A ‘nossa cultura’ é o nome que damos a todas as coisas que fazemos sem acreditar verdadeiramente nelas, sem as levarmos realmente ‘a sério’. Por isso, a nossa cultura não é fundamentalista.
“Eu sei o que estou a fazer, mas, não obstante continuo a fazê-lo…”, Peter Sloterdijk.
“… porque não sei em que creio”, S. Zizek.
É este não querer ver, que origina a verdadeira destruição do “património cultural” da humanidade: o homem.
É com o Iluminismo, que a religião ligada à imposição de dogmas, rituais e regras, que eram aceites por serem prescritos por uma autoridade terrestre e, ou, por uma autoridade divina (como foi o caso do Judaísmo e do Cristianismo), vai ser submetida a uma crítica racional que acabará por levar à rejeição de rituais e dogmas, nomeadamente os da existência da alma como substância peculiar, como se tratasse de um ser espiritual, mas real.
A Razão não entende que a alma tenha uma atividade própria não determinada pelas condições materiais, e que pudesse continuar a existir após a morte do corpo, ou mesmo que o ser humano fosse considerado como uma dupla unidade constituída por alma e corpo.
Era o que de outra forma dizia Kant: apenas conhecemos os fenómenos, a aparência, e mesmo assim só através das categorias do nosso pensamento. Tudo o que fique fora disto, não se pode conhecer, o que faz com que a Metafísica não possa ter lugar no nosso sistema de conhecimento.
O que vai levar ao aparecimento na sociedade, de duas tendências opostas: uma, apoiada no moralismo universalista kantiano, e outra, apoiada num sentimento puramente interior, numa “espiritualidade profunda”.
A primeira destas duas tendências vai conduzir à tentativa de substituir a religião pela ciência, e a segunda vai conduzir à tentativa do ressurgimento da religião como abertura à alteridade que nos permitirá acolher uma dimensão desconhecida.
Só que a ciência foi-se fechando num pequeno círculo de iluminados, com conceitos e linguagem muito próprios, nunca conseguindo capturar a imaginação das massas, não tendo assim podido substituir-se à religião. Por outro lado, a própria religião também já não conseguia desempenhar essa função de ligação social que fora sua, porque tinha perdido esse seu poder anteriormente detido, de influenciar não só os cientistas e filósofos, como ainda o círculo mais vasto das pessoas comuns.
Foi com a modernidade que se começou a verificar esta perca de poder por parte da religião. Antes, a religião integrava completamente a ordem social e a vida cultural da sociedade, o que implicava que numa comunidade só pudesse existir uma religião.
Lembremos a Paz de Ausburgo de 1555 que, para ‘acabar’ com as guerras religiosas, decidiu que a religião de cada região seria a que o príncipe dessa região tivesse (princípio que ainda agora é seguido por muitos sistemas eleitorais), obrigando à conversão dos súbditos ou à sua mudança para outra região.
Mas é, curiosamente, esta perca de poder hegemónico da religião, que lhe vai permitir sobreviver. Ao infiltrar-se em culturas diferentes, vai fazer com que em todos os países do mundo, se vejam hoje cristãos, muçulmanos, budistas e outros.
Só que esta ‘globalização’ teve um preço: a religião deixou de comandar o funcionamento da totalidade social, deixou de ser hegemónica, remetendo-se para uma função terapêutica ou crítica, ajudando as pessoas a integrarem-se cada vez melhor na ordem existente, ou erigindo-se numa posição crítica apontando o que está errado nessa ordem, o que a faz aparecer como se fosse uma heresia.
Por tudo isto, na nossa sociedade atual, já não se crê verdadeiramente. Limitamo-nos a seguir alguns dos rituais e dos costumes religiosos de acordo com o estilo de vida da comunidade a que pertencemos.
Fazemo-lo, não porque acreditamos, mas porque tal faz parte da “nossa cultura”. Mesmo não acreditando no Pai Natal, em todas as nossas casas existe um pinheiro no mês de dezembro, e escrevemos pai natal com maiúsculas.
