“Poesia é mais sabor do que saber”, Infante D. Pedro.
“Mais vale morrer grande e honrado do que viver pequeno e desonrado”, Infante D. Pedro, a caminho de Alfarrobeira.
“Se tivésseis dinheiro, que é o nervo principal e parte formal deste negócio, para suprirdes vossas despesas e a provisão necessária aos que vos houvessem de servir; mas eu... sei que o não há vosso”, conselho do Infante D. Pedro ao rei D. Duarte, em 1436, a propósito da guerra contra Tânger.
“Mas posto que passásseis e tomásseis Tânger e Alcácer e Arzila, queria Senhor saber que lhe fareis, porque povoá-las com reino tão despovoado e tão minguado de gente como este nosso, é impossível. E se o quisésseis fazer seria torpe comparação, como quem perdesse boa capa por mau capelo, pois era certo perder-se Portugal e não se ganhar África [...] Pelo qual, Senhor, concluo... que agora nem em algum tempo Vossa Mercê se não deve entremeter nesta guerra de África”, Infante D. Pedro, 1436.
A genialidade que, em maior ou menor grau, sempre pode brotar nos seres vivos, tem, contudo, nos seres humanos, uma certa relação com o futuro. Há como que uma antecipação, quer no campo das artes, da ciência, da política, que, naquele instante ou ao longo de parte da vida, uma dada pessoa tem, e que muito proveito pode trazer para o conjunto da sociedade que o rodeia.
Por vezes, essa genialidade é reconhecidamente aceite. Outras vezes, é acerrimamente combatida.
Mas há também um outro tipo de genialidade, aquela que entendendo perfeitamente o que é este mundo do humano, na etérea ligação do passado como o presente e o futuro, o consegue resumir em meia dúzia de frases. Aquilo que historiadores (e outros) levam anos a intentar trazer à luz, é posto perante os nossos olhos para que nos apercebamos da trama da intemporalidade sempre presente dos tempos em que vivemos.
Naquele final da primeira dinastia em que o território propriedade da monarquia portuguesa que era Portugal esteve quase para ser entregue à monarquia espanhola, foi escolhido para iniciar uma segunda dinastia no território português, muito embora a contragosto e após uma série de graves hesitações do próprio, um filho bastardo que o rei D. Pedro tivera: D. João (1357-1433), Mestre de Avis.
Relembrando: após a morte do rei D. Fernando, perfilaram-se três possíveis sucessores: D. Beatriz, a sucessora legítima, filha de D. Fernando e de Leonor de Teles, casada com o rei de Castela, e que contava evidentemente com o apoio da Alta Nobreza, mas que representava o risco do retorno da submissão de Portugal a Castela; D. João, filho de D. Pedro I com Inês de Castro, que na altura se encontrava preso, o que o impedia de participar; e D. João, Mestre de Avis, também filho bastardo de D. Pedro I com Teresa Lourenço, uma dama galega, que tinha o apoio da nobreza tradicionalmente ligada à independência de Portugal e da nova nobreza ascendente.
Após várias hesitações, foi decidido convocar as Cortes com vista à eleição do Rei (a sua convocação era não só questionável sob o ponto de vista da legitimidade, como ainda introduzia uma conceção nova sobre a origem do poder real), acabando por vir a ser eleito D. João, Mestre de Avis.
Dada a deserção da nobreza tradicional, abria-se assim espaço para a constituição de uma nova nobreza, composta de cavaleiros-fidalgos e ricos-homens, que ascendiam sem necessidade de linhagem, podendo virem a ocupar cargos e possuírem bens, como recompensa pelos serviços prestados ou até por simples compra.
Temos assim um Rei que é bastardo, sem grandes créditos junto dos seus pares reinantes e que vai dar início a uma nova dinastia, numa época de grande mobilidade social e de grandes transformações políticas, que tem por isso de arranjar rapidamente esposa, constituir família, e demonstrar que merecera ser eleito.
Embora D. João tivesse feito votos de freire confesso e se comprometesse a guardar castidade, enamorara-se de uma donzela nobre, Inês Pires, de quem vai ter dois filhos bastardos: D. Afonso (1377? -1461), futuro duque de Bragança, e D. Brites, futura condessa de Arundel. A bastardia era normalmente aceite sem problemas de maior.
Mas agora havia que casar a sério. A cerimónia vai realizar-se em fevereiro de 1387, no Porto, com Dona Filipa, filha do duque de Lencastre, de quem vai ter vários filhos: D. Branca (1388-morre com oito meses), D. Afonso (1390-1400), D. Duarte (1391-1438) que lhe vai suceder, D. Pedro (1392-1449), D. Henrique (1394-1460), D. Isabel (1397-1473), D. João (1400-1442), D. Fernando (1402-1443).
Os seus filhos vão constituir a chamada “ínclita geração, altos infantes” (Camões, Os Lusíadas), pelo apoio que deram à cultura, envolvendo-se alguns deles diretamente na própria produção cultural, bem como na educação para a formação de uma burocracia qualificada para o Estado, cientes da sua importância para o crescimento do reino perante os demais da Europa.
Estamos perante uma clara intenção que visa aproveitar a produção cultural para se afirmar politicamente, legitimando um projeto de realeza e sociedade.
É assim que se procede à construção da igreja de Santa Maria da Batalha com o que de melhor em termos humanos existia à época; é assim que as cortes régias e senhoriais passam a desempenhar um papel importante quer no mecenato, quer ainda na produção de livros, saraus e encenações teatrais; é assim que a biblioteca do Paço Real é aberta pela primeira vez, ao acesso do público, sendo D. Duarte o primeiro governante a montar uma biblioteca particular; e é sobretudo assim que D. João decide armar os filhos como cavaleiros numa batalha verdadeira que foi a tomada de Ceuta, numa clara demonstração às outras monarquias que os seus descendentes nada ficavam a dever na comparação com elas.
Aliás, esta expedição a Ceuta deve ser única em todo o mundo: nunca nenhuma nação embarcara para uma guerra todos os seus grandes (e pequenos) senhores dessa nação, porquanto se corresse mal, a nação como era entendida, desapareceria. Era como se hoje, numa expedição a Marte, os EUA embarcassem nas naves os conselhos de administração de todas as empresas, esperando que eles voltassem. Loucura que correu bem. Dessa vez. O mesmo fez depois D. Sebastião, com os resultados conhecidos. Correu mal.
Desta “ínclita geração”, a historiografia “oficial” tem, voluntária e ideologicamente, apagado e distorcido, uma figura impar da história, a do Infante D. Pedro, o “Infante das Sete Partidas do Mundo”.
Normalmente referido como sendo muito viajado, daí o cognome, muito culto, que juntamente com Frei João Verba compõe o Livro da Virtuosa Benfeitoria, e que após a morte do irmão rei D. Duarte (1438) ficou como Regente do reino em nome do jovem infante D. Afonso, seu sobrinho que viria a ser o rei D. Afonso V, e que mais tarde, ao tentar opor-se às determinações deste sobrinho-rei, acabou por vir a ser morto na batalha de Alfarrobeira, onde o seu corpo permaneceu abandonado durante três dias, só depois tendo sido discretamente enterrado na igreja de Alverca.
O que se tentou calar foi o seu pensamento político sempre perfeitamente coerente, consciente e moderno e as suas posições daí resultantes, que, embora sempre respeitadoras, não as silenciava, mesmo que não fizessem vencimento.
Numa carta enviada a partir de Bruges (Carta de Bruges,1426) a D. Duarte, que ainda não sendo rei, tinha já a maior parte das responsabilidades governativas cedidas por D. João I, vai aconselhá-lo a ter a presença de representantes dos três estados sociais (clero, nobreza e povo) no Conselho e Tribunal reais, e a reformar a Universidade com a criação de “dez ou mais colégios em que fossem mantidos escolares pobres; e outros ricos vivessem dentro com eles às suas próprias despesas” como meio para garantir uma melhor qualidade dos quadros eclesiásticos e administrativos.
Numa outra carta (1433) escrita a D. Duarte já após a subida ao trono, aconselha-o sobre a concessão de mercês e governação:
«[...] Senhor, vos farão agora muitos e mui desvairados requerimentos e peditórios e vos darão conselho em muitas coisas e de muitas guisas; ... as coisas que vos mui claramente não parecerem boas e razoadas não as outorgueis nem determineis logo; nem as que certo não pareçam más e desrazoadas, não as negueis, antes as espaçais para... depois as determinardes como deveis; porque em todo o tempo de inovações e de tantas alterações algumas coisas vos podem parecer justas e o não serão. E assim.… deveis mais, Senhor... conhecerdes vós, que intenção e propósito é o vosso; e sentirdes que é muito ardente e afincado para corrigir e emendar as coisas erradas; ... o vosso cuidado e trabalho não é somente de uma hora.»
