“Quem é mais inteligente, o homem ou a mulher? Porquê?”
“O homem. Porque todos os ‘grandes homens’ foram homens”.
“No caso de uma mulher ser violada numa área urbana, ela e o violador devem ser ambos mortos, ela porque deveria ter gritado pedindo socorro e ele porque os direitos de outro homem (o homem a quem ela fora prometida) estavam a ser violados”, Deuteronómio 23/27.
Os violadores de homens são “veementemente aconselhados a violarem antes mulheres, porque tal, além de ser menos repugnante, é menos errado”, Juízes 19.
Lembro-me sempre da resposta que um colega de liceu deu a um “inquérito”. Na altura não havia internet, nem telemóveis, nem Livros de Rosto (FB), pelo que para nos conhecermos melhor ou para fazermos melhor figura, até porque se tratava de uma classe mista (coisa rara naqueles tempos, só possível pelo escasso número de alunas que não poderiam ser deixadas fora da escolaridade), utilizávamos um caderno com folhas em branco, onde de dez em dez páginas colocávamos no cabeçalho uma pergunta a que todos teríamos de ir respondendo, ficando assim cada um a saber o que os outros pensavam. Ingenuidades.
A pergunta a que me refiro era a seguinte: “Quem é mais inteligente, o homem ou a mulher? Porquê?”
A resposta desse meu colega: “O homem. Porque todos os ‘grandes homens’ foram homens”.
Não vale a pena recordar aqui todos aqueles casos em que nas sociedades contemporâneas as mulheres são maltratadas e vilipendiadas, seja qual for a maneira porque o são, nem recordar todas aquelas muito influentes figuras públicas, de juízes a presidentes, nem aquela multidão de figuras não públicas nem influentes que abrem a boca para que lhes saiam palavras que ouviram e repetem, porque sim, porque são homens numa sociedade patriarcal.
Mas, o que vale a pena recordar, é a influência que a religião teve e tem na perpetuação destes comportamentos, especialmente nos casos de violação, assalto sexual e incesto.
A Bíblia é, para além do que ela possa representar como obra de fé, o melhor repositório das normas e costumes aceites pela sociedade, não só existentes como reguladores mas como indicadores do caminho a seguir, aprovados e aceites pelo Senhor. As Bíblias, escritas ou faladas, das várias religiões, sempre tiveram tendência para conservarem os quadros gerais das sociedades existentes, guiando-as no bom caminho.
Relativamente às mulheres, eis alguns comportamentos sociais constantes da Bíblia da religião judaico-cristã:
Andando pelo seu palácio, David viu uma mulher muito bela a banhar-se. Ao informar-se sobre ela, foi-lhe dito que “era Betsabé, filha de Eliam, mulher de Uria, o Hitita”. David mandou buscá-la e possuiu-a. Regressando a casa, a mulher descobriu que tinha engravidado, e comunicou isso a David.
David mandou chamar Uria, que andava a combater, para lhe perguntar se a guerra estava a correr bem. De seguida disse-lhe para ir descansar para casa e deu-lhe um presente. A intenção de David era que Uria acabasse por deitar-se com Betsabé por forma a que, quando nascesse a criança, Uria não desconfiasse que o filho não era dele.
Só que Uria preferiu ficar no palácio do rei e não foi para casa. Então David, mandou colocá-lo no posto de combate mais perigoso da altura, onde Uria acabou por morrer em combate.
Quando a mulher soube da sua morte, procedeu às lamentações habituais. Depois de terminado o luto, David mandou buscá-la, e tornou-a sua mulher.
Absalão, filho de David, tinha uma irmã muito bela, chamada Tamar. Um outro filho de David, Amnão, perdeu-se de amores por ela. Mas como ela era virgem, tornava-se difícil conseguir alguma coisa dela. Então fez-se de doente, e pediu ao pai que lhe mandasse Tamar para lhe fazer a comida.
Quando ela chegou, fez-se esquisito e disse-lhe que não lhe apetecia comer na sala. Disse-lhe para lhe dar a comida na cama, pois estava muito fraco. Quando a apanhou lá, sendo mais forte que ela, forçou-a e violou-a. Depois, pô-la na rua.
Quando Tamar chegou ao palácio, o seu irmão Absalão disse-lhe para se calar, porquanto Amnão era irmão dela. Quando o Rei David soube do acontecido, ficou muito zangado, mas não puniu o seu filho Amnão, porque o amava muito, e era o seu primogénito.
Devido a uma guerra religiosa instalada, as tribos de Israel negaram-se a darem as filhas em casamento à tribo dos Benjaministas. Isto conduziria à extinção dessa tribo. Convocaram uma assembleia de todas as tribos, para decidirem sobre o combate aos Benjaministas, sob pena de matarem quem não comparecesse. Não compareceu a tribo da região de Gilead, Jabesh. Então, para que a tribo dos Benjaministas não se extinguisse por não lhes poderem dar as suas filhas para mulheres, e como os de Jabesh tinham de ser mortos por não terem comparecido à assembleia, decidiram enviar doze mil soldados para a região de Gilead com instruções para “matarem todos os homens e mulheres que já se tivessem deitado com homens, bem como crianças.”
Todas as mulheres que não fossem virgens, seriam violadas e mortas. Escaparam quatrocentas virgens, que seriam trazidas para Shiloh, em Canaan, para serem oferecidas aos Benjaministas, evitando assim a extinção da tribo.
Susana, filha de Hilkiak, era uma mulher muito bonita e muito temente de Deus. Casada com Joaquim, um proprietário muito rico e com prestígio.
Os juízes costumavam frequentar a sua casa. Nesse ano, tinham sido nomeados dois anciãos para juízes. Depois de todos saírem da casa, Susana costumava passear-se pelo jardim. Os juízes viam-na, e começaram a sentir desejos de a possuir.
Um dia resolveram confessarem-se um ao outro, e acabaram por planear uma forma de a apanhar sozinha. Assim, quando Susana resolveu banhar-se, pedindo às suas empregadas para saírem e fecharem as portas, os dois anciãos passaram à ação. Dirigiram-se a ela e disseram:
“Olha, as portas do jardim estão fechadas, e ninguém nos pode ver. Nós estamos cheios de desejo por ti; por isso, vem de livre vontade deitar-te connosco. Se recusares, nós testemunharemos contra ti dizendo que estava aqui contigo um homem jovem, e foi por isso que mandaste sair as empregadas”.
Tendo o rei David partido de Jerusalém, todo o seu séquito o seguiu, com exceção de dez concubinas que foram deixadas para cuidar do palácio. O seu filho, Absalão, tendo ficado em Jerusalém, não se coibiu, e à vista de todos, possuiu as dez concubinas do pai.
Quando David regressou à sua casa em Jerusalém, mandou retirar as concubinas do palácio, e colocou-as numa casa guardada, onde, com todas as mordomias permaneceriam fechadas até ao dia em que ele morresse, vivendo como se fossem viúvas.
Abraão oferece a sua mulher Sara ao Faraó do Egito
Por ordem do Senhor, Abraão, já com setenta e cinco anos, partiu para a Cananeia, com a sua mulher Sara e Lot, o filho do seu irmão. Como na Cananeia grassava uma fome imensa, Abraão resolveu passar para o Egipto. E, disse para a mulher:
“Eu sei que és uma mulher muito bonita; e quando os egípcios te virem, dirão, ‘Esta é a sua mulher’; então vão matar-me, mas deixar-te-ão viver. Diz, portanto, que és minha irmã, e isso será bom para mim, e a minha vida será poupada”.
Quando os funcionários do Faraó a viram, gabaram-na ao Faraó. E a mulher foi levada para o palácio do Faraó. Pelo negócio, Abraão recebeu imensas ofertas, escravos, camelos, gado.