“A ‘nossa cultura’ é o nome que damos a todas as coisas que fazemos sem acreditar verdadeiramente nelas, sem as levarmos realmente ‘a sério’”. Por isso, a nossa cultura não é fundamentalista.
Exatamente por isto é que não conseguimos entender os crentes fundamentalistas, que achamos estranhos por acreditarem verdadeiramente, por “levarem a sério as suas crenças”.
São “bárbaros” e inimigos da cultura, por não terem qualquer distanciação relativamente à sua própria cultura.
Apesar de não acreditarmos na divindade de Buda, ficamos indignados por os talibãs terem destruído as antigas estátuas de Buda em Bamyan, por o EI ter destruído as estátuas do império assírio e o que se lhe seguirá, vendo nisso uma total falta de respeito pelo “património cultural” do deu próprio país e da humanidade.
O problema é que eles estão completamente imersos na crença da sua religião, não tendo por isso sensibilidade para o valor cultural dos monumentos de outras religiões: para eles, as estátuas de Buda, as do império assírio e outras, não passam de falsos ídolos, não são “tesouros culturais”.
Há, contudo, várias vantagens que a nossa sociedade tem em não ser fundamentalista. Fica, desde logo, afastada a hipótese de uma guerra religiosa. Já não acreditamos o suficiente para que ela seja possível. Já não morremos em nome dela.
Por outro lado, devido ao nosso estado de descrença generalizada, a memória tende a diluir-se por não ser necessária. O que é bom para enfrentar os tempos em que vivemos.
Mas, antes que seja tarde e a memória se dilua e sem, portanto, querer recuar muito, só nas duas Grandes Guerras porque passámos, a destruição de “tesouros culturais”, de monumentos, edifícios, catedrais, de cidades inteiras habitadas, foi enorme, sem paralelo na história da humanidade. E, convém lembrar, já então não eramos fundamentalistas: americanos, ingleses, alemães, russos, franceses, italianos e outros, faziam todos parte desta mesma cultura.
Não sermos fundamentalistas sob o ponto de vista cultural, religioso, tem também a vantagem de não querermos ver (a imagem fica obscurecida, difusa) o fundamentalismo económico que nos permite ser assim.
Enquanto nos entretemos com as estátuas de Buda, dos maus dos nazis, dos maus dos comunistas, dos maus dos islamitas, dos degenerados negros e mexicanos, do Hitler, do Churchill, do Putin, etc., nunca falamos sobre a economia das Guerras, quem com elas beneficia, para onde vai o dinheiro, como vai, em que mãos fica.
É este não querer ver, que origina a verdadeira destruição do “património cultural” da humanidade: o homem.
Mas não há guerra. Pelo menos para nós. É o que nos permite sobreviver: vivemos morrendo aos poucos, ou morremos sem estar vivos.
Segundo a tradição, sempre que a humanidade, representada pelo povo eleito, se desviava muito dos seus fins (a criação do reino de Deus na Terra), Deus intervinha para nos pôr no caminho certo.
Podemos ter democracia ou podemos ter riqueza concentrada em poucas mãos, mas não podemos ter ambas as coisas”, Louis Brandeis, Juiz do Supremo Tribunal Americano.
“Pobres, são hoje todos os consumidores falhados numa sociedade de consumidores, e onde também se incluem os desempregados e os reformados”.
“Os organismos estatais e paraestatais encarregados de lidar com o problema da pobreza são cada vez mais agências de registo, de vigia e de disciplina, que mantêm os pobres identificados, isolados e separados do resto da sociedade”.
Segundo a tradição, sempre que a humanidade, representada pelo povo eleito, se desviava muito dos seus fins (a criação do reino de Deus na Terra), Deus intervinha para nos pôr no caminho certo. Desde logo começou a Sua intervenção com a criação, primeiro (evidentemente) do homem e depois a da mulher, a que se seguiu o aviso meteorológico a Noé, a destruição de Sodoma e Gomorra, a entrega das pedras dos Mandamentos, e finalmente pela colocação do Seu Filho na Terra, para desgosto do povo eleito.