E há também, e sobretudo, o célebre parecer ao Conselho Real, que D. Pedro emite em 1436, contra a programada conquista de Tânger:
“[…] digo que já não faço dúvida em ser bem e serviço de Deus os mouros inimigos da Fé serem guerreados, contanto que este bem não traga consigo danos e males muito maiores... [...] se tivésseis dinheiro, que é o nervo principal e parte formal deste negócio, para suprirdes vossas despesas e a provisão necessária aos que vos houvessem de servir; mas eu... sei que o não há vosso. Pois de vossos povos sabei que... o não podeis tomar sem grande cargo da vossa consciência, o que não deveis de fazer. E para mudardes moeda em vosso proveito, com dano de todo o vosso reino, não podeis como rei, pois não deveis como justo e cristão. [...] Mas posto que passásseis e tomásseis Tânger e Alcácer e Arzila, queria Senhor saber que lhe fareis, porque povoá-las com reino tão despovoado e tão minguado de gente como este nosso, é impossível. E se o quisésseis fazer seria torpe comparação, como quem perdesse boa capa por mau capelo, pois era certo perder-se Portugal e não se ganhar África [...] Pelo qual, Senhor, concluo... que agora nem em algum tempo Vossa Mercê se não deve entremeter nesta guerra de África.»
E, premonitoriamente, ainda fez ver que condenava também a expedição por não se dispor de tropas em número suficiente nem para o ataque nem para a defesa, pelo que, pela falta das forças de socorro, “os cercadores ver-se-iam cercados”, o que foi exatamente o que veio a suceder na vergonhosa campanha comandada pelo príncipe D. Henrique que acabou com a prisão como refém do príncipe D. Fernando, seu irmão mais novo, e com a garantia, indevidamente dada por D. Henrique, de que viria a ser trocado pela entrega de Ceuta.
Regressado a Portugal, o mesmo D. Henrique defende no Conselho Real que não se devia entregar Ceuta, condenando assim pela segunda vez o irmão.
Opinião contrária foi a de D. Pedro, que considerou que se devia entregar Ceuta, pois ela não passava de “um sumidouro de homens, armas e dinheiro”.
Durante os anos em que foi regente durante a menoridade do príncipe D. Afonso, a sua atuação fez-se sentir principalmente:
- Ao nível do ordenamento jurídico-administrativo com a publicação do primeiro Código Civil português, as Ordenações Afonsinas (1446), alterando por completo o que vinha da Idade Média;
- Ao nível da formação, dotou a Universidade com receitas próprias, criando uns Estudos Gerais em Coimbra, paralelos aos de Lisboa;
- Ao nível da intervenção social, segue uma política de satisfação das classes populares dos concelhos, garantindo-lhes, por exemplo, a sua independência e liberdade face à nobreza, abolindo ou limitando o direito de aposentadoria (desobrigando os povos dos concelhos de suportarem as despesas de estadia do rei e dos nobres, e respetivas comitivas, quando estes andavam em viagem).
- Ao nível da expansão, lança abertamente o País na política dos Descobrimentos, na descoberta da costa africana e sua exploração comercial e colonização das ilhas atlânticas, desviando-se do objetivo das conquistas norte-africanas.
Com a maioridade (14 anos em 1446) de D. Afonso V (1432-1481), D. Pedro entrega-lhe o poder. Não é de admirar que elementos da grande nobreza (o duque de Bragança, e o conde de Ourém, entre outros), opostos à política de D. Pedro (alguns até por ambições pessoais preteridas) começassem a pressionar o rei para governar sem a influência do Infante. Em 1448, D. Pedro afasta-se, retirando-se para o seu Ducado de Coimbra.
Convém aqui notar que, à época, estes períodos de regência tinham por costume serem fatais para os jovens príncipes: normalmente eram mandados matar pelos regentes. O que não aconteceu durante a regência de D. Pedro. Bem pelo contrário, os cuidados na educação do príncipe foram esmerados, com vista à formação de um novo Rei.
Convém também notar que, no respeitante ao irmão bastardo D. Afonso, a quem D. João I tinha dado o condado de Barcelos, é D. Pedro que durante a regência lhe vai conceder o ducado de Bragança.
E, é também D. Pedro que vai conceder ao irmão D. Henrique o monopólio da navegação (mas não a condução), guerra e comércio das terras para além Bojador, numa tentativa de o prover de meios desafogados de sustento. Pois é este manhoso e invertebrado D. Henrique que quase não levanta a voz para defender o irmão D. Pedro, alinhando com os seus inimigos na preparação da cilada.
Em 1449, o rei ordena a D. Pedro que entregasse as armas guardadas na cidade de Coimbra e que deixasse passar nas suas terras as hostes armadas do duque de Bragança. O Infante recusa, e o Rei declara-o como desleal, oferecendo-lhe três soluções: a morte, a prisão perpétua ou o desterro.
Porque mais valia “morrer grande e honrado do que viver pequeno e desonrado”, D. Pedro, mesmo sabendo que o rei estava contra ele e que o esperava um exército imensamente grande (30.000 homens) relativo às forças que tinha, dirigiu-se com os seus homens de armas para Lisboa, para pedir justiça. O exército real aguarda-o em Alfarrobeira (20 de maio de 149), e mesmo antes da batalha se travar, D. Pedro é atingido por um virote (de um sniper da época), morrendo ali.
A sua morte conduz de imediato ao aumento do poder político e económico da grande nobreza em detrimento dos interesses dos povos e concelhos, e a uma política de conquistas no norte de África (D. Afonso V, o Africano!) em detrimento da exploração marítima da costa africana.
Apesar da historiografia enfeudada querer promover a figura de 'grande navegador' do infante D. Henrique, o facto é que durante os dez anos da regência de D. Pedro exploraram-se 198 léguas da costa africana, ao passo que nos 12 anos seguintes até ao falecimento de D. Henrique, só se ‘descobriram’ 94 léguas.
Vai ser essa política de conquista e ‘valores militares’ que, apesar do interregno que representou o reinado de D. João II, acabará por conduzir o reino a novo desastre com D. Sebastião, o Desejado.
Mas, aos seus inimigos a sua morte não bastava, era-lhes necessário apagar da historiografia oficial (as crónicas) a recordação do seu nome e dos seus feitos. Desde a falsificação de documentos, até à utilização indevida de documentos, tudo se fez.
Exemplo caricato é o da Crónica dos Feitos da Guiné ou da Conquista e Descobrimento da Guiné, de Zurara, cronista oficial de D. Afonso V, que apesar de ter sido escrita a partir de crónicas, entretanto desaparecidas, de Afonso Cerveira, cronista de D. Pedro, pouca relevância dá a D. Pedro, apesar da crónica de Zurara só abranger o período até 1448, ano em que D. Pedro deixou de ter funções políticas.
Até do seu Livro Da Virtuosa Benfeitoria, tentaram menorizar a sua contribuição, apresentando-o como obra menor, mera tradução do De Beneficiis de Séneca. No entanto, ele constitui um importante testemunho do processo de mudança no pensamento sobre o exercício do poder e da dominação em Portugal.
Sempre preocupado com a centralização do poder real, D. Pedro vai apresentar novas ideias de conceção humanista tendentes a valorizarem e legitimarem a realeza e o poder secular, e assim, justificar o progressivo aumento do poder real.
Inovadora também a posição que defende relativamente à origem do poder real: é pela eleição, herança e conquistas que se chega ao governo.
Tudo isto, segundo os estudiosos, faz com que D. Pedro seja considerado o primeiro autor de prosa doutrinal em língua portuguesa.
Acresce ainda que figura também como um dos criadores da língua portuguesa, pela maneira como escreve e pelos vocábulos que utiliza, de origem latina e grega.
É o primeiro autor a usar a palavra “poesia” no seu significado atual, chegando até a defini-la assim:
“poesia é mais sabor do que saber”.
