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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os cães não podem ladrar nas Novas Democracias

 

Segundo o relatório dos polícias, o cão movimentou-se “algumas polegadas” na direção deles, pelo que lhe deram um tiro.

 

Como o segundo cão não os deixava passar e continuava a ladrar, deram-lhe dois tiros.

 

No ano de 2015, foram mortos pela polícia americana, 1146 pessoas, das quais 234 não eram portadoras de qualquer tipo de arma.

 

O governo dos EUA não tem qualquer registo destas mortes, pelo que se torna difícil qualquer discussão pública sobre a utilização da força pela polícia.

 

 

 

A partir de 12 de dezembro de 2016, em Michigan, Estados Unidos, os cães não podem ladrar aos polícias, pois podem ser mortos na hora (http://www.opn.ca6.uscourts.gov/opinions.pdf/16a0293p-06.pdf).

 

Tendo recebido informações que um homem que vivia numa determinada residência distribuía cocaína e heroína, dois elementos da polícia dirigiram-se ao local. Foram previamente informados por um dos residentes a quem algemaram fora da casa, que lá dentro se encontravam dois cães pertencentes à família.

Arrombada a porta, os dois cães ladraram ameaçadoramente; um deles fugiu para a cave e o outro fez menção de se atirar aos polícias (segundo o relatório dos polícias, o cão movimentou-se “algumas polegadas” na direção deles), pelo que lhe deram um tiro, tendo o cão ficado ferido e fugido, indo juntar-se ao outro cão na cave. Quando os polícias desceram as escadas para a cave, o cão ferido começou de novo a ladrar, pelo que lhe deram novo tiro, matando-o.

Como o segundo cão não os deixava passar e continuava a ladrar, deram-lhe dois tiros. O cão fugiu, e os polícias para lhe evitarem mais sofrimento, pois “o sangue continuava a sair de várias perfurações o corpo”, deram-lhe o tiro que o matou.

 

Os donos dos animais puseram o caso em tribunal, e o juiz Eric Clay, do Sexto Tribunal (6th Circuit Court of Appeals), decidiu que a ação dos polícias era considerada como “razoável”, uma vez que os animais estavam a impedir que os polícias pudessem “em segurança” investigar a cave.

 

Um treinador de cães que trabalha para o Ministério da Justiça, mostrou-se indignado com a sentença, porquanto frequentemente os polícias confundem sinais de medo com sinais de agressão. O simples facto de os cães terem fugido dos polícias para a cave é uma prova muito mais forte de medo, do que o facto de ladrarem, por mais agressividade que o tenham feito.

Esperar que numa situação de alta tensão com aquela os cães não ladrem, é simplesmente estúpido”.

 

 

A morte de opositores, por parte de quem detém o poder, tem sido uma constante das sociedades. Até nós temos a nossa quota parte de fama com o célebre assassinato do Duque de Viseu pelo seu irmão Rei D. João II, segundo consta executado pelo próprio rei.

Recordando casos célebres, temos, no tempo de Eisenhower, o envolvimento da CIA na morte o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba; com John Kennedy, as várias tentativas de assassinato de Fidel Castro; com Richard Nixon, o golpe militar apoiado pelos EUA que levou ao assassinato do presidente do Chile, Salvador Allende.

 

Tudo isto, levou o presidente Gerald Ford, através de uma ordem executiva em 1976, a proscrever o assassinato político como procedimento passível de ser considerado pelo governo, o que veio a ser reafirmado sucessivamente por subsequentes presidentes. O que não impediu que Ronald Reagan autorizasse o bombardeamento, por aviões da USAF, da casa de Muammar Gaddafi.

Com o início deste milénio, assistimos à utilização dos drones Predator que, armados com os mísseis Hellfire, possibilitaram assassinatos numa escala nunca imaginada, à ordem dos presidentes, segundo uma “lista de alvos a abater” (kill list).

É assim, que o presidente, seus assessores e seus conselheiros, se tornaram juízes, jurados e carrascos dos “suspeitos de terrorismo” (designação onde cabem todos aqueles, crianças, mulheres ou homens, que se encontram na vizinhança), em qualquer parte do mundo.

