Se nós não nos importamos com o sofrimento infligido a muitas pessoas à distância, porque é que havemos de nos importar com o sofrimento infligido a uma só pessoa feito à nossa frente?
“Um inimigo é alguém cuja história não se ouviu”, Wendy Brown.
Hitler foi nosso inimigo apenas porque não ouvimos a sua história.
“É só a nossa crença em Deus, é só o mandamento divino de amarmos o próximo, que em última análise nos impede de torturar pessoas!”, S. Harris.
Já todos reparámos que é muito mais fácil ajudarmos quem nos está próximo do que ajudarmos quem está longe. É mais fácil ajudar um membro da nossa família ou um nosso amigo, do que um desconhecido qualquer.
Mesmo sabendo que a ajuda seria muito mais necessária para uma criança que vive na maior da pobreza em África, sem qualquer tipo de proteção social, optamos antes pela ajuda à criança que vive no nosso país onde existe uma certa proteção social.
Já todos reparámos que nos é sempre muito mais difícil de suportar assistirmos à tortura de um indivíduo à nossa frente, do que assistirmos ao lançamento à distância de uma bomba que vá causar a morte de milhões de pessoas.
Todos nós ficamos horrorizados perante a desumanidade daquelas imagens, repetidamente passadas, daquele ser humano a ser degolado pelos representantes do chamado Estado Islâmico, ultrapassando tudo aquilo que poderíamos imaginar.
E, todos nós tentamos não querer saber que ele fora apanhado há dois anos na Síria, onde o governo americano distribuía armas, dinheiro e conselheiros às forças que se opunham ao governo sírio, provavelmente até armando os futuros fundadores do Califado, que agora acusam de falta de humanidade.
É como se houvesse uma repulsa instintiva nossa ao sermos testemunhas diretas de torturas ou do sofrimento de um indivíduo, repulsa que não temos no caso do sofrimento ser de massas distantes, que não nos são nada e que não nos dizem nada. Isto constitui uma ilusão ética.
Essa ilusão assenta no facto do nosso raciocínio abstrato se ter desenvolvido muito, ao passo que as nossas respostas ético-emocionais continuarem a ser condicionadas por antigas reações instintivas de simpatia perante o sofrimento e a dor, quando somos testemunhas diretas.
Esta nossa caraterística vai ser aproveitada por aqueles que pretendem legitimar a tortura como meio para conseguir informações, e que o fazem utilizando o seguinte argumento:
Se nós não nos importamos com o sofrimento infligido a muitas pessoas à distância, porque é que nos havemos de importar com o sofrimento infligido a uma só pessoa feito à nossa frente?
Esta nossa caraterística é também aproveitada por aqueles que nos pretendem levar a condenar casos individuais de violação de direitos humanos, ao mesmo tempo que toleramos a morte anónima de milhares de pessoas.
Por exemplo, Nixon e Kissinger ordenaram o bombardeamento do Camboja (com o qual os EUA não estavam em guerra) matando dezenas de milhar de pessoas. Contudo, nenhum deles é sequer considerado criminoso quando comparados com os responsáveis pelo ataque às Torres Gémeas. Ilusão de ética?
As imagens do horror do 11 de Setembro foram abundantemente mostradas pelos media, contudo, a televisão Al Jazira foi acusada de cumplicidade com os terroristas por mostrar as imagens dos resultados dos bombardeamentos americanos em Fallujah. Ética da ilusão?
É Lacan que nos vem explicar que “o sujeito não é qualquer coisa de diretamente dado, mas um pressuposto, qualquer coisa que se pressupõe, um objeto de crença”.
Ou seja, devido a toda a carga judaico-cristã que transportamos, a empatia que sentimos perante o sujeito torturado não é resultante da sua proximidade física, mas antes por revermos nele a insondável infinidade de algo que nos é comum: a nossa humanidade.
Os que advogam a tortura, o que pretendem é abolir esta dimensão do próximo como sujeito: ele passará a ser apenas um objeto cuja dor é neutralizada e possível de gerir num cálculo meramente utilitarista.
No livro Frankenstein, Mary Shelley permite que o criminoso conte a sua história segundo o seu ponto de vista, o que faz com que Frankenstein, aquela ‘coisa’ horrível, deformada física e mentalmente, nos apareça como sendo um indivíduo ferido e desesperado, que anseia por alguém que o acompanhe.
O que está de acordo com aquela corrente de pensamento liberal que preconiza que devemos ouvir o ponto de vista de todos, resumida na frase “Um inimigo é alguém cuja história não se ouviu".
Com estas boas intenções possivelmente poderíamos ser levados a concluir que afinal Hitler foi nosso inimigo apenas porque não ouvimos a sua história.
Só que o problema se mantém: como explicar todos aqueles, e não foram poucos, que praticavam os maiores atos de bestialidade para com os inimigos e, simultaneamente exibiam verdadeiros atos de abnegação e amor para com os que lhe eram próximos?
É como se as nossas preocupações éticas se reduzissem a um grupo que nos está próximo, apesar de racionalmente compreendermos que somos todos igualmente humanos, com os mesmos medos, direitos e esperanças.
É como se este reconhecimento racional violasse a nossa inclinação ética espontânea.
Foi por isto que Hannah Arendt não viu nessas pessoas a personificação de um mal demoníaco, mas apenas pessoas em que o fosso entre a sua experiência privada e o horror dos seus atos era imenso.
Daí que S. Zizek conclua que a história que contamos a nós próprios sobre a nossa vida, seja fundamentalmente uma mentira: “a verdade reside no exterior, naquilo que fazemos”.
As justificações e exceções para se acabar com a vida dos outros tem sido uma constante ao longo da história, e que, juntamente com a proibição do incesto, são a base em que assenta o aparecimento da civilização tal como a conhecemos.
Os primeiros anos da Igreja Cristã foram marcadamente de cunho pacifista, até se tornar na religião oficial do Império Romano.
O ato de matar em autodefesa embora possa ser justo, só será moral se for feito com a intenção de preservar a vida do próprio e não com a intenção de matar o outro.