Sobre a ignomínia de não lhe ter sido dada sepultura, a irmã de D. Pedro, Isabel, duquesa de Borgonha, enviou uma carta a D. Afonso V, seu sobrinho, onde se pode ler:
“E porque tu, mui alto Rei, superior não tens, a natureza que a tais fortuitos casos provê, deu autoridade a teu tio para se defender de ti... (...) teu tio todas estas coisas suportou, viu mortes, desterros, desonras de alguns seus, viu o primogénito lançado fora do Reino, privado de sua dignidade... padeceu por sua vontade leis feitas contra si, depois provaste de tirar ao Infante o castelo de Coimbra que seu pai e irmão lhe deram...tolheste-lhe os mantimentos, mandando que lhos não vendessem, tolheste-lhe as armas e tudo suportou... (...) nem espera nenhum homem a extrema necessidade sem ousar de se defender, senão aquele que tiver coração de mulher... (...)
pois devia ele por ventura... esperar que lhe lançassem a rede sobre a cabeça porque não filhava na mão sua espada e nem arredava de seu arraial os que contra si via vir armados (?)... (...) e devia espantar o Infante aquela não acostumada maneira de vir o duque (de Bragança)
por sua terra, a qual coisa, Senhor, te peço por mercê, que a queiras bem considerar: lembro-te ainda que o Infante oferecia ao Duque de Bragança se quisesse vir por seu senhorio sem armas... que lhe daria passagem e lhe faria muita honra... (...)Não errou coisa alguma teu tio... ele foi filho del
Rey D. João... justo, entendido, grado, liberal de grande coração... ele era teu tio e pai da tua mulher... (e referindo-se à recusa do rei em permitir sepultura digna ao Infante diz ser ela) uma esquivança de azedada vontade contra um homem morto... um indigno rigor e destruição de tua família».
Em 1961, a 17 de dezembro, Sophia de Mello Breyner Andresen, encontrava-se a escrever o poema que intitulara “Pranto Pelo Infante D. Pedro das Sete Partidas”:
“Nunca choraremos bastante nem com pranto
Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte”
O poema foi interrompido pela notícia da entrada de forças armadas da Índia em Goa. Sophia de Mello, começou então a escrever outro poema, “Pranto Pelo Dia e Hoje”:
Esta é a versão do mundo terrorista e aterrorizado que Osama bin Laden imaginou, e que está a ser realizada na prática. Daí, que ele possa ser considerado como sendo verdadeiramente o génio (maligno) da nossa época.
“O 11 setembro não foi um ataque nuclear. Não foi apocalíptico. A nuvem de fumo do local onde estavam as torres não foi a de um cogumelo nuclear. A civilização não ficou potencialmente em perigo. Não pôs em perigo a existência do nosso país, ou mesmo da cidade de New York”, Tom Engelhardt.
Este mundo em que agora vivemos, o mundo de bin-Laden, só foi possível com a ajuda de outros génios malignos.
Quando andava à procura de um apoio firme e durador em que pudesse vir a ancorar a ciência em bases verdadeiras, Descartes, para quem a dúvida aparecia como uma etapa a superar, decidiu-se pelo artifício da construção teórica de uma série de argumentos céticos a que iria dando resposta, rejeitando todos aqueles passíveis de apresentar qualquer dúvida.
O mais radical desses argumentos, na medida em que punha em causa as verdades lógicas e matemáticas, ficou conhecido como o argumento do “génio maligno”. Resumidamente:
Descartes, começa por dizer que sempre acreditara num Deus todo-poderoso, criador de tudo. Contudo, será que este Deus o iludia, não só no que dizia respeito aos sentidos para apreensão do mundo, mas também nas simples contas matemáticas? Ou será que tais ilusões seriam antes causadas por um génio maligno existente?
Poderia esse génio maligno iludir não só as nossas experiências sensoriais, mas também as nossas crenças matemáticas e lógicas, levando-nos a pensar, por exemplo, que 2+2 seriam 4, quando na realidade 2+2 eram 3, ou 5, ou 400?
Ou seja, como não sabia se estava ou não a ser iludido por um génio maligno, ficava sem saber se as verdades matemáticas e lógicas seriam mesmo verdadeiras!
Este é um argumento arrasador, dado que nos leva a duvidar de tudo, quer dos nossos sentidos, quer dos nossos conhecimentos lógicos e matemáticos.
Há pouco mais de dezasseis anos, 19 salteadores de origem saudita com escassos aliados e simpatizantes no mundo, treinados em certos locais no Afeganistão, infligiram, a 11 de setembro de 2001, uma humilhação à maior superpotência de todos os tempos, à época a potência hegemónica do planeta.
Desde aí, os EUA têm estado envolvidos em guerras sem fim à vista, que têm encorajado a criação e a disseminação de grupos terroristas, a desintegração da ordem em partes significativas do planeta, e levado à deslocação de populações inteiras em números cada vez maiores.
Triliões de dólares provenientes dos impostos dos cidadãos têm-se esvaído no suporte a essas guerras e em esquemas de “reconstrução” que se realimentam mutuamente.
Desde aí, a militarização da sociedade, através de equipamentos (carros de assalto, armamentos, incluindo o recurso à utilização de drones com explosivos) e táticas militares progressivamente usadas pelas polícias e a instauração de um clima de espionagem aos próprios cidadãos, têm vindo sempre em crescendo, imparavelmente.
Esta é afinal a versão do mundo aterrorizado e terrorista que Osama bin Laden imaginara, e que está a ser realizada na prática. Daí, que ele possa ser considerado como sendo verdadeiramente o génio (maligno) da nossa época.
Teve um pouco de sorte e ajudas.
Certamente que nunca imaginara que aquelas torres de Manhattan colapsassem da forma como o fizeram, rapidamente e à vista de todas as televisões do planeta (a dele inclusive), as cenas de desespero dos seus 3.000 mortos, as nuvens de fumo e destroços, o horror em direto.
Tudo isso levou o ataque a ser unanimemente considerado pela comunicação social e demais agentes políticos como “um novo Pearl Harbor”, “O Dia da Infâmia”, chamando ao local “Ground Zero” (termo que até então só era reservado para o local onde tivesse acontecido uma explosão nuclear), “como se um inverno nuclear se tivesse verificado na baixa de Manhattan”, dizia Tom Brokaw na NBC. O senador republicano Chuck Hagel, reconhecia que “O 9/11 mudou tudo. Chocou a nossa sociedade como nunca o fora depois de Pearl Harbor”.
Decorridos mais de dezasseis anos, depois da destruição quase total efetuada nas cidades do Médio Oriente, talvez se consigam agora perspetivar melhor as destruições provocadas pelo 11 de setembro.
Comecemos por lembrar que as armas que foram utilizadas não foram mísseis ou bombas, mas aviões comerciais cheios de passageiros. Atentemos ainda que:
“Não foi um ataque nuclear. Não foi apocalíptico. A nuvem de fumo do local onde estavam as torres não foi a de um cogumelo nuclear. A civilização não ficou potencialmente em perigo. Não pôs em perigo a existência do nosso país, ou mesmo da cidade de New York. Espetacular como foi e com um enorme número de vítimas, a operação não foi tecnologicamente mais avançada que o ataque falhado à torre do World Trade Center levado a cabo em 1993 pelos Islamitas com a utilização de um camião alugado à Ryder, cheio de explosivos”, escrevia Tom Engelhardt (“Let’s Cancel 9/11”, a 8 setembro, 2011).
Se os principais responsáveis do governo dos EUA pensassem que estavam a enfrentar uma situação idêntica à de Pearl Harbor, ou um ataque que pusesse em perigo o país, certamente recorreriam à chamada ao povo em armas, à mobilização geral, ao serviço militar obrigatório (como foi o caso após o ataque japonês). Mas não.
Nessa mesma noite, o presidente falava já “da guerra contra o terrorismo”, e o secretário da defesa, Donald Rumsfeld, iniciou logo (apenas cinco horas após o ataque) planos para uma ação contra Saddam Hussein do Iraque, com vista à criação de um projeto que visava a dominação para sempre do Médio Oriente dentro da órbita dos EUA, muito embora já então soubesse que tinha sido a al-Qaeda que tinha lançado o ataque (https://www.cbsnews.com/news/plans-for-iraq-attack-began-on-9-11/).
Os EUA entravam assim numa era em que estavam em guerra, não contra uma grande potência ou nação em particular, mas contra um fenómeno à escala global, o “terrorismo”. Como disse o presidente Bush, era “a primeira guerra do século XXI”, e como talvez sentisse a estranheza de a declarar à al-Qaeda, explicitou que “A nossa guerra ao terror começa com a al-Qaeda, mas não acaba aí” (http://metro.co.uk/2016/09/20/its-been-15-years-since-george-w-bush-declared-war-on-terror-6138441/).
Para entendermos a forma e a rapidez da administração americana na “resposta” ao ataque, convém relembrarmos o célebre documento “Rebuilding America’s Defenses” (Reconstruindo as defesas da América), publicado em setembro de 2000, dois meses antes de George Bush ganhar a presidência.
