“Nós agora somos um império, por isso quando atuamos, criamos a nossa própria realidade”, citação da administração Bush.
Quando as notícias falsas se tornaram omnipresentes, então todas e quaisquer notícias começam a serem suspeitas. Tudo aparecia como sendo mentira, mesmo as verdades.
“Não sou um nacionalista branco, sou um nacionalista. Sou um nacionalista económico. Os globalistas lixaram a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia”, Steve Bannon, mentor de Trump.
“O capitalismo só triunfa quando chega a identificar-se com o Estado, quando é o Estado”, Fernand Braudel.
A decadência da soberania dos Estados-nação é, aparentemente, o indicador de que o Estado tem vindo a ser derrotado pelas grandes empresas que hoje governam o Mundo. Vivemos, pois, numa época em que os imperialismos, sempre ligados aos estados-nação, irão progressivamente desaparecendo, dando lugar ao Império como nova forma de soberania que efetivamente regula os intercâmbios globais, um novo poder global soberano que governa o Mundo.
O filósofo italiano Antonio Negri (1933 -) vai ser dos primeiros a definir e identificar o conceito de Império (2000) como uma nova forma de soberania, distinta do imperialismo, desde logo pelo facto de não estabelecer nenhum centro de poder e por não se sustentar em fronteiras ou barreiras fixas, o que faz com que o seu domínio não tenha limites, e ainda por se apresentar como um regime histórico que não se origina pela conquista.
Outra das suas características é a de dominar e operar em todos os registos da ordem social, penetrando até ao mais profundo do mundo social. Não só regula as interações humanas, como ainda procura governar diretamente toda a natureza humana. “O império não só governa um território e uma população, com também cria o mundo que habita.”
Dirão que se trata de um filósofo marxista, como tal fora da realidade e com grandes culpas já provadas pela história. Só que o mesmo conceito de império é expresso, acarinhado e posto em prática pela administração Bush, e não só.
“São pessoas como vocês que acreditam que as soluções emergem do vosso estudo judicioso da realidade discernível, pessoas que fazem parte da comunidade baseada na realidade”.
“Não é já mais assim que o mundo se move. Nós agora somos um império, e quando nós atuamos, criamos a nossa própria realidade. E, enquanto vocês estudam essa realidade – judiciosamente, como você faz – nós atuamos de novo, criando ouras novas realidades, que serão depois estudadas por vocês, e é como as coisas são feitas. Nós somos atores da história … e a você, e todos os outros, cabe-vos estudar o que nós fazemos.”
Se até essa altura as mentiras foram usadas para resolver alguns problemas com a intenção de dourar a pílula, de camuflar uma realidade existente para se conseguirem obter benefícios quase que imediatos, como foi por exemplo o caso do “incidente” do golfo de Tonquim, que levou à entrada dos americanos na guerra do Vietnam, o que se trata agora é de construir uma nova realidade total.
Foi o que assistimos na administração de George Bush com a sua criação de um universo paralelo onde Saddam Hussein possuía armas de destruição massiva, onde a Al Qaeda estava conluiada com todos os inimigos da América, e onde os EUA se encontravam encarregues por desígnio divino, de espalhar o evangelho da democracia liberal capitalista por todo o mundo. Nas palavras de Bush:
“Isto é uma nova forma – uma nova forma de Mal. E nós percebemos. E o povo americano está a começar a percebê-lo. Esta cruzada, esta guerra ao terrorismo vai demorar tempo.”
Todo o mundo acreditou nesta “criação”, participando nela ativamente. Segundo Negri, estávamos a assistir ao fim dos imperialismos e ao aparecimento do Império.
Com Trump, não assistimos à criação de novas realidades, mas à utilização indiscriminada e à proliferação de mentiras, muitas vezes sem qualquer consistência e frequentemente ridículas, em que algumas são depois descaradamente desditas e até negadas que tenham sido ditas, para poderem mais tarde voltar a serem ditas.