As mesmas bombas podem ser boas ou más conforme o Estado que as use.
Sabendo-se que a vida só apareceu ao fim de milhões de anos de existência da Terra, que já sofreu vários reveses que poderiam ter redundado no seu desaparecimento, que na imensidão dos espaços siderais e na infinidade de planetas nele contidos há fortes possibilidades de só na Terra existir vida, então devemos considerar a vida como um bem único, extremamente raro e escasso, pelo que deve ser preservada a todo o custo.
Qualquer atentado à vida é um atentado que vai no sentido da não existência, pelo que se torna quase impossível determinar qual a vida que será mais ou menos importante. Poder-se-á mesmo dizer que o direito à vida é, não só absoluto como até mais importante que o direito à vida humana, porquanto, mesmo que desapareça a vida humana continuará a haver vida.
Se, partirmos do princípio da existência de uma ética universal, esta deveria ser a única posição ética e, por isso mesmo, radical.
Contudo, a aplicação desta posição ética torna-se extremamente difícil, podendo levar a situações limite estranhas como a inibição de destruirmos bactérias infeciosas, vírus patogénicos e até mesmo a flora, todas elas formas de vida.
Daí que as sociedades tenham tentado regulamentar os casos em que a morte de outro ser vivo seja possível aceitar, nomeadamente a morte de um ser humano.
Na nossa sociedade dita ocidental, o Antigo Testamento começou por ser o corpo de leis que iria guiar o comportamento dos Hebreus (código ainda hoje seguido por Israel).
Embora desencorajando a morte de outro ser humano, permitia que, em caso de autodefesa, o agredido pudesse tirar a vida ao agressor.
Com o aparecimento de Jesus, o quadro vai mudar radicalmente: não só se impedia que qualquer ser humano fosse morto, como ainda se preconizava que não se devia ficar zangado com o outro ser humano.
Era a substituição do antigo “olho por olho, dente por dente” pelo “se alguém te esbofetear numa face, oferece-lhe a outra face”.
Substituía-se a ética antiga baseada na vingança por uma nova ética baseada na não resistência. Daí que os primeiros anos da Igreja Cristã fossem marcadamente de cunho pacifista, até se vir a tornar na religião oficial do Império Romano.
Com o império nas suas mãos para governar, embora insistindo que um indivíduo só poderia matar outro em caso de autodefesa, os seus teóricos passam a desenvolver os princípios da guerra justa.
Santo Agostinho, vem reconhecer a legitimidade da lei humana que permite a morte de outro por autodefesa, caso seja para preservar a própria vida, a liberdade ou a castidade, sugerindo ainda que quem o faça venha a ser, no entanto, condenado por uma lei divina superior.
Para clarificar, Agostinho vai dar três exemplos de casos nos quais a morte de outra pessoa possa não ser considerada como pecado: quando um soldado matar um inimigo, quando um juiz ou seu representante condenar um criminoso à morte, ou quando inadvertidamente uma pessoa for morta por uma arma que tenha caído da mão de outra pessoa.
Posteriormente, São Tomás de Aquino vem introduzir o conceito de intencionalidade, permitindo a morte de outra pessoa em caso de autodefesa, desde que não houvesse intenção do arguido matar o agressor.
Considerava ainda que a morte intencional feita por agentes públicos era permitida, desde que fosse destinada a proteger o bem comum e não por animosidade privada.
Clarificou ainda o uso da força: a força usada para nos defendermos de um atacante não podia ser superior à ameaça da força utilizada pelo agressor.
Resumindo: há que distinguir entre ser justo e fazer bem, e entre motivo e intenção. O ato de matar em autodefesa embora possa ser justo, só será moral se for feito com a intenção de preservar a vida do próprio e não com a intenção de matar o outro.
As justificações e exceções para se acabar com a vida dos outros tem sido uma constante ao longo da história e que, juntamente com a proibição do incesto, são a base em que assenta o aparecimento da civilização tal como a entendemos.
É hoje claro que se torna extremamente difícil argumentar sobre as razões que conduzem às decisões sobre as vidas que são consideradas dispensáveis e as que são consideradas mais importantes. Certamente as nossas serão as mais importantes. Mas, porquê? Por estarmos inseridos numa sociedade democrática, por sermos mais civilizados, por Deus estar do nosso lado?
Para que tudo “funcione” sem problemas, estas zonas de indefinição e desconforto terão de ser eliminadas ou reduzidas à sua expressão mais simples, preferentemente com normas e procedimentos constantes de manuais aprovados. Não é, pois, de admirar que todos os exércitos modernos contratem para os seus novos sistemas de armamento, cientistas, psicólogos, filósofos, para que os decisores/utilizadores (o próprio nome já em si pressupõe a justificação) se sintam confortáveis a quando das suas tomadas de decisão e utilização.
Nas suas tentativas de justificação, chegam a comparar os meios utilizados, considerando uns como ‘moralmente’ aceitáveis relativamente a outros.
É assim que as minas terrestres são consideradas como “imorais” por não terem capacidade para distinguir entre um soldado inimigo e uma criança; e que os drones autónomos são considerados como “maus”, por serem controlados por uma inteligência artificial que toma por si mesmo as ‘decisões’ letais. Quanto aos drones operados à distância por controladores humanos, nada a apontar; esses são dos “bons”.
Tudo muito bem explicadinho, num verdadeiro manual de ética da morte, que corretamente seguido possa ser exibido no horário nobre do programa televisivo, como exemplo das preocupações e dos cuidados que o Estado tem relativamente à sua atuação e à preservação da vida humana.
O que não dizem é que ambas essas armas (minas, drones autónomos, e outras) continuam a serem fabricadas, vendidas e usadas por esses mesmos Estados. E qual é a justificação?
É que, o que é considerado injusto e inaceitável não são as armas em si, mas sim a política seguida pelo Estado que determina o seu uso.
Por isso, as mesmas bombas podem ser boas ou más conforme o Estado que as use. Tudo muito bem explicadinho.