Esse documento, resultado de um estudo em que participaram 23 personalidades, entre elas Dick Cheney, Lewis Libby, Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz, Jeff Bush, John Bolton, Aaron Friedberg, Elliot Abrams, constituía uma declaração de princípios que apontava para o posicionamento e dominação do mundo futuro pela América, com enfase especial no grande aumento de gastos com a defesa por forma a obter-se uma “supremacia inquestionável” (http://www.informationclearinghouse.info/article3249.htm).
O documento considerava ainda a hipótese de aproveitamento de uma situação global que oferecesse aos americanos uma “oportunidade estratégica sem precedente” que permitisse acelerar o processo massivo de transformação militar, a fim de através dele se conseguir obter o domínio mundial do planeta.
Com a eleição de G. Bush, todos os principais participantes na elaboração deste documento, passaram a ocupar posições de relevo no governo, com o objetivo de levar à prática o que tinham decidido que deveria ser o rumo do país.
É assim, que em 2002 vai surgir a doutrina sobre as “guerras preventivas” (National Security Strategy of 2002) segundo a qual os EUA se arrogavam o direito de intervirem preventivamente em todas as nações que pudessem, mesmo que só potencialmente, por em perigo os Estados Unidos.
Sobre estas intervenções americanas, após tantos anos de envolvimento, é interessante ouvir a entrevista à PBS, do Major General David Petraeus, comandante geral das forças americanas no Iraque e no Afeganistão, mais tarde diretor da CIA:
“Trata-se efetivamente de um combate geracional. Isto não é uma coisa que vá ser ganho em poucos anos. Não vai ser subir uma encosta, colocar uma bandeira, e voltar para casa para um desfile de vitória. Precisamos de lá estar por muito tempo, mas por uma forma que seja sustentável. Estamos na Coreia há mais de 65 anos porque há lá importantes interesses nacionais. Estamos na Europa já há um longo período, e atualmente até com uma nova enfase, devido às ações agressivas da Rússia. E julgo ser esta a forma como devemos encarar a situação” (https://www.pbs.org/newshour/world/petraeus-afghan-war-generational-struggle-will-not-end-soon).
Ou seja, estas guerras são mais que geracionais, pois irão certamente serem combatidas pelos filhos, e netos dos atuais combatentes. O próprio Petraeus admite a possibilidade de uma duração de 60 anos para a guerra no Afeganistão. São guerras que não acabam. Nem agora. Nem possivelmente nunca.
Note-se que nem Donald Trump as consegue travar. Dizia Trump durante a campanha eleitoral que os EUA deviam de sair imediatamente do Afeganistão por aquela guerra ser um completo desperdício:
A conceção de tempo indeterminado para a duração destas guerras, teve uma involuntária e inesperada ajuda dada por Richard Nixon quando, a 27 de janeiro de 1973, decidiu acabarcom o serviço militar obrigatório (devido à forte oposição veementemente manifestada pelos jovens obrigados a irem para uma guerra impopular, e à época sem fim à vista).
Graças a essa decisão, é hoje possível fazer estas guerras sem fim do século XXI, com exércitos de voluntários e alguns privados. Seria impossível fazer uma guerra com esta duração recorrendo ao serviço militar obrigatório. As suas repercussões a nível interno seriam insustentáveis. Assim, com o recurso a exércitos voluntários e privados, o impacto destas guerras quase que passa desapercebido para a chamada sociedade civil.
Este mundo em que agora vivemos, o tempo em que nos fazem viver, é o mundo do génio maligno de bin-Laden, que só se tornou possível com a ajuda de outros génios malignos.
“Continuo a acreditar que o arco-íris humano tem mais cores e mais fulgores do que o arco-íris celeste, mas que estamos cegos. E direi que escrevo para tentar que sejamos mais fortes do que o medo do erro ou do castigo, na altura de fazer a escolha no eterno combate entre os indignos e os indignados”, Eduardo Galeano.
“Há já uns séculos que os súbditos se disfarçaram de cidadãos e que as monarquias se preferem chamar repúblicas.”
“Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Nat King Cole eram bem pagos, mas só podiam entrar e sair pela porta de serviço. E quando Sammy Davis Jr. mergulhou na piscina, o diretor do hotel mandou mudar a água toda.”
Do último livro de Eduardo Galeano, O Caçador de Histórias, publicado após a sua morte a 13 de abril de 2015, retirei estas pequenas histórias.
ESTRANGEIRO
Num jornal do bairro do Raval, em Barcelona, uma mão anónima escreveu:
O teu deus é judeu, a tua música é negra, o teu carro é japonês, a tua pizza é italiana, o teu gás é argelino, a tua democracia é grega, os teus números são árabes, as tuas letras são latinas.
Eu sou teu vizinho. E ainda me chamas estrangeiro?
OS LIVRES
De dia, guia-os o sol. À noite, as estrelas.
Não pagam bilhete, e viajam sem passaporte e sem preencher impressos da alfândega nem dos serviços de emigração.
Os pássaros, os únicos que são livres neste mundo habitado por prisioneiros, voam sem combustível de um polo ao outro, tomando o rumo que lhes apetecer e à hora que quiserem, sem pedir licença aos governos que se julgam donos do céu.
OS NÁUFRAGOS
O mundo viaja.
Há mais náufragos que navegantes.
Em cada viagem, há milhares de desesperados que morrem sem contemplar a travessia para o paraíso prometido onde até os pobres são ricos e todos vivem em Hollywood.
Não duram muito as ilusões dos poucos que conseguem chegar.
COSTUMES BÁRBAROS
Os conquistadores britânicos ficaram com os olhos esbugalhados de assombro.
Eles provinham de uma nação civilizada, onde as mulheres eram propriedade dos maridos e lhes deviam obediência, como a Bíblia mandava, mas na América foram encontrar um mundo às avessas.
As índias iroquesas e outras revelavam-se suspeitas de libertinagem. Os maridos nem sequer tinham o direito de castigar as mulheres que lhes pertenciam. Elas tinham opiniões próprias e bens próprios, direito ao divórcio e direito de voto nas decisões da comunidade.
Os brancos invasores já não conseguiam dormir em paz: os costumes das selvagens pagãs podiam contagiar-lhes as mulheres.
O PRAZER, UM PRIVILÉGIO MASCULINO
O que é esse rolinho de carne que espreita por entre as pernas das mulheres? Para que serve?
A ciência não achava resposta, até que se impôs a certeza de que o clítoris era um erro da anatomia feminina. Em 1857, o cientista inglês William Acton sentenciou:
- A mulher recatada não procura o prazer no sexo. Ela só procura comprazer o marido e dar-lhe filhos.
E por essa altura já se tinha demonstrado que o orgasmo feminino era imaginário e desnecessário para o sagrado exercício da maternidade.
A GARRA CHARRUA
No ano de 1832 os poucos índios charrua que haviam sobrevivido à derrota de Artigas foram convidados para assinar a paz, e o presidente do Uruguai, Fructuoso Rivera, prometeu-lhes que iam receber terras.
Quando os charruas estavam bem comidos, bem bebidos e bem adormecidos, os soldados avançaram. Os índios foram esfolados à faca, para não se gastarem balas, e para não se perder tempo em enterros foram lançados ao ribeiro Salsipuedes.
Foi uma cilada. A história oficial chamou-lhe batalha. E de cada vez que nós uruguaianos vencemos um troféu de futebol, celebramos o triunfo da garra charrua.
REPITA A ORDEM, SE FAZ FAVOR
Nos nossos dias, a ditadura universal do mercado dita ordens bem contraditórias:
Temos de apertar o cinto e temos de baixar as calças.
Os mandatos que vêm de lá de cima do alto do céu não são muito mais coerentes, verdade seja dita. Na Bíblia (Êxodo 20), Deus ordena:
Não matarás.
E no capítulo seguinte (Êxodo 21), o mesmo Deus manda matar por cinco motivos diferentes.
BREVÍSSIMA SÍNTESE DA HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
Há já uns séculos que os súbditos se disfarçaram de cidadãos e que as monarquias se preferem chamar repúblicas.
As ditaduras locais, que se dizem democracias, abrem as portas à entrada avassaladora do mercado universal. Neste mundo, reino dos livres, somos todos um só. Mas somos um ou somos nenhum? Compradores ou comprados? Vendedores ou vendidos? Espiões ou espiados?
Vivemos presos entre garras invisíveis, atraiçoados pelas máquinas que simulam obediência e mentem, com cibernética impunidade, ao serviço dos seus patrões.
