Desenvolvimento Humano, com uma Literacia de quase 90%, e onde os cuidados de saúde e a educação eram gratuitos, segundo o Relatório do Concelho dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 2011 (http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A-HRC-16-15.pdf).

O panorama geral do país é muito bem descrito numa importante ata do Parlamento inglês na qual se examinam as opões políticas possíveis face a uma intervenção militar na Líbia, onde inclusivamente se encontram referências à falta de provas sobre a intervenção de Gaddafi nos massacres de Bengasi (https://publications.parliament.uk/pa/cm201617/cmselect/cmfaff/119/11905.htm).

Mas nada disso impediu que a França liderasse o grupo de nações que bombardearam massivamente as infraestruturas líbias, o que conduziu à subsequente destruição do aparelho do estado, fazendo regredir em décadas o progresso social.

 

Contudo, estas consequências negativas que nos são apresentadas, e justificadas, como sendo um “falhanço de planeamento” na condução das operações, não podem ser atribuídas à incompetência, negligência ou azar, porquanto tal já se havia previamente verificado no Iraque.

Também aí, só após se terem desmantelado todas as estruturas do aparelho de estado, arrasado as infraestruturas, e se ter instalado o caos, é que se verificou que “apareceu” o Estado Islâmico (EI), algo que não existia durante o governo de Saddam Hussein.

Seis anos e meio depois, voltam a fazer o mesmo na Líbia, exatamente com os mesmos resultados, pelo que será lícito concluir que talvez não se trate de uma “falha de planeamento”, mas que essa falha de planeamento faz parte do planeamento. Ela é mesmo a parte mais importante do planeamento (Dan Glazebrook, Divide and Ruin: The West’s Imperial Strategy in na Age of Crisis).

 

Agora, após a “descoberta” da CNN sobre escravatura na Líbia, a “linha oficial” justificativa é de que a escravatura sempre existiu, e que por isso se trata de um problema intemporal de direitos humanos, não sendo, portanto, um problema político com causas diretas na história recente. Os mais afoitos, atrevem-se a mencionar a instabilidade em que se vive como causa, mas sem referir a causa da instabilidade.

A tática utilizada pelos Macrons é muito característica desta época que nos dizem ser pós-humana: fazer tábua rasa de tudo o que aconteceu antes, por não ser importante (não se podia digitalizar) para a resolução dos problemas. O que lá vai, lá vai. Curiosamente, é também muito francesa, embora ao contrário. Enquanto Luís XV pressagiava, “Depois de mim, o dilúvio”, agora vem Macron dizer-nos, “Antes de mim, o dilúvio”.

 

Para os que diziam em 2011 que “se não destruirmos os carros de combate de Gaddafi, a Europa virá a ter que lidar com uma onda de refugiados e com uma nova geração de jidaístas…”, há que lhes lembrar que já bombardeámos os carros de combate de Gaddafi, e que afinal temos uma onda de refugiados e novas gerações de jidaístas, pelo que certamente teremos de concluir que “foi azar”, ou que “são coisas que acontecem”, ou então que escravos e refugiados caem do céu. Plano divino?

 

Antes e durante essas intervenções militares, os meios de comunicação saturavam-se (e saturavam-nos) com a utilização de conceitos como “intervenção”, “libertação”, “salvar o povo”, “responsabilidade de proteger os civis”, “humanitarismo”, “novo Hitler”. Acabada a intervenção, silêncio total: países atirados para o caixote do lixo, nem se olha para trás para tapar. Há que passar a “novo” não-assunto.

Pelo que esta crónica talvez já não tenha qualquer sentido. Como bem diz Macron, “é um problema dos africanos”. Longe já vai o “Je suis Charlie”!

 

 

 

 

 

 

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