Em tempo: para quem se preocupe com o número de bombardeamentos e de mortes efetuados por drones, informação que até agora tem sido iludida por todos os governos, tem agora a possibilidade, através de uma App do iPhone, Metadata+, de conseguir obter a confirmação sobre todos os ataques feitos que tenham sido relatados por agências de informação (https://theintercept.com/2017/03/28/after-12-rejections-apple-accepts-app-that-tracks-u-s-drone-strikes/).
“Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem”, Sófocles in Antígona.
“Compreendemos o que é justo e honesto, sabemo-lo, mas não o realizamos nos nossos atos”, Eurípedes in Hipólito.
“A tragédia grega honra a liberdade humana porquanto consente que os seus heróis combatam contra o poder desmedidamente superior do destino”, Schelling.
“A lei humana é a lei do homem. A lei divina é a lei da mulher”, Hegel.
Ainda hoje na Alemanha existe uma brigada feminina que procura vingar-se das autoridades que se recusaram a entregar às famílias os corpos assassinados de Baader e Meinhof.
Somos apenas “os intérpretes das interpretações”, Montaigne.
Em memória de Maria Helena da Rocha Pereira.
Quais os critérios que fazem com que uma obra seja considerada de grande merecimento? O que a faz permanecer ao longo dos séculos como impar? Não terão existido outras até bem maiores, mas que devido às fortunas da vida, se extraviaram ou, até mesmo porque à época não tivessem sido consideradas como merecedoras de atenção? Questões para as quais não existem respostas únicas, e que continuam incomodamente abertas.
Uma das obras que teve um percurso em que tudo lhe tem acontecido, e que talvez nos lance alguma luz sobre estas dúvidas que temos, ou as torne ainda mais misteriosas ou incompreensíveis, é a peça de teatro de Sófocles, Antígona.
Julga-se que Sófocles viveu entre 497 e 405 a. C., e que das 123 peças que escreveu (segundo a Suda, enciclopédia Bizantina Grega do século X), hoje apenas se conservam sete tragédias, das quais só de duas delas (Filoctetes e Édipo em Colono) se conhece a data em que foram feitas. Entre as sete que nos chegaram, figura Antígona, que se supõe ser das mais antigas, datada(?) de 441 a. C.
E, contudo, apesar de os atenienses, ao que consta, a terem apreciado ao ponto de terem oferecido a Sófocles o governo de Samos, esta sua peça não foi a premiada nas Grandes Dionísias: nesse ano de 441 a. C. o vencedor foi Eurípedes.
A história da casa real de Tebas, da família dos Labdácidas, encontrava-se já esboçada nos Poemas Homéricos, fazendo parte integrante da mitologia grega: proibição divina de descendência a Laio, rei de Tebas; nascimento e exposição do seu filho, Édipo; entrega da criança, por um pastor, ao rei de Corinto; viagem de Édipo, já adulto, a Delfos; encontro com um desconhecido, a quem mata (era o rei de Tebas, seu verdadeiro pai); decifração do enigma da esfinge, salvando a cidade, e por tal feito, subida ao trono de Tebas pelo casamento com Jocasta (a rainha viúva de Laio, sua verdadeira mãe); nascimento de quatro filhos (Etéocles, Polinices, Antígona e Ismena); descoberta do parricídio e incesto involuntários; suicídio de Jocasta e cegueira de Édipo, que resolve furar os olhos e assim deixar de ver a luz dos homens, para assim poder concentrar a sua inteligência no mundo interior de forma a deixar de ser joguete de forças que não controlava ou não podia controlar, único modo de escapar à tirania do destino; expulso da cidade pelos seus dois filhos varões, deambula durante anos pelos campos, sempre acompanhado pela sua filha, Antígona.
A ação da peça vai começar a desenrolar-se quando, após a morte de Édipo, Antígona regressa a Tebas, onde residiam os seus dois irmãos. Durante todos esses anos em que tinham expulsado o pai, os dois irmãos tinham-se digladiado continuadamente, instaurando um regime de guerra permanente, para ver quem ficava a comandar a cidade, acabando por morrerem em combate.
Creonte, que acabara por ficar como regente de Tebas (depois da morte dos dois príncipes, pertencia a Creonte, irmão da rainha Jocasta que fora mãe e mulher de Édipo, o trono tebano) resolveu só proceder à liturgia da consagração da morte que permitiria o enterro e descanso eterno do defunto, para apenas um dos irmãos, condenando à morte quem lhe desobedecesse e procedesse ao enterro do outro irmão.
Antígona discorda do tratamento diferenciado que Creonte queria impor, e tudo faz para desafiar a ordem do tirano, acabando durante a noite por enterrar Polinices, o outro irmão. Creonte ordenou então que ela fosse enterrada viva.
Mas Antígona suicida-se antes que a sentença fosse executada. Hémon, o filho do rei, que a amava apaixonadamente, e não conseguira que o pai a perdoasse, acaba também por se suicidar no túmulo de Antígona.
Precisamos ter em conta que nessa época a sociedade grega era profundamente religiosa, onde mitos, contos e heróis ainda se misturavam e influenciavam o comportamento dos atenienses, pelo que toda esta situação era totalmente acompanhada e interiorizada pela sociedade ateniense.
É na Ilíada, Canto XXIII, que Aquiles é advertido da obrigação sagrada de efetuar os rituais em honra dos mortos, sem os quais não conheceriam o descanso no além. Não era, pois, uma questão de menor importância o não se proceder à liturgia que permitiria o descanso eterno do defunto.
Antígona viu-se forçada a ter de escolher entre a obediência à lei dos homens ou à lei dos deuses. Podendo cada uma delas serem más, a verdadeira questão era a de saber se o ser humano era fundamentalmente um ser capaz de decidir por si próprio a sua ação ou não.
Ou seja, se a fonte para a ação humana residia na sua interioridade ou em algo que lhe fosse exterior, obrigando-a a ter de escolher entre princípios éticos ou princípios políticos.
Antígona sabe muito bem o que deve ser feito pelo bem, não por qualquer coisa individual, mas pelo cosmos. É, tendo em vista este imperativo do bem cósmico, que vai desrespeitar uma lei que merece ser desrespeitada, uma vez que desrespeita o bem universal.
