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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Donos da "inevitabilidade"

 

Mas, será provável que a probabilidade nos traga a certeza?”, Pascal.

 

 “É mais fácil habitar num futuro imaginário do que enfrentar um presente intratável”, John Gray.

 

“Um bebé nascido em Shangai tem menos probabilidades de morrer no primeiro ano de vida, e provavelmente aprenderá a ler, e poderá contar com viver mais dois anos que uma criança que nasça em Nova Iorque”, N. D. Kristof.

 

Quer o racionalismo económico do marxismo-leninismo, quer o racionalismo do mercado-livre, são variantes do mesmo projeto Iluminista.

 

 

 

Uma das noções que mais tem contribuído para que se encare o futuro com apreensão, temor, ou com uma total resignação, é a de que o sistema de mercado livre único global seja uma inevitabilidade económica, solução que, mais tarde ou mais cedo, custe o que custar, virá a ser imposta ou perfilhada por todo o mundo.

 

É sabido que desde há muito os EUA se julgam o modelo e a referência universal, ao identificarem os valores ditos ocidentais, que para eles são os valores e as instituições americanas, como sendo universais. Esta ideia que os Estados Unidos têm de ser um modelo universal, sempre fez parte da cultura da nação americana.

Mas, só quando a Nova Direita, a partir dos anos oitenta do século passado, começou a associar a essa ideia de missão nacional a da ideologia do mercado livre único global, é que os EUA passaram a aparecer como símbolo do poder empresarial e do ideal de uma civilização universal.

 

 

Mas, será que os EUA são mesmo o modelo em que o mundo se quer rever? Será que o mercado-livre único global poderá vir a ser uma realidade?

 

O problema base deste pressuposto de que “os EUA são um modelo para o mundo”, reside no facto de os EUA não serem aceites como tal pelos outros países.

 E, a principal razão para tal acontecer, talvez resida no facto do sucesso económico americano ser feito à custa de grandes divisões sociais, de crime violento, de prisões, de conflitos raciais e étnicos, de separações de famílias e de colapso de comunidades, dificilmente toleráveis noutros países.

 

 

O modelo da sociedade americana

 

Na época (1980) em que Ronald Reagan era presidente dos EUA, por cada 100.000 americanos, encontravam-se presos 103. Catorze anos depois, em 1994, esse rácio passou para 373, o que significava um aumento superior ao triplo. E, em 2013, o rácio era já de 716 pessoas por 100.000, de longe o maior do mundo (http://www.vox.com/2015/7/13/8913297/mass-incarceration-maps-charts).

  Na Alemanha, este rácio era de 76, na Itália de 85, na Suécia de 60, na Arábia Saudita de 161, em Singapura de 220, no Cazaquistão de 275.

 

Em finais de 1994, mais de 5 milhões de americanos encontravam-se presos, ou a cumprirem pena em liberdade condicional. Em 2016, eram já mais de 8 milhões de americanos nestas condições, o que significa que 1 em cada 35 americanos se encontrava debaixo do controle do sistema de justiça criminal.

 

Vejamos agora os rácios respeitantes aos crimes violentos (assassinatos, violações, roubo e assalto agravado). Nos EUA, o rácio de crimes violentos é de 385 por cada 100.000 habitantes. Comparando, temos que para a Inglaterra o rácio geral é de 199; para a Alemanha é de 161; e para a Áustria é de 117.

 

No respeitante à mortalidade infantil, entre os 26 países mais ricos do mundo, os EUA são, de longe, aquele que tem o maior rácio, com três quartos (75%) de todas as mortes de crianças do mundo industrializado, quer seja por suicídio, homicídio ou por mortes provocadas por armas de fogo.  

Com 7 mortes por cada 1.000 crianças, os EUA ocupam o lugar 51 quando comparados com o resto do mundo.

 Segundo N. D. Kristof (China Wakes: The Struggle for the Soul of a Rising Power):

 

Um bebé nascido em Shangai tem menos probabilidades de morrer no primeiro ano de vida, e provavelmente aprenderá a ler, e poderá contar com viver mais dois anos que uma criança que nasça em Nova Iorque.”

 

O grande número de crimes e de encarceramentos, anda a par com o extraordinário número de advogados. Nos EUA existem mais de 900.000 advogados, 70% dos advogados de todo o mundo, o que dá um rácio de 300 advogados por 100.000 americanos, ou seja, um advogado por cada 333 americanos. No Japão, o rácio é de 12, na Inglaterra 100.

 

A importância destas estatísticas referentes aos números de presos, de crime violento e de advogados, é o de elas refletirem, só por si, o retrato de uma sociedade na qual a justiça se tornou na única instituição social a funcionar, e em que as prisões são um dos poucos meios de controle social.

 

Aquilo que constituía o símbolo da sociedade americana, a família, a vizinhança dos bairros, as empresas de negócios, encontra-se hoje esvaziada. Se a isto juntarmos as prisões de alta tecnologia, os condomínios murados e fechados, e as empresas virtuais, teremos o símbolo dos EUA século XXI, a sociedade do mercado livre.

 

Anexo: Artigo e vídeo da CNN sobre os americanos que trabalham e vivem abaixo da linha de pobreza (http://money.cnn.com/2017/06/15/news/economy/donald-trump-the-financial-diaries/index.html).

 

 

O mercado livre como resultado de um processo natural

 

A Nova Direita gosta de afirmar que o mercado livre será o resultado de um processo natural que acabará por acontecer quando o estado, considerado como interferência política (força de bloqueio), for removido do mercado.

Contudo, esta ideia que as Novas Direitas têm de que mercados livres e governo mínimo estão interligados, não passa de uma inversão da verdade.

Exatamente por a tendência normal das sociedades ser a de regular os mercados, é que os mercados livres só podem ser criados através do poder de um estado centralizado. Não podem existir sem esse poder. É a regulação dos mercados que constitui a norma, o desenvolvimento espontâneo da vida em qualquer sociedade. Por isto, o mercado livre só poderá ser uma construção do poder de estado.

 

 

A globalização torna, só por si, universais os valores ocidentais

 

Outra ideia errada que a Nova Direita tem é a de que a globalização, ou seja, a disseminação por todo o mundo de novas tecnologias que fazem desaparecer a distância, torna, só por si, universais os valores ocidentais.

Bem ao contrário, a globalização torna é irreversível a existência de um mundo plural, de culturas económicas que permanecerão sempre diferentes, e que acabarão por terem de conseguir encontrar um modo de viver entre elas.

As várias organizações transnacionais vão ter de conseguir criar um conjunto de regulamentos no qual as várias economias de mercado se possam desenvolver.