Tudo isto é feito a coberto de garantias dadas sobre a “legalidade” de tais ações, de acordo com normas que constam de relatórios secretos elaborados por advogados do próprio Ministério da Justiça.

 

 

No ano de 2015, foram mortos pela polícia americana, 1146 pessoas, das quais 234 não eram portadoras de qualquer tipo de arma. Contudo, este número é o apurado pelo The Guardian, porquanto o governo dos EUA não possui (não faz) qualquer registo sobre o número de mortos causados pelas polícias, pelo que se torna difícil qualquer discussão pública sobre a utilização da força pelas polícias. Apenas em casos pontuais.

No governo, apenas o FBI possui um programa onde as organizações dedicadas a fazerem cumprir a lei podem relatar, se o quiserem, o número de “homicídios justificáveis”.

Entre 2005 e 2012, apenas 1.100 departamentos da polícia – uma pequena parte dos 18.000 existentes – os relatava ao FBI.

Eric Holder, antes de deixar o seu cargo de Procurador Geral em 2015, considerava a situação como “inaceitável”, dizendo que:

 

 “não temos para já, a capacidade para contabilizarmos o número de incidentes … Corrigir isto, é uma tarefa em que todos devíamos de estar unidos.”

 

Se, para um governo, o número de seus cidadãos mortos pelas forças policiais não merece, pelo menos, um esforço para que seja contabilizado, como será possível atribuir qualquer importância à morte de cães ou outros animais?

Se um governo permite que seja aprovada uma lista de pessoas a abater, e que ele próprio o faça sem qualquer julgamento prévio, e que ainda considere como aceitável que outras pessoas não constantes da lista, mas que pelo simples facto de estarem no local à hora do ataque, possam ser mortas, como será possível qualquer preocupação com a morte de animais?

 

A aceitação e a indiferença pela morte desnecessária de seres que não os humanos, está sempre ligada, mais tarde ou mais cedo, à aceitação e à indiferença perante a morte de seres humanos. Há, no mínimo, uma barreira de sensibilidade que se perde, e que servirá sempre de desculpa para futuras repetições.

 

Para que conste, foi em 1945 que George Orwell escreveu em Animal Farm:

 

"All animals are equal but some animals are more equal than others."

(Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros)

 

 

 

 

 

 

 

Os revolucionários das massas

 

 A cultura e a utilização dos media, foram os principais instrumentos usados para oprimir as massas, sem que as massas sentissem sequer que estavam a serem oprimidas.

 

Com o tempo, a distinção entre verdade e ficção, entre comercial e político, vai-se tornando difícil de perceber, Theodor Adorno.

 

O truque é conseguir-lhes captar a atenção, e Trump capta-lhes a atenção porque faz do espetáculo popular, política.

 

 

O triunfo da Revolução Bolchevique na Rússia e a consolidação dos regimes capitalistas na Europa, colocou aos teóricos marxistas alguns problemas para os quais não encontravam respostas convincentes. Nomeadamente, como explicar que o triunfo de uma revolução marxista tivesse acontecido num país quase feudal e não nos países capitalistas mais desenvolvidos como a Alemanha, onde existiam as maiores organizações proletárias?

 

Com o fim de responder a estas e outras questões relacionadas com a história do movimento trabalhista e do socialismo, Félix Weil, resolveu fundar (com o dinheiro do pai) em 1923 um Instituto para Pesquisa Social, integrado como anexo da Universidade de Franfurt-am-Main, na Alemanha.

Félix Weil, tinha a esperança de trazer para o Instituto dirigentes das diversas linhas de marxismo, só que devido ao forte anticomunismo existente entre os professores da Universidade, teve de fazer escolhas entre os que não tinham grandes comprometimentos com a atividade política ou que fossem membros do Partido Comunista (era o caso de Georg Lukács), até porque o que se procurava era fazer trabalho teórico de crítica, o que pressupunha uma certa independência de linhas partidárias.

Só quando Max Horkheimer (filósofo, sociólogo e psicólogo social) se torna diretor do instituto em 1930 é que vai recrutar, entre outros, Theodor Adorno (filósofo, sociólogo, musicólogo), Erich Fromm (psicanalista), Herbert Marcuse (filósofo) e Walter Benjamin (ensaísta e crítico literário).