Mas, por causa de Sara ser a mulher de Abraão, Deus infligiu grandes pragas ao Faraó e à sua casa. O Faraó chamou Abraão e perguntou-lhe:
“Porque é que me fizeste isto? Porque é que não me disseste que ela era tua mulher? Porque é que me disseste que era tua irmã, e assim acabei por casar com ela? Aqui está a tua mulher, fica com ela e vão-se embora daqui”.
Abraão oferece a sua mulher Sara a Abimelec de Gerar
Encontrando-se como estrangeiro na região de Gerar, no Negueve, Abraão apresentou ao Rei Abimelech de Gerar, a sua mulher Sara como sendo filha. E o rei trouxe-a para o palácio. Mas, nessa noite, Deus aparece-lhe num sonho chamando-lhe a atenção para o crime que iria cometer, porque “ela não era uma mulher que ele pudesse possuir, uma vez que era uma mulher casada”.
“Devolve a mulher ao homem, porque ele é um profeta […] e se não o fizeres, tu e todos os teus morrerão.”
No dia seguinte, Abimelech chama Abraão e pergunta-lhe: “Em que é que estavas a pensar, para me fazeres tal coisa?” Abraão responde dizendo: “Fi-lo porque pensei que sendo esta uma região que não teme a Deus, certamente me matariam por causa da minha mulher. Além disso, ela é de facto minha irmã, filha do meu pai, mas não de minha mãe”.
Violação de homens por homens no Genesis 19 e nos Juízes 19
No caso de uma mulher ser violada numa área urbana, ela e o violador devem ser ambos mortos, ela porque deveria ter gritado pedindo socorro e ele porque os direitos de outro homem (o homem a quem ela fora prometida) estavam a ser violados.
Se a violação ocorresse no campo, apenas o homem seria executado, porque a mulher mesmo que gritasse poderia não ser ouvida.
Se a violação fosse de uma virgem, mas se ela não estivesse prometida, se o homem fosse apanhado no ato, teria de pagar uma multa em prata ao pai, e ela tornar-se-ia sua mulher, sem possibilidade de divórcio.
A violação era, pois, uma situação normalmente vulgar e admitida na Bíblia. A mulher nunca era chamada a dar o seu consentimento. A mulher era a responsável por manter a sua “pureza” sexual. E esta condição não tinha nada que ver com o seu bem-estar, mas com o facto de ser propriedade do homem, propriedade que não podia ser estragada.
O marido dispõe da mulher, entrega-a a quem quiser, e estas ações não são tidas em conta como violação.
Noções como as da autonomia e do consentimento das mulheres, raramente se encontram na Bíblia. A violação era, na maior parte das vezes, apenas um problema de competição e propriedade masculina.
Até o facto de ser bela, era usado contra ela, pois tal era responsável por atrair a atenção dos homens. John Berger (Ways of Seeing), explica-nos, a propósito do famoso quadro de Tintoretto (“Susana e os Anciãos”), em que Susana aparece a banhar-se e a olhar-se num espelho, que:
“O espelho é muitas vezes usado como um símbolo de vaidade da mulher. Moralizador, mas em grande parte, hipócrita. Pinta-se uma mulher nua porque gostamos de olhar para ela, põe-se um espelho na mão dela e chamamos ao quadro “Vaidade”, e passamos a condenar moralmente uma mulher cuja nudez nós reproduzimos para nosso próprio gozo”.
Na nossa muito atual e avançada sociedade, ainda este ano um juiz do Canadá, perguntava a uma queixosa de violação, porque não tinha ela” mantido os joelhos juntos”.
Um outro juiz, em Stanford, EUA, autorizou a exibição de fotos por parte dos violadores em que a violada aparecia em poses provocantes, e, portanto, justificativas das ações dos homens.
O então candidato a senador Todd Akin, EUA, dizia que a “violação legítima” raramente conduzia a gravidez, e que o corpo feminino tinha maneiras “para fechar aquela coisa”.
Não se devem atribuir culpas às religiões, porque elas aparecem depois das sociedades terem sido formadas, pelo que procuraram manter o que encontraram. Quando muito, as religiões poderão ser cúmplices no pastoreio da sociedade após a sua aceitação. Como dizia o Cardeal: “As mulheres querem-se submissas, e o povo quer-se humilde”.
O que levanta o problema de a submissão das mulheres ser antes um processo natural ligado ao aparecimento e ‘desenvolvimento’ das sociedades humanas.
Seja como for, a presença desta matriz continua, ainda hoje, visível e entranhada por todo o lado, tal como aconteceu recentemente com os raptos de centenas de raparigas feitos pelos islamitas do Boko Haram da Nigéria, pelo que não basta defendermo-nos dizendo que estes não fazem parte da nossa civilização.
Efetivamente, fazem mesmo parte da nossa civilização, e é isso que deveria ser investigado e discutido, e não o facto de serem africanos, ou islamistas, ou fundamentalistas, ou terroristas. Isso são as cortinas que não nos deixam ver a realidade.
Mais ou menos transparentes, são esses os verdadeiros véus integrais tão característicos desta nossa civilização humana. Todos andamos de burca.
A 15 de fevereiro de 1897, a Câmara de Representantes da Assembleia do Estado de Indiana, EUA, votou por unanimidade que o valor de Pi passaria a ser 3,2, substituindo o anterior 3,1416… considerado errado.
“O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para assim tornarem a indústria americana menos competitiva”, um chilreio de Donald Trump.
“Podem continuar a dizer que a Terra é chata porque nós temos liberdade de expressão, mas a nossa Constituição não lhes garante que tudo aquilo que disserem esteja certo”, Neil deGrasse Tyson.
A Vida de Pi é um romance escrito em 2001 por Yann Martel, que dizem ter sido baseado no livro brasileiro Max e Os Felinos de Moacyr Scliar, com adaptação ao cinema em 2012 por Ang Lee, tendo conquistado vários Óscares em 2013. Mas não é desse Pi que pretendo falar.
Em Matemática, ao número resultante do quociente entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro, chama-se Pi. É um valor fixo, ou seja, é sempre o mesmo, mas tem, contudo, outras características peculiares: é um número infinito e irracional, ou seja, tem um número infinito de decimais e não segue nenhum padrão.
O seu valor ‘fixo’, recordemos, é 3,14159265358979 … e julga-se ter sido encontrado há mais de dois mil anos por Arquimedes.
Como seria de esperar nestes nossos tempos, essas características de infinidade e irracionalidade propiciam o seu aproveitamento para a realização de concursos televisivos onde ganha quem conseguir dizer, sem se enganar, o maior número de dígitos seguidos de Pi. Parece que o recorde está em 70.000 dígitos, obtido por um jovem indiano, Rajveer Meena, em 21 de março de 2015 …
Mas há uma outra história do Pi dentro da história do Pi.
Tudo começou em 1888, quando Edward Johnston Goodwin, um médico americano do estado de Indiana, afirmou ter encontrado um novo método que permitiria resolver a quadratura do círculo.
Segundo explicou, no seu modelo, o quociente encontrado entre o diâmetro e a circunferência era equivalente a dividir cinco quartos por um quarto, o que, fazendo as contas, daria um Pi de 3,2.
Firmemente convencido da sua “descoberta”, Goodwin patenteia o seu método nos EUA e em mais sete países europeus. Todos aqueles que utilizassem este seu método nos seus trabalhos práticos, teriam de pagar direitos de autor pela sua utilização.
A 17 de janeiro de 1897, Goodwin consegue que seja presente à Assembleia Geral de Indiana, um projeto de lei, no qual esta “nova verdade matemática” era
“oferecida como uma contribuição para a educação que só poderia ser usada pelo estado de Indiana de forma gratuita, sem qualquer necessidade de pagar qualquer ipo de direitos de autor, sempre que seja aceite e adotada de forma oficial na legislatura de 1897”, como se pode ler nos Proceedings of the Indiana Academy of Science
A 15 de fevereiro de 1897, a Câmara de Representantes da Assembleia aprovou o projeto com 67 votos a favor e nenhum contra!