O que se está a fazer é a tentar obrigar as várias divergentes culturas económicas do mundo a confluírem num único mercado livre global. E, talvez isso aconteça porque já se tenham apercebido que o aumento das interconexões entre as economias mundiais não significa o crescimento de uma civilização de uma só economia.

 

 

A dominação dos EUA é a mais hegemónica de todos os tempos

 

Por muito que queiram impor aos países do mundo este “consenso de Washington” do mercado livre global, utilizando como seu instrumento instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, as resistências ao modelo fazem-se sentir por toda a parte.

É que aquilo a que chamamos mundo, já não é o que foi. Contrariamente ao que nos têm tentado querer convencer, a dominação dos EUA não é a mais hegemónica de todos os tempos. Mesmo sem ter de recuar muito, recordemos o Império Britânico:

 

Em 1848, uma manifestação violenta em Atenas, acabou por destruir a residência e propriedades de Don Pacífico, um português, que por ter nascido em Gibraltar tinha também a nacionalidade inglesa. Don Pacífico pediu uma indeminização de £30.000.  Como em janeiro de 1850 ainda nada fora decidido pelo governo grego, Lord Palmerston, Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo inglês, ordenou o bloqueio de porto do Pireu e o arresto dos barcos gregos. 

Em junho de 1850, na Câmara dos Comuns, Palmerston defendeu essa sua ação, citando uma frase do Novo Testamento, “Eu sou um cidadão de Roma”. E continuou justificando-a:

 

Para que assim, qualquer súbdito inglês, esteja em que lugar ou país estiver, se deva sentir confiante pois que os olhos vigilantes e o braço forte de Inglaterra, o protegerão contra qualquer injustiça ou malfeitoria.”

 

 Era assim a pax Britannica no seu apogeu.

 

Século e meio depois, em 1994, um estudante americano, Michael Fay, é condenado em Singapura, a apanhar cinco chicotadas por ter escrito um grafiti num edifício público. Apesar dos esforços da diplomacia americana, incluindo a intervenção pessoal do presidente Clinton, a punição não foi retirada, sendo apenas reduzida para quatro chicotadas.

 

 Século e meio depois da ação unilateral de Palmerstone, a grande potência americana foi desafiada por um pequena cidade-estado asiática. Mas, o que se passou foi mais do que isso. Foi uma rejeição dos valores ocidentais considerados (pelos ocidentais) como universais, numa clara prova de que o seu modelo de modernização e desenvolvimento era superior ao ocidental, e que o ocidente nada tinha para lhes oferecer.

 

 

Os países modernizam-se à medida que forem reproduzindo as sociedades ocidentais

 

Outra ideia das Novas Direitas é a de que existe uma lógica universal do industrialismo e que o relacionamento social encontrado pelas primeiras nações que se industrializaram, ou seja, o individualismo, o mercado de trabalho livre, e outros, teriam inevitavelmente de se repetirem e desenvolverem nas outras partes do mundo.

 Esta sua base teórica repousa na chamada hipótese da convergência, e vem das teorias da filosofia da história do Iluminismo que preconizavam que os países se iriam modernizando à medida que fossem reproduzindo as sociedades ocidentais. O que não se veio a verificar.  

 

Por exemplo, no Japão, o desenvolvimento de uma sociedade capitalista não se produziu com base no individualismo. Os acordos entre os trabalhadores e o corpo das instituições do mercado, assentaram mais na confiança no que numa cultura do contrato.

Na realidade, o capitalismo não tem de assentar no individualismo como premissa: tal não passa de um acidente histórico.

Apesar dos insistentes pedidos de Washington para que o Japão alterasse a sua política de garantia de emprego substituindo-a pelo individualismo do mercado, a cultura japonesa tem resistido, mesmo num cenário de não crescimento económico.

Um economista japonês estudioso de Stuart Mill recorda o que este disse:

 

 “Uma condição estacionária do capital e da produção não necessita de ser, forçosamente, um estado estacionário do desenvolvimento humano.”

 

É que para S. Mill, o progresso tecnológico devia ser usado para melhorar a qualidade da vida e não servir apenas para aumentar a quantidade da produção.

 

 

Não há diferenças entre os capitalismos asiáticos e ocidental

 

Mesmo tendo em conta serem hoje os mercados livres os mais potentes dissolventes da tradição, o que tem feito com que virtudes como a respeitabilidade, orgulho cívico, aforro, valores familiares, sejam hoje peças de museu sem valor, é muito possível que as diferenças entre os capitalismos asiáticos e ocidental, não parem de aumentar. Eles acabarão por refletir diferenças não só das suas estruturas familiares como, inclusive, das suas culturas religiosas, a que os seus capitalismos se enraizaram.

 

Max Weber, o grande sociologista do capitalismo, foi o primeiro a demonstrar a importância da religião para o desenvolvimento económico, nomeadamente ao estabelecer a ligação existente entre o desenvolvimento do capitalismo nos países europeus e o protestantismo. Ora, até isto os advogados do mercado livre único e global, parecem ter esquecido.

 

 

O progresso humano só se realiza através de uma única civilização

 

Há também outras considerações que esta Nova Direita do mercado livre global deveria atentar (muito embora lhe seja impossível, o tal problema do chupar na teta da vaca).

Por exemplo, seria muito importante estudarem afincadamente a experiência falhada do socialismo dito Marxista do século XX, quanto mais não fosse pela muito semelhante tentativa de engenharia social.

É sempre bom lembrar que, quer o racionalismo económico do marxismo-leninismo, quer o racionalismo do mercado-livre, são variantes do mesmo projeto Iluminista.

Ambos não reconhecem, e até negam, que a economia moderna possa aparecer com várias formas. Ambos estão decididos a infligirem grandes doses de sofrimento à humanidade para conseguirem impor a sua visão única do mundo. Nenhum deles se importa com as necessidades vitais humanas. Ambos estão convencidos que o progresso humano só se realiza através de uma única civilização.

 

Daí que o filósofo japonês, Takeshi Umehara, nos diga que:

 

 “O total falhanço do marxismo-leninismo … e o despedaçar dramático da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental. Longe de constituir uma alternativa ao Marxismo e ser ideologia reinante sobre o fim da história, o Liberalismo será o próximo dominó a cair”.

 

 

A inevitabilidade evitável

 

De certa maneira, esta noção de um sistema económico único para todo o planeta, não assenta em nenhuma prova científica, histórica ou filosófica e não tem nenhum caráter de inevitabilidade, não passando de mais uma variante do projeto geral do Iluminismo que pretendia substituir a diversidade das culturas humanas por uma só cultura de uma única civilização universal.