 

Os trabalhos produzidos incidiram sobre a indagação das razões pelas quais não tinha havido uma revolução socialista num país tão industrializado e sofisticado como a Alemanha e ainda, porque se estava a assistir à ascensão do fascismo, do estalinismo, do capitalismo de estado, tudo novas formas de dominação social que dificilmente poderiam ser explicadas pela tradicional sociologia marxista.

Uma das conclusões a que chegaram foi que a cultura e a utilização dos media, tinham sido os principais instrumentos usados para oprimir as massas, sem que as massas sentissem sequer que estavam a serem oprimidas

 

É Theodor Adorno o primeiro a empregar o termo “Indústria cultural”. Segundo ele, deve-se distinguir entre arte e cultura. Arte é qualquer coisa que interpela e eleva a ordem existente, ao passo que Cultura é exatamente o oposto. A cultura, ou cultura industrial, usa a arte de um modo conservador, ou seja, usa a arte para sustentar a ordem existente.

 

Com a subida de Hitler ao poder, o Instituto mudou-se em 1933 para a Suíça, Genebra, logo depois para Paris, acabando em 1935 por se transferir para Nova Iorque, onde se filia na Universidade Columbia. É aqui que os seus mais importantes trabalhos são produzidos.

 Começam a serem conhecidos como a “Escola de Frankfurt”, muito embora quase não existissem projetos que se complementassem ou que apontassem numa direção característica.

 

Quando Adorno chega aos EUA, fica perfeitamente espantado com a projeção e prominência da industria cultural americana que, quer através dos seus filmes, da rádio, da música popular e da literatura, representavam sem qualquer rebuço a ideologia capitalista.

Para ele, que assistira ao processo da instalação do nazismo, era claro que essa industria da cultura controlava os espíritos dos americanos da mesma forma que Goebbels, através da sua propaganda, controlava os espíritos dos alemães.

Comparando com a Alemanha, diria que aí a propaganda era nua e permeável, ao passo que nos EUA, embora ela também fosse permeável, era mais insidiosa e camuflada.

Mais insidiosa, porque parecia não conter qualquer mensagem ideológica, contrariamente à propaganda alemã que era abertamente ideológica. Mais camuflada, porque a industria cultural americana escondia a sua mensagem consumista na arte, para assim alcançar o objetivo similar de produzir conformidade de pensamento e de comportamento.

 

Posteriormente, já em 1964, Herbert Marcuse, em One-Dimensional Man, vai demonstrar que a verdadeira finalidade da propaganda nos EUA era a de conseguir obter o consentimento através da distração das massas. Segundo ele, todas as pessoas andam tão distraídas (com a revolução sexual, com a música popular, ou com qualquer outro aspeto da cultura de massas), que se sentem confortáveis e já se não revoltam contra qualquer opressão, seja ela qual for.

 

As previsões de Adorno e da Escola de Frankfurt sobre a existência nos EUA de condições para o aparecimento de algo parecido com um fascismo, foram considerados pelos intelectuais americanos como irrealistas e difíceis de aceitar, o que foi levando progressivamente à menorização da Escola de Frankfurt.

 

Mas, Adorno tinha ainda chamado a atenção para o facto da industria cultural se manter impermeável a qualquer inquérito crítico, o que, consequentemente, poderia levar a que com o tempo, a distinção entre verdade e ficção, entre comercial e político, se fosse tornando difícil de perceber.

 

Hoje, passados tantos anos, só com base nestes estudos da teoria crítica de Adorno, é que se pode tentar entender Trump como um produto da idade dos media de massa.

Os media de massa permitem alcançar como que uma espécie de hipnose coletiva, o que faz com que alguém com experiência em falar, mentir e bombardear constantemente os presentes, consiga encantá-los e controlá-los, especialmente se essas pessoas não tiverem um senso histórico. É que não há ali qualquer pensamento real, qualquer processo intelectual, qualquer memória histórica.

 

O truque é apenas conseguir-lhes captar a atenção, e Trump capta-lhes a atenção porque faz do espetáculo popular, política. Exatamente o que Adorno e os outros da Escola de Frankfurt tinham previsto.