Muitas foram as interrogações e as querelas relacionadas com estas intervenções: sendo Deus tão perfeito, para que precisava de ter criado o homem? Sentia-Se sozinho? Sendo o universo infinito e criação Sua, para quê preocupar-Se com o homem? Sabendo tudo o que iria acontecer, porque não o criou de forma a impedir os seus desvios? Qual o Seu grau de preocupação com o homem? Quando intervém? Porque teve de mandar o Seu Filho à Terra?
Interrogações como estas, e muitas outras, deram origem a diversas interpretações, heterodoxias, religiões, filosofias, muitas guerras e muitas atrocidades. De certa forma todas elas tinham, contudo, em comum a crença na existência de um Poder superior, que de certa maneira estaria atento ao que se passava cá em baixo, pronto a intervir, muito embora não se soubesse quando, até porque os desígnios do Senhor são insondáveis e não compreensíveis pelas nossas mentes limitadas. Não é possível ao limitado compreender o ilimitado. Há que ter fé.
Como a intervenção divina foi sendo, para além dos casos citados, cada vez mais escassa, esparsa e avulsa, limitando-se a pequenas intervenções localizadas, tal fez com que no início da Idade Moderna os povos se julgassem abandonados e entregues a si próprios.
Segundo a versão idílica, os povos viram-se forçados a preencher esse vazio, substituindo a fé numa intervenção divina por regulamentos normativos, e a insegurança existencial pelo estado de direito, tentando garantir a todos os membros da sociedade uma segurança contra os riscos de vida, protegendo ainda individualmente todos aqueles que fossem menos afortunados.
A Revolução Americana e a Revolução Francesa fizeram parte desse enorme esforço no sentido de construir laços de união entre os seres humanos, lançando as bases para uma solidariedade social.
Segundo a versão mais real, devido às enormes conquistas territoriais e ao aparecimento da indústria para as massas (‘Fordismo’), tornou-se necessário, em nome desses ‘interesses vitais’ da sociedade, a criação de um ‘exército de reserva’ de soldados e trabalhadores que pudessem garantir o funcionamento sem sobressaltos desses sistemas.
Bismarck (1815 – 1898) na Alemanha e Lloyd-George (1863 – 1915) na Inglaterra, favoreceram a solução que iria permitir que os trabalhadores desempregados e os soldados na reserva pudessem vir a serem rapidamente reintegrados, quer nas fábricas quer nos exércitos.
A solução passava pelo pagamento de uma pequena contribuição que permitiria aos trabalhadores e soldados fora de serviço, não passarem fome mantendo-se regulamente alimentados, de boa saúde, e viverem em condições minimamente decentes. Foi assim que se deu o aparecimento do ‘estado social’, que até hoje, em maior ou menor escala, tem estado sempre presente nas sociedades humanas desenvolvidas.
Um estado é ‘social’ quando promove o princípio de comunidade, de segurança coletiva contra o infortúnio pessoal e suas consequências.
Uma sociedade só é uma comunidade se proteger efetivamente os seus membros contra a miséria e indignidade, contra o terror de virem a ser excluídos e de serem considerados como lixo.
Ainda em 2004 se podia ler no programa do partido social-democrata da Suécia:
“Há sempre uma altura em que uma pessoa é frágil. Por isso necessitamos uns dos outros. Vivemos a nossa vida entre o aqui e agora, juntamente com outros, apanhados no meio de mudanças. Todos seremos mais ricos se permitirmos que todos participem não deixando ninguém ficar fora. Todos nós seremos mais fortes se houver segurança para todos e não somente para alguns”.
Hoje em dia, decorridos pouco mais de 12 anos, estas declarações parecem relíquias de um passado longínquo. Hoje em dia, tudo isso está a ser substituído por uma ‘cultura de caridade, humilhação e estigma’.