É por isto que a interpretação mais classicista vê em Antígona o nascimento da ‘consciência moral’, como uma forma de intuição puramente ética que define em cada ser humano aquilo que é o eixo vertical do que é bem e deve ser feito, e do que é não-bem e deve ser evitado e combatido. A sua opção representa o triunfo da ética sobre a política.
Há quem diga que todas as situações, sentimentos e emoções, possíveis de experienciar pelos humanos se encontram já todas devidamente referenciadas na literatura da Grécia antiga, nomeadamente nas suas peças de teatro. E que hoje, limitamo-nos a dar-lhes nova roupagem: mudamos apenas a forma.
E, apesar de tudo isto que representava, este tema de Antígona vai praticamente ser esquecido e deixado de ser referido durante mil anos, até que, durante o Renascimento, reaparece (o mesmo sucedendo aliás com outras tragédias gregas), neste caso devido à tradução para italiano feita por Luigi Alamanni em 1533. Seguem-se mais três traduções em latim entre 1541 e 1557, e uma adaptação em francês feita por Jean-Antoine de Baïf em 1573. Depois, novo eclipse de mais dois séculos.
Lessing, na sua Hamburgische Dramturgie de 1767, não atribui qualquer destaque particular a Antígona, e não faz qualquer referência a Sófocles. Mesmo nos teatros da Europa que adotam temas trágicos para as suas óperas, não há “Antígonas” representadas até à Revolução Francesa, nem sequer trabalhos de pintura sobre a lenda de Antígona nos salões anuais de Paris até 1789.
Mas, todo este “esquecimento”, toda esta desatenção, vai brevemente terminar. Devido à imaginação do movimento romântico e do idealismo alemão, Atenas vai ser redescoberta em grande, passando a ser considerada como a morada por excelência do homem. O helenismo (a idealização da antiga Hélade), como contraponto ao renascimento (idealização da antiga Roma), vai ser visto como o zénite do pensamento humano, nas obras filosóficas, poéticas e políticas.
“O mundo só se salvaria se voltasse a habitar o Pártenon e quebrasse os seus vínculos com a barbárie”.
Friedrich Schlegel, escrevia em 1795, que Sófocles era um poeta “do qual é quase impossível falar a não ser em termos de adoração”. E por maior que tivesse sido o génio de Shakespeare, Sófocles continuava a ser “o verdadeiro cume da arte dramática”.
Hegel, Hölderlin e Schelling, juntos num mesmo seminário em Tubinga, concordam em adotar as mesmas divisas e os mesmos modelos, ao decidirem restaurarem a alma luminosa “dessa idade de ouro da verdade e da beleza que foi a Grécia”.
Provavelmente, terá sido Hegel, que já em 1787 tentara traduzir o Édipo em Colona de Sófocles, que irá influenciar os seus dois amigos. Em 1820, vai considerar Antígona como “uma das mais sublimes peças e, sob todos os aspetos, uma das mais consagradas obras de arte criadas pelo esforço humano”. Em 1830, vai mesmo considerar
“a celestial Antígona, a mais nobre das figuras desde sempre aparecidas na Terra”.
A primeira encenação moderna que se conhece de Antígona é a de 1841, em Potsdam, com música de Mendelssohn, e vai ser considerada como a autêntica recreação da tragédia clássica grega na Europa. A partir daí o sucesso não para: 1842 em Berlim, 1844 em Paris, depois Londres, Edimburgo e outras.
Estava instaurado um verdadeiro culto de Sófocles que se estenderia por um século. “A descida de Antígona para a sua morte-viva (encarcerada viva numa gruta) falava às gerações revolucionárias e românticas com uma força imediata só comparável à do desfecho de Romeo e Julieta”.
Porque razão se concedeu naquela época este tão alto estatuto à Antígona de Sófocles? Por que viram na personagem de Antígona “a mais elevada presença” que alguma vez visitou o mundo dos homens? Por que razão, De Quincey e Kierkegaard, sugeriam que Antígona deveria ser considerada como a contrapartida de Cristo, como a filha e mensageira de Deus anterior à Revelação?
Sabemos que em 1802 Hegel se encontrava a escrever sobre o Direito Natural tentando resolver os conflitos entre o Estado-nação e a família, entre os direitos dos vivos e dos mortos, entre o faça-se do legislador e a moral consuetudinária. Ora estes são os conflitos presentes na Antígona.
Na oposição Estado-família, Hegel sabe que é no interior da família que a pessoa concreta é concebida como totalidade, enquanto para o Estado a pessoa não passa de ‘uma individualidade geral’.
Ao realizar os atos que definem a sua identidade como cidadão, o irmão tem de sair da esfera da família. Troca o lar pelo mundo da pólis. A mulher fica para trás como “governante do lar e guardiã da lei divina”, dado que esta lei remete para os deuses da casa, os Lares e os Penates.
Na morte, o indivíduo regressa ao domínio ético da família. Na morte, o esposo, o filho, ou o irmão passam do domínio da pólis para o da família. Esse regresso é um retorno à tutela primeira da mulher (esposa, mãe, irmã). Os ritos do enterro, com o re-encerramento do morto na terra, são uma incumbência própria das mulheres.
E no interior da família há uma relação que é privilegiada devido à pureza da sua substância ética: a que existe entre irmão e irmã. O irmão e a irmã são do mesmo sangue, encontrando-se um diante do outro com pureza desinteressada da livre escolha humana. Não pode existir obrigação ética mais elevada do que a que vincula uma irmã ao seu irmão. E quando a tarefa cabe a uma irmã, o enterro torna-se sagrado em grau superlativo.
Hegel observa que
“a lei humana é a lei do dia porque é conhecida, pública, visível, universal: regulamenta não a família, mas a cidade, o governo, a guerra; e é feita pelo homem. A lei humana é a lei do homem. A lei divina é a lei da mulher”.
Por outro lado, há circunstâncias, políticas, militares, simbólicas, em que o Estado torna extensivos aos mortos os imperativos de honra ou punição que normalmente só são aplicados aos vivos.