 

 

Que fazer com as pontas soltas?

 

 “Quem diz a verdade acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser apanhado”, Oscar Wilde.

 

“Quando o poder considera útil dizer a verdade, é porque não encontra mentira melhor”, J. P. Sartre.

 

Há que deixar de sonhar com o poder.

 

 

            De vez em quando, sinto necessidade de atar algumas pontas soltas, o que, de certa maneira, me diverte. É o prazer da racionalidade herdada, ensinada, praticada, a sobrepor-se ao prazer da descoberta, à viagem sem destino, ao gozo do maravilhar pela ausência de controlo. Sabendo, intuindo que quanto maior for o número de pontas soltas, maior será a aventura.

 Só que aquilo que outros chamam de vida, de palavra, de escrita, me obriga, para não ficar muito fora do mundo dos outros, a, de vez em quando, dar nós.

 Aprendi, contudo, a ter o cuidado de ao dar nós, deixar que eles fiquem suficientemente laços para que possam, quando entenderem necessário, eles e eu, originar novas pontas soltas. O contrário seria a prisão a uma finalidade a que a racionalidade nos tenta conduzir, em que por vezes me deixo enredar com o gozo antecipado de a saber mera construção humana com um certo interesse, não mais.

           

            Ao longo da vida, vamos sendo chamados a intervir ou a participar na sociedade, ora de uma forma, ora de outra forma. As escolhas que formos fazendo ou não, as posições que formos assumindo ou não, podem ser agrupadas em três conjuntos: ou as que alinham com as intervenções locais e o estado das coisas estabelecido; ou as que visam a preparação para uma possível insurreição revolucionária total; ou as que nos convidam para nada fazer.

 

Comprometimento com o estado das coisas estabelecido:

 

Há uma cena no filme 1900 de Bernardo Bertoluci, em que um grande latifundiário explicava aos camponeses pobres que trabalhavam nas suas terras e que estavam em greve, que teria de lhes reduzir para metade o ordenado, uma vez que devido às más condições meteorológicas, as colheitas tinham ficado arruinadas.

Seguiu-se um silêncio prolongado. Exasperado por essa resistência muda insensível aos seus argumentos “racionais”, o grande proprietário grita para um deles:

 “Será que as tuas grandes orelhas não chegam para me ouvires?

 

 O camponês a quem estas palavras foram dirigidas, tira uma faca da cintura, e de um só golpe, corta a orelha esquerda, oferecendo-a ao proprietário, que, aterrado, foge em pânico.

O significado desta amputação autoinfligida era fazer ver ao patrão que não só não o queria ouvir como ficava surdo para os seus argumentos. Cortava assim radicalmente qualquer possibilidade de comunicação, libertando-se do sistema a que estava subjugado. Com esse gesto, ele passava a ser o sujeito do seu próprio ser. Libertava-se. Não havia mais regresso ao estado anterior.

 

Esta constitui a primeira ponta solta que desde o princípio anda para ser atada: a do ser humano que teima em ser humano.

Se não a atarmos, caímos naquela opção que é a de alinharmos com o comprometimento para com o estado das coisas estabelecido, quase sempre embalados pelas músicas, versos, espetáculos, programas, bem ao tipo do saudoso hino da Mocidade Portuguesa “lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim” ou outros semelhantes e mais à moda, menos ingénuos, mas mais sofisticados.

Pelo que quando andarem por essas estradas e campos fora, quando forem a ajuntamentos e às manifestações, verifiquem, por favor, se as pessoas que lá estão têm as duas orelhas. Se todas tiverem, pode dar-se o caso da definição de ser humano estar errada, pelo que o nó ficará sem efeito.

 

Preparação para uma insurreição revolucionária total:

 

Há um ditado popular que diz que “de boas intenções está o inferno cheio”. É uma forma de nos chamar a atenção para a interdependência que existe entre o particular e o universal, que deve ser sempre levada em conta, não podendo ser abordada com ligeireza.

Na prática, é lembrar que há sempre a possibilidade de, ao atuarmos sobre um problema particular, se poder vir a desencadear uma transformação global. O tal problema do bater de asas da borboleta.