Os pobres (ou seja, todos os consumidores falhados numa sociedade de consumidores, e onde são incluídos os desempregados e os reformados) são ostracizados por não terem as capacidades que deviam de ter, por serem preguiçosos, e essencialmente por serem um peso para o sistema que assim não pode avançar ou não avança tão rapidamente como poderia fazer se não os tivesse (na linha daquela sinistra teoria levada à prática contra judeus, ciganos, deficientes, comunistas, pretos, etc.).
Os organismos estatais e paraestatais encarregados de lidar com o problema da pobreza são cada vez mais agências de registo, de vigia e de disciplina, que mantêm os pobres identificados, isolados e separados do resto da sociedade.
Como foi isto possível? Para além da habitual e previsível ganância do sistema económico, há um outro fator que tem, sabiamente e sabidamente, andado a ser promovido: a ideia da ‘liberdade de escolha’.
Num recente artigo (Segregação extrema no Estado de Nova Iorque) de Gary Orfield e John Kucsera publicado pela UCLA (Universidade da Califórnia – Los Angeles) conclui que, 60 anos depois da grande vitória legal (Brown x Board of Education) contra a separação nas escolas entre negros e brancos, as escolas americanas estão hoje mais segregadas que há 40 anos, sendo a progressista Nova Iorque o epicentro dessa segregação racial educativa!
Segundo Orfield, “estamos perante um problema legal, político e institucional que determina uma enorme diferença de oportunidades entre uns e outros estudantes” proveniente de uma falta de vontade em assumir essa profunda desigualdade e a ausência de um trabalho sério a favor da integração.
Atualmente, 64% dos estudantes negros de Nova Iorque têm aulas em escolas muito segregadas (uma escola diz-se ‘segregada’ se tiver 50% a 100% de alunos negros; ‘muito segregada’ se tiver 90% a 100%; e ‘escola apartheid’ se tiver 99% a 100%).
Embora o Tribunal tenha dito que a separação escolar por raças não era legal, nada impede que, pela ‘liberdade de escolha’ individual, uma escola possa ter 100% de alunos negros!
A possibilidade de escolher aumenta a segregação. Mas as pessoas sentem-se cómodas com isso. Mesmo sabendo (?) que essa separação conduzirá fatalmente a uma desigualdade. É um regresso à ideia de ‘separados, mas iguais’. Só que a igualdade nunca é alcançada!
Kenneth Galbraight (1908 – 2006) já notara que, à medida que os direitos sociais se foram universalizando, começaram a aparecer cada vez maior número de utilizadores dos direitos políticos que, através dos seus votos, têm tendência a aderirem e a apoiarem iniciativas individuais que vão contra os projetos comuns da sociedade, originando com isso um aumento da desigualdade.
Para esta ‘maioria’ de pessoas contentes com o sistema, com a possibilidade de o poderem cavalgar, confiantes nos seus próprios recursos, o ‘estado social’ aparece-lhes como um estorvo e não como uma segurança.
Esta ‘liberdade de escolha’ erigida como direito fundamental poderá via a dar origem à destruição da liberdade de todos, sempre em nome da proteção aos direitos individuais.
É assim que, em nome dessa liberdade de escolha, vemos com bons olhos, por exemplo, a separação entre os interesses dos negócios e os das instituições socioculturais que os deviam eticamente supervisionar.
Aceitamos pacificamente que os negócios, independentemente de outros valores, devam apenas visar a maximização do lucro sem quaisquer restrições.
E, tal como já se passou anteriormente, os resultados serão os mesmos: aumento rápido da miséria, pobreza, famílias destruídas, esfacelamento dos laços humanos, e o aparecimento de uma nova ‘terra de ninguém’ livre de quaisquer regulamentações e supervisão administrativa, salvo a presença esporádica de um ou outro ‘xerife’ de organismos internacionais interessados exatamente em manter essa ‘ordem’.
Como notara Z. Baum:
“O ´faroeste’ como ideal e espaço de liberdade para quem saiba manejar as pistolas”.
Tomemos outro exemplo mais visível (por estar à vista de todos) dos “paraísos fiscais”, os offshore: muito se caminhou na segunda metade do século anterior e, contudo, nunca foi o suficiente para se resolver o problema.