As máquinas mandam nas casas, nas fábricas, nos escritórios, nos seus escritórios, nas plantações agrícolas, nas minas e nas ruas das cidades, onde nós peões somos incómodos que perturbam o trânsito. E as máquinas mandam também nas guerras, onde matam tanto ou mais que os guerreiros fardados.
O DIREITO AO SAQUE
No ano de 2003, Samir, um veterano jornalista do Iraque, andava a visitar alguns museus da Europa. Museu após museu, descobria maravilhas escritas na Babilónia, heróis e deuses talhados nas colinas de Nínive, leões que tinham voado desde a Assíria.
Alguém se aproximou, oferecendo ajuda:
Quer que chame um médico?
Engolindo as lágrimas, balbuciou:
Não, por favor. Estou bem.
E depois explicou:
Magoa-me simplesmente ver quanto roubaram e quanto roubarão.
Dois meses depois, as tropas norte-americanas lançaram a sua invasão. O Museu Nacional de Bagdade foi saqueado. Perderam-se
cento e setenta mil obras.
SAGRADA FAMÍLIA
Pai castigador, mãe abnegada, filha submissa, esposa muda.
Como Deus manda, a tradição ensina e a lei obriga:
O filho golpeado pelo pai que foi golpeado pelo avô que golpeou a avó nascida para obedecer,
Porque ontem é o destino de hoje e tudo o que foi continuará a ser.
Mas numa qualquer parede, algures, alguém rabiscará:
Eu não quero sobreviver.
Eu quero viver.
CASTIGOS
Em 1953, a Câmara Municipal de Lisboa publicou a sua Portaria nº69035:
Verificando-se o aumento de actos atentatórios à moral e aos bons costumes, que dia a dia se vêm verificando nos logradouros públicos e jardins, determina-se à Polícia e à Guarda Florestal uma permanente vigilância das pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de actos que atentem contra a moral e os bons costumes, e estabeleçam-se as seguintes multas:
1º Mão na mão: 2$50
2º Mão naquilo: 15$00
3º Aquilo na mão: 30$00
4º Aquilo naquilo: 50$00
5º Aquilo atrás daquilo: 100$00
Parágrafo único: Com a língua naquilo, 150$00 de multa, preso e fotografado.
A PERIGOSA
Em novembro de 1976, a ditadura militar argentina crivou de balas a casa de Clara Anahí Mariani e assassinou os seus pais.
Dela nunca mais se soube nada, embora desde então figure na Direção de Investigação da Polícia da Província de Bueno Aires, na secção reservada aos delinquentes subversivos.
A sua ficha diz:
Extremista.
Ela tinha três meses de idade quando foi catalogada assim.
SE ESTÁ NO LAROUSE…
Em 1885, Joseph Firmin, negro, haitiano, publicou em Paris um livro de mais de seiscentas páginas, intitulado Sobre a Igualdade das Raças Humanas.
A obra não teve difusão, nem repercussão. Só encontrou o silêncio. Naquele tempo, ainda era palavra santa o dicionário Larousse, que explicava assim o assunto:
Na espécie negra, o cérebro está menos desenvolvido do que na espécie branca.
ASSIM NASCEU LAS VEGAS
Lá por volta de 1950 e picos, Las Vegas era pouco mais do que nada. A sua maior atração eram os cogumelos atómicos que os militares ensaiavam por ali perto e que davam espetáculo à assistência, exclusivamente branca, que podia contemplá-lo do alto dos terraços. E também atraíam o público, exclusivamente branco, os artistas negros que eram as grandes estrelas da canção.
Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Nat King Cole eram bem pagos, mas só podiam entrar e sair pela porta de serviço. E quando Sammy Davis Jr. mergulhou na piscina, o diretor do hotel mandou mudar a água toda.
E assim foi até que em 1955 um milionário estreou em Las Vegas aquilo a que chamou o primeiro hotel casino inter-racial dos Estados Unidos. Joe Louis, o lendário pugilista, dava as boas vindas aos hóspedes que já eram brancos e negros; e assim Las Vegas começou a ser Las Vegas. Os donos da aldeia que se transformou no mais famoso paraíso de plástico continuaram a ser racistas, mas tinham descoberto que o racismo não era um bom negócio. Ao fim e ao cabo, os dólares de um negro rico são tão verdes como os outros.
PEQUENO DITADOR INVENCÍVEL
Matar era um prazer, e pouco importava se o finado era veado, pato ou republicano. Mas as perdizes eram a especialidade das caçadas de Francisco Franco.
Num dia de outubro d 1959, o Generalíssimo matou quatro mil e seiscentas perdizes, e assim superou o seu próprio recorde.
Os fotógrafos imortalizaram esta jornada vitoriosa. Aos pés do vencedor jaziam os seus troféus, que cobriam os solos do mundo.
ESSA PERGUNTA
A família Majfud tinha siso afrontada pela ditadura militar uruguaiana, sofrera no cárcere torturas e humilhações, e fora despojada de tudo o que tinha.
Uma manhã, os meninos estavam a brincar num velho carrinho de mão quando se ouviu um tiro. Eles estavam longe. Mas o tiro atravessou os campos de Tacuarembo e então souberam, quem sabe como, quem sabe porquê, que o estampido viera da cama da tia Marta, a mais querida.
Desde essa manhã, Nolo, o mais pequeno da família, pergunta e pergunta-se:
Porque nascemos, se temos de morrer?
Jorge, o irmão mais velho, tenta ajudá-lo.
Procura uma resposta.
Os anos vão passando, como passam as árvores diante da janela do comboio; e Jorge continua à procura da resposta.
O Facebook tinha, e tem, um ponto de vista, uma agenda fortemente paternalista, daquilo que entende ser melhor para nós, tentando encaminhar-nos para lá.
Os algoritmos não são mais do que receitas de cozinha.O algoritmo é um artifício matemático humano, não uma verdade matemática.
Escrever para ter maior número de cliques é totalmente diferente do que escrever para informar o público.
Não importa que a informação seja verdadeira ou fabricada, o que é importante é que os utilizadores recebam o que querem e merecem.
A determinação da verdade é uma complicação grande demais para ser entregue a um algoritmo.
Notícias falsas, boatos, mentiras premeditadas, todos sabemos o que são, podemos mesmo dizer que a humanidade está, ou devia de estar, formada. Ou melhor, deformada. Sempre existiram, sempre foram utilizadas, intencionalmente ou não, para variados fins. Porquê então o alarido que agora se tem feito à volta das chamadas “fake news”?
Recordemos o que diziam todas as grandes companhias de tecnologia quando se apresentaram ao mundo como plataformas para a libertação pessoal: finalmente, todos passariam a ter o direito de exprimirem nas redes sociais o que lhes ia na alma, expressarem a sua individualidade, expandirem todo o seu potencial intelectual e político.
Quando comparado com a televisão, meio passivo que tornava os cidadãos inertes, o Facebook era um meio participativo e revigorante, que permitia que os seus utilizadores pudessem ler o que quisessem, pensar por eles próprios e formar as suas próprias opiniões. Seria assim como que uma praça pública mais alargada.
Zuckerberg, seu fundador, ia até mais longe, quando via na “transparência radical” ou na “transparência última” do indivíduo, feita através da confissão comparticipada dos detalhes mais íntimos da vida pessoal de cada um, uma forma de desinfetar a confusão moral da vida. Pelo simples facto de a darmos a conhecer aos outros, transmitida, comportar-nos-íamos melhor. Trocando fotografias incriminatórias e revelações danosas, tornar-nos-íamos mais tolerantes com os pecados dos outros. Não mais teríamos duas imagens de nós próprios. Dizia até que:
“Ter duas identidades de nós próprios é um exemplo de falta de integridade”.
O que significa que o Facebook tinha, e tem, um ponto de vista, uma agenda fortemente paternalista, daquilo que entende ser melhor para nós, tentando encaminhar-nos para lá.
Não considerando Platão (governo dos sábios) nem as religiões, esta é uma tentação que vem, pelo menos, desde o Iluminismo. Alguns dos mais influentes filósofos da época, nomeadamente Henri de Saint-Simon e Auguste Comte, embora detestando os bastiões do poder antigo, os senhores feudais, os padres e os nobres, também temiam o caos da multidão. Propunham substituí-los por uma espécie de tecnocracia formada por engenheiros e técnicos que governassem desinteressadamente, com o espírito da ciência, impondo racionalidade e ordem.
Os fins do século XIX e inícios do XX viram estas ideias estenderem-se entre os dirigentes e aspirantes a dirigentes das nações. A industrialização, ao introduzir as máquinas como substitutos dos trabalhadores manuais, deu um impulso muito concreto a esta visão. Os engenheiros automatizavam então o trabalho manual.