Um dos deputados explicava assim as razões da sua votação:
“O caso é muito simples. Se aprovarmos este projeto de lei que estabelece um novo valor mais correto para o Pi, o autor oferece ao nosso Estado, sem qualquer custo adicional, o uso da descoberta e a sua publicação gratuita em todos os livros de texto das nossas escolas, ao passo que todos os demais terão de lhe pagar direitos de autor”.
Ou seja, a partir de 15 de fevereiro de 1897, o valor de Pi passaria a ser 3,2, substituindo o anterior 3,1416… considerado errado.
Faltava apenas a aprovação pela outra câmara da Assembleia, o Senado. Mas Goodwin estava seguro da sua aprovação. Numa entrevista dada ao Sun, a 6 de fevereiro, não se coibiu em propagandear o novo valor de Pi que, quando aplicado, iria alterar o cálculo das órbitas dos corpos celestes:
“Se viver mais dez anos, tenham cuidado com Goodwin. A minha descoberta revolucionará as matemáticas. Todos os astrónomos estavam equivocados”.
Na altura da conclusão das votações, encontrando-se o matemático Clarence Waldo de visita à assembleia com o propósito de conseguir um aumento de financiamento para a sua universidade, foi-lhe sugerido uma visita a Goodwin, não só para o conhecer como para lhe dar a boa nova da aprovação do projeto de lei. Waldo escusou-se “cortesmente, afirmando que já conhecia loucos suficientes”.
É a Waldo que devemos que o valor de Pi seja ainda hoje o que é, pois foi ele que conseguiu convencer os senadores a atrasarem a publicação da lei, retirando-a definitivamente da ordem de trabalhos.
Goodwin morreu em 1902 com 77 anos. O seu obituário, que se pode ler no New Harmony News, diz:
“Final de um homem que queria beneficiar o mundo”.
Estas tentativas de estabelecer “verdades científicas” por decreto andam a par com a menorização e negação da Ciência, surgindo cada vez mais como uma forma de afirmação de um certo direito da liberdade de pensar.
É o caso recente do conhecidíssimo basquetebolista americano e com vários programas na televisão, Shaquille O’Neal, quando vem afirmar que a Terra não é redonda, porque nas suas deslocações de carro entre Chicago e San Francisco não notava a existência de qualquer curvatura, pelo que a Terra devia ser plana.
Perante várias tomadas de posição idênticas, cada vez mais frequentes por parte de outros leaders da opinião pública e de importantes dirigentes políticos, o famoso astrofísico Neil deGrasse Tyson entendeu vir a terreiro, para lembrar aos que negam que a Terra é redonda, que o podem fazer com toda a liberdade, desde que não sejam promovidos a chefes da NASA:
“Podem continuar a dizer que a Terra é chata porque nós temos liberdade de expressão, mas a nossa Constituição não lhes garante que tudo aquilo que disserem esteja certo”
(três séculos antes já Voltaire dissera “Não aprovo aquilo que você diz, mas defenderei até à morte o seu direito a dizê-lo”, e não precisou de nenhuma Constituição).
E, explica Tyson:
“As verdades científicas aparecem por consenso – não por opinião, mas como resultado de observações e medições – tornando toda a pesquisa que fique fora do consenso como um terreno movediço que será perigoso para servir de base a uma política”.
“A política não é a base em que a ciência possa assentar. A ciência é que é a base em que a política se deve apoiar”.
E, termina:
“Mostrem-me um País com um governo hostil à ciência, e eu mostrar-lhes-ei uma sociedade na qual a saúde, riqueza e segurança, estão a desaparecer”.
Sendo certo que os métodos científicos, através de observações e medições, permitem o aparecimento do consenso, já a escolha do que se estuda e investiga não depende desse consenso, mas de outros poderes que o determinam.
Não existe a Ciência como ideal aí fora à espera que alguém esforçadamente a alcance para que o progresso e o bem-estar da humanidade caminhem na direção certa, razão porque também não se faz ciência pela ciência, por muito que excelentes e bem-intencionados cientistas o acreditem.
Os muitos cientistas que participaram nos variados projetos e realizações nazis, soviéticos, capitalistas (da construção de armas de guerra até às experiencias em seres humanos), embora o tenham feito quase sempre em nome da Ciência, não deixaram de estar submetidos aos desejos e desígnios do poder de estado em nome dos poderes económicos ou, dos poderes económicos em nome do estado.
Para além disso, devido à vaidade, ganância ou mesmo incompetência, muitos desses cientistas escamotaram resultados, interpretando-os à sua maneira, emitiram opiniões contraditórias, seduzidos pelo caminho mais fácil do agradar a quem controla a sociedade.
Não é, pois, de admirar que, de vez em quando, a voz do dono se faça ouvir.
Transcrevo um chilreio de Donald Trump sobre o aquecimento global. Diz ele que:
“O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para assim tornarem a economia dos EUA menos competitiva.”
Como é que particularmente este indivíduo não sabia que o seu esquema acabaria por ser descoberto? Porque é que mesmo sabendo isso, não conseguiu resistir à sua implementação?
O investimento capitalista é sempre uma aposta arriscada nas oportunidades de lucro de um expediente, um empréstimo contraído em termos de futuro. Por isto, a própria dinâmica do capitalismo esbate a fronteira entre o investimento legítimo e a especulação selvagem.
“Os homens fazem o seu próprio cérebro, mas eles não sabem que o fazem”, Cathherine Malabou.
Vale a pena reler o artigo de Stephen Gandel na revista Time, de 12 de dezembro de 2008, “A Última queda de Wall Street: Madoff Acusado de Fraude” (Wall Street’s Latest Downfall: Madoff Charged with Fraud) (http://content.time.com/time/business/article/0,8599,1866154,00.html):
“Bernard Madoff, o ex-presidente da Nasdaq (National Association of Securities Dealers Automated Quotations) que ontem, quinta feira, foi acusado de cometer uma enorme fraude, sempre foi tido por ser uma pessoa estranha […] Agora, parece que também possa ser visto como um vigarista, e possivelmente um dos maiores da Wall Street. De acordo com o gabinete do Procurador da Justiça, Madoff admitiu ter defraudado clientes num valor de 50 biliões de dólares através de um extenso esquema de Ponzi, efetuado ao longo de vários anos.
A sus firma, iniciada há cinco décadas com o dinheiro que ganhara como agente de seguros na Far Rockaway, Queens, dedicava-se inicialmente ao negócio de mediação entre os compradores e os vendedores de valores. Era uma função essencial para um mercado como a Nasdaq, que na altura não tinha um local próprio onde ao compradores e vendedores se pudessem encontrar cara a cara para as suas transacionarem. A firma de Madoff foi a grande impulsionadora para o crescimento da Nasdaq, criando um sistema que levou a que muitos dos grandes investidores da Bolsa de Nova Iorque passassem a negociar com a Nasdaq […].
Nos anos 90, Madoff vai usar o seu reconhecido sucesso obtido como mediador do mercado para promover uma firma de aconselhamento e gestão de fundos. Madoff conseguiu arranjar dinheiro para o seu fundo através dos seus contactos sociais, cortejando muitas vezes investidores nos clubes privados de que ele e a sua família eram membros {…].
Á superfície, os fundos de Madoff até pareciam ser investimentos de risco limitado. O seu fundo principal garantia rendimentos regulares, na ordem de um a dois pontos percentuais mensais. A estratégia declarada consistia na aquisição de grande quantidade de ações, suplementando esses investimentos com estratégias de compra de outras opções. Supostamente, esta combinação daria rendimentos estáveis e preveniria perdas.
Mas, algures durante o ano de 2005, segundo a SEC (Security and Exchanges Comission), os investimentos de Madoff começam a serem transformados num esquema de Ponzi, passando a recorrer ao dinheiro dos compradores recentes para reembolsar outros clientes já existentes e que desejavam reaver os ganhos. Segundo a SEC, Madoff relatou que em janeiro de 2008, o seu negócio geria 17,1 biliões de dólares. À medida que o mercado se deteriorava, Madoff continuava a assegurar aos investidores que os seus fundos se manteriam em alta, chegando mesmo a alcançarem 5,6% nos finais de novembro. Durante o mesmo período, as ações da Standard & Poor 500, com a qual Madoff realizava a maior parte das transações, tinham caído em média 37,7%.