 

 

A incerteza generalizada

 

Bem gostaria que toda esta análise interpretativa acima feita, fosse suficiente para me dar tranquilidade. O problema é que ela assenta numa visão cultural das sociedades humanas que pode não se verificar. Até porque já, por mais de uma vez, a cultura se mostrou incapaz para deter projetos aberrantes.

 Países expoentes da alta cultura e civilização, como a Alemanha, viram os seus maiores representantes converterem-se a políticas desumanas. A cultura existente sucumbiu ruidosamente face à nova força, pronta a adotar um novo paradigma.

Além do mais, o quadro geral do mundo tem vindo a mudar rapidamente. Não é já hoje possível falarmos em estados, países, como entidades coerentes e unificadas. O interesse nacional começa a ser difícil de distinguir. E, dentro da mesma nação, as pessoas têm interesses muito diferentes. Os interesses dos proprietários das Googles e os dos seus empregados da limpeza, não são os mesmos. Não trabalhamos todos em harmonia, nem constituímos todos uma família feliz.

Hoje o poder está nas mãos de financeiros e de grandes multinacionais. Os seus interesses estão focalizados apenas na obtenção de lucro, mesmo que para isso tenham de aumentar o poder de outra nação concorrente que lhes propiciará esse maior lucro. E assim sucessivamente.

Uma vez quebrado este quadro de estados nacionais como entidades unificadas e sem divisões internas, estamos a assistir a uma mudança global do poder, da força global de trabalho para os donos do mundo, o capital transnacional e as instituições financeiras globais. Um novo paradigma.

 

É que a análise cultural só pode ser aplicável dentro do mesmo paradigma cultural. E, mesmo assim, com muitas limitações. Mas fica sempre bem elaborarmos eruditamente com ela. Puro surf.

 

 

 

 

(116) Ecologias restantes

 

Para Aldo Leopold, a ‘comunidade natural’ inclui seres humanos, animais, plantas, água e solos, integrando assim quer os elementos bióticos, quer os elementos abióticos da terra.

 

 “Uma coisa é certa quando tende para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada, quando tende no sentido oposto”, Aldo Leopold.

 

Age de tal forma que os efeitos da tua ação não sejam destruidores da futura possibilidade dessa vida;não comprometas as condições de uma continuidade indefinida da humanidade sobre a terra”, Hans Jonas.

 

O fascismo surge como um Darwinismo social, em que as sociedades mais dinâmicas podem e devem ganhar a luta inevitável pela sobrevivência face às outras sociedades mais fracas.

 

 

 

 

A ética da Terra

 

 

O conceito de ‘comunidade natural’ e a ideia que a economia não se podia sobrepor aos nossos deveres para com a Natureza, pertence ao americano que é a referência fundamental de toda a ecologia, Aldo Leopold, (1887 – 1948), e que viveu coerentemente na prática, todas as suas teorias.

 

 A sua visão encontra-se exposta na obra A Sand County Almanac (publicada em 1949, com versão portuguesa Pensar como uma Montanha), onde, ao abordar as questões da comunidade natural e economia, desenvolve o pensamento que ficou conhecido como “ética da terra”.

 

Para ele, a ‘comunidade natural’ incluía seres humanos, animais, plantas, água e solos, integrando assim quer os elementos bióticos, quer os elementos abióticos da terra.

O homem é, assim, apenas mais um elemento de uma comunidade de que faz parte, não aparecendo como sendo o “dono “da terra. A terra não é uma propriedade humana, daí que o homem a deve habitar harmoniosamente como seu cidadão, o “cidadão biótico”.

 

A violência sobre a terra deixa de ser aceite sempre que a tratarmos como um valor económico, sempre que a tratarmos como um direito nosso, sobrepondo-o aos deveres que para com ela devemos ter.

 

 Ou seja, é fundamental conceber a terra para além do seu valor económico. Devemos compreender que a terra deve, em si mesma, ser apreciada e protegida, pois ela tem valores por si própria, tem valores intrínsecos.

 

Para Leopold, qualquer consciência ambiental tem de ultrapassar a tendência para perspetivar a ética como exclusivamente humana, a qual concebe os homens como os únicos seres que devemos amar, respeitar, admirar e proteger.

 

A Natureza, onde o homem se inclui, deve ser preservada a todo o custo, correndo o risco de perdermos a nossa “habitação”. O critério para a sua preservação, pode ser retirado desta sua frase célebre:

 

 “Uma coisa é certa quando tende para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada, quando tende no sentido oposto”.

 

           

 

Os valores da Natureza.

 

 

Para que o acordo entre a Cultura e a Natureza se concretize, não basta afirmar que, apenas pelo simples facto de existir “cultura”, a relação com a Natureza passa a ser harmoniosa.

 Para que este acordo se pudesse vir a efetivar, Holmes Rolston III, resolveu apresentar dez regras, contidas na sua obra Conserving Natural Values, que deveriam estar sempre presentes em qualquer intervenção na Natureza:

 

            #1. “Enfatizar a ausência de rivalidade entre os valores culturais (valores que o homem descobre ou atribui enquanto inserido numa cultura) e os valores naturais (valores da Natureza que o homem pode e deve reconhecer)”.

            #2. “Ter cuidado com os compromissos”, pois um compromisso pode não significar uma decisão equilibrada.

            #3. “Proteger os valores das minorias”. As decisões por maioria nem sempre protegem os interesses das minorias. Deve ser ponderada a utilização da regra de 2/3 ou do veto.

            #4. “Completar o quadro económico com análises ecológicas”.

            #5. “Basta”. É preciso dizer “basta” sempre que em vez de otimizar (o melhor) se preferir o maximizar (mais quantidade).

            #6. “Identificar todas as partes afetadas”, incluindo as plantas e animais que não tendo voz, pertencem à Natureza e fazem parte do nosso ambiente.

            #7. “Insistir na sustentabilidade” aumentando a utilização de recursos renováveis e limitando o recurso às energias não renováveis.

            #8. “Evitar a mudança irreversível”, decidindo tanto mais lentamente quanto maior for o impacto da mudança, para não se correr o risco dos erros irreversíveis.

            #9. “Reconhecer à alteração o ónus da prova”. Quem quiser introduzir alterações é que vai ter de provar que elas otimizam.

            #10. “Tornar explícitos os juízos de valor latentes”, dando sempre a conhecer os valores naturais existentes, não aguardando para os expressar apenas na altura em que uma ameaça surja.

 

 

Rolston, vai ainda reconhecer uma multiplicidade de valores que o homem descobre na Natureza:

 

 valor de sobrevivência (life-support), valor económico, valor recreativo, valor científico, valor estético, valor da diversidade genética, valor histórico, valor da simbolização cultural, valor da construção do carácter, valor da diversidade-unidade, valor da estabilidade e da espontaneidade, valor dialético, valor da vida e valor religioso.