Hoje, a nova elite de engenheiros chefes das grandes companhias tecnológicas, pretendem automatizar o pensamento, aperfeiçoando tecnologias que substituem o processo intelectual, tornando o cérebro redundante.
Com a justificação de nos tornarem mais eficientes, de tornarem a vida humana mais ordenada, essas grandes companhias sugerem que deixemos serem elas a pensarem por nós, indicando-nos o que deveremos aprender, o que deveremos considerar e o que deveremos comprar.
E tudo isso porque têm os famosos algoritmos com os quais podem melhor absorver toda a complexa realidade que nos envolve (e para a qual não temos capacidade para gerir), retirando assim das mãos dos humanos as decisões difíceis.
Mas, o que são algoritmos? Não são mais do que receitas de cozinha, que nos dão uma série de passos que devem ser seguidos sem termos de pensar neles. Primeiro faz isto… depois aquilo. Contrariamente às equações que nos conduzem a um resultado correto, os algoritmos capturam apenas o processo para resolver um problema sem saberem para onde esses passos conduzem. São instruções específicas que damos ao computador para que ele possa executar uma tarefa.
É que os programadores não podem simplesmente dizer ao computador para procurar a internet. Têm de estabelecer um processo ordenado (do conceito para o procedimento e deste para o código) que posa ser expresso num código. Daí a necessidade de se subdividirem em séries de escolhas binárias. Por exemplo: não há nenhuma equação que nos possa sugerir como nos vamos vestir, mas já facilmente se pode concluir isso através de um algoritmo pela utilização de perguntas do tipo ou isto ou aquilo (para dia ou noite, verão ou inverno, sol ou chuva) em que cada escolha leve à seguinte.
O algoritmo é um artifício matemático humano, não uma verdade matemática. E têm especial aplicação nos computadores, pois como estes são capazes de coligir enormes quantidades de data genérica, com os algoritmos conseguem-se encontrar padrões e ligações que facilmente escapariam a analistas humanos.
Com a aplicação dos algoritmos, dispensamos todo aquele trabalho moroso da investigação científica (hipótese, experimentação, estabelecer uma lei, verificar da sua aplicabilidade), uma vez que os padrões ressaltam dos data através de correlações. Com isto, retiram os humanos de todo o processo de inquirição. Como escreveu Chris Anderson:
“Já não precisamos de modelos. Podemos agora analisar data sem necessitarmos de formular hipóteses sobre o que ela nos poderá dizer. Podemos agora lançar números para os maiores conjuntos de computadores do mundo e deixar que os algoritmos estatísticos encontrem os padrões que a ciência não tem sido capaz”.
É assim que os computadores são capazes de traduzir línguas sem sequer entender as palavras, apenas através dos padrões que existem por detrás das sentenças.
Mas isto não significa que os algoritmos estejam livres de não terem preconceitos, emoções ou intuições. E mesmo que aprendam a ver novos padrões à medida que a data lhes chega, eles refletirão sempre o espírito e os motivos dos seus criadores.
Por exemplo, a Amazon e a Netflix usam algoritmos para fazerem recomendações sobre livros e filmes. Esses algoritmos procuram conhecer quais são os nossos gostos e os gostos de pessoas idênticas que consumam cultura. Contudo, os algoritmos fazem recomendações diferentes, conforme se trate da Amazon ou da Netflix.
A Amazon encaminha-nos para livros idênticos aos que já consultáramos. A Netflix encaminha-nos para o menos familiar. É que para a Netflix os grandes filmes mais comerciais são mais caros para os colocar disponíveis, pelo que têm maior lucro quando decidirmos por um filme mais obscuro.
Os algoritmos permitem-nos fazer coisas excelentes, como procurar cópias ou páginas de livros raros do século XIX em milissegundos, pôr-nos em contacto com amizades que há muito julgávamos perdidas, enviar encomendas num tempo recorde. Muito em breve, conduzir autonomamente carros. Para isso, eles estão constantemente a monotonizar-nos. Tomam decisões por nós.
O problema é que sempre que deixamos que sejam as máquinas a pensarem por nós, o que estamos a fazer é deixarmos que as companhias que controlam as máquinas sejam elas a controlarem o nosso pensamento.
A Facebook tem uma equipa especializada para conduzir experiências nos utilizadores. Como diz Cameron Marlow, que foi chefe da equipa de “data science” (ciência que ensina como escrever e rever os algoritmos):
“Pela primeira vez temos um microscópio que, não só nos deixa examinar o comportamento social a um nível como até agora nunca fora possível observar, mas que nos permite fazer experiências com milhões de utilizadores”.
Sabe-se que, por exemplo, a Facebook tentou descobrir se as emoções eram contagiosas, e que para conduzir esta experiência, tentou manipular o estado mental dos seus utilizadores. Para isso, incluiu para um grupo palavras positivas nas suas notícias (no News Feed”), e para outro grupo removeu as palavras negativas.
Depois esperou para ver quais os resultados nas comunicações (“posts”) dos utilizadores. Esta prática, embora considerada invasiva, tem sido tolerada. Como confessou um dos cientistas da equipa: “Cada um na equipa pode fazer um teste. Eles estão sempre a tentarem alterar o comportamento das pessoas”.
A Facebook acredita que conseguiu desbloquear a psicologia social e que adquiriu um conhecimento mais profundo sobre os seus utilizadores que os próprios têm sobre si. Só com base nos seus “likes” (Eu gosto), a Facebook diz ser capaz de predizer a raça dos utilizadores, a sua orientação sexual, o seu estado civil e o uso, ou não, de drogas.
Entretanto, enquanto não encontra “a lei matemática fundamental que subjaz às relações sociais humanas que governa o equilíbrio do quem e do quê nos importamos”, a Facebook “melhora-se” afincadamente para nos dar as coisas que nós queremos e as coisas que nós nem sabemos que queremos. Não importa que a informação seja verdadeira ou fabricada, o que é importante é que os utilizadores recebam o que querem e merecem.
Estas “experiências” constituem um dos exemplos mais marcantes de uma visão dos seres humanos como mera data, componentes de sistemas, abstrações. A intenção subjacente é a de tornar os seres humanos previsíveis, antecipar o seu comportamento, para os tornar mais manipuláveis.
Com a “boa intenção” de que qualquer produto que nós usemos será sempre melhor quando participado conjuntamente com os amigos, a Facebook resolveu criar o “News Feed” (canal de notícias) que apresentava ao utilizador, sempre que ele abria a página de entrada do Facebook, uma atualização constante das histórias dos nossos amigos, incluindo fotografias, vídeos, ligações (links), app utilizados e likes, páginas e grupos seguidos pelo utilizador.
As histórias que apareciam no seu News Feed eram influenciadas pela atividade ou ligações que o utilizador fazia no Facebook. Isto permitia-lhe, assim, ver mais histórias que lhe interessassem dos amigos com quem mais interagia. O número de comentários e likes que recebia e a que tipo de história se referia (vídeo, foto) faria com que tivesse mais possibilidades de aparecer no News Feed. Ou seja, com o News Feed, o Facebook transformava-se num “jornal personalizado”.
Mas com tantos milhões de amigos, torna-se difícil saber o que escolher. Por isso, o Facebook fazia as suas próprias escolhas sobre o que devemos ler. Através dos seus “isentos” algoritmos, pesquisa centenas de milhar de coisas que nós (um ‘nós’ personalizado, evidentemente) possivelmente gostaríamos de ver, reduzindo-as a algumas dezenas, e apresentando-os depois ordenadas segundo a decisão que tomam sobre quais as que devemos ler primeiro.
E aqui começa o caso das famosas “fake news”, notícias falsas. É que a popularidade das histórias noticiadas não significa que elas mereçam, só por isso, serem dadas a conhecer. Escrever para ter maior número de cliques é totalmente diferente do que escrever para informar o público.
Além do mais, como é que uma organização com mais de dois biliões de utilizadores, de variadas culturas e crenças, pode ser o “árbitro da verdade” quando o seu produto foi fundamentalmente concebido para realimentar o circuito: lê isto, gosta disto, compartilha isto, lê mais disto?
Exemplifiquemos com o “inócuo” Diário Notícias. O DN apresenta artigos e informações de acordo com o critério do diretor, que previamente se assegura de um certo grau de veracidade das notícias e fontes utilizadas. Os leitores podem exprimir a sua opinião. Se formos verificar essas opiniões concluiremos que a grande maioria delas exprime conceitos racistas, xenófobos, antissocialistas, machistas, como se a um grupo de pessoas tivesse sido encomendado.