Apesar dos ganhos obtidos, um número crescente de investidores começou a exigir a Madoff o reembolso dos seus títulos. Na primeira semana de dezembro, segundo a SEC, Madoff disse a um diretor sénior da firma, que os reembolsos que os clientes exigiam, atingiam os 7 biliões de dólares. Na quarta-feira Madoff falou com os dois filhos e explicou-lhes que a sua atividade de gestão de fundos era fraudulenta, “um gigantesco esquema de Ponzi”, e que a bancarrota estava à porta. Os filhos contactaram o advogado, para que as autoridades federais fossem alertadas para a fraude.
[…] Muitos dos que conheciam Madoff mostraram-se espantados com essas revelações. “Muito do dinheiro com que trabalhava era de amigos e da família”. […] “É qualquer coisa de inexplicável. Até as pessoas com quem falei e que com ele tinham longas amizades estavam em choque”.
Segundo este relato, a opinião pública encontrava-se chocada com a atuação de Madoff, e não a conseguia explicar, mas, em qualquer dos casos, não tinha grandes dúvidas de estar perante um comportamento imprevisível de um indivíduo peculiar que acabara por se revelar como sendo um vigarista.
Como tal, foi preso, condenado, e tudo seguiu na mesma, assunto já esquecido pois, tal como no circo, o espetáculo tem de continuar. Há pressa em continuar, não vale a pena gastar-se tempo a retirarem-se quaisquer conclusões, tratou-se, como todos muito bem sabem, apenas de um caso aberrante de ganância individual.
Querem-nos fazer acreditar que estamos perante um vício ou uma irracionalidade pessoal. A explicação mais neutra, mais esperada e que deixa tudo na mesma. O sistema a funcionar.
Mas, como é que um esquema tão conhecido e tão básico como o de Ponzi, já tentado várias vezes, consegue surgir e desenvolver-se no mais sofisticado e vigiado centro de especulação financeira do mundo, a Bolsa de Nova Iorque?
Nós tivemos a Dona Branca, mas ela não era propriamente uma figura grada do sistema financeiro nem aqui em Portugal. Já Madoff, pertencia à elite do sistema financeiro mundial, fora o grande impulsionador da Nasdaq, chegando mesmo a seu presidente, para além de outras atividades socialmente reconhecidas, como a contribuição em dinheiro para os partidos e algumas organizações de beneficência.
Mas, como é que particularmente este indivíduo não sabia que o seu esquema acabaria por ser descoberto? Porque é que mesmo sabendo isso, não conseguiu resistir à sua implementação?
Casos como este, são resultantes da enorme tentação de transformar dissimuladamente uma atividade de negócios lícita num esquema ilícito, sobrepondo-se e adiantando-se assim a todos os outros. A enorme pressão e a pulsão interna para continuar a fazer expandir a tal esfera da circulação para que o sistema continuasse a funcionar, fez com que, em certo ponto, se ultrapassasse aquela ténue linha de separação entre o lícito e o ilícito. A compulsão expansionista inscrita no próprio sistema.
É bom lembrar que o investimento capitalista é sempre uma aposta arriscada nas oportunidades de lucro de um expediente, um empréstimo contraído em termos de futuro. Por isto, a própria dinâmica do capitalismo esbate a fronteira entre o investimento legítimo e a especulação selvagem.
Se sempre tivéssemos vivido numa sociedade em que predominasse a utilização da energia nuclear, certamente, devido aos procedimentos e protocolos associados a tal atividade, viveríamos numa sociedade totalmente militarizada.
Que influência é que a vida consentida numa sociedade militarizada, acabaria por acarretar, ao longo do tempo, para o nosso cérebro? Será que o cérebro poderá ser socializado? Será que a própria sociedade pode também ser naturalizada pelo cérebro?
Estas interrogações tornaram-se mais pertinentes agora que se foi descobrindo que o modelo do cérebro nas neurociências e os modelos ideológicos da sociedade capitalista predominante, como que parece serem paralelos.
Sabe-se hoje que o cérebro não é completamente determinado. Algumas das suas estruturas anatómicas estão geneticamente programadas, mas grande parte da sua organização neural está aberta a influências exteriores. Isto significa que uma importante parte da estrutura do nosso cérebro depende da maneira como vivemos e das nossas experiências.
Ou seja, o nosso cérebro não é rígido, mas antes evolutivo, aberto, flexível, em transformação constante. Esta “plasticidade” do cérebro é o que lhe permite manter uma identidade enquanto vai evoluindo, alterando-se, transformando-se em contacto com o meio ambiente e segundo a aleatoriedade das circunstâncias.
Esta descrição do cérebro, tem levado alguns a concluírem que ela é idêntica à imagem do mundo capitalista atual em que vivemos, em que o poder, embora não centralizado, continua a ser exercido por um posto de comando que atua em rede, em que se incensa a adaptabilidade absoluta, a flexibilidade, e onde se rejeitam os indivíduos sem mobilidade, muito rígidos.
Como se a consciência do cérebro coincidisse pura e simplesmente com o espírito do capitalismo.
A professora de filosofia na Universidade de Paris Ouest-Nanterre, Catherine Malabou, vem explicar essas coincidências no seu livro Que faire de notre cerveau? (Que fazer com o nosso cérebro?):
Admitindo que quer o cérebro quer a sociedade capitalista prosseguem, aparentemente, idênticos modelos descentralizados de comando com elevada capacidade de adaptação e flexibilidade, como se a sociedade capitalista refletisse ou imitasse a organização neuronal do cérebro ou como se o cérebro refletisse ou imitasse a sociedade capitalista, Malabou vem, contudo, chamar-nos a atenção para o que considera ser um discurso reducionista científico quando, por ter plasticidade, consideraram o sujeito neuronal como sendo dócil, moldável e adaptável, porquanto, segundo ela, é exatamente por ter plasticidade que esse mesmo sujeito é também capaz de resistir e de se rebelar.
É que a organização do cérebro vai-se fazendo por forma a que possa servir de modelo para compreender todos os tipos de organizações, como, por exemplo, a sociedade. O que se passa no cérebro é como que a organização de um quadro (paradigma) que nos vai permitir compreender o que se passa na sociedade e nas suas relações sociais.
É devido à sua plasticidade, que o cérebro se constrói a ele próprio desdobrando a sua estrutura, por forma a ir-nos mantendo informados sobre nós próprios (o nosso Eu).
Ou seja, a sociedade influencia o nosso cérebro, mas, devido à sua plasticidade, o nosso cérebro está sempre a assimilar e a transbordar na procura de um novo real, influenciando constantemente a sociedade. É essa propriedade que lhe permite desenvolver-se, desdobrar-se, sobrepor-se e infiltrar-se onde quer que seja. Nisto reside a sua capacidade para resistir e para se rebelar.
Por isto, Malabou, incita-nos a cuidar do nosso cérebro, dizendo-nos que:
“Os homens fazem o seu próprio cérebro, mas eles não sabem que o fazem”,
talvez a recordar o que Marx dissera:
“Os homens fazem a sua própria história, mas eles não sabem que a fazem”.
Adenda: Este mês, a HBO vai lançar um filme sobre Madoff, com Robert De Niro e Michelle Pfeiffer, intitulado “O Feiticeiro das Mentiras” (The Wizard of Lies). O título diz tudo.
A globalização já não é legitimada devido à superioridade ‘natural’ do Ocidente desenvolvido, nem por querermos preservar a nossa identidade cultural, mas única e exclusivamente por um egoísmo económico sem vergonha aceite pela maioria das classes trabalhadoras.
“Não são proposições e conceitos que garantem a lei do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”, Heidegger.