 

 

Ecologia superficial e ecologia profunda.

 

 

Curiosamente, Rolston, ao preocupar-se em atribuir estes valores à Natureza, vai, de certa forma, legitimar a visão antropocêntrica, uma vez que esses valores da Natureza lhe são atribuídos pelo homem.

Ou seja, mesmo nas melhores das interpretações ecocêntricas, mais generosas e abrangentes, é difícil não encontrar um elemento antropocêntrico.

 Foi isto que levou Luc Ferry a propor uma nova nomenclatura, considerando a perspetiva antropocêntrica como “ecologia superficial” e a perspetiva ecocêntrica como “ecologia profunda” (A Nova Ordem Ecológica. A árvore, o animal e o homem).

 

 

O biocentrismo. A senciência.

 

 

Se apenas considerarmos os direitos dos elementos bióticos da terra, em particular os direitos dos animais humanos e não humanos, é possível concebermos uma teoria que, embora sendo mais restrita, não entre em conflito com o ecocentrismo de Aldo Leopold.

 

Esta é a visão biocêntrica apresentada por Peter Singer, segundo a qual os animais não humanos têm direitos como os humanos, possuindo estatuto moral (Os Animais Têm direitos? Perspetivas e Argumentos).

 

Singer começa por denunciar os erros e perigos de se considerar uma espécie, a humana, como superior a todas as outras (“especismo”), vendo isso como mais uma forma de discriminação, ao nível da escravatura e da submissão das mulheres.

Na sua explicação, começa por constatar que, atualmente, todas as pessoas bem formadas sentem repugnância e condenam qualquer ato discriminatório dirigido a outros seres da nossa própria espécie, e tal é feito com base num princípio de igualdade segundo o qual os seres da mesma espécie devem ser considerados de igual forma.

Não no sentido de uma igualdade factual restrita, uma vez que os seres humanos em termos físicos ou psicológicos são e serão sempre diferentes uns dos outros, mas no sentido de uma igualdade de consideração, segundo a qual todos os seres humanos devem ser considerados iguais em termos morais.

 

Não há, pois, nenhuma razão que impeçaestender este princípio da igualdade de consideração a outros seres que não pertençam à nossa espécie, isto é, que sejam diferentes entre si e de cada um de nós, tal como nós somos diferentes de qualquer outro elemento da espécie humana”. É nesta visão de Peter Singer, que assenta a base concetual ao filme “Avatar”.

 

Mas, quais os critérios a utilizar para a definição dos limites da igualdade de consideração moral, ou seja, para o reconhecimento do estatuto moral aos animais não humanos?

 

Para Singer, a racionalidade não é um bom critério, porque é o que mais tem contribuído para legitimar o especismo a favor do homem, e ainda porque, segundo ele, há animais que ao nível da consciência e da autonomia são superiores ao homem, fazendo a comparação entre os animais não humanos e os bebés humanos.

 

A potencialidade é o critério que afirma a superioridade de um bebé humano relativamente a um animal não humano, pelo facto de conter em si capacidades racionais, ainda que em potência, mas que poderá vir a desenvolvê-las posteriormente.

Singer contesta também este critério, notando que tais capacidades podem não existir num ser humano com lesões cerebrais, não sendo por isso que o vamos maltratar.

 

Para Singer, o critério definidor é o da capacidade/possibilidade de sofrimento: “será que podem sofrer?”. É esta capacidade de sentir dor ou prazer, a “senciência, que é comum a todos os animais vivos.

 

E justifica, apontando que foram precisamente os critérios da racionalidade que possibilitaram um número sem fim de atrocidades cometidas pelos seres humanos contra os próprios seres humanos. E se somos contra esses atos, se questionarmos a sua moralidade, não teremos que ser também contra o especismo que se encontra fundado nessa mesma lógica de alegadas desigualdades factuais?

 “Não serão estes os critérios que outrora serviam para justificar a escravatura, e que agora aplicamos aos animais?”.

 

 

Jan Narveson (Moral Matters), vai contestar todos estes critérios. Segundo ele, os critérios deverão antes ser:

 

A capacidade de duas partes para estabelecer um contrato social; a relevância de um ser para outro ser da mesma espécie; a possibilidade de desenvolver uma noção de futuro; e a capacidade par articular um discurso.

 

Aplicando estes critérios, torna-se evidente a supremacia do homem sobre todos os animais. Estamos perante uma escolha de critérios eminentemente pró-homem, impedindo qualquer alargamento de consideração dos direitos aos animais.

 

Por isso, segundo Narveson, nada justifica a concessão de um estatuto moral a seres que existem para servir um fim humano.

 

Defende, contudo, que a utilização destes critérios, não justificam a imposição de sofrimento gratuito dos animais nem mesmo um sofrimento duradouro, a não ser que ele seja útil para fins humanos (experiências científicas com vista à investigação de doenças), abrindo também uma exceção para os que gostem de caçar ou usar peles de animais.

 

Anexo: Vídeo de 10 minutos sobre igualdade e direitos dos animais (http://elpais.com/elpais/2017/06/14/tentaciones/1497438190_886106.html?por=mosaico)

 

 

 

 

 

Ética fundada na responsabilidade pelo futuro

 

 

Hans Jonas (Técnica e Responsabilidade: reflexões sobre as novas tarefas da Ética), à semelhança de Heidegger, reconhecia que a técnica antiga não levava a questionar a Natureza em si mesma, uma vez que o seu equilíbrio conseguia resistir a essa técnica insipiente. O homem não se sentia de maneira nenhuma como responsável pelos ataques à Natureza. Daí que a tradição da ética seja antropocêntrica.

 

O mesmo não se passa com a técnica moderna, que contém em si a capacidade para alterar não só a Natureza, mas o seu equilíbrio. Com o consequente aparecimento de um novo homem (o homo faber, isto é, o homem enquanto fabricante e capaz de fabricar), tal imporá a necessidade do aparecimento de uma nova ética.

A ética é sempre uma reflexão sobre factos e potencialidades, donde sempre que os factos mudam, a ética terá também de mudar.

 

Este novo homo faber é não só aquele que sobretudo faz, mas também é aquilo que faz. É não só o homem com a ânsia da construção (dirigindo a técnica à Natureza), mas também o que dirige a técnica para si, tornando-se o alvo da própria técnica, como se poderá constatar nos casos do adiamento da morte, da modificação dos comportamentos e da manipulação genética.