Com tantas boas vontades, com tantos políticos, economistas, legisladores, inúmeros Organismos e Conferências regionais, nacionais, planetárias, eles aí continuam. O seu número foi sempre aumentando, ‘democratizando-se’: até Portugal tem um na Madeira.
Finalmente, a partir de 2008 começou-se a equacionar o problema da sua regulamentação, muito embora logo nos tenham advertido da dificuldade extrema que o assunto encerrava, notando ainda que qualquer ação só resultaria se todos, mesmo todos (mas todos, quem?), aplicassem as medidas corretivas que se viessem a aprovar.
O véu sobre esses estudos altamente secretos contidos no chamado Trade in Services Agreement (TISA) começa a ser conhecido. De notar que esse acordo é promovido exatamente pelos mesmos governos que instalaram o falhado modelo de (des)regulamentação financeira na World Trade Organization (WTO), que foi a responsável por ter ajudado o aparecimento da crise financeira global.
Com o TISA, o que se pretende é rodear e ultrapassar a WTO, criando um novo modelo de comércio livre (de quê?), em estreita colaboração com a indústria financeira global (que tem sido acusada de, devido ao seu comportamento descuidado e ganancioso, ter ocasionado sucessivas crises).
Os governos que assinarem o TISA, comprometem-se a manterem ou aumentarem os seus níveis de liberalização ou desregulamentação financeira, deixam de ter direito a exigirem que a informação de data fique no seu território, e ficam ainda sujeitos a sanções legais se tomarem medidas que limitem a circulação desses produtos financeiros aprovados.
Ou seja, o que nos propõem (na realidade não nos propõem nada porque não somos nós que os utilizamos; propõem-se para eles que são os que os utilizam, para melhor se imporem entre eles e para não nos prestarem contas sobre algo que é ‘deles’) para acabar com os offshore églobalizá-los, ficando sujeitos a uma aprovação por parte dos governos que se comprometem a deixar de interferir, naquilo que será um pacto de suicídio do próprio Estado.
O que nos propõem é a regulamentação da desregulamentação: um Faroeste já não revisitado, mas instalado para sempre.
Torna-se agora mais fácil de entender a insistência na ‘liberdade de escolha’ como Graal da liberdade: é por aí que está a ser desconstruído o ‘estado social’, sempre em nome da defesa da liberdade individual.
“Mais Humano que o Humano” é o nosso lema”, Dr. Eldon Tyrell a Rick Deckard.
“Os filmes são para entreter; mensagens são entregues pelos Correios”, Samuel Goldwyn.
“Este filme não tem mensagens profundas, apesar das pessoas provavelmente as tentarem encontrar. Para mim, basicamente, um filme é uma forma de entretenimento e não uma educação”, Riddley Scott.
“Com a morte o mundo não muda, deixa de existir. A morte não é um acontecimento da vida: Nós não vivemos para experimentar a morte”, L. Wittgenstein.
Em 1993, o filme Blade Runner, de Riddley Scott, foi escolhido pela Library of Congress para ser preservado pelo United States National Film Registry por constituir uma obra ‘cultural, histórica ou esteticamente relevante’. Em 2007, foi considerado pela Visual Effects Society como o segundo filme mais influente relativamente aos aspetos visuais. Em 2012, foi considerado pela revista SFX como o maior filme de ficção científica de todos os tempos.
A ação do filme passa-se em 2019 e logo no início aparece um resumo que nos dá a conhecer os antecedentes do que vamos ver:
"No início do século XXI, a TYRELL CORPORATION entrou numa nova fase da evolução dos Robôs com a introdução dos NEXUS – seres virtualmente idênticos aos humanos – conhecidos como replicantes.
Os replicantes NEXUS 6 eram superiores em força e agilidade, e pelo menos iguais em inteligência, aos engenheiros que os criaram. Os replicantes eram usados como trabalhadores escravos na exploração das colónias nos perigosos mundos extremos.