Ao retirarem aos judeus qualquer possibilidade de poderem ser considerados seres humanos morais, estes professores e intelectuais deram a Hitler as armas ideológicas que qualquer movimento necessita para o seu sucesso.
O que se aplicava aos povos “inferiores” são agora utilizados para caracterizar os povos do Sul, os desempregados, os trabalhadores, os alentejanos, os ilhéus, os pobres (que “só o são porque o querem”), os eternos pretos, os homossexuais, etc.
Recentemente, nos bairros ‘desfavorecidos’ ou ‘problemáticos’ (eufemismo para os bairros em que os pobres e os refugiados se veem obrigados a habitar) de Tor Sapieza em Roma e de San Siro (sim, onde está o estádio de futebol das grandes noites europeias) em Milão, a polícia foi chamada a intervir perante o assalto e fogo posto levado a cabo pelos habitantes ‘antigos’ desses bairros contra os ‘novos’ habitantes, imigrantes refugiados estrangeiros colocados em centros de acolhimento e em acampamentos de nómadas.
Para a esquerda tratava-se de uma questão de racismo, para a direita tratava-se da defesa da legalidade e da segurança.
Situações como estas, que colocam pobres contra miseráveis, os que têm pouco contra os que não têm nada, trabalhadores públicos contra privados, novos sem trabalho contra velhos reformados, filhos contra pais, são indicativas de rutura social, que em muitos destes casos tem sido desejada e programada.
A quando do Katrina, Nova Orleães mergulhou num estado de selvajaria primitiva, em que os que por lá ficaram se viram de repente excluídos de qualquer ordem social. Pode-se mesmo dizer que durante alguns dias o poderoso governo americano, que tudo controla, perdeu o controlo de parte do seu território.
Para a direita, esta desintegração da ordem social foi a confirmação da maldade da natureza humana que, sem um maior número de restrições e de imposições legais (policiais e outras), acabará por levar à queda no caos.
Uma vez que a enorme maioria dos que ficaram em Nova Orleães eram negros, o que se encontra subjacente a este pensamento da direita, é que na prática, entregues a si, os negros não são civilizados.
Para a esquerda, essa desintegração social é prova da persistência da divisão racial existente nos EUA. Da população total de Nova Orleães, cerca de 70% são negros, sendo simultaneamente os mais pobres, que exatamente por isso não tiveram meios para fugirem da cidade a tempo. Foram deixados para trás, sem alimentos e outros cuidados.
Todas as informações, relatórios, imagens de televisão que descreveram a violência que se instalou, deram origem a histórias que circularam e chegaram a todos os lares. Subjacente a todas elas, muito embora fossem verdadeiras, encontrava-se sempre um elemento patológico e racista, para que no fim se pudesse dizer: “Veem? Os pretos são assim!”.
Como diz Zizek, trata-se de “mentir a coberto da verdade”.
Ainda que o que se diga seja verdadeiro, os motivos porque o faço são falsos.
Os meios de comunicação social podem e devem relatar todos os crimes e todos os factos com eles relacionados. Têm é de ter atenção para que a verdade fatual que apresentam não implique a transmissão de uma mentira a partir da posição subjetiva com que a enunciam.
Por exemplo: dizer que há casais de homossexuais ou de lésbicas que maltratam crianças, em vez de dizer que há casais que maltratam crianças; perguntarem a alguém que habitualmente utiliza transportes se concorda com aquela greve dos transportes, para obterem a resposta óbvia que insinue que as greves, embora legalmente sejam um direito que dizem não contestar, só provocam incómodos e nada resolvem; mostrarem a fealdade e dição incorreta de alguns elementos do povo logo seguida de bem-falantes apresentadores, locutores, comentadores de fato e gravata último modelo ou modelo a seguir; mostrar, como fizeram os documentaristas nazis, soldados africanos negros do exército francês, no campo de detenção onde se encontravam prisioneiros, a degolarem uma cabra para a comerem e a beberem o sangue; etc..
Outra forma de apresentar estas motivações ‘pretensamente’ escondidas sem as assumir, é de as invocar apenas como se tratasse de uma mera alternativa que será logo posta de parte.
Exemplo: aquele radialista norte-americano que propunha como solução para a diminuição da criminalidade, o aborto obrigatório das mães de todos os bebés pretos, concluindo que bem sabia que “se tratava de uma coisa ridiculamente impossível e moralmente condenável, mas que certamente levaria à diminuição da taxa de criminalidade”.
Embora o discurso oficial cristão e democrático o negue, o fato é que comporta e suporta todas estas motivações admitidas na consciência, ainda que sob uma forma censurada.
Quando a Espanha teve de enfrentar o problema de deter o grande número de imigrantes africanos que tentavam alcançar o seu território de Melila, na fronteira com Marrocos, a solução que adotou foi a da construção de um muro.
Aliás, não é solução inédita, em vigor entre Israel e a Cisjordânia, entre os EUA e o México, e já utilizada pela Alemanha Oriental com o muro de Berlim (este para não permitir que as pessoas saíssem, os outros para não permitirem que as pessoas entrassem). A própria criação da força de polícias pan-europeia visava já garantir o isolamento da União Europeia perante o afluxo previsto da chegada de imigrantes.
Esta é a outra face da globalização, ou melhor, a sua verdadeira face: a construção de novos muros para proteger a Europa desta imigração. A circulação livre é apenas para o capital e para as coisas, sendo a circulação das pessoas cada vez mais controlada.
A globalização já não é legitimada devido à superioridade ‘natural’ do Ocidente desenvolvido, nem por querermos preservar a nossa identidade cultural, mas única e exclusivamente por um egoísmo económico sem vergonha aceite pela maioria das classes trabalhadoras.
Se atualmente preconizássemos o derrube dos muros e a abertura indiscriminada das fronteiras, as classes trabalhadoras locais seriam as primeiras a revoltarem-se, como indiciam os acontecimentos em Itália e muitos outros países.
Põe-se, portanto, a questão de tentarmos saber como chegámos aqui:
Será que os seres humanos são de si racistas, xenófobos, antissemitas, ou será que temos sido conduzidos perante um processo de ‘domesticação’ (dir-se-á hoje ‘formatação’) social?
Vejamos um caso relativamente recente e ainda hoje com grandes repercussões no sentir das populações, o do antissemitismo nazi.
Quando os nazis tomam o poder em 1933, grande parte dos intelectuais e professores universitários manifestaram-se, agradecendo a Hitler por ter livrado a Alemanha da tripla ameaça da revolução russa, da decadência cultural e do declínio económico.
É assim que em 1934, o reitor da Universidade de Bonn, saúda o nazismo como sendo a alvorada de uma “ética heroica”, uma idade de “otimismo moral”. É assim que Heidegger diz:
“Não são proposições e conceitos que garantem as leis do Ser. Apenas o Führer e só ele é a Realidade na Alemanha hoje e no futuro”.
A partir de 1935, o enorme desenvolvimento da máquina de guerra nazi, ao mesmo tempo que ajudava a recuperação económica, corria, por outro lado, o sério risco de colocar as exportações Alemãs perante um boicote internacional que viesse a ser imposto, pois contrariava todos os acordos anteriormente assinados e que visavam restringir o crescimento das suas forças armadas.
Esta foi, talvez, uma das causas que tenha levado Hitler a decretar “uma reorientação” na guerra contra os judeus, procedendo a uma arianização agressiva (ou seja, confiscação) dos negócios e bens de 75.000 a 80.000 judeus, à sua expulsão da Bolsa e de vários outros setores de atividade económica (como os dos têxteis, dos cigarros, das atividades bancárias, gado e casas de penhores).
A partir daí prosseguiu-se agressivamente uma política de chantagem, extorsão e roubo, legalmente permitida e sancionada pelo objetivo da limpeza do Volk. Em finais de 1936, 260 das maiores empresas de donos judeus tinham sido arianizadas, muitas delas por respeitados industriais que nem pertenciam ao partido nazi. Aos judeus nenhum alemão pagava quaisquer dívidas que tivessem, não lhes era concedido crédito, o que os obrigava a venderem as propriedades que detinham.