Tal poderá dar origem a um conflito entre a esfera do lar feminino e a praça pública masculina, entre o universal e o particular, visíveis na luta entre Creonte, o homem, e Antígona, a mulher, sobre o corpo do morto.
“A mulher é a realização concreta do crime. O inimigo interno do Estado antigo é a família que ele destrói e o Particular que ele não reconhece, mas que não pode passar sem eles”.
O édito de Creonte (condenação à morte para quem sepultar o corpo de Polinices) é uma punição política. Porém, para Antígona, é um crime ontológico. A culpa do seu irmão perante Tebas é para ela totalmente irrelevante; para ela o seu irmão é um ser singular e insubstituível.
Ela vai assumir a culpa pela sua ação: daí Hegel a considerar acima de Édipo. É que o seu crime é totalmente consciente. É um ato de disposição de si ainda antes de ser uma aceitação do destino.
Hegel vê todo este processo como uma oposição mútua de forças éticas que vão continuar a avançar até se alcançar um equilíbrio fatal proveniente da destruição parcial de ambos os lados. É, pois, na igual sujeição das partes que o direito absoluto começa a cumprir-se.
Encontramos aqui a essência do conceito hegeliano de dialética, do avanço da história através de um caminho trágico.
“O conflito trágico não é um conflito entre o Dever e a Paixão, ou entre dois deveres. É o conflito entre dois planos de existência, um dos quais é considerado sem valor por aquele que age, mas não pelos outros. A agente, o ator trágico não terá consciência de ter agido como um criminoso; sendo castigado, terá a impressão de sofrer um destino”.
Mais tarde, nas Lições sobre a Filosofia da Religião (material compilado por alunos), Hegel vai sintetizar:
‘O Fatum (o destino) é o que se furta ao pensamento, ao conceito; é aquilo onde justiça e injustiça desaparecem no interior da abstração. Na tragédia, pelo contrário, o destino opera no interior de uma esfera de Justiça Ética. Descobrimo-lo expressando-se sob a forma mais nobre nas tragédias de Sófocles. Nestas, estão em jogo tanto o destino como a necessidade. O destino do indivíduo é representado como qualquer coisa de incompreensível, mas a necessidade não é uma justiça cega; é, pelo contrário, percebida como verdadeira justiça. Precisamente por tal razão, estas tragédias são as imortais obras do espírito da inteligência e da compreensão éticas, e o modelo imorredouro da ideia ética. O destino cego é qualquer coisa de insatisfatório. Nas tragédias de Sófocles, a justiça é apreendida pelo pensamento. O choque entre as duas forças morais supremas é dramatizado de modo plástico nesse exemplo absoluto da tragédia que é Antígona. Aqui, o amor familiar, o sagrado, a interioridade, pertencentes ao sentimento íntimo, e por isso também conhecidos como a lei dos deuses inferiores, chocam com o Direito do Estado. Creonte não é um tirano, mas, na realidade, uma força ética. Creonte não está em erro. Sustenta que a lei do Estado, a autoridade do governo, deve ser respeitada, e que a transgressão da lei deve ser seguida pelo castigo. Cada um dos dois lados atualiza apenas uma das forças éticas, e tem só uma de entre elas por conteúdo. Tal é a unilateralidade. A significação da justiça eterna torna-se manifesta do seguinte modo: ambas as partes incorrem em injustiça precisamente por serem unilaterais, mas ambas revelam justiça. Ambas são reconhecidas como válidas no curso e no processo desvelados da moralidade. Ambas possuem a sua validade própria, mas trata-se de uma validade de medida igual. A justiça apenas progride em Oposição a uma unilateralidade’.
Os estudiosos de Hegel percebem neste trecho, como que uma conversão a uma filosofia prussiana ou ‘estatista’ do estado-nação. Vivia-se então em regime pós-derrota de Napoleão.
Talvez por isso, a superioridade ética de Antígona como representante do caráter e pureza primitivos da lei familiar e feminina, ao mesmo tempo que deve ser tornada manifesta, deve também ser destruída pelo Estado.
Se Antígona triunfasse não haveria progresso possível: a dimensão privada das necessidades humanas devastaria a esfera pública.
Muitos outros desse século se pronunciaram sobre Sófocles e a Antígona, nomeadamente Goethe, Kierkegaard, Schlegel, Hölderlin, alguns deles chegando mesmo a traduzi-la, mas sempre com o objetivo de a integrar nos seus sistemas de pensamento, nas respostas à e para a sociedade em que viviam, retirando-lhe aquilo que mais aparentado seria consigo próprios, ou que pressentem como um precedente mais imediatamente justificado por referência às suas próprias necessidades históricas.
Embora nunca nenhum tenha conseguido descobrir quais as intenções de Sófocles, conjeturando no melhor dos casos, inscrevem-se sem dúvida em processos intelectuais honestos, claros, sem manipulações, apenas sujeitos aos imponderáveis da história.
Não se lhes podem atribuir culpas por só terem sobrado sete cópias de Sófocles, pelo que se desconhece se outras teriam mais valor; que escasseiem obras de outros autores coevos mais premiados na Antiguidade; que as traduções sejam menos corretas e que os especialistas manifestem dúvidas sobre algumas passagens.
Mas, com ou sem traduções, com ou sem interpretações, representações, é, na verdade, muito interessante notarmos, por exemplo, que ainda hoje na Alemanha existe uma brigada feminina que procura vingar-se das autoridades que se recusaram a entregar às famílias os corpos assassinados de Baader e Meinhof.
E que é também muito interessante verificar ter sido o ano de 2012, também por razões que se desconhecem, aquele em que os nossos representantes culturais voltaram de novo a ressuscitar a Antígona de Sófocles, inscrevendo-a no clima de guerra prolongada que se instaurou a partir do 11 de setembro, através de uma nova versão teatral exibida no National Theatre de Londres em que Antígona aparece como uma bombista-suicida, ou ainda através do livro do escritor indiano Joydeep Roy-Bhattacharya, The Watch, em que a ação se desenrola junto à base americana de Kandahar, no Afeganistão.