 

É fundamental que este homo faber não se demita de pensar sobre os benefícios dos seus novos poderes, sobre o que sabemos ser capazes de fazer, o que fatalmente implicará uma nova ética. Esta nova ética terá de se exercer num espaço de ação alargado à humanidade não só do presente, bem como à humanidade do futuro. É assim “uma proposta ética fundada na responsabilidade pelo futuro.

 

Para isso, Hans Jonas, sugere a substituição do imperativo categórico kantiano do “age de tal forma que possas desejar que a máxima orientadora da tua ação se transforme numa lei universal” por um “age de tal forma que os efeitos da tua ações sejam compatíveis com a preservação da vida humana genuína”, “age de tal forma que os efeitos da tua ação não sejam destruidores da futura possibilidade dessa vida” ou ainda “não comprometas as condições de uma continuidade indefinida da humanidade sobre a terra”.

 

Jonas procede, assim, a um alargamento espácio-temporal da ética, na medida em que ultrapassa as meras relações privadas entre os homens impondo antes uma “atitude pública” e, chamando ao debate a humanidade do futuro.

 

É uma ética antropocêntrica na medida em que ela é justificada em nome do homem e do que é humano, mas em que o alargamento espacial faz com que o homem que continua a interessar já não é só este homem, mas a humanidade.

Mas é também uma ética ecocêntrica ao aventar a hipótese de a Natureza poder vir a ser entendida como um fim em si mesmo, detentora de um valor intrínseco.

 

 

 

A “ecosofia”

 

 

O norueguês Arne Naess (“Sustainable development and deep ecology”), profundo admirador da “ecologia da terra” de Aldo Leopold, afirmando o valor intrínseco da Natureza, vem apontar os efeitos nefastos que a ambição pelo crescimento económico produz em termos ambientais.

 

A sua crítica é feita ao nível da política e ao nível da ética:

 

Ao nível da política, indica o erro proveniente do conceito utilizado de ‘desenvolvimento sustentável’, que, ao pressupor uma igualdade entre as três colunas da sustentabilidade (ambiente, economia e sociedade), vai abastardar aquilo que deveria ser a posição central do ambiente, única forma para que esse desenvolvimento se baseasse no questionamento da nossa relação com a Natureza e na sabedoria que daí adviria em termos de harmonia com a nossa casa primordial, a Terra.

 

Ao nível da ética, indica o absurdo de ligarmos felicidade com consumo como um atestado à superficialidade da nossa vida. Torna-se necessária uma mudança de atitude, que só será possível através da filosofia e da religião.

 

Para esta sua visão da ecologia, propõe os seguintes princípios:

 

 a afirmação do valor intrínseco da Natureza, e em particular, de todos os seres vivos; a riqueza da diversidade; a importância da valorização da qualidade (desenvolvimento) sobre a quantidade (crescimento); o desafio político e a responsabilização do indivíduo.

 

Para ele é urgente que se entenda que os homens não têm prioridade na gestão da capacidade da Terra e que o controle populacional tem de ser seriamente equacionado com vista a uma redução populacional no futuro.

 

Para além dum valor intrínseco, há como que um valor da ordem do sagrado da Natureza. Há uma valorização de uma relação mística com o natural, numa tentativa e assunção de uma harmonia entre todos os elementos que integram a Natureza, sem prioridades e sem reclamações centradas no humano. Esta sabedoria é o conceito de “ecosofia”.

 

 

Ecofascismo

 

 

            É sabido que os Nazis consideravam que o Estado devia proteger todos os portadores de sangue puro como única forma de manter o poder criativo da Natureza, daí a sua frase “Sangue (puro) e Terra (pura)” (Blut und Boden).

 A pureza de sangue era crucial para a missão sagrada da Alemanha: salvar as raças nobres da Europa Norte das outras raças degeneradas, como era o caso dos Judeus.

 

O fascismo surge assim como um Darwinismo social, em que as sociedades mais dinâmicas podem e devem ganhar a luta inevitável pela sobrevivência face às outras sociedades mais fracas.

 

Uma vez que as raças se encontravam ligadas às terras de onde eram originárias, as terras da Alemanha tinham de ser protegidas da poluição industrial e da presença injuriante de raças menores.

Só os Alemães de sangue puro é que poderiam retirar a energia da terra que originariamente conduzira ao “Volk”, e isto porque a Divindade era imanente à Natureza.

Preconizavam a sua “religião da natureza” confrontando-a com o Cristianismo, religião que não era deste mundo, produto “desnaturado “dos judeus.

 

Quer o capitalismo, quer o comunismo, pelas suas práticas industriais destroem a terra que enchem de populações que desprezam a Natureza, que têm sangue poluído e de semi-humanos como os Judeus. Era, pois, imperativo libertar os povos do norte da Europa das democracias, socialismos e capitalismos.

 

Um Estado ecofascista, de acordo com princípios Darwinistas, acabará por prevalecer na luta pela sobrevivência, pois tal Estado é o mais respeitador do ambiente, sendo este glorificado como a teia da vida.

 

 

Michael Zimmerman (“Ecofascism: A Threat to American Environmentalism?”), vem alertar-nos para os perigos possíveis em que podem incorrer todos aqueles movimentos ecologistas que adoram a Natureza, bem como para os que criticam radicalmente toda a modernidade, a fim de não caírem em ecofascismos.

Não devem esquecer, por exemplo, que as estranhas analogias entre a terra como dimensão natural e o “sangue primitivo”, serviram para justificar atrocidades recorrendo ao argumento de uma lei da Natureza; ao argumento de que quem pertence à Natureza somos nós, os seres naturais, e não os homossexuais; de que quem tiver “hábitos” que sejam considerados “contra a Natureza” só cá está a poluir, o que conduz à diferenciação valorativa entre raças e entre pessoas da mesma raça, e à instituição do controlo populacional em nome da pureza da raça.

 

Daí que Zimmerman considere o ecofascismo como uma tendência, que apesar de já revelada no movimento totalitário, pode insinuar-se na atualidade quando, por exemplo, se pretender proibir a imigração de Africanos e Asiáticos a fim de não poluírem a terra e o sangue, ou quando se pretenderem impor leis draconianas às pessoas para as levar a comportarem-se de forma a assegurarem o bem-estar ou a pureza da Natureza.

 

Considerem-se avisados.

 

 

 

 

Ecologias: o ecofeminismo

 

“Só as mulheres poderão originar uma alteração radical face a esta opressão da Natureza de rosto masculino”, Betty Friedan.

 

Para quê querer ser igual ao que é mau? O que se deve defender é a desigualdade dos géneros, porque só através do valor feminino é que se poderá vir a tornar o mundo um lugar melhor, com menor violência e com menor competitividade.

 

Ao passo que para o ecocentrismo o lugar central é ocupado pela Natureza, para o ecofeminismo o lugar central é ocupado pela mulher e pela Natureza.