Se cada vez que essas opiniões fossem lidas correspondesse a um clique (que por sua vez significaria dinheiro entrado), então esse grande número de opiniões racistas, etc., seria considerado como a opinião maioritária, e passariam a serem colocadas em primeiro lugar, à frente das outras. E, se o DN não fosse um órgão de comunicação social e apenas uma plataforma digital, então seriam essas histórias não verificadas que apareceriam a abrir o jornal.
Daí a grande insistência dos donos das Googles, Facebook, Twitters, em se considerarem apenas empresas tecnológicas e não empresas de comunicação (“We are a tech company, not a media company”), para não poderem serem responsabilizadas e acusadas de difundirem notícias falsas, como consta da Communications Decency Act’s Section 230(c) de 1996 e da ata do Good Samaritan, nos EUA.
De certa forma, estas companhias foram vítimas do seu próprio sucesso: sabe-se hoje que mais de metade dos adultos nos EUA lê as notícias a partir das redes sociais, que a maior parte dos estudantes tem dificuldades em distinguir entre notícias falsas e notícias verdadeiras, e que 20% dos utilizadores das redes sociais dizem que alteraram as suas convicções ou posicionamentos políticos devido aos artigos vistos nessas redes.
Por outro lado, estas plataformas foram construídas para levar as pessoas a envolverem-se com elas, sabendo que o sensacionalismo (uma das formas das “fake news”) encoraja esse envolvimento. Obviamente, elas não são totalmente responsáveis por essa proliferação: há que contar com os ‘piratas’ (hackers), com os grupos políticos que põem (mandam pôr, pagam) a circular essas notícias, e ainda com os utilizadores que também têm parte dessa responsabilidade.
Seja como for, parece-me que nunca veremos estas companhias assumirem a total responsabilidade pelos seus conteúdos, na medida em que tal significaria contrariar a filosofia porque foram criadas: “Quanto mais, melhor”.
Nem elas, nem os governos dos vários países para os quais o não se saber o que é verdadeiro ou falso constitui a proteção ideal para fazerem impunemente o que querem.
Defende-se Zuckerberg, dizendo que este problema das fake news é simultaneamente técnica e filosoficamente complicado. Tem toda a razão. A determinação da verdade é uma complicação grande demais para ser entregue a um algoritmo.
Os algoritmos deram-lhes um sentimento de omnipotência, levando-os a acreditar condescendentemente que o comportamento humano podia ser alterado, como se fossemos parafusos ou rebites de um grande projeto social de um mundo novo e perfeito. O deles.
Em tempo: é interessante ler a carta que Zuckerberg, da Facebook, escreveu aos seus seguidores, intitulada “Building Global Community”
“A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério.” Elizabeth Bishop.
“Literatura é literatura, independente de quem a produz”.
“Deve-se ser capaz de alargar a visão através da simples concentração, absorção, auto esquecimento, etc. -sem ser preciso comer cogumelos ou tomar LSD”.
“Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados”.
Quando ainda jovens jogávamos no tabuleiro das damas ao “perde-ganha”, mal sabíamos que estávamos a jogar a um verdadeiro jogo da vida. Quando muito, alguns conseguiam-se aperceber que quem ganhava perdia, o que, de certa maneira, já era uma elaboração rebuscada. Só mais tarde se consegue aprender do ganho que pode ser o perder, e só muito mais tarde conseguimos integrar o perder que é a vida no viver.
Coube à escritora americana Elizabeth Bishop (1911-1979), dar forma, nos últimos anos de vida, a este modo de viver. Considerado um dos melhores poemas do século XX, eis “One Art”, (A Arte de Perder, na tradução junta):
The art of losing isn't hard to master; so many things seem filled with the intent to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster of lost door keys, the hour badly spent. The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster: places, and names, and where it was you meant to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last, or next-to-last, of three loved houses went. The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster, some realms I owned, two rivers, a continent. I miss them, but it wasn't a disaster.
Even losing you (the joking voice, a gesture I love) I shan't have lied. It's evident the art of losing's not too hard to master though it may look like (Write it!) like disaster.
A tradução, especialmente de poesia, põe problemas de difícil resolução, o menor dos quais será o de tentar fazer corresponder aquilo que o autor quis dizer na forma em que o escreveu, com os sentimentos e emoções de uma outra sociedade. Acresce que neste caso, a maior parte das traduções são feitas para o Brasil, o que se presta a equívocos linguísticos. Decidi-me por uma tradução mais literal, talvez menos poética, mas que me pareceu mais adequada.
A arte de perder
A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouco a cada dia. Aceite a incomodidade da perca das chaves de casa, do tempo gasto inutilmente. A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, ou para onde vai ser a viagem não feita.
Nada disso é sério.
Perdi o relógio da minha mãe. Ah! E por último perdi três queridas
casas que tive. A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E outras coisas mais vastas que eram minhas, dois rios, e mais um continente. Tenho saudades deles, mas não é nada sério.
Mesmo perder-te (a voz jocosa, o menear que eu amo), não altera nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério, por muito que pareça (Toma nota!) muito sério.
Nascida em 1911 em Worcester, Massachusetts, numa família com posses, o pai morreu quando ela tinha oito meses, e a mãe foi internada quatro anos depois devido a doença mental, pelo que Elizabeth passou os anos seguintes em casas de parentes, primeiro com os avós maternos na Nova Escócia, Canadá, depois com a os avós paternos em Worcester e mais tarde nos arredores de Boston, à beira mar, com as tias e o tio que insistia em lhe dar banho mesmo aos doze anos, garantindo assim que era ela bem lavadinha em todas as suas cavidades e certificando-se que os dois pequenos altos que lhe apareciam no peito eram mesmo naturais.
Desde muito cedo contraiu asma e eczema, que a levou várias vezes à cama e a faltar às aulas. Valeram-lhe os cuidados das suas tias, uma delas enfermeira. Mesmo assim conseguiu entrar para a faculdade, o Vassar College, Poughkeepsie, Nova Iorque, em 1929, pouco antes do crash da bolsa.
Terminou o bacharelato em literatura inglesa em 1934, ano em que morre a mãe. Esse é o ano em que começa a beber, talvez influenciada pela morte da mãe que nunca visitara, talvez por julgar que a doença da mãe fosse hereditária ou talvez ainda por um amor não correspondido de uma colega de faculdade.
Depois, inscreve-se para a licenciatura no curso de medicina, na Cornell Medical School. Vai ser a respeitada poetisa Marianne Moore que a convence a desistir da inscrição, incentivando-a e ajudando-a antes a publicar alguns dos seus poemas.
Bishop opta então, uma vez que a herança que o pai lhe deixara permitia-lhe levar uma vida independente e desafogada sem necessitar de arranjar emprego, por viajar pelo mundo, vivendo em várias cidades e países que irá descrever nos seus poemas.
Fixa-se em França por vários anos a partir de meados dos anos 30, com Louise Crane, uma colega de Vassar, herdeira de fábricas de papel (do qual se faziam os dólares).
Em 1938 regressam aos EUA e compram uma casa em Key West, Florida, onde continuam a viver juntas. A posterior separação do casal, por infidelidade de Crane, é sofridamente sentida por Bishop como uma rejeição.
O seu consumo de álcool descontrola-se, o que a leva a internar-se num hospital de Connecticut durante dois meses.
Em 1949 muda-se para Georgetown, Washington, D.C., trabalhando como consultora em poesia para a Biblioteca do Congresso.
Em 1951 recebe uma bolsa da Bryn Mawr College, e resolve fazer uma viagem de circum-navegação pela América do Sul. Aporta a Santos, Brasil, em novembro, esperando lá permanecer duas semanas.
Acabou por lá ficar mais vinte anos, com o segundo grande amor da sua vida, Maria Carlota (Lota) de Macedo Soares. Primeiro no Rio de Janeiro, depois em Petrópolis e mais tarde em Ouro Preto, na propositadamente restaurada Casa Mariana. Lota constrói-lhe um lindíssimo estúdio nessa região luxuriante, onde Bishop se sente finalmente em segurança, em casa, um santuário, um lugar para respirar e escrever.
Lota Soares nascera em Paris, numa proeminente família política do Rio de Janeiro. Conhecida como arquiteta paisagista e urbanista autodidata, acabou por ser convidada pelo governador Carlos Lacerda para desenhar e supervisionar a construção do Parque Flamengo do Rio de Janeiro.
Em 1956, Bishop recebe o Prémio Pulitzer de Poesia com o seu livro North & South, A Cold Spring, depois o National Book Award em 1969 com o livro The Complete Poems, e o National Book Critics Circle Award, e aindaduas bolsas Guggenheim e uma da Fundação Ingram Merrill.