Segundo Bannon, os elementos em que se apoia a estratégia que elaborou, são a dissimulação e a “escuridão”:
“O elemento escuro é bom. Dick Cheney. Darth Vader. Satã. Isso é poder. Só nos ajuda quando eles (os do outro lado, os da Clinton) não o percebem, quando percebem mal. Quando estão cegos sobre o que nós somos e sobre o que estamos a fazer.”
A estratégia é, pois, minar a perceção das pessoas de forma a que elas nunca saibam o que está na realidade a acontecer. Se as pessoas nunca sabem o que está a ser feito, nunca ninguém sabe na realidade o que é real ou o que é falso, o que deixa a oposição constantemente confusa. Quem conseguir fazer isto, vai conseguir gerir e controlar a situação.
Foi o que Trump e Bannon fizeram durante toda a campanha, bombardeando todos os media com consecutivas notícias falsas e surrealistas, por forma a aumentar a confusão. E, quando as notícias falsas se tornaram omnipresentes, então todas e quaisquer notícias começam a serem suspeitas. Tudo aparecia como sendo mentira, mesmo as verdades. Ironicamente, então aquele que dissesse as mentiras mais óbvias, seria tido como sendo o que, apesar de tudo, era o mais honesto. Era mais honesto que o outro.
Todos sabem que os combates de wrestling (luta) e os reality show das televisões (como os The Apprentice de que Trump era o dono e apresentador), eram “falsos”, ensaiados, e que os risos, gargalhadas e gritos, faziam parte do próprio divertimento dos programas. Todos sabem que tudo aquilo era combinado, mas continuam a querer lá estar, a querer participar e até ficarem envolvidos emocionalmente. Trump e Bannon perceberam isso muito bem: a sua intenção é conseguir transformar a política num reality show.
Se Bush conseguiu construir um mundo de fantasia com uma ordem interna lógica, Trump constrói um mundo que não é mais do que um mau sonho sem fim, um universo político onde os factos são instáveis e efémeros, que se seguem sem qualquer ligação causal, onde o perigo está em qualquer parte e onde a sua origem parece mudar aleatoriamente.
Com este modo de atuar, Trump ataca aquilo que se considera ser a base fundadora da democracia: o consenso. Dizia o Presidente Obama, (http://www.newyorker.com/magazine/2016/11/28/obama-reckons-with-a-trump-presidency) numa entrevista ao New Yorker:
“Idealmente, numa democracia, todos devemos concordar que a alteração do clima é uma consequência do comportamento humano, porque é o que nos dizem 99% dos cientistas. Depois, seguir-se-á um debate sobre o modo como o vamos resolver. Foi assim nos anos setenta, oitenta e noventa, quando os Republicanos acordaram com o Clean Air Act e se conseguiu um compromisso de base para a chuva ácida, sem recurso a uma solução imposta de cima. Pode-se discutir sobre os meios para alcançar, mas há sempre uma base comum de factos à partida, sobre os quais se poderá vir a trabalhar. E, agora, nós não temos isso.”
Ao atacar qualquer noção de uma visão comum da realidade, Trump torna impossível qualquer noção democrática de política. A verdade passa a ser pouco mais do que uma decisão pessoal.
Segundo os teóricos da escola de Bannon, é exatamente assim que as coisas se devem passar. A política do governo não deve ser medida pelos padrões democráticos. Deve, antes, ser o governo a “controlar e gerir” a democracia, assegurando que o povo se possa exprimir livremente sem os constrangimentos das máquinas do estado.
Um estudioso do assunto, Richard Sakwa, da Universidade de Kent, escreve que a base desta filosofia de “democracia controlada” reside no entendimento que:
“Não há verdadeiramente liberdade no mundo, e todas as democracias são democracias controladas e geridas; a chave para o sucesso é influenciar o povo, dar-lhe a ilusão de que são livres, quando na realidade são controlados.”
Diz-nos Bannon:
“Não sou um nacionalista branco, sou um nacionalista. Sou um nacionalista económico. Os globalistas lixaram a classe trabalhadora americana e criaram uma classe média na Ásia. O problema agora é fazer com que os americanos não sejam de novo fodidos. Se nós conseguirmos que isso não aconteça […] vamos governar por mais de 50 anos. Isto é o que os democratas não viram. Eles falavam-lhes em companhias de 9 biliões de dólares que empregavam nove pessoas. Isso não é a realidade. Eles perderam a noção da realidade que o mundo é.”