 

 

O problema não reside no antropocentrismo, mas no lugar que o homem masculino nele ocupa, a ponto de transformar o antropocentrismo em androcêntrismo.

 

 

 

 

           

Só na segunda metade do século XX, é que a Cultura, como desejo de uma harmonia com a Natureza, juntamente com outros temas como os do acesso à paz, à liberdade, ao desenvolvimento e ao ambiente, começou a ser colocada na ordem do dia.

 

Só a partir dessa altura é que se foram clarificando as razões pelas quais o ambiente deveria constituir uma das preocupações das sociedades atuais: pelo bem-estar do homem, pelas gerações futuras ou ainda pela consideração da Natureza como possuidora de um valor intrínseco a ser respeitado.

 

Até aí, tinha prevalecido a separação entre Natureza e Cultura, em que a função da Natureza era a de ser apropriada pelo seu dono, o homem. O dedo acusatório tem sido apontado na direção de Descartes, à sua doutrina dualista nomeadamente no que se refere à diferenciação entre razão e natureza, sujeito e objeto, que levou à rutura entre os homens, animais e natureza, e em que só o homem se define pelo pensamento. O animal é definido como ser não pensante, mero corpo, e como tal, desprovido de consciência, de capacidade de sentir e de sofrer.

 

Contrariamente, já Espinosa, vem sendo apontado pelos atuais ecologistas como o modelo correto de pensar o mundo e o homem, ao identificar Deus e Natureza numa forma de panteísmo envergonhado onde se dá como que uma certa diluição da ação do homem. E, contudo, eis o que ele pensava sobre alguns temas importantes à ecologia atual:

 

 

Por aqui se vê que a lei que proíbe matar animais é fundada mais numa verdadeira superstição e numa efeminada misericórdia do que numa sã razão. Com efeito, a razão ensina-nos a procurar o que nos é útil, a necessidade de nos unirmos aos homens e não aos animais ou às coisas, cuja natureza é diferente da natureza dos homens. Pelo contrário, o mesmo direito que eles têm sobre nós, nós o temos sobre eles. Mais ainda, visto que o direito de cada um se define pela virtude, ou seja, pela potência de cada um, os homens têm muito mais direitos sobre os animais que estes sobre os homens. Não nego, no entanto, que os animais sentem; mas nego que não seja permitido, para atender à nossa utilidade, usar deles ao nosso arbítrio e trata-los como melhor nos convém; é que eles não concordam connosco em natureza e as suas afeções são diferentes, por natureza, das afeções humanas (…). Do livro IV da Ética.

 

E, sobre as mulheres:

 

 

Mas talvez que alguns perguntem se as mulheres estão por natureza, ou por instituição, sob a autoridade dos homens. Se é por instituição, nenhuma razão nos obriga a excluir as mulheres do governo. Se, contudo, apelamos para a experiência, veremos que isto provém da sua fraqueza.

Com efeito, em nenhuma parte da terra homens e mulheres reinaram conjuntamente, mas em toda a parte onde se encontram homens e mulheres, vemos que os homens reinam e as mulheres são governadas, e que, desta maneira os dois sexos vivem em boa harmonia; pelo contrário, as Amazonas que, segundo uma tradição, outrora reinaram, não admitiam que os homens permanecessem no seu território, não alimentavam senão os indivíduos do sexo feminino e matavam os machos que tinham gerado.

Se as mulheres fossem por natureza iguais aos homens, se tivessem no mesmo grau a força de alma e o engenho em que consiste maximamente a potência humana, e, consequentemente, o direito, com certeza, entre tantas nações diferentes, não poderia deixar de se encontrar umas em que ambos os sexos reinassem igualmente, e outras em que os homens fossem governados pelas mulheres e recebessem uma educação própria para diminuir o seu engenho. Mas, como isto nunca se viu em parte alguma, pode-se afirmar, em termos gerais, que as mulheres por natureza não têm o mesmo direito que os homens, mas que deverão necessariamente ceder aos homens, e também que é impossível que ambos os sexos reinem igualmente e, muito menos, que os homens sejam regidos pelas mulheres. Se além disso, considerarmos os afetos humanos, se reconhecermos que, quase sempre o amor dos homens pelas mulheres não tem outra origem senão o aspeto libidinoso, de tal modo que não estimam nelas o engenho e a prudência, mas as qualidades de beleza que têm, que não admitem que as mulheres amadas tenham preferência por outros que não eles, veremos sem esforço, que não se poderia instituir o reinado igual dos homens e das mulheres sem grande detrimento para a paz. Mas basta sobre este assunto.” Do Tratado Político.

 

 

 

Era assim que na Europa do século XVII, os grandes pensadores de elite viam o cuidado a ter com a Natureza e em que conta tinham as mulheres como seres humanos. Atualmente, no século XXI, os seus argumentos continuam ainda bem presentes, como veremos.

 

 

 

Antropocentrismo e ecocentrismo.

 

Nesta relação do Homem com a Natureza que dará origem à ecologia, podemos distinguir duas grandes escolas: uma, com visão antropocêntrica, e outra, com visão ecocêntrica.

 

Na visão antropocêntrica, o único sujeito de direito é o Homem. Embora haja uma preocupação ambiental com os recursos postos à nossa disposição pela Natureza, ela não é considerada como sujeito de direitos, apenas, e quando muito, como objeto de respeito.

Mas esse respeito não vem de se considerar a Natureza como tendo por si um valor intrínseco, visto como um bem ou fim em si mesmo, mas apenas por ter um valor que o Homem tenha interesse em preservar para seu uso.

 

Pode-se dizer que há como que uma humanização da Natureza, em que se assiste a um processo de sobreposição do Homem relativamente à Natureza e à atribuição de valores humanos à Natureza.

 

Na visão ecocêntrica, coloca-se a Natureza em primeiro lugar, acima dos interesses dum Homem que age como se não fizesse parte da Natureza. Há como que uma naturalização do Homem, em que ele deixa de ser o centro de tudo, passando a fazer parte de uma biosfera com valores intrínsecos.

Mas, qual dos géneros do Homem? O masculino, o feminino, ou ambos?

 

 

 

Ecofeminismo

 

 

Em 1963, Betty Friedan, publica The Feminine Mystique, onde se insurge contra a opinião generalizada segundo a qual a mulher era considerada como sendo um ser dotado de uma especificidade natural, um ser misterioso, interessante, um ser místico (“mística feminina”) mais próximo da Natureza.