Simultaneamente, começa-se a promover uma campanha de desinformação de forma a criar uma base racional que justificasse a perseguição aos judeus. Tudo isso é feito através do desenvolvimento de uma verdadeira indústria académica de pesquisa, com notícias, filmes e documentários, exibições, programas educacionais, livros de texto onde se disseminavam os últimos avanços ‘científicos’ com o fim de provarem que a existência da “questão judaica” era culpa dos Judeus.
Ou seja, procuravam-se já os parâmetros para o estabelecimento de um futuro consenso que servisse de base aos planificadores da Solução Final, e que simultaneamente levasse o povo a acreditar que o “perigo judeu” era justificado.
A 15 de Setembro de 1935, dá-se a publicação das Leis sobre a Raça de Nuremberga, que incluíam entre outras, a proibição dos casamentos inter-raciais, a proibição da existência de criados judeus nas casas, a proibição de os judeus utilizarem a bandeira suástica Alemã.
Mas, acima e tudo, estas Leis vieram permitir aos alemães viverem dentro da legalidade, uma vez que os crimes cometidos ou a cometer contra os judeus deixaram de serem considerados como crimes, dado que os judeus passaram a serem considerados como estrangeiros, não fazendo parte da pátria alemã.
A grande maioria dos alemães que lamentava o boicote e a destruição de propriedades dos judeus, vai gradualmente aceitando como inevitável o estatuto de pária para os judeus.
Mas, Hitler necessita que o racismo seja visto como uma verdade científica. Todas as pesquisas efetuadas e a efetuar, terão de se conformar a este objetivo.
Os biólogos tentaram tudo para encontrarem no sangue traços que permitissem identificar um judeu. Apesar dos vastos fundos atribuídos não conseguiram identificar qualquer tipo de sangue, cheiro, tamanho de crânio, lóbulo de orelha, nariz, ou outra marca que distinguisse um judeu.
Curiosamente, este não resultado dos seus biólogos coincidiu com a “reorientação” da política racial de Hitler de 1935. A partir daí, a caça aos judeus passou a incidir sobre estereótipos culturais em vez dos físicos. Em vez das ciências naturais, a enfâse passou para as ciências sociais e para as humanidades.
Os “estudos raciais” (Rassenkunde) passam a fazer parte do currículo obrigatório de muitas disciplinas. Linguistas, historiadores, geógrafos, psicólogos, geógrafos culturais, antropologistas, inundam o mercado com novos livros de texto e outras publicações.
A partir de meados de 1935 criam-se oficialmente cinco Institutos Universitários com a finalidade de estudarem e estriparem a influência judaica nas ciências naturais, na cultura, na história, na jurisprudência e na religião.
A aproximação multidisciplinar, o elevado perfil público exibido, a orientação política, as cerimónias protocolares, os esplendorosos banquetes e os encontros anuais, fazem destes estudos raciais, acontecimentos públicos de grande prestígio.
Amplo acompanhamento por toda a comunicação social, livros encadernados com luxuosas fotografias, livros de bolso, bibliografias, mapas, publicitando aberta e constantemente o “perigo judeu”, tornavam respeitável e aceitável, até para a classe média educada, a existência de um espírito corrosivo judeu que não podia continuar a fazer parte da sociedade alemã.
O primeiro desses institutos teve como origem o chamado Instituto Lenard (do físico Philipp Lenard), que vinha já desde 1920 a desacreditar a física “judaica” de Einstein. Em 1933, Lenard atraiu as atenções dos nazis quando saudou Hitler como “um cientista natural que procura a Verdade através de meios empíricos”.
Chamava de “judeus brancos” a todos os físicos que aceitassem a teoria quântica e da relatividade: essa teoria era tipicamente judaica por ser muito complexa, em oposição ao espírito germânico que produziria uma teoria simples e elegante para a compreensão do universo.
O Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha, criado com autorização do Ministro da Educação e do Ministro da Propaganda, baseava a sua linha de orientação na teoria segundo a qual as mudanças históricas provinham da luta racial.
Para diretor do instituto é nomeado Carl Schmitt, sendo convidados para participantes uma plêiade de conhecidos intelectuais como Julius Streicher e Martin Heidegger.
Essencialmente debruçaram-se sobre conjuntos arquivísticos com a finalidade de reverem as interpretações dos acontecimentos históricos mais significativos. Desde a atribuição do aparecimento do capitalismo ao nefasto materialismo judaico, do impacto negativo dos casamentos inter-raciais nas culturas de vários países, do contributo positivo que os emigrantes huguenotes do século XIX trouxeram, através do seu sangue, para a fortaleza da Prússia, até à consideração da Revolução Russa como resultado da luta entre os “inferiores” judeus Bolcheviques e a “superior” nobreza dos Russos Brancos.
A agência de notícias nazi dava indicações aos editores dos meios de comunicação para publicitarem mensagens do tipo: “Povo germânico, leiam e saibam como os judeus vos têm prejudicado”.
O Instituto do Reich para a Jurisprudência levou a efeito uma conferência em outubro de 1936 sobre a “desjudaização”, à qual comparecem 100 dos 400 professores de jurisprudência das Faculdades de Direito da Alemanha.
A finalidade era pôr de acordo as leis do estado com as Leis da Raça, uma vez que essas Leis de 1935 impuseram a segregação dos judeus.
Os participantes na conferência identificaram livros de texto, artigos de revistas de Direito, bem como decisões de jurisprudência que tinham sido tomadas por autores com nomes que poderiam ser judeus, artigos de opinião, notas de rodapé e tudo o mais que pudesse constituir contaminação, a fim de evitar que viessem a serem citados por autores alemães e para evitar confusões aos alunos.
O Instituto do Reich para o Estudo da Questão Judaica fundado em Frankfurt, tinha a dirigi-lo Wilhelm Grau.
Para além de considerar a história judaica como uma narrativa do mal, apresentava a luta através dos tempos dos vários povos Europeus contra os judeus criando como que um pedigree para o antissemitismo nazi, desde os tempos dos imperadores romanos passando por Martinho Lutero e Goethe.
Livros em luxuosas encadernações, manuais, livros de bolso e posters, disseminavam as mais recentes ‘descobertas’ antissemitas, desde “as origens do nariz Judeu” até às suas inúmeras faces sob as quais se escondiam (judeus a conduzirem automóveis caros num ghetto da Palestina, ou a acompanharem a modelo e dançarina erótica negra americana Josefina Baker).
A mensagem que pretendiam transmitir era a de que os judeus tinham rejeitado todas as oportunidades concedidas para serem alemães, mantendo-se inassimiláveis. A paciência alemã esgotara-se. “A Alemanha foi a primeira nação a resolver legalmente a Questão Judaica”.
Assim, a partir da altura em que as pessoas aceitassem que havia uma “questão Judaica”, estavam lançadas as bases para a aceitação da morte civil dos judeus. Estavam abertos os caminhos para os devastadores ataques de 1938 aos judeus na Áustria após a ocupação pelas tropas alemãs e ao pogrom que se lhe seguiu em novembro de 1938.
O Instituto para o Estudo e Irradicação da Influência Judaica na Vida Religiosa Alemã foi criado em 1939 por influentes pastores Protestantes, com o fim de purgar o “espírito judaico” do Volk Cristão, dando a possibilidade aos cristãos de se defenderem das influências judaicas.
‘Demonstraram’ que os pais de Jesus eram arménios e não judeus, que o “judeu Paulo” pervertera os ensinamentos de Cristo, qual fora a influência nefasta do Judaísmo sobre o Cristianismo, qual era a história do culto Cristão Teutónico, e outros.
Na realidade, o objetivo era não só separar os cristãos dos judeus, mas apresentar o cristianismo como uma religião pura que poderia enquadrar-se na nova ordem nazi.