Há sessenta anos, o filósofo Roland Barthes, reuniu vários artigos sobre cultura popular, numa obra que intitulou de Mitologias. O primeiro dos artigos, “O mundo do ‘catch’”, refere-se ás diferenças existentes entre o boxe e o wresteling. Diz ele:
“O público sabe muito bem distinguir o catch do boxe; ele sabe que o boxe é um desporto jansenista, fundado sobre a demonstração de uma excelência; pode fazer-se uma aposta sobre o desfecho de um combate de boxe; no catch, isso seria inteiramente sem sentido. O combate de boxe é uma história que se vai construindo sob o olhar do espetador; no catch, pelo contrário, é só cada momento que é inteligível, não a duração no tempo […] A previsão racional do combate não interessa ao amador de catch, enquanto pelo contrário um match de boxe implica sempre uma ciência do futuro. Por outras palavras, o catch é uma soma de espetáculos, de que nenhum deles é uma função; cada momento impõe o conhecimento total de uma paixão que emerge vertical e solitária, sem se erguer nunca até ao coroamento dum epílogo.”
Não interessa que o catch seja uma atuação:
“Compreende-se que isso não importe e que a paixão seja ou não autêntica. O que o público reclama é a imagem da paixão, não a própria paixão. Não existe um problema de verdade no catch, como não o há no teatro.”
“Os lutadores sabem muito bem lisonjear o poder de indignação do público propondo-lhe o próprio limite do conceito de Justiça.”
O lutador de catch é “essencialmente um instável, que só admite as regras quando lhe são favoráveis e viola a continuidade formal das atitudes. Um homem imprevisível, logo um associal. Ele refugia-se atrás da lei quando julga que ela lhe é propícia e trai-a quando isso lhe convém; tão depressa nega o limite formal do ringue, e continua a zurzir num adversário protegido legalmente pelas cordas, como estabelece esse limite e reclama a proteção que uns momentos antes não respeitava.”
Julgando estar num combate de boxe, com regras fixas conhecidas, aguardavam por um soco de direita, quando o lutador profissional de wrestling, Trump, lhes deu na cabeça com uma cadeira.
Os girassóis, quando já não crescem, quando já estão maduros, deixam de girar. Então, voltam-se para Este.
“Uma coisa é certa quando tende para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada quando tende no sentido oposto”, Aldo Leopold.
“Pleno de méritos, e, contudo, poeticamente, habita o homem nesta Terra”, Hölderlin.
Num distante tempo em que as frutas ainda tinham época, julguei por bem que o mesmo se passaria com os países, pelo que deveriam preferencialmente serem visitados nas suas estações mais características. Por exemplo, os países nórdicos deveriam ser percorridos durante o inverno, o que acabou por me colocar em pleno dezembro em Estocolmo.
Frio, muito frio, pouca luz, asseio sem limites, autocarros sempre mais limpos que o meu automóvel alguma vez esteve, falar sempre em voz baixa sob pena de sermos observados com curiosidade, sorrisos cúmplices. E o mais.
Acabara de entrar num enorme supermercado para me aquecer, perdido entre a enorme variedade de camarões expostos, verdes, azuis, de mar, de rio, de rocha, grandes, pequenos, muito pequenos. Estava cheio de suecos nas suas compras diárias, quando de repente me vejo sozinho: o mercado esvaziara-se. Apesar de não estar nem perto da hora de fecho, dirigi-me mesmo assim para a saída, não fosse ter havido um qualquer anúncio nesse sentido numa língua que não entendia.
O que vi, comunicou-me uma sensação de irrealidade de um real já vivido, como se tivesse entrado dentro da cena de um filme de que já conhecia o enredo, mas de que era apenas espetador. Como vindo das páginas de OsAdoradores do Sol de Fernando Namora.