Também se desconhece a razão porque esse escritor indiano venha a colocar a ação do seu livro em Kandahar, e que se inspire nos antigos gregos, mesmo que Kandahar seja a nova toponímia de uma antiga cidade, Iskandar, fundada por Alexandre Magno.
E, já agora, referenciemos também 2012 como o ano em que as Pussy Riot estrearam em Berlim o seu espetáculo (Pussy Right) com extratos da Antígona.
Mas é George Steiner quem nos tranquiliza sobre estas inquietações, coincidências, fenómenos de descoberta e achamentos, quando, lucidamente, nos diz que as suas interpretações das Antígonas, A persistência da lenda de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais, são provisórias:
‘Mudarão com a idade, com a renovação da minha experiência do texto, com a minha entrada em contato com novas opiniões críticas e novas encenações da peça. Mas, tais mudanças não são garantia de uma apreensão necessariamente mais clara ou acertada…. Faz parte da natureza dos estudos filosóficos e artísticos que o tempo e a idade tendam a ser acompanhados por uma visão mais informada e mais equilibrada do seu objeto. Mas, nem as questões que colocamos nem as respostas que propomos representam, então, necessariamente um avanço’.
Quando duas pessoas se encontram não há duas, mas sim seis pessoas: uma é como o próprio acredita que é, outra como o outro se apercebe que ele é e outra como realmente ele é; multiplicando por dois, dá seis, Miguel de Unamuno.
A maior parte do nosso corpo nem sequer é “nosso”, mas de um universo de biliões de bactérias que vivem em cada centímetro dele. Somos mais bactéria que ser humano.
Se nos formos deitar e dormirmos oito horas, quando acordarmos no dia seguinte, teremos percorrido 800.000 quilómetros, B. Cox e J. Forshaw.
Se pronunciássemos os nomes das centenas de milhões de estrelas que formam a Via Láctea, à razão de um por segundo, levaríamos 4000 anos até chegarmos ao fim.
Saber quem somos é uma das questões que mais vulgarmente nos pomos. Na arrogância cheia de nós que nos levou a autocolocarmo-nos no centro do universo, nem sequer equacionamos a verdadeira questão essencial que devia ser posta e que lhe tem precedência, e que é a de tentarmos saber o que somos.
Nesta linha de raciocínio lógico que julgamos independente das suas próprias condições de aparecimento, aceitamos, por exemplo, que o corpo humano é assim porque é, olhando para ele apenas como o elemento que nos permite diferenciar de tudo o resto que nos rodeia, e, portanto, como elemento que nos dá identidade como seres humanos.
Quando muito, do corpo humano basta-nos saber que fisicamente somos maioritariamente compostos por água (60%), oxigénio, hidrogénio e carbono. Mas, não nos ocorre pensar que poderíamos ser um cubo de oxigénio do tamanho de um televisor pequeno, um ladrilho de carvão, um quilo de cálcio e uma colher pequena de ferro.
E, que também somos formados por outros pequenos elementos marginais em quantidades ínfimas: fósforo, potássio, enxofre, sódio, cloro, magnésio, fluor, zinco, sílica, rubídio, estrôncio, bromo, chumbo, cobre, alumínio, cádmio, bário, iodo, estanho, titânio, boro, níquel, selénio, cromo, magnésio, arsénico, lítio, césio, mercúrio, germânio, molibdeno, cobalto, antimónio, prata, nióbio, zircónio, lantânio, gálio, telúrio, ítrio, bismuto, tálio, ouro, escândio, tantálio, tório, uranio, berílio e volfrâmio. Alguns destes elementos são tóxicos ou radioativos, e de outros nem sequer conhecemos a função que desempenham, como é o caso do rubídio.
O que faz com que sejamos praticamente iguais a tudo o que nos rodeia. No máximo, o que nos diferencia talvez seja a quantidade e a proporção que temos de cada um destes componentes.
Sabemos também que somos constituídos por células, e que tal nos deveria dar uma garantia de permanência e estabilidade. Ignoramos é que quase todas elas são substituídas mensalmente, com exceção das hepáticas (que subsistem mais tempo) e as dos neurónios (que são para a vida), sendo ainda pouco provável que alguma célula do nosso corpo adulto tenha mais de nove anos de idade.
Se ainda juntarmos o conhecimento de que todas as células da camada superior da nossa pele estão mortas, dando-nos como que um invólucro protetor de dois quilos feito de células cutâneas mortas e das quais diariamente se desprendem milhares de milhões de células, então dificilmente conseguiremos determinar a nossa identidade pela constituição das nossas células.
Mas, se descermos ao nível dos átomos, não vamos obter uma resposta muito diferente. Basta referir que o corpo de um bebé que nasça com quatro quilos tem 400.000.000.000.000.000.000.000.000 átomos, que, no máximo de 650.000 horas se dispersarão, dedicando-se a serem outras coisas no mundo.
Além disso, os átomos comportam-se como que imanes energéticos que captam coisas que se encontrem ao seu redor, ou seja, ao nosso redor, integrando-as no nosso corpo, pelo que se torna difícil estabelecer uma separação entre o nosso corpo e essas coisas. Pelo que se põe o problema de saber onde começa e onde acaba o nosso corpo?
Mas, mesmo assim, isso não nos impede de nos definirmos e de assumimo-nos como seres vivos, muito embora não haja um acordo entre a comunidade científica do que é um ser vivo. Ao fim de muitos séculos, lá acabámos por conceder que os animais também o são. E, contudo, apesar de nos termos separado dos chimpanzés há 6 milhões de anos, ainda hoje compartimos com eles 99% da sequência do ADN, com os ratos (100 mil milhões de anos) 90% e com a levedura (1500 milhões de anos) 31%.
Mais: o número de bactérias que vivem no nosso corpo, num total de 1000 milhões na boca, 10 milhões nas axilas, 10 milhões na zona inguinal e 750 biliões nos intestinos, é dez vezes superior às nossas próprias células constituintes.
Só o intestino delgado aloja 100 milhões de células bacterianas por mililitro, o intestino grosso 100 mil milhões, entre seis a sete mil espécies diferentes. O peso estimado de todas estas bactérias intestinais ultrapassa um quilo.