Todas estas ‘descobertas’ destes Institutos eram profusamente incorporadas em livros de texto e em artigos de divulgação dos média que, juntamente com a enorme atenção dedicada à participação não só nos seus congressos, mas à participação em congressos internacionais, faziam crer da aceitação generalizada das suas propostas.
Aliás, a própria imprensa internacional, era disso exemplo. É assim que o The New York Times publica em 1935 artigos de Schmitt em louvor das Leis da Raça de Nuremberga como sendo “genuinamente Alemãs”, de Gercke a advogar a pureza da raça, de Alfred Baeumler a louvar Hitler por ter tirado a Alemanha da estagnação medieval, Walter Gross a justificar a segregação das crianças que não fossem arianas, de Fischer a louvar a participação de Hitler no Congresso da População Mundial, e até um artigo da mulher do então reconhecido historiador Hermann Oncken em que dizia que “tinham sido os Judeus os responsáveis pela sua própria perseguição”.
Antes dos exércitos alemães atacarem e ocuparem a Europa Oriental, estas autênticas centrais de propaganda que foram os Institutos, prepararam o público para o tratamento agressivo e violento dos “inferiores”, única forma para lidar com a “ameaça judaica”: a violência nazi era a adequada perante o perigo que representava a ameaça demoníaca dos judeus, ciganos e eslavos.
Ao retirarem aos judeus qualquer possibilidade de poderem ser considerados seres humanos morais, estes professores e intelectuais deram a Hitler as armas ideológicas que qualquer movimento necessita para o seu sucesso.
Hoje, passados oitenta anos, muitos dos conceitos então ‘estudados’, continuam bem presentes na nossa sociedade: o que se aplicava aos povos “inferiores” são agora utilizados para caracterizar os povos do sul, os desempregados, os trabalhadores, os alentejanos, os ilhéus, os pobres (que “só o são porque o querem”), os eternos pretos, homossexuais, etc.
É assim que, quando entrevistada em 1960, a filha do professor Eugen Fischer, continuava a afirmar que o pai e os seus colegas não eram antissemitas, porque nunca os ouvira dizer que os judeus eram maus, e sim que eram apenas “diferentes”.
Claro que eram a favor da segregação pois “não nos podemos esquecer que em 1927 quando viemos para Berlim, o cinema, os teatros, a literatura, tudo estava nas mãos deles”. É esta incapacidade para identificar o antissemitismo das suas opiniões que é reveladora da permanência destes conceitos nazis.
A permanência destes conceitos deve-se ao esforço da propaganda nazi para conseguir fazer com que as suas posições ideológicas aparecessem como naturais para mais facilmente serem aceites.
Quando hoje nos aparece como óbvio que na sociedade tudo, mesmo tudo, incluindo os cuidados de saúde e a educação, deve ser gerido como se tratasse de um negócio, tal deve-se ao sucesso com que de há quarenta anos para cá, as Novas Direitas conseguiram impor a sua visão do mundo, a sua “ontologia do negócio”.
Nesta “ordem natural” tudo é apresentado como necessário e inevitável. Fora desta ordem natural só existe o impossível.
Na China, ultima-se o planeamento e a construção (e/ou aglomeração) de cidades para 130 milhões de pessoas, onde, em cada uma delas, caberá o equivalente a toda a população da Grã-Bretanha e da Françajuntas.
“Não tenho dúvida de que existe uma luta de classes, e que é a minha classe, a dos ricos, que a está a fazer e que a está a ganhar”, Warren Buffet.
“Foi Reagan que nos ensinou que os défices não são importantes”, Dick Cheney.
A China, com o seu programa de urbanização massiva e de investimentos em infraestruturas, ocupou a dianteira do processo para salvar o capitalismo global do desastre de 2008.
Existem atualmente na China mais de 100 cidades com, pelo menos, um milhão de habitantes. O McKinsey Global Institute prevê que até 2025 o número dessas cidades duplique, dando assim credibilidade à estimativa feita pelo governo chinês que aponta para 221 cidades com mais de um milhão de habitantes.
Um dos objetivos da China é, até 2020, ter 60% da sua população a viver em cidades (a percentagem atual é de 56,1%), o que levou o Banco Mundial a estimar que em 2030, o número de pessoas a viver em cidades na China deverá ser um bilião (70% da população).
Esta enorme deslocação de pessoas em direção às cidades não tem precedente na história moderna chinesa. Até porque, durante décadas, a política do governo foi a de manter as populações nos seus locais de origem, contrariando a sua vinda para as cidades.
Para isso, criou até um sistema de registo de residência (hukou) pelo qual as pessoas só poderiam receber serviços de saúde, educação e outros serviços sociais, nos locais onde se encontrassem registadas, ou seja, nos seus locais de nascimento.
Essa política foi agora radicalmente alterada, com a finalidade de atrair as pessoas para as cidades, através de incentivos como o registo urbano gratuito, benefícios para aquisição de casa própria, e outros.
Como resposta às falências provocadas entre 2001 e 2007 pela bolha das ações em bolsa das empresas tecnológicas, as ‘.com’, Alan Greenspan, da Reserva Federal dos EUA, agilizou um processo através do qual o capital pudesse vir antes a ser canalizado em favor do investimento mais seguro em propriedades.
Facilitando e embaratecendo o crédito, as compras de casas e propriedades dispararam, e o sucesso foi tão grande que, acompanhado de outros ‘oportunismos’ e aproveitamentos do costume e de outros novos, culminou com a grande crise económica de 2008, resultando em falências, percas de casas, paralisação da construção e despedimentos massivos, o que levou, naturalmente, a uma quase estagnação da procura dos bens de consumo nos EUA.
A China, cujas exportações eram muito dependentes do mercado de consumo americano, viu-se, de repente, confrontada com cerca de 30 milhões de desempregados. O governo chinês tinha rapidamente de pôr esses desempregados a trabalhar ou arriscava-se a ter de lidar com uma enorme agitação social.
O que fez o governo chinês?
Um enorme programa de investimentos em infraestruturas visando ligar as grandes zonas industriais da costa com o interior subdesenvolvido, melhorar a conetividade dos mercados do Sul com os do Norte, e ainda, um outro enorme programa de urbanização forçada, construindo novas cidades, expandindo e reconstruindo as outras.
Nada que, em tempos de crise, não tivesse sido já feito antes no chamado Ocidente. Os casos mais emblemáticos são o de Paris, com Napoleão III em 1852, para resolver a crise de desemprego e de reconstrução da cidade após a revolução de 1848, e o dos EUA após o fim da 2ª Guerra em 1945 (devido ao regresso em massa de soldados desmobilizados, sem emprego e sem casa para habitar), com a criação dos subúrbios habitacionais e das regiões metropolitanas das cidades mais importantes, e com a construção do sistema interestadual de autoestradas que permitiu a integração do Sul e do Oeste na economia nacional.
Em qualquer dos casos o objetivo era de, através da utilização dos excedentes de capital e de trabalho, garantir um relativo estado de emprego, assegurando assim a estabilidade social.
Nesse sentido, e no curto prazo, o plano da China também resultou plenamente, controlando a catastrófica crise social iminente. E, de tal maneira o fez que, um ano depois, em 2009, já os relatórios do Fundo Monetário Internacional e da Organização Internacional do Trabalho, indicavam que o número de trabalhadores desempregados, como resultado da crise de 2008, era de apenas 3 milhões, o que significava que num só ano o governo chinês conseguiu criar 27 milhões de empregos, o que é notável.
Segundo o United States Geological Survey, a China consumiu entre 2011 e 2013, 6.651 milhões de toneladas de cimento em doze anos. Note-se que os EUA, entre 1900 e 1999, consumiram 4.405 milhões de toneladas em cem anos, número que já era considerado elevado.