O supermercado dava para uma praça, onde começaram a ser colocados bancos de ripas, impecavelmente pintados de branco, mas todos desalinhados, sempre voltados para os raios de sol que apareciam por entre o céu enevoado. De todos os armazéns se viam sair pessoas, que de imediato se sentavam nos bancos, de rosto para o sol, e ali ficavam, imoveis.
Cinco ou dez minutos depois, começou a chuviscar, e todos se levantaram caminhando em direção às lojas de onde tinham saído, e os bancos foram de imediato retirados pelos empregados camarários, prontos a serem reposicionados nem que fosse cinco minutos depois.
Na revista Science, de 5 de agosto de 2016 (Vol. 353, Issue 6299, pp. 587-590), foi publicado um estudo da Universidade da Califórnia Davis, “Circadian regulation of sunflower heliotropism, floral orientation, and pollinator visits” (Regulação circadiana do heliotropismo do malmequer, orientação floral, e visitas de polinizadores), que explica porque é que os girassóis acompanham durante o dia a rota do sol, de este para oeste, e que depois, durante a noite, invertam esta rotação para que no dia seguinte, quando o sol “chegar”, se encontrem de novo voltados para ele.
Que muitas espécies vegetais utilizem o heliotropismo como mecanismo eficaz para assegurar as horas de luz que lhes garantam a fotossíntese, já se sabia. Só que isso não explica porque é que durante a noite, perante a ausência do estímulo luminoso, os girassóis invertam a rotação para o lado contrário, reposicionando-se para receberem o sol quando ele voltar a nascer.
Após vários estudos e experiências, conclui-se que as partes laterais dos caules dos girassóis cresciam de forma diferente, conforme fosse dia ou noite.
Stacey Harmer, a principal investigadora deste estudo, diz que “durante o dia, o lado do caule que fica na sombra, cresce mais que o iluminado, o que faz com que o girassol se dobre para o sol”.
Isto acontece (e aqui entram proteínas fotorrecetores específicas, fototropinas, e uma hormona de crescimento, a auxina), porque as fototropinas ativadas pela luz provocam uma acumulação de auxina no lado de sombra do caule, fazendo com que o lado de sombra cresça mais.
Mas, porque é que os girassóis rodam de oeste para este durante a noite?
“Necessitamos de mais estudos, mas em termos gerais, acreditamos que o crescimento do lado Oeste dos caules seja controlado pelo relógio circadiano (que marca quando e quanto deve girar o girassol), ao passo que o do lado Este é manejado pelo mecanismo de sinalização dos fotorrecetores. A relação entre estes dois mecanismos é o que provoca a flexão para a frente e para trás que vemos nas plantas que seguem o sol”.
Mais curioso é o facto de os girassóis, quando já não crescem, quando já estão maduros, deixarem de girar. O que se entende porquanto o caule já não cresce, desaparecendo assim o mecanismo que fazia com que a planta se dobrasse. Mas, porque é que todos os girassóis velhos se voltam para Este?
Os cientistas ainda não encontraram resposta para este comportamento, para além de confirmarem que virados a Este aquecem mais rapidamente, atraindo talvez assim mais polinizadores.
Importante é notarmos que os girassóis velhos perdem a mobilidade e tentam ficar voltados para Este para apanharem mais sol.
Também nós em idade avançada, em que a diminuição de mobilidade se começa a fazer sentir, temos tendência para nos colocar sentados e o mais imóveis possível, voltados para o sol. Lá se vai mais uma característica que acreditávamos ser só dos humanos. Pensávamos nós.
Recordemos as ideias que Aldo Leoplod (1887-1948) defendia no seu Sand County Almanac (1944). A ideia da existência de uma comunidade natural e a ideia de que a economia não se podia sobrepor aos nossos deveres para com a Natureza.
Para ele, ‘comunidade natural’ é a que é comum a todos os seres humanos, animais, plantas, águas e solos. O homem, não é mais que um elemento dessa comunidade, e não um ser à margem, que habita harmoniosamente a Terra como seu cidadão.