Um exemplo ‘clássico’ disto é o que se verificou com o relatório “secreto” que Khruschev apresentou em 1956 ao XX Congresso do PCUS. Com a sua acusação sobre os crimes cometidos por Stalin, Khruschev pretendia demonstrar que eles tinham sido apenas da responsabilidade individual de Stalin, e que uma vez denunciados e eliminados, o sistema voltaria de novo a funcionar bem.

O que aconteceu é que esta denúncia desencadeou um processo que acabou por vir a fazer cair o sistema soviético. A nível individual, Khruschev é deposto em 1964, vindo a dar razão à declaração de J. P. Sartre:

  

Quando o poder considera útil dizer a verdade, é porque não encontra mentira melhor.

 

O mesmo se passou com Gorbatchev que não pretendendo mais do que reformar o sistema para o tornar mais forte, sobrestimou a dose de abertura que o sistema poderia absorver, levando à sua desintegração.

 Como ironicamente já anteriormente notara Oscar Wilde:

 

Quem diz a verdade, mais cedo ou mais tarde, acaba por ser apanhado”.

 

Ou seja, mesmo em casos de situações de crise radical em que, aparentemente, a transformação das estruturas fundamentais da sociedade possa parecer ser a única solução para resolver os problemas, devemos ponderar se esses problemas particulares não poderão ser resolvidos por medidas mais práticas e aplicáveis, ou até se o melhor não será mesmo nada fazer se isso contribuir para evitar a reprodução da ordem existente. Esta é a segunda ponta solta, sempre à espera de ser atada.

 

A política do preferir nada fazer:

 

O poder não é qualquer coisa que exista por aí ao alcance de quem o quiser tomar, e que, se ninguém o quiser, continuará por aí, mesmo que o ignoremos. Mas isto não significa que o poder, só pelo simples facto de ser poder, seja por si poderoso. O poder só subsiste se os súbditos dele fizerem parte, se nele participarem. Ele apenas nos parece poderoso porque o tratamos como tal.

‘Poder’ é a subordinação de muitos a um. Implica, portanto, uma submissão por parte do povo, submissão essa não originada apenas pela utilização da coerção física, ou pela sua ameaça, mas ainda pela mistificação ideológica.

 Essa submissão verifica-se acima de tudo “porque há um investimento libidinal no poder”. Nessa submissão há como que uma forte ligação irracional ou uma solidariedade secreta, que se verifica entre os governantes e o povo.

 É como se o poder produzisse uma forma de gozo inebriante, uma dopagem, que afetasse tanto os que o exercem como os que lhe estão sujeitos. Ambos ‘sonham’ com ele.

 

É o que se passa com aquelas pessoas que, estando doentes ou não, só pelo simples fato de estarem numa sala de espera de um consultório médico, nos desfiam com imenso gozo, aquele sem número de doenças prováveis ou possíveis, que já tiveram ou estão para ter. E que nos recomendam médicos recomendáveis que se fizeram encomendar ou recomendar. Essas pessoas não são médicos, algumas até foram por eles maltratadas, mas gostam daquela ‘importância’ e ‘conhecimento’ que julgam que lhes confere a proximidade do poder.

Como adrenalina viciante, é assim que o ‘poder’ os suborna e os mantém sob o seu jugo. São estes mecanismos invisíveis de sujeição que regulam essa subordinação das pessoas.

 

Se os conseguirmos alterar, toda a estrutura do poder perderá a sua força de atração, dissolvendo-se. E como conseguiremos alterar essa obsessão?

 Por exemplo: reparemos que, enquanto nos desdobramos em manifestações, petições, grandes oratórias, etc., o que estamos na prática a fazer é a entregar o verdadeiro trabalho de assistência, educação, ajuda e acompanhamento, às ‘inefáveis’ Misericórdias do poder político instituído, perpetuando-o.

A recusa a essa atividade obsessiva é que irá permitir suspender todo o encantamento que se tem do poder, deixando-se de sonhar com o poder.

E, quando se deixar de sonhar com o poder, ele deixa de ter qualquer poder sobre nós.