 

Denuncia assim, a estratégia usada pelos homens para manterem as mulheres em casa, ao lhes atribuírem uma “pseudo superioridade” de donas de casa (as “fadas do lar”), mas que afinal não passava de uma menorização na medida em a consideravam como parte intrínseca da sua natureza. Era o “próprio delas”.

No dizer de Friedan:

A mística feminina é a responsável por ter enterrado vivas milhões de mulheres”.

 

 

Exorta as mulheres que, durante o tempo de guerra desempenharam funções masculinas nas fábricas, hospitais, municípios, e que no pós-guerra se remeteram às atividades domésticas, isolando-se nos subúrbios, a voltarem ao trabalho e a lutarem por carreiras próprias.

 

Denuncia esta desigualdade histórica criada entre homem e mulher, defendendo em seu lugar a total igualdade dos géneros como modelo que se deve impor a todos, única forma das mulheres terem as mesmas regalias de que usufruem os homens.

 

Esta exortação seguida pelo movimento feminista é hoje considerada (The Sceptical Feminist) como constituindo uma primeira vaga, liberal, igualitária e tradicional.

 

 

Vinte anos mais tarde, na obra The Second Stage, Betty Friedan vai atribuir a agressividade, as guerras, e outros males prevalecentes na sociedade ocidental, ao mundo masculino.

 

Daí que já não faça sentido defender a igualdade dos géneros. Para quê querer ser igual ao que é mau? O que se deve defender é a desigualdade dos géneros, porque só através do valor feminino é que se poderá vir a tornar o mundo um lugar melhor, com menor violência e com menor competitividade.

 

Chama a atenção para a proximidade existente entre as mulheres e a Natureza, na medida em que ambas são geradoras de vida, ambas cuidam dos seus filhos e que ambas são alvos e vítimas da opressão oriunda da masculinidade existente.

As mulheres e as crianças são sempre as primeiras vítimas da destruição ambiental.

Conclui dizendo que só as mulheres poderão originar uma alteração radical face a esta opressão da Natureza de rosto masculino.

 

 

Este conceito de feminismo é considerado como sendo a segunda vaga, radical e cultural. As teorias ambientalistas feministas que o defendem são conhecidas pela designação genérica de ecofeministas, termo usado pela primeira vez em 1974 por Françoise d’Eaubonne na sua obra Le Féminisme ou la mort.

 

 

O ecofeminismo posiciona-se, assim, para além do ecocentrismo, pois ao passo que para o ecocentrismo o lugar central é ocupado pela Natureza, para o ecofeminismo o lugar central é ocupado pela mulher e pela Natureza.

 

Para o ecofeminismo, o problema não reside no antropocentrismo, mas no lugar que o homem masculino nele ocupa, a ponto de transformar o antropocentrismo em androcêntrismo, e é contra isso que o ecofeminismo luta.

 

O ecofeminismo é também crítico da escola de pensamento ecológico que propõe o controle populacional como forma para garantir o futuro da humanidade, ignorando totalmente a importância ambiental da questão feminina.

Para o ecofeminismo, tal proposta de controlo populacional, poderá conduzir à prática ilegítima do controle científico sobre os corpos femininos, além de assentar no pressuposto da existência de uma sobrepopulação, pretendendo assim mascarar o problema da desigualdade distributiva ilegítima que se verifica entre os países desenvolvidos e os outros.

 

 

 

 

 

Um próximo blog será dedicado às restantes ecologias (ética da Terra, valores da Natureza, biocentrismo, senciência, ecosofia, ecologia do fascismo).

 

(114) Momentos de redescoberta da humanidade

 

A humanidade comum existe a despeito da cultura e das suas diferenças”.

 

 “É nas descontinuidades da História que as pessoas cuja cultura foi forçada até à rutura exprimem uma humanidade que vai para além dos limites culturais”.

 

Os homens da revolução são os homens que vivem entre o tempo do fim de um passado que “já não” satisfaz e o tempo de um novo começo que “ainda não” satisfaz porque se oferece como absolutamente imprevisível.

 

Vivia-se no presente revolucionário.

 

 

 

Na sua análise sobre o que é Revolução (On Revolution, 1963), Hannah Arendt, começa por definir aqueles fenómenos que considera estarem na sua génese: violência, libertação e desejo de liberdade política.

O início de um fenómeno revolucionário tem que ver com a vontade de terminar com o rumo dos acontecimentos que se vêm sucedendo desde o passado (libertação) e com a possibilidade de iniciar um novo começo que instaure a liberdade política (desejo de liberdade).

A libertação tem sempre como objetivo imediato a restituição de direitos civis (à vida e à propriedade), tendo sempre como finalidade última instaurar a liberdade que visa permitir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca de assuntos políticos.

A violência, que marca sempre o início de uma revolução, é um meio, um instrumento, para se alcançar um fim, que será sempre a libertação (quando a violência é um fim em si mesmo, quando não é um instrumento para se alcançar um fim, então estamos perante o terror). A violência é entendida como força libertadora que se tenta igualar à opressão sofrida, daí ela marcar sempre o início de uma revolução.

 

Das várias revoluções acontecidas no século XVIII, Arendt  estuda em particular a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Vai concluir que elas são portadoras de duas grandes novidades: a convicção que era possível fundar uma nova história, e que tal seria acompanhado pela instauração de uma liberdade alargada para todos os que quisessem participar nos assuntos políticos.

Na sua atuação, aqueles revolucionários tinham a convicção profunda de que não era possível retroceder a um momento do passado onde a ordem ainda estaria estabelecida (ou seja, não havia nenhuma restauração). Tinham a consciência que teriam de fundar um novo corpo político que iria substituir a ordem do passado.

 

Confrontavam-se com um passado imediatamente anterior que não lhes dava quaisquer indicações sobre aquele tempo que estavam a viver, e com a imprevisibilidade de um futuro ainda por vir. Encontraram-se, assim, entre o tempo do fim de um passado que “já não” satisfaz e o tempo de um novo começo que “ainda não” satisfaz, porque se oferece como absolutamente imprevisível.

É como se o tempo se abrisse, se desligasse, entre a tranquilidade do passado e a incerteza do futuro: vivia-se, então, no presente revolucionário.

Viviam no tempo do “abismo da liberdade”, hiato entre um “já não” e um “ainda não”. Os homens da revolução são os homens que viveram no presente o próprio abismo.

 

E é a vivência neste medo fundamental que, definindo acima de tudo os homens que o viveram, vai conduzir, juntamente com as diferentes situações e realidades de partida, aos caminhos distintos seguidos pela Revolução Americana e pela Revolução Francesa.