A Terra deixa de ser entendida como sendo propriedade do homem. O homem deixa de ser entendido, e deixa de se entender, como conquistador dos outros elementos da Terra.
Evidentemente, haverá sempre uma certa violência que se exercerá sobre esses outros elementos. Contudo, essa violência só será aceite desde que não a sujeitemos apenas aos valores da economia. A Terra deverá ser concebida para lá do seu valor meramente económico por possuir em si mesmo um valor intrínseco. ( 1)
Leopold, dá-nos uma pista para nos permitir manter o norte perante o emaranhado das relações que têm vindo a ser estabelecidas:
“Uma coisa é certa quando tende para preservar a integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica. É errada quando tende no sentido oposto”.
Já no século anterior, o “poeta dos poetas”, Hölderlin (1770-1843), escrevia, cripticamente, num poema não titulado:
“Pleno de méritos, e, contudo, poeticamente, habita o homem nesta Terra”.
Muito resumidamente (2), a interpretação mais aceite:
Ser homem, é habitar. Para habitar é preciso saber construir. Para que este habitar seja possível, torna-se necessária a técnica, enquanto saber fazer.
Mas, só o construir não é suficiente para o habitar. É preciso saber cuidar, única forma de verdadeiramente habitar. Daí que o habitar será sempre cuidar.
Portanto:
“Pleno de méritos” refere-se aos méritos do homem enquanto construtor deste mundo, alcançados com o recurso à técnica.
“Poeticamente”, como poeta que está na terra, atento a ela, velando por ela, sem a constante necessidade de tudo medir e calcular. Só essa é a forma poética de habitar. Só assim a habita verdadeiramente.
“Habita o homem nesta Terra”, se não reduzir as suas potencialidades só ao construir, se o construir implicar o cuidar. Só assim o habitar será poético.
Imensa é a quantidade de outros seres, para além dos humanos, que nos acompanham, silenciosamente ou não, ao longo da vida. Cuidem deles. Não só dos girassóis. E, já agora, dos humanos também.
Nota 1: sobre os valores intrínsecos da Natureza (sobrevivência, económico, recreativo, científico, estético, diversidade genética histórico, simbolização cultural, construção do carácter, diversidade, dialético, vida, religioso), ver Holmes Rolston III, Enviromental Ethics, Duties and Values in the natural World, 1988.
Nota 2: para quem queira saber mais sobre o poema de Hölderlin, ler (pdf) M. Heidegger, “… L’Homme Habite en Poète… “.
A expressão “guerra contra o terror” (“war on terror”) como justificativo para matar pessoas, não pode ser incluída na definição de “guerra”.
Não há nestas operações quaisquer resquícios de conflitos sustentados entre exércitos que caracterizam o estatuto legal de guerra.
A “guerra contra o terror” através de drones, não passa de um conflito com uma cada vez maior lista de alvos, sem fronteiras geográficas definidas, e sem fim à vista.
De acordo com as leis internacionalmente aceites, existem apenas duas situações em que se admite a possibilidade de uma pessoa poder matar outra: ou numa situação de autodefesa ou numa situação de guerra.
Entende-se por “situação de guerra” aquela em que se verifique a existência de um combate sustentado entre duas forças militares organizadas.
Ou seja, um qualquer combate conduzido quer contra uma tática (terrorismo), quer contra uma emoção (terror), não pode ser considerado como situação de guerra, não sendo, portanto, permitindo matar alguém sem se ser inculpado.
Daí que a expressão correntemente usada de “guerra contra o terror” (“war on terror”), não possa servir como justificativo para se matarem pessoas, por não estar incluída na definição de “guerra”.
Nas guerras no Iraque e no Afeganistão, em que o Congresso americano declarou o estado de guerra e em que efetivamente as tropas entraram em combate contra outras forças militares organizadas, as mortes resultantes da chamada “guerra contra o terror” podem ser legalmente justificadas por ela estar inscrita numa guerra de que faz parte.