A comunidade bacteriana da boca tem também cerca de 600 espécies diferentes. Cada vez que damos um beijo apaixonado trocamos cinco milhões de bactérias. Abençoadas.
Dos 25.000 genes contidos nas nossas células, temos mais de 20 vezes genes provenientes das bactérias. Podemos, assim, considerar que a maior parte do nosso corpo nem sequer é “nosso”, mas de um universo de bactérias que vive em cada centímetro dele. Somos mais uma bactéria que um ser humano.
Há mais organismos diversos que compõem o nosso corpo do que pessoas no mundo. Há mesmo mais organismos no nosso corpo que o número de estrelas que compõe a Via Láctea.
Regressemos, brevemente, a outro problema que a constituição por átomos do nosso corpo põe: é que 99,9999999% do volume de um átomo é constituído por espaço vazio. Se tomarmos como analogia de um átomo um estádio de futebol, o núcleo do átomo estaria no centro do relvado e teria o tamanho de uma ervilha, e os eletrões estariam na extremidade da bancada superior, com o tamanho de uma cabeça de alfinete. É isto a matéria de que somos constituídos. Estádios vazios.
Convenhamos, portanto, que a nível individual somos pouca coisa, mas será que todos juntos teremos mais importância?
Como cada um de nós ocupa uma área de 0,15 metros quadrados, todos os 7.000 milhões de pessoas ocupariam uma área de 1050 quilómetros quadrados, ou seja, caberiam todos no sul de Portugal. Juntinhos, evidentemente. Portanto, também como grupo somos pouca coisa.
Então, e o tempo que temos vivido na Terra não conta?
Se pegarmos na história do Universo desde o Big Bang e a comprimirmos num só ano, de forma a que o 1 de janeiro fosse a data do Big Bang, a vida só apareceria a 30 de setembro. A 30 de dezembro apareceriam os primeiros primatas. Vinte e um segundos antes meia-noite do 31 de dezembro começaria a humanidade. A invenção da escrita só ocorreria 14 segundos antes da meia-noite e Jesus só nasceria 4 segundos antes da meia-noite.
Mas nós conseguimos ver e entender a realidade!
O problema é que vemos só 1% do espetro eletromagnético, e só ouvimos 1% do espetro acústico. Os raios X, raios gama, infravermelhos e ultravioletas são totalmente invisíveis para nós. Os nossos olhos apenas detetam o vermelho, o verde e o azul.
E, mesmo assim, grande parte do que vemos, somos nós que o inventamos. Apesar do olho conseguir captar dezenas de megapixéis de informação, não a consegue enviar para o cérebro. Embora em cada segundo o olho possa registar 70 gigabytes de informação, o cérebro é incapaz de processar tal quantidade de informação, tendo de a comprimir (como o JPG), descartando os detalhes que não considerar como relevantes.
É por isso que somos tão atreitos a ter ilusões óticas ou acústicas. Inclusivamente, quando nos observamos ao espelho, aquilo que observamos não somos nós:
“Para começar, vejo-me com um mil milionésimo segundo de atraso, porque esse é o tempo que o feixe de luz leva em sair da minha cara, chegar ao espelho e regressar aos meus olhos. Mesmo assim, a imagem que vejo é proveniente de uma média de milhares de milhões de funções de onda. Sem dúvida que se parece comigo, mas não é exata”.
Mas, pelo menos estaremos conscientes do que vemos!
Nem isso. Muito embora os nossos sentidos recebam uns dez milhões de bits por segundo de informação, só conseguimos processar conscientemente entre sete a quarenta bits. E esta capacidade de processamento da mente consciente é inferior 200.000 vezes ao da capacidade de processamento do inconsciente. Para além disso, há que contar com o que é dito ser a divagação da nossa mente (wandering mind), medida em 46%: a maior parte de nós, enquanto estamos a fazer coisas, divagamos pensando em coisas diferentes.
Mas somos seres equilibrados!
Também não é verdade. O nosso cérebro é propenso a funcionar mal, basta ser sujeito a uma pancada ou a um aumento de temperatura. Durante o decorrer de uma vida, estima-se que quase metade da população virá a sofrer de doenças mentais, da esquizofrenia aos transtornos obsessivo-compulsivos, e ao bipolar, não esquecendo as ansiedades, o pânico, a paranoia, a tristeza, os delírios, as obsessões, a agressividade descontrolada.
Até as nossas recordações não são reflexos do que aconteceu, mas reconstruções de algo que julgamos ter acontecido. Por vezes recordamos até acontecimentos completos e traumáticos que na realidade nunca aconteceram.
A nossa lógica está longe de ser impecável porque o cérebro não evoluiu para resolver problemas de lógica, mas para sobreviver num contexto pré-histórico. Forjamos as nossas convicções e crenças apoiados em dados arbitrários e irrelevantes que ficaram ancorados na nossa mente.
A nossa linguagem é um caos: não sabemos falar sem travarmos de vez em quando as palavras, e as orações são muitas vezes ambíguas; os idiomas não são sistemáticos e regulares, produtos de aleatórias combinações léxicas e de tendências sociais.
Quanto à personalidade, ela nem sequer é fixa, coerente e individual.
É como se fossemos múltiplos atores a representar uma peça de teatro, em que nos vamos adaptando a novas situações. Como dizia Unamuno:
“Quando duas pessoas se encontram não há duas, mas seis pessoas. Uma é como o próprio acredita que é, a outra como o outro se apercebe que ele é, e a outra como realmente ele é. Multiplicando por dois, teremos seis”.
Acresce, ainda, que se na consciência existirem os processos quânticos presentes em toda a matéria, então seremos incapazes de determinar a posição, velocidade e energia de todas as partículas que nos constituem. Ou seja, ficaremos incapazes de predizer o nosso futuro.
Só que, apesar de não sermos capazes de calcular o que iremos fazer dentro de uma hora, isso não significa que tal não esteja determinado pala física, daí que o livre arbítrio possa não ser mais do que uma ilusão cognitiva.