Mas a relação foi-se deteriorando devido às sucessivas ausências de Lota, embrenhada no trabalho que estava a desenvolver no Rio, o que levou a um crescente alcoolismo por parte de Bishop.
Em 1966, Bishop vai passar uns meses a ensinar em Seattle, onde acaba por iniciar uma relação com uma jovem mulher de vinte e três anos, Roxanne Cumming, grávida de um artista local. A relação prolongou-se por carta, o que fez com que após o regresso ao Brasil, Lota descobrisse.
Tal descoberta, coincidindo com o fato de Lota ter ficado sem o trabalho no Rio devido a mudanças políticas, acabam por levar Lota a ter de ser hospitalizada, com ataques de ciúme e fúria. Quando no verão seguinte Lota volta a ter novos ataques, Bishop, a conselho do médico, afasta-se e parte para os EUA por uns meses.
Algumas semanas depois, Lota comunica-lhe que já saíra do período de internamento hospitalar, e que a ia visitar a Nova Iorque. Bishop vai buscá-la ao aeroporto no dia 19 de setembro de 1967, jantam e vão dormir. Quando Bishop acorda, verifica que Lota tomara uma sobredose de sedativos. Levada para o hospital, acaba por morrer dias depois.
Em 1969 é-lhe atribuído o National Book Award com o livro The Complete Poems, bem como o National Book Critics Circle Award, duas bolsas Guggenheim e uma da Fundação Ingram Merrill.
Bishop decide regressar definitivamente aos EUA em 1970, ano em que começa a lecionar em Harvard. Com 59 anos, foi a primeira mulher a lecionar a disciplina de estudos avançados de escrita, posição que manteve até aos 66 anos.
Alice Methfessel, então com vinte e sete anos, assistente administrativa de Harvard, vai ser quem vai auxiliar Bishop a ajustar-se à vida universitária, ajudando-a ainda com as doenças que ela ia exibindo: a asma crónica agravada pelo fumo dos cigarros, o aparecimento de reumatismo, a disenteria recorrente contraída no Brasil, ossos quebrados devido a quedas provocadas por embriaguez.
Começa assim em fins de 1970 a sua última relação amorosa, que duraria até à sua morte a 6 de outubro de 1979, aos 68 anos, motivada por aneurisma cerebral.
Nos finais de 1975, Alice comunica-lhe que andava a sair com um homem, Peter, o que deixa Bishop totalmente devastada. Refugia-se na Florida em dezembro, e em meados de janeiro de 1976 toma uma sobredose de comprimidos com álcool. Sobrevive, devido a ter sido socorrida por vizinhos. Envergonhada, pede desculpa, e como que para conseguir dominar o sentimento de perca, escreve rápida e sucessivamente dezassete esboços do que viria a ser o seu poema mais famoso, um resumo do que era a vida e de como vivê-la: “One Art” (A Arte de Perder).
No final do inverno, Alice regressa, ficando com Bishop até ao fim.
Nesse ano de 1976, para além do regresso de Alice, Bishop viu-lhe ser atribuído o Prémio Literário Internacional Neustad pelo conjunto da sua obra, sendo a primeira mulher a recebê-lo, viu ainda a aclamação do seu último livro de poemas, Geography III que contém “One Art”.
Com o dinheiro do prémio, vai fazer uma viagem à Europa para visitar o seu amigo Lowell em Inglaterra, passando por Lisboa, e percorrendo o país num carro alugado.
Em 1977, no fim do primeiro semestre, o seu contrato com universidade e dado por findo devido a ter atingido os 66 anos. Contudo, os seus dias de ensino não terminaram: vão continuar no Massachusetts Institute of Technology.
Methfessel foi por Bishop nomeada única herdeira de todos os seus bens (royalties dos seus livros, Casa Mariana e do condomínio Lewis Wharf onde residiam, e uma renda do fundo Bishop), com exceção da sua biblioteca que deixou a Frank Bidart, jovem poeta que a ajudara nas revisões da sua obra.
Embora Bishop tenha instruído Methfessel para retirar do espólio tudo o que pudesse revelar a relação entre elas, porque “era da escola antiga e acreditava na discrição e privacidade”, Methfessel guardou as cartas escritas, que só foram descobertas em 2010, um ano depois da sua morte com sessenta e seis anos em 2009.
Têm as mulheres maior sensibilidade que os homens? Serão fatores contributivos para essa sensibilidade as dificuldades emocionais tidas na infância e juventude? Uma vida economicamente desafogada pode contribuir para essa sensibilidade especial? São as mulheres melhores poetisas que os homens? Há uma forma de escrever das mulheres que as diferencia dos homens? O álcool e as drogas ajudam a uma interpretação poética do mundo? A homossexualidade?
Algumas destas questões foram abordadas por Bishop. É assim, que tendo sido por várias vezes convidada para participar em antologias poéticas femininas, como The Women Poets in English (Mulheres Poetisas em Inglês), recusou sempre porque para ela “Os homens e as mulheres não escrevem de maneiras diferentes”.
Além disso “imaginam o ridículo que seria o aparecimento do título Men Poets in English?” […] Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados”.
A segregação, seja ela artística ou social, acabará sempre por ser contra a aceitação da igualdade entre as mulheres e os homens:
“Literatura é literatura, independente de quem a produz”.
Embora Bishop bebesse frequentemente até ao ponto de colapsar, o seu comentário à novela de Aldous Huxley, A Ilha, é interessante. Acha-a “mal escrita, com um final muito triste, ele estava desencorajado”, e não a impressionava o final em que Huxley se dizia “iluminado pelo uso de drogas”. Para ela:
“Deve-se ser capaz de alargar a visão através da simples concentração, absorção, auto esquecimento, etc. -sem ser preciso comer cogumelos ou tomar LSD”.
Sobre a felicidade, Bishop escreve que “é uma questão de sorte, mesmo para quem tenha tão boa disposição como tu”. No seu caso, ela considerava-se como uma pessoa que atraía “a má sorte, mas não posso ser ajudada”. E que “até recentemente, penso que consegui lidar com os desastres, etc. bastante bem”.
Sobre as relações com o outro sexo, pergunta-se, surpreendida, como é que “quando estava na idade em que devia ser louca por rapazes, tinha medo de falar com eles, etc., e sofrera o inferno”, quando agora “quarenta anos mais tarde” se sentia perfeitamente à vontade convivendo com eles.
E depois há outras perguntas mais específicas: segundo os especialistas, “One Art” é o único poema, e logo o último, dos muitos que escreveu ao longo da sua vida, que assume a forma de vilancete (poema construído a partir de um mote de dois ou três versos; se o último verso do mote é repetido no último verso do poema, é um vilancete perfeito. No caso presente, cinco tercetos e uma quadra a concluir). Porque se decidiu Bishop pela utilização dessa forma?
Aqueles para os quais a racionalidade e a lógica constituem o epítome de beleza, fazem-nos notar que “One Art” começa com uma consideração geral e aplicável a todos, passando depois para referências gerais aplicáveis a uma pessoa, terminando com uma consideração muito particular sobre a vida vivida daquela só pessoa. Ou seja, passa do geral e universal para o particular.
Da mesma forma que Elizabeth Bishop não é só o que as várias biografias dizem, é certamente muito mais, na sua afirmação de pessoa como ser humano coxo como não poderia deixar de ser exatamente por ser humano, também “A Arte de Perder” ultrapassa a simples superfície lisa da folha em que foi impressa para se inscrever no éter espacial dando significado ao pouco que existe.
Notas: para mais informação, consultar Megan Marshall, Elizabeth Bishop: A Miracle for Breakfast, Houghton Mifflin Harcourt, 2017.
Há ainda um filme que foca o poema “One Art”. Trata-se do “Still Alice” de 2014, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland, baseado na novela de Lisa Genova de 2007 com o mesmo título, no qual Julianne Moore desempenha o papel de uma professora de linguística (Alice Howland) a quem é diagnosticada doença de Alzheimer aos 50 anos (http://www.imdb.com/title/tt3316960/).
Da relação de Lola Soares com Elizabeth Bishop e com o político Carlos Lacerda, bem como do seu envolvimento no golpe militar brasileiro de 1964, há um filme brasileiro de 2013, “Flores Raras”, (Reaching for the moon) de Bruno Barreto, baseado no livro de Cármen Lúcia de Oliveira, Flores raras e banalíssimas, e com Glória Pires e Miranda Otto como Elizabeth Bishop (http://www.imdb.com/title/tt2217458/).