 

É por isso que o “preferir não fazer” é, nestas condições, um ato radical, pois coloca-nos fora do jugo e jogo do poder. Esta inatividade é mais radical que a atividade. Esta não-violência é mais forte que a violência.

E esta é uma terceira ponta solta que ato mais fortemente, tendo, contudo, o cuidado de lhe deixar uma ponta mais comprida. Como convém.

 

 É que, além de tudo isto, há uma importante questão prévia que tem de ser ponderada: porque teremos de escolher?

 

O quinto Mandamento

 

 American Sniper, foi o filme de Clint Eastwood que mais dinheiro deu: com um custo de produção de 58.8 milhões de dólares teve uma receita de 429.8 milhões de dólares.

 

“Pergunto-me se alguma vez isto chegará ao fim? E não, não tem fim, Clint Eastwood.

 

 O direito à vida é mais importante que o direito à vida humana.

 

O monstro anda à solta. Passeia-se pelo mundo. Fugiu do laboratório e está ao serviço de seja quem for que tenha coragem suficiente para lhe dar emprego”, Henry Miller no Tempo de Assassinos.

 

 

Nem sempre o não matar constituiu um preceito, uma obrigação moral, cívica, que se tenha imposto nas sociedades. Até mesmo no campo da religião este ‘pecado’ não era tido por absoluto. Por exemplo, o Antigo Testamento (corpo de leis que guiava o comportamento dos Hebreus), embora desencorajasse a morte de outro ser humano, permitia que em caso de autodefesa, o agredido pudesse tirar a vida ao agressor.

            Radicalmente diferente era o ensinamento de Jesus Cristo, que além de impedir que qualquer ser humano fosse morto, ainda preconizava que nem sequer havia razões para se ficar zangado com quem o praticasse.

 Em vez do antigo “olho por olho, dente por dente” aparecia o “se alguém te esbofetear numa face, oferece-lhe a outra face”, substituindo-se assim a ética antiga baseada na vingança por uma nova ética baseada na não resistência.

Este cunho pacifista tinha que ver com a crença na existência da vida depois da morte, pelo que a morte aparecia apenas como uma perca temporária da existência física.

 

            Quando a Igreja Cristã se torna religião oficial do império romano, quando a governação do Império ou do que resta dele lhe cai nas mãos, obrigando-a a governar, todo esse pacifismo se vai alterar. Juntamente com o aparecimento da doutrina da guerra justa, volta a afirmar-se o princípio da autodefesa como justificativo para a morte de outra pessoa.

 

 É Santo Agostinho quem vai teorizar e reconhecer a legitimidade da lei humana da autodefesa em caso de morte de outra pessoa (para preservar a própria vida, liberdade ou castidade). Sugere, contudo, que quem o faça deverá ser condenado por uma lei superior. Ou seja, não é pelo fato de a lei permitir um certo ato, que tal ato deva ser considerado moral.

Mesmo assim vai isentar de pecado o ato da morte de outra pessoa nos seguintes casos: quando um soldado matar um inimigo, quando um juiz ou seu representante condenar um criminoso à morte, ou quando uma arma que tenha acidentalmente caído das mãos de uma pessoa tenha provocado a morte de outra pessoa.

 

São Tomás de Aquino introduz posteriormente o conceito de intencionalidade, segundo o qual a morte de uma pessoa era permitida por autodefesa, desde que não fosse intenção do agredido matar o agressor.

 Isentava deste princípio a morte intencional de outros feita por agentes públicos, desde que fosse destinada a proteger o bem comum e não por animosidade privada. Clarifica também o uso da força: a força usada para nos defendermos de um atacante não pode ser superior à da ameaça utilizada pelo agressor.

 

            E, no entanto, o “não matarás” inscrito nas pedras de Moisés não previa qualquer exceção ou interpretação. Bem sei que a gravação em pedra era difícil e levava tempo, mas o “não matarás” era o mandamento com menos letras quando comparado com os outros, pelo que propositadamente queria dizer isso mesmo: não matarás, ponto final parágrafo.

            A haver espaço para uma qualquer extensão do conceito, certamente seria relativo à vida como um todo, sem o restringir apenas ao ser humano como parece ter sido. Segundo a interpretação da época, o “não matarás” referir-se-ia apenas ao homem.