Provavelmente, todo o nosso comportamento pode ser o resultado da tacada que o Big Bang deu nos nossos neurónios que ainda estão para aí a agitarem-se.
Há uma experiência muito interessante, feita em 1985 por Benjamin Libet. Ele pediu a duas pessoas que olhassem para um relógio e anotassem o momento em que decidiam mover um dedo. O momento exato em que a decisão era tomada aparecia no registo eletroencefalográfico. Comparando os tempos, concluía-se que o cérebro tomava a decisão aproximadamente 300 milissegundos antes que a pessoa tomasse consciência dela.
Ou seja, o cérebro tomava decisões sem a participação da consciência. “Os resultados sugeriam que o cérebro sabe o que uma pessoa irá decidir antes da pessoa”.
Apesar disto, continuamos convencidos que as nossas decisões são nossas, continuando a inventar toda uma classe de agentes justificativos que rompa com a física que nos circunda. Mas também não vale a pena perder muito tempo com estas questões de sabermos até que ponto é que somos conscientes ou livres, porquanto passamos grande parte da nossa vida a dormir: 122 dias por ano, um terço da nossa vida.
Mas, o pior de tudo, é que os átomos do nosso corpo não são nossos.
Têm origem numa longínqua estrela de um enorme Universo. O universo visível tem um milhão seiscentos mil milhões de milhões de milhões de quilómetros de comprimento ou 150.000 anos luz, com uma idade aproximada de 13.800 milhões de anos.
Mesmo que o quiséssemos percorrer, nunca chegaríamos ao seu limite, porque como ele se encurva, chegaríamos ao mesmo ponto de partida. Parece que também não tem limites para baixo nem para cima, até porque não há baixo nem cima.
Até o tempo transcorre mais ou menos depressa, em função do lugar onde nos encontremos e da velocidade a que viajamos.
Estas assimetrias temporais são mais fáceis de detetar para as grandes velocidades. Os astronautas da Mir EO-3 que permaneceram um ano em órbita à velocidade de 8 km/s, quando chegaram a Terra tinham uma diferença de tempo relativamente aos que permaneceram em terra de 0,01 segundos, o que é insignificante.
Contudo, se um gémeo viajasse a uma velocidade de 0,6 da velocidade da luz até um lugar a seis anos luz de distância, quando regressasse à Terra estaria quatro anos mais novo que o seu irmão gémeo que tinha ficado na Terra. Podemos até afirmar, ainda que seja a nível infinitesimal, que a cauda que se agita de um cão contente, envelhece mais lentamente que o resto do corpo.
A própria altitude a que estamos, concorre para esta dessincronização temporal. A uma maior altitude corresponde uma menor gravidade, portanto ficamos sujeitos a uma menor dilatação temporal. Se vivermos 79 anos no último andar do Empire State Building, a 380 metros, perderíamos 0,000104 segundos relativamente a quem vivesse esses anos ao nível do solo, o que seria insignificante. Mas, se o fizéssemos na superfície de Marte, então o tempo perdido seria de três anos.
A maior velocidade obtida pela nossa tecnologia é de 250.000 Km/h, da nave Helios 2. Entretanto, estamos a tentar desenvolver a chamada propulsão nuclear por pulso, que basicamente consiste em fazer explodir uma bomba atómica debaixo da nave a cada segundo, o que nos permitirá obter uma velocidade de 5% da velocidade da luz.
Ora, a velocidade da luz leva 4,22 anos a chegar à estrela que está mais próxima de nós, a Próxima Centauri. A Helios 2 levaria 18.000 anos a alcançá-la.
É tão grande a imensidão, que, se pronunciássemos os nomes das centenas de milhões de estrelas que formam a Via Láctea, à razão de um por segundo, levaríamos 4000 anos até chegarmos ao fim. E a Via Láctea faz parte de um conjunto de 140.000 milhões de galáxias, e isto só no universo visível.
Quando em 1929 Edwin Hubble descobriu que todas as galáxias se afastavam da Terra e das demais galáxias, tal veio significar que o universo se encontrava em expansão. Só isso, quer queiramos ou não, faz com que nós estejamos continuamente a viajar pelo espaço a velocidades incríveis. A Terra, para além de rodar sobre si mesma à velocidade de 1000 Km/h, descreve uma órbita à volta do Sol a uma velocidade de 107.000 Km/h.
“Se nos formos deitar e dormirmos oito horas, quando acordarmos no dia seguinte, teremos percorrido 800.000 quilómetros”.
Por sua vez, o Sol, arrastando com ele a Terra, desloca-se pela Via látea em direção à constelação Virgo à velocidade de 900.000 Km/h, e, por sua vez, esta também se encontra a deslocar a uma velocidade de 1.400.000 Km/h relativamente à grande massa de Aquário.
Acrescentemos a tudo isto o facto de só apenas 4% da matéria do universo visível ser aquela matéria a que normalmente nos referimos e de que é formada todas as coisas que conhecemos. Temos depois 23% da chamada matéria negra (invisível) que os físicos intuem que existe, mas que não sabem o que é. O restante 73% é também de ‘outra’ matéria negra, invisível, que também ninguém sabe o que é. Ou seja, a conclusão é que ignoramos o que é 96% da massa/energia do universo.
Como é ainda possível considerarmo-nos como o centro do universo?
O problema é de que o nada que somos ser tudo o que somos. Da abordagem que fizermos a este enigma dependerá a nossa (in)tranquilidade.
Como diz Rui Knopfli, no seu poema “carta ao poeta eugénio evtushenko a propósito de uma suposta autocrítica”:
“A um poeta corta-se-lhe
a cabeça. E uma cabeça
cortada não dói, mas tem
uma importância danada.”
Adenda: para mais informações, comparações e constatações, procurar em
Brian Cox e Jeff Forshaw, Why Does E=mc2?
Steven Johnson, La Mente de Par en Par.
Robert Kane, Free Will.
David Linden, The Accidental Mind.
Gary Marcus, Kluge.
Daniel Gilbert, “A Wandering Mind Is na Unhappy Mind”.