Após um motim sangrento provocado por uma unidade de combate numa colónia distante, os Replicantes foram declarados ilegais na terra – sob pena de morte.
Unidades especiais da polícia – os BLADE RUNNER – tinham ordens para atirarem a matar sempre que se encontrassem com qualquer Replicante.
Tal não era considerado como sendo uma execução, mas sim como uma reforma."
Rick Deckard (Harrison Ford) era um excecional blade runner que se tinha retirado do serviço por estar ‘farto de mortes’. No entanto, Harry Bryant, o comandante da LAPD, força-o a retomar o serviço para ‘reformar’ quatro replicantes que tinham provocado um motim numa colónia, morto a tripulação de um vaivém e tinham vindo para Los Angeles por razões que se desconheciam.
Depois de se encontrar com o Dr. Eldon Tyrell, o criador dos replicantes, Deckard mata dois dos replicantes, Zhora (Joanna Cassidy) e Pris (Daryl Hannah), e é salvo da morte por uma replicante experimental de último modelo, Rachael (Sean Young), que para proteger Deckard mata Leon (Brion James), o terceiro replicante.
Segue-se a batalha final entre Deckart e Roy Batty (Rutger Hauer), o perigoso chefe dos replicantes fugidos. Apesar de poder facilmente matar Deckart, Batty vai acabar por salvá-lo no fim do filme, emitindo uma consideração sentida sobre a sua breve vida. Deckart regressa ao seu apartamento onde Rachael o espera para lhe declarar o seu amor, e ambos partem da cidade. Música de Vangelis. Fade out.
Como sempre, sobre o filme, a crítica especializada limitou-se a surfar a crista pré-encomendada e recomendada da onda do êxito, inundando-nos com aquele género de informações supérfluas, tidas como pertinentes e eruditas, tais como:
O filme será uma adaptação ou uma ‘transmutação’ (querendo com isto dizer que pouco havia de comum entre o filme e o livro em que se baseia, Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dicks)?
É que no livro, os replicantes são menos humanos que os humanos (não têm capacidade para amar, sentir compaixão e empatia para com os homens e animais, nem para com eles próprios), enquanto no filme os replicantes são ‘mais humanos que os humanos’ como diz Tyrell.
É que no livro, Deckart não sente a mínima empatia para com os androides, o mesmo não acontecendo no filme.
É que no livro, a personagem principal, o caçador de androides Phil Resch (o Deckart do filme) põe a hipótese dele próprio ser um androide, e no filme tal não acontece (contudo o filme foi esmiuçado por críticos que viram uma dúzia de cenas em que tal hipótese pudesse ser tida como possível ou não).
É que o nome atribuído aos caçadores de androides, ‘blade runner’, não aparece no livro (ele foi retirado de um guião de William Burroughs sobre contrabandistas de produtos médico-farmacêuticos, tendo o realizador Ridley Scott gostado mais desse nome, por sugerir mais a imagem de quem tinha de tomar decisões ao segundo sobre o fio da navalha, e também porque a palavra soava melhor que ‘detetive’).
E, no entanto, na construção deste filme, são dadas como adquiridas, quer vivências quer formas de vida, sobre as quais, apesar de tudo, a nossa atenção se deveria ter focalizado com um pouco mais de cuidado. Notemos algumas:
Poderão ser os androides humanos? Serão os humanos, humanos? Serão os androides melhor que os humanos? Devem os androides ter o mesmo estatuto moral que os humanos? São os androides escravos ou serviçais? Poderão os androides amar? Será que com o passar dos anos uma pessoa é a mesma pessoa? O que faz com que uma pessoa se diferencie de outra, apesar de terem as mesmas características? Há uma vida depois da morte para os androides? Quais são as implicações morais e políticas por se criarem pessoas sem livre arbítrio? Que liberdade e responsabilidade moral têm os androides? Devem os androides matar, se com isso ganharem mais tempo de vida? Os androides sofrem com as suas próprias mortes? Para que serve terem mais tempo de vida?