Se, a isto acrescentarmos o cobre consumido (60% da produção mundial), os lingotes de ferro (50%), e ainda o impacto que a sua procura de matérias primas teve no rápido crescimento dos países (Austrália, Chile, Brasil, Argentina, Equador …) fornecedores de minerais, óleo, produtos agrícolas (madeira, soja, algodão, etc.), e nos fornecedores de maquinaria de alta qualidade (Alemanha), é caso para se poder afirmar que a China, com o seu programa de urbanização massiva e investimentos em infraestruturas, esteve na dianteira do processo para salvar o capitalismo global do desastre de 2008.
Como o conseguiu fazer?
Financiando o défice. O governo deu ordens aos bancos para emprestarem sem olhar aos riscos, e instruiu os municípios e restantes administrações regionais para maximizarem todas as iniciativas que visassem o desenvolvimento. O que, evidentemente, resultou num aumento espetacular da dívida pública.
A dívida da China relativamente ao PIB, é hoje das mais altas do mundo. Só que, ao contrário de países como a Grécia, a dívida é em moeda chinesa (renminbis) e não em dólares ou euros. Acontece também que o Banco Central da China tem enormes quantidades de reservas em divisas estrangeiras de forma a cobrir a dívida, e que, além disso, pode ainda imprimir o seu próprio dinheiro.
Ou seja, a China está certamente de acordo com a visão de Ronald Reagan quando dizia que o défice e as dívidas não interessavam.
Claro que, mais lá para a frente, tal como aconteceu em Paris em 1867, nos EUA nos finais dos anos sessenta e em Nova Iorque em 1975, só para citar casos paradigmáticos, acabou por aparecer o problema do sobre investimento.
A aplicação massiva de capital fixo de investimento que deveria ter conduzido a um aumento de produtividade e eficiência, não produziu esse desejado efeito: o crescimento da China abrandou, o que teve consequências desastrosas para as economias do Brasil, Chile, Argentina, Austrália, etc.
A partir de 2014, a maior parte das municipalidades estavam falidas, o sistema bancário, que tinha crescido enormemente sobre bases falsas, comportava-se tal como se fosse um casino, as propriedades começaram a desvalorizarem-se por falta de compradores. De novo o espectro da agitação social.
E o que fez desta vez o governo chinês?
Pois exatamente o mesmo que já tinha feito antes, um novo programa financiado pelo défice a fim de absorver os excedentes de capital e de trabalho, só que agora numa escala muito maior por forma a afastar o espetro de uma nova agitação social para um futuro muito mais longínquo.
É aqui que encaixa o planeamento e a construção (e/ou aglomeração) de cidades para 130 milhões de pessoas, num projeto que equivale a ter cidades onde, em cada uma delas, caberá toda a população da Grã-Bretanha e da França juntas.
Mas, o governo chinês sabe que este projeto de urbanização não é só por si o suficiente para lhe garantir estabilidade no futuro. Sabe que tem de procurar para lá das suas fronteiras uma forma para absorver mais excedentes de capital e trabalho.
É aqui que entra o famoso projeto de construção da “Rota da Seda” (ligação da China à Europa atravessando a Ásia Central), e de outros enormes projetos idênticos de transportes lançados na América do Sul e África, bem como o da construção do novo canal de ligação do Atlântico ao Pacífico, em execução na Nicarágua.
Para além dos rebuçados das vantagens que o viver em cidades de 130 milhões de pessoas trará (e atenção, este projeto não é só exclusivo da China, porquanto existem já programas similares de urbanização nos Estados do Golfo e na Turquia, que pretende converter Istambul numa cidade de 45 milhões, tendo já iniciado um vasto programa de urbanizações no lado norte do Bósforo), como sejam melhores redes de transportes, melhores redes de comunicação, melhores espetáculos, melhores facilidades para se arranjar emprego, melhores tudo e melhores etc., certamente que a vida nessas cidades será mais espiada, mais controlada, mais policiada, mais militarizada, como os ‘cidadãos’ têm sido ensinados a desejar para sua proteção e segurança, como convém para manter a civilização na senda do progresso.
Não há programa que contemple os 30% que ficarem fora dessas megacidades. Mas isso será, evidentemente, o problema desses 30%. O que, já de si, é o programa.
As inovações tecnológicas acarretam sempre um enorme impacto nas relações sociais. Por exemplo, a introdução da máquina a vapor, veio permitir libertar a indústria da dependência obrigatória da sua localização geográfica só em determinadas regiões, possibilitando assim uma maior concentração da produção em centros urbanos.
Se repararmos bem, não deixaremos de notar que a aglomeração da produção (da população e das forças produtivas) em alguns poucos grandes centros urbanos, foi sempre uma tendência inerente ao modo de produção adotado pela sociedade.
Esta organização racional da produção em grandes centros foi fundamental para reduzir os tempos de execução e os custos dentro do processo contínuo da circulação do capital (o dinheiro é usado para comprar força de trabalho e meios de produção, que, quando transformados pela produção, permite que um novo produto seja lançado no mercado por troca com o dinheiro inicialmente despendido acrescido de um lucro).
O que é verdadeiramente importante de entender, nesta que nos querem fazer aparecer como a grande epopeia do futuro, é saber a razão porque tem ela de ser feita. E a resposta não é nova: porque tal é necessário para a reprodução da acumulação do capital. Se se parar essa acumulação, dar-se-á a total falência do sistema.
Vivemos hoje num mundo hegemonicamente capitalista, o que significa que a nossa sociedade é caraterizada pela existência de uma classe de capitalistas (privados ou fazendo parte do Estado) que organizam e comandam o processo de trabalho com a finalidade de obterem lucro, e pelos que fazem parte desse processo de trabalho que aceitam como seus próprios os valores da classe dos capitalistas.
Curiosamente, nem os capitalistas gostam hoje de serem assim chamados (preferem ser conhecidos incorretamente como “classe dos ricos”, como “empreendedores de sucesso”, “classe dos 1%”, etc.), nem o sistema gosta de ser chamado de capitalista (prefere ser conhecido apenas como “sistema económico”, como “a economia”, melhor ainda até não ser sequer referido).
Muito basicamente e muito esquematicamente: como o lucro se obtém com o domínio do trabalho pelo capital, então a classe de capitalistas, para se poder manter e reproduzir-se a si própria, terá de expandir continuadamente a sua base de lucro (a esta expansão continuada do seu lucro, chamam “crescimento económico”).
Daqui resulta o conceito de “acumulação pela acumulação”, de “produção pela produção”, que é o princípio em que a nossa sociedade está fundada. A acumulação,é o meio que a classe capitalista utiliza para se reproduzir a si mesma e para continuar a sua dominação sobre o trabalho.
É por isto que a acumulação não pode ser isolada da luta de classes, como notou, entre outros, o insuspeito e multibilionário de referência, Warren Buffet:
“Não tenho dúvida de que existe uma luta de classes, e que é a minha classe, a dos ricos, que a está a fazer e que a está a ganhar”.
É esta autoimposição vital de “acumulação por acumulação”, de “produção por produção”, que nos permite entender melhor porque temos vivido, e continuaremos a viver, em tempos em que o abandono, a falência e destruição de empresas, cidades, meios ambientes, populações, se sucedem a um ritmo cada vez mais elevado, vindo algumas delas, incluindo as próprias pessoas, a serem substituídas por outras mais de acordo com o desenvolvimento pretendido.
Para definir este processo de destruição conforme as suas conveniências, utiliza-se até um termo muito interessante e que fica muito bem nos relatórios especializados e nos media. Chamam-lhe “destruição criativa”.
Poderá até acontecer que o sistema económico-político-económico contemporâneo consiga fazer com que a reprodução do capital possa vir a ser alcançada por quaisquer outros meios menos violentos e destrutivos. Mas, seria bom que, em vez de nos condicionarem e condenarem à inevitabilidade dessa “destruição criativa”, nos explicassem antes quais poderiam ser esses outros meios menos violentos e destrutivos. Para podermos decidir em conjunto. Democraticamente. Aguardemos, sentados.