 

 E, contudo, não seria despiciente que se tivesse referido a toda a forma de vida. É que a vida, que só apareceu ao fim de milhões de anos da existência da Terra, que já sofreu vários reveses que poderiam ter redundado no seu desaparecimento, que apesar da imensidão dos espaços siderais e da multitude de corpos celestes neles contidos tem grandes possibilidades de só existir na Terra, deve por isso mesmo ser encarada como um bem único, extremamente raro e escasso.

 Só por isto a vida, qualquer vida, deveria ser preservada a todo o custo. Como corolário poderemos retirar que o direito à vida é mais importante que o direito à vida humana, porquanto mesmo que a vida humana desapareça continuará a haver vida.

 

Daqui poderíamos passar para a definição do que é vida, do que é vida humana, e rapidamente entraríamos na discussão sobre a inteligência artificial, robots, a vida dos passarinhos, das árvores, das algas, dos vírus, dos minerais, e acabaríamos por ter de falar do Avatar e do A.I. e outros que não são o filme de que queria falar.

 

Fiquemos com o preceito de que o “não matarás” se refere apenas aos seres humanos. Vimos já que, quer antes quer depois, esse mandamento tão simples foi imediatamente alargado aos casos “práticos” da vida.

 Com a erupção das massas na sociedade e seu aproveitamento para combater nas várias e muitas guerras, foram aparecendo escritores a descreverem os horrores da batalha, em que iam ora questionando, ora glorificando as ações humanas que presenciavam.

O cinema vem depois, apesar das suas limitações, trazer ao conhecimento do grande público o que se passava, através de filmes que pretendiam refletir a guerra, normalmente do ponto de vista individual, do herói, vivo ou morto.

 

O primeiro filme em que o herói era um atirador de elite, um franco-atirador, é o Sargento York realizado em julho de 1941 por Howard Hawks, interpretado por Gary Cooper.

 Baseado no diário do sargento Alvin York, um dos mais condecorados soldados americanos da Primeira Grande Guerra, conta a história de um simples camponês pobre que não gostava do Exército, que era um objetor de consciência religioso por não querer matar, e que acaba por ser recrutado para combater.

Durante os treinos revela-se como atirador exímio. O seu comandante decide dar-lhe umas férias para que ele possa decidir sobre a sua oposição ao Exército. Meditando sobre o assunto, York vê a sua Bíblia ser arrastada pelo vento e quando a vai apanhar ela estava aberta no versículo que falava sobre “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Apresenta-se no quartel e embarca para a Europa.

 

A 8 de Outubro de 1918 participa na ofensiva de Meuse-Argonne. Impedidos de avançar devido a fogo de metralhadoras inimigas que estavam a fazer imensas baixas, é enviado, com mais alguns homens, a fim de flanquearem os ninhos de metralhadoras.

Durante a ação é morto o sargento que comandava a coluna, pelo que o então cabo York se vê forçado a assumir o comando. Ao ver os seus camaradas serem atingidos, emprega então a tática que utilizava na sua terra para caçar perús: atirar a matar sempre ao de trás, para que os da frente não dessem por isso.

 Mata 28 alemães com 28 tiros. Surpreendidos, sem saber o que se estava a passar, os alemães rendem-se. Com apenas meia dúzia de colegas, York captura 132 alemães, tornando-se um herói nacional, sendo condecorado com a Medalha de Honra. Perguntado porque o fizera, respondeu que estava a tentar salvar a vida aos seus homens.

 

O Sargento York foi um enorme sucesso de bilheteira: tendo custado 1.4 milhões de dólares, rendeu 16,3 milhões de dólares. Talvez tal tivesse que ver com a necessidade sentida pelos americanos por algo que os inspirasse naqueles tempos da Segunda Guerra e pelo ataque a Pearl Harbor (7 dezembro de 1941).

 

Em novembro de 2014 é estreado American Sniper, filme de Clint Eastwood, também baseado num livro autobiográfico American Sniper: The Autobiography of the most Lethal Sniper in U.S. Military History (2012) de Chris Kyle, o franco-atirador que matou 255 pessoas, das quais 160 oficialmente confirmadas pelo Ministério da Defesa, o que faz dele o atirador mais mortífero da história militar dos E.U.A.