Contudo, até mesmo estas questões não passam de considerações de filosofia como entretenimento, tão de acordo com a sociedade em que vivemos.
Na realidade, como podem caracteres de ficção interagindo num mundo de ficção, revelarem verdades importantes sobre o mundo real? Como é que a investigação sobre sintéticos humanos, que não existem e que possivelmente nunca existirão, poderá levar-nos a compreender, nos seus mais íntimos recônditos, os seres humanos reais? Entrarmos neste jogo, é estarmos a confundir entretenimento com conhecimento, o que é um erro.
Repare-se que, quando perguntado se o filme que realizara era um filme filosófico, Ridley Scott não tem dúvidas em declarar:
“Este filme não tem mensagens profundas, apesar das pessoas provavelmente as tentarem encontrar. Para mim, basicamente, um filme é uma forma de entretenimento e não uma educação”.
Na mesma linha e com um certo humor, já o lendário Samuel Goldwyn (1879 – 1974) há muito teria dito que:
“Os filmes são para entreter; mensagens são entregues pela Western Union (os Correios)”.
Aliás, todas estas grandes produções que custam muito dinheiro, antes de serem colocadas no mercado, são testadas para se avaliarem as reações de algumas audiências específicas, em localidades escolhidas e representativas.
Por exemplo, neste caso do Blade Runner, até o produto final estar pronto para comercialização, foram feitas sete versões. Numa delas o final era outro: Deckart fugia da cidade com Rachael, levando-a a ver neve e árvores verdadeiras e depois matava-a.
Trata-se da afinação do produto para o mercado. Só isso importa.
44,2% das mulheres e 42% dos homens japoneses e solteiros menores de 34 anos são virgens, segundo o censo de 2010 do National Institute of Population and Social Secutrity Research do Japão.
“O sexo é simultaneamente a condição de possibilidade e de impossibilidade do amor”, Derrida.
“Um pouco de veneno de vez em quando provoca sonhos felizes”, Nietzche.
Em 2006, a novelista inglesa nascida em 1920, P. D. James, escreve Children of Men, uma notável distopia passada em 2021 na Inglaterra, onde há 25 anos não nascia nenhuma criança, pelo que a humanidade se encontrava em perigo de extinção. A espécie humana tornara-se infértil. O mais jovem habitante da terra, nascido há dezoito anos, acabara de ser morto em Buenos Aires.
O realizador Alfonso Cuarón, tendo como base o livro de P. D. James, faz um filme com o mesmo título, onde apresenta uma sociedade permissiva e hedonista de um regime despótico, que utiliza novas formas de apartheid como método de controlo da população, num estado de emergência permanente, com forças policiais antiterroristas em perseguições continuas, intensivas e repressivas, de imigrantes ilegais.
O próprio Cuarón explica-nos o que procurara transmitir:
“Muitas das descrições do futuro fazem intervir qualquer coisa do tipo Big Brother, mas penso que isso corresponde a uma noção de tirania própria do século XX. A tirania que hoje ocorre assume novos disfarces, a tirania do século XXI é a chamada ‘democracia’”.
Contrariamente aos governantes imaginados por G. Orwell na novela 1984, que não passavam de meros burocratas de uniformes cinzentos, neste filme de Cuarón, os governantes e administradores aparecerem sempre impecavelmente vestidos, muito bem informados e esclarecidos.
Quando Theo Faren (o ator principal) vai falar com o seu primo, funcionário governamental de topo, para ver se conseguia uma autorização especial para um refugiado (uma mulher grávida), a conversa passa-se num apartamento de luxo, tipo loft, num andar alto de um arranha-céus. O primo recebe-o informalmente junto ao companheiro com quem vivia.
Essa autorização especial permitiria a passagem através dos vários postos policiais para Bexhill on Sea, uma espécie de território libertado, onde ainda se não fazia sentir a opressão do regime.
Tratava-se de um local isolado por uma muralha, governado pelos seus habitantes, todos imigrantes ilegais. Um campo de refugiados onde acontecem atos de verdadeira solidariedade humana a par de manifestações guerreiras de fundamentalistas religiosos. Único local possível para um recém-nascido.