 

A Revolução Americana (1775-83), vai procurar no passado longínquo, no conceito de autoridade (“auctoritas”) da Roma Antiga, a garantia para enfrentar a incerteza do futuro, através da elaboração de uma Constituição que assegure a durabilidade da liberdade política no futuro. Ou seja, em nome da estabilidade, a fonte da lei é a autoridade e não o povo. A autoridade da Constituição como promessa objetivada da liberdade política alargada.

 

A Revolução Francesa (1789-99), assente na filosofia da bondade natural do ser humano, vai originar a compaixão pelos miseráveis, inspirando a fraternidade e uma conceção ideal de um sistema de leis que traduzem a vontade geral de um povo.

 

Note-se que a fraternidade está ausente da Revolução Americana, pois eles não conheciam a miséria secular instalada em França. Assim, o “Peuple” da Revolução Francesa constituído por uma multidão nua e miserável não era o mesmo do “We, the people da Revolução Americana, multidão que não estava unida pela miséria.

 

Daí que o objetivo da Revolução Francesa, em vez de ser fundar um corpo político que permitisse a liberdade, passa a ser a proclamação dos Direitos do Homem, reconhecidos pelo simples facto de se ter nascido. Em vez de se ocupar da igualdade ou emancipação dos cidadãos, passou a ocupar-se da emancipação da natureza humana.

Como consequência, a Revolução Francesa não reconheceu uma autoridade constitucional, o que acarretou uma instabilidade e sucessão de Constituições, fragilizando a autoridade.

 

Sintetizando:  para Arendt, a finalidade da Revolução é a instauração de liberdade política que se assuma como durável, de forma a garantir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca dos assuntos políticos.

A libertação da opressão deve ter com objetivo a liberdade, e a liberdade deve conduzir à constituição de uma república. A república deve ser identificada não apenas como um governo constitucional que garanta os direitos privados, mas também como forma de organização política na qual os cidadãos possam viver juntos sem qualquer divisão entre governantes e governados.

A libertação, será uma fase sempre associada ao drama e à violência, com o objetivo imediato da restituição dos direitos civis (à vida e à propriedade), devendo seguir-se a fase da liberdade, onde se procederá à calma fundação de um corpo político.

 

A Revolução Americana teve como objetivo a construção de um governo representativo baseado no consentimento do povo, numa moldura constitucional no qual os poderes se balanceavam de forma a garantirem os direitos privados e os direitos de propriedade, à luz da Carta dos Direitos (Bill of Rights), que veio a ser incluída na Constituição três anos depois da aprovação.

Na Revolução Francesa, Arendt não conseguiu entrever um espaço público de liberdade consistente. A direção da Revolução Francesa sofreu uma deflexão quase desde o princípio, devido às exigências impostas à libertação, não tanto da tirania, mas mais da miséria.

 

 Arendt reconhece que não é possível qualquer revolução quando as massas vivem submergidas em miséria, uma vez que o prioritário será a libertação da necessidade urgente e não a construção da liberdade, e que nada é pior que a pobreza para a exclusão da “luz da felicidade pública”, problema que, embora não estivesse resolvido, não se punha na América, pois, tal como acontecia com a escravatura, estava escondido dos olhos do público.

Por tudo o acima exposto, não surpreende que para Arendt, o modelo de Revolução conseguida fosse o da Revolução Americana.

 

 

E, contudo, é a Revolução Francesa que mais vai inflamar o espírito dos povos, de todos os povos europeus e não só, saudada por quase todas as classes, e na qual um povo inteiro vai afirmar, sem temor, a sua liberdade e igualdade.

Ouçamos a apreciação do ultra racional Kant:

 

A revolução de um povo espiritualmente rico, a que assistimos nestes dias, bem pode vencer ou falhar, acumular misérias e atrocidades, mas produz no coração de todos os espetadores (que não se encontram, esses, envolvidos nela) uma tomada de posição segundo os desejos de cada um, confinando com o entusiamo e que, não podendo exprimir-se sem perigo, só pode ser causada por uma disposição moral no interior da espécie humana.”

 

E Hegel, vem corroborar esse momento de entusiamo generalizado, que considera único:

 

As emoções mais altas arrebataram o espírito dos homens nesse momento; um entusiasmo espiritual fez vibrar o mundo, como se a reconciliação entre o divino e o secular se tivesse agora consumado”.

 

 

O caso mais espantoso desse momento de libertação da humanidade vai, contudo, acontecer em São Domingo (Haiti), colónia francesa nas Caraíbas. Três anos depois do início da Revolução Francesa, dá-se a primeira revolta de escravos negros que querem aderir aos ideais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, abolindo a escravatura, e libertando-se da opressão colonial. A chamada Revolução Haitiana (1791-1804).

É a única revolta de escravos que se conhece que vai dar lugar à fundação de uma nova nação, o Haiti, dirigida e administrada por não-brancos e escravos auto emancipados, abalando fortemente a convicção generalizada da ‘época’ (!) sobre a inferioridade da raça negra, por ela não ser capaz de organizar-se, e da convicção generalizada que se tinha que os escravos eram pessoas sem qualquer capacidade para conseguirem alcançar e manterem a sua própria libertação.

É que na altura ninguém pensava que as palavras de ordem revolucionárias francesas fossem tomadas à letra pelos negros e escravos do Haiti. Na ideologia do Iluminismo, a “liberdade” não tinha sido pensada para ser aplicada a selvagens e imaturos, que deveriam ser primeiramente sujeitos a um processo de educação antes de merecerem a liberdade e a igualdade. Por tudo isso, a Revolução Haitiana, era uma revolução impensável. Ela vai forçar até às últimas consequências os ideais da Revolução Francesa.

 

E, aconteceram momentos únicos, como aquele em que o exército francês enviado por Napoleão para lutar contra o exército negro dos escravos, começou a ouvir ao longe aquilo que lhes parecia ser um cântico tribal. Continuando a aproximarem-se, os soldados acabaram por se aperceberem de que o que eles pensavam ser um cântico tribal, era afinal A Marselhesa, a ser cantada pelos haitianos negros e escravos que eles iam combater.

 

 

Sigamos o que nos diz Susan Buck-Morss no seu livro, Hegel, Haiti, and Universal History:

 

“…mais do que dar um lugar igual às múltiplas culturas diferentes, mais do que reconhecer as pessoas como parte da humanidade através da mediação indireta de identidades culturais coletivas, a universalidade humana emerge no ponto de rutura do acontecimento histórico. É nas descontinuidades da História que as pessoas cuja cultura foi forçada até à rutura exprimem uma humanidade que vai para além dos limites culturais.

[…] A humanidade comum existe a despeito da cultura e das suas diferenças. A não-identidade de uma pessoa com o coletivo permite solidariedades subterrâneas que têm uma possibilidade de apelar para o sentimento moral universal […].

 

 

 

 

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