Não lhe sendo possível apresentar como herói respeitável alguém que voluntariamente se inscreve nos Navy SEAL para ser sniper, que tem como declaração de princípios escrita no seu livro o “só creio em Deus, na pátria e na família”, e que levava consigo para o combate a lista de “selvagens” a abater, Eastwood tenta deslocar o filme para os problemas que os militares vindos de ações de combate, enfrentam quando do regresso a casa, para se integrarem numa vida familiar normal.

Diz Eastwood numa entrevista:

 

 “Fui uma criança que cresceu com a Segunda Guerra. Era suposto que ela fosse a guerra que acabaria com as guerras. E, no entanto, quatro anos depois, fui recrutado para o conflito da Coreia; depois disso, apareceu o Vietname, e depois outro e ainda outro e mais outro…. Pergunto-me se alguma vez isto chegará ao fim? E não, não tem fim. Por isso, cada vez que nos envolvemos nestes conflitos, deveríamos pensar muito sobre este processo de se ir e voltar, ir e voltar. Julgo que todo este processo tem de ser melhor pensado.”

 

E é exatamente isto que Eastwood não consegue passar para o filme. Para além dos estereótipos que tem de se socorrer (como por exemplo a ocupação do Iraque contada a preto e branco, os bons e os maus; apresentar a personagem sem qualquer complexidade, linear, em que uma vez regressado a casa, a única coisa que desejava era voltar para a guerra para matar os maus e salvar os bons) talvez este seja o filme mais fraco de Eastwood.

 

Mas foi o que mais dinheiro deu: com um custo de produção de 58.8 milhões de dólares teve uma receita de 429.8 milhões de dólares, talvez reflexo de uma identificação nacional com esse matador que desde jovem dividia o mundo em lobos, cordeiros e pastores, em maus e bons.

Após a sua quarta comissão, Kyle regressa a casa, continuando incapaz de se adaptar à vida civil. É convencido pelo psiquiatra a tentar ajudar outros veteranos que precisassem de acompanhamento. A 2 de fevereiro de 2013, é morto por um desses veteranos.

 

O princípio por detrás dos snipers, o do pistoleiro solitário que devido a saber manejar bem o seu colt abre caminho para o oeste selvagem, é o mesmo que se aplica e que torna aliciante o uso dos drones: matar o inimigo sem ele se aperceber, evitar percas humanas do nosso lado.

Os “drones”, são aviões bomba sem piloto, V1 sofisticadas (porque as não sofisticadas eram nazis e caíram sobre Londres), tripuladas à distância, e que segundo a American Civil Liberties Union, desde 2002 são responsáveis pela morte de mais de 6.000 pessoas, muitas delas civis.

Apesar de todos os argumentos legais e filosóficos que visam garantir a justeza e moralidade do emprego dos drones, as Nações Unidas obrigam desde 2013 a que sempre que um Estado utilizar um drone contra outro Estado, invocando o direito de autodefesa pela sua utilização, deverá submeter um relatório ao Conselho de Segurança. Simples. Só que os Estados não o fazem, nem respondem aos questionários sobre os alvos atingidos.

 

É, por isso, terrível, desumano, ridículo, assistir às reuniões filmadas, noticiadas, em que os principais leaders mundiais aparecem numa sala para visionarem em direto os acontecimentos que são as mortes em direto de pessoas que eles selecionaram: eles são os snipers, e sabem que nessa qualidade serão agraciados. Imitação pateta de imperadores romanos no Coliseu.

 

Vivemos num tempo de assassinos, e em todos nós cai essa mancha. Também somos um pouco disso. Todos os dias. Em nome de qualquer coisa: porque a nossa vida é mais importante que a outra, porque a nossa sociedade é mais democrática, porque somos mais civilizados, porque Deus está do nosso lado, sempre por qualquer coisa que nos afaste da nossa interioridade, ou seja, que nos afaste do humano e nos aproxime da besta.

 Como bem notou Henry Miller:

 

O maior pavor do homem é a expansão da consciência. ‘Vivamos em paz e harmonia!’, implora o homem comum.”

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