No final do filme, Bexhill on Sea é totalmente destruída pelas bombas da aviação. Para os que gostam de finais felizes, a recém-nascida é salva, colocada num barco que parte, não se sabe para que destino. Provavelmente será mais tarde salva das águas, chamar-lhe-ão de Moisés 2, e tudo recomeçará. Aleluia.
Não sendo um filme sobre a infertilidade a nível biológico, levanta, contudo, alguns problemas interessantes (evidentemente não focados no filme até pela própria limitação do meio que é o ser um filme).
A mercantilização do sexo e o narcisismo são dois desses problemas que se têm vindo a impor ao nível das relações sociais, e que podem vir a conduzir à esterilidade do universo.
O National Institute of Population and Social Secutrity Research do Japão, revelou que 44,2% das mulheres e 42% dos homens japoneses e solteiros menores de 34 anos são virgens, numa proporção que tem vindo a aumentar desde o censo de 2010. O mesmo se passa em Silicon Valley, onde os cérebros tecnológicos, para não perderem tempo, comem comida em pó idêntica à dos astronautas e de sexo estamos conversados.
Segundo cálculos dos investigadores da Universidade de Tihoku, com base no desenho de um algoritmo matemático e nos dados da população e fertilidade, a 16 de gosto de 3766 apenas haverá uma pessoa a habitar o Japão.
Sendo, contudo, o sexo uma necessidade absoluta, se renunciarmos a ele, definhamos, daí que o amor não possa aparecer sem sexo; por outro lado, o amor torna-se impossível exatamente por causa do sexo que o mercantiliza e transforma em objeto de dominação.
O que leva Derrida a dizer que
“o sexo é simultaneamente a condição de possibilidade e de impossibilidade do amor”.
É como se vivêssemos numa sociedade cuja identidade se baseia numa especulação dos contrários, em que o mais importante é sempre, alternativamente ou concomitantemente, as faces da mesma moeda, menosprezando ou esquecendo a moeda em que as faces são cunhadas.
Já há mais de cem anos, Friedrich Nietzsche, abordara este tema quando considerou que a Civilização Ocidental caminhava em direção ao último dos homens (no Assim Falava Zaratustra), um ser apático, sem grandes paixões nem grandes lealdades, incapaz de sonhar, cansado da vida, não assumindo riscos.
Procurava apenas conforto e segurança, com enorme tolerância para com tudo e para com todos:
“Um pouco de veneno de vez em quando provoca sonhos felizes”.
Durante o dia tem os seus prazeres pequenos, e os seus pequenos prazeres para a noite. Tem cuidado com a saúde. E chegada a altura de morrer, para ter uma morte agradável, muito veneno no fim.
“Descobrimos a felicidade, dizem os últimos dos homens, e piscam os olhos”.
As consequências estão agora á vista: nós, no Ocidente, transformámo-nos nos Últimos dos Homens, somente interessados numa vida longa e satisfatória, preenchida pela abundância, e mergulhados em estúpidos prazeres quotidianos, quando comparados com os habitantes do Terceiro Mundo capazes de se dedicarem a uma causa transcendente ou mesmo, como os muçulmanos radicais, dispostos a tudo arriscar numa guerra niilista levada ao extremo da autodestruição.
Qual o habitante do Primeiro Mundo que está disposto a sacrificar a vida por uma causa pública ou universal?
Por outro lado, assistimos cada vez mais ao reagrupamento dos Últimos dos Homens em luxuosos condomínios residenciais fechados, a que as boas e velhas Classes Médias não conseguem chegar. Alguém tem dúvidas sobre quem fica de fora? Alguém tem dúvidas sobre quem tenderá a desaparecer?
Excelente observador da realidade, o filósofo inglês John Gray notara já em 2002, na sua obra Straw Dogs: Thoughts on Humans and Other Animals, que:
“a classe média é um luxo que o capitalismo já não pode permitir-se".