O mesmo já não acontece, por exemplo, com os combates na Síria em que, para além do mais, nem o próprio Congresso americano emitiu qualquer declaração de guerra. O mesmo se passa relativamente ao Paquistão e outros países em que se verifiquem intervenções a coberto da denominação de serem “guerras contra o terror”.
Foi a partir de outubro de 2001 que a administração Bush lançou o programa de mortes através da utilização de drones, primeiro no Afeganistão, e logo de seguida no Iraque.
Com a chegada do Presidente Obama, assistiu-se a um aumento crescente (cerca de dez vezes mais) deste este programa, não só no número de ataques, como no número de países em que se passaram a verificar (Paquistão, Iémen, Líbia, Somália, Afeganistão, Iraque e Síria).
Este programa de ataques por drones é particularmente conveniente para a Força Aérea, para a CIA e para o Comando Conjunto de Operações Especiais, porquanto permite que os seus pilotos, sentados em segurança frente aos écrans em Nevada ou noutros locais dos EUA, possam matar pessoas que se encontrem do outro lado do globo.
Ele é também tranquilizador para o povo americano, que teria dificuldade em aceitar mortes dos seus soldados sem ser em tempo de guerra.
Por outro lado, também isenta o Congresso de se responsabilizar pelo início de guerras em locais pouco conhecidos e distantes.
E, para o Presidente americano, é também um programa conveniente porque lhe permite usar um sistema de morte à distância sem se ter de preocupar com baixas de americanos e sem necessitar da aprovação ou controle do Congresso.
Há, ainda, quem especule com este enorme aumento na utilização de drones por parte do governo de Obama, atribuindo-o à necessidade de cumprir a promessa eleitoral de acabar com a prisão de Guantánamo: se não fossem mortos, teriam de ser aprisionados e trazidos para Guantánamo para serem “interrogados”.
A utilização dos drones tem, contudo, alguns inconvenientes, todos do conhecimento dos governos, uns abertamente admitidos, outros escamoteados.
O aumento constante do número de mortes de civis em ataques com drones tem sido normalmente atribuído ao facto de as informações recolhidas sobre os alvos, serem, por vezes erradas, por as informações não se referirem a um indivíduo, mas antes à sua maneira de atuar (“assinatura”), ou se referirem a uma atividade suspeita (ex.: “um agrupamento de adolescentes a homens de meia idade, deslocando-se em comboio ou armados”), ou por na altura os civis se encontrarem “indevidamente” no local (referidos nos relatórios como “danos colaterais”; exemplo: uma mãe que regressava ao local com os seus três filhos).
Como justificação para este tipo de atuação, o Governo americano tem sempre proclamado que o faz apenas como “autodefesa”.
Foi essa a razão invocada para a invasão do Afeganistão, e mais tarde do Iraque, devido às célebres ‘não encontradas’ armas de destruição de Saddam.
Dado o escandaloso aumento do número de casualidades internacionalmente conhecidas, mas internamente não admitidas, não é de estranhar que em novembro de 2011 o Ministério da Justiça acabasse por preparar uma fundamentação que permitisse à Casa Branca poder legalmente continuar a usar estes meios de morte dirigidos.
Esses meios seriam considerados legais, desde que:
“(1) um oficial de alta patente do governo dos EUA, devidamente informado, determinasse que o alvo individual acarretasse o perigo de um ataque iminente e violento contra os Estados Unidos;
(2) a sua captura não fosse possível, continuando, no entanto, os Estados Unidos a monitorizarem a possibilidade dessa captura; e
(3) a operação fosse conduzida de forma consistente com a lei aplicável aos princípios de guerra.”
Mas, a ser assim, então a maior parte das mortes por drones não poderiam ser autorizadas, na medida em que dificilmente estariam reunidas as condições para se considerar que se estava perante um ataque iminente e violento aos EUA ou aos seus soldados no campo de batalha.
Pelo que, o Ministério da Justiça se apressou a definir “iminente” não como sendo ‘iminente’, mas como sendo ‘algo que possa vir a acontecer’. E passa a explicar:
“Para se considerar que um leader operacional possa representar um perigo “de ataque iminente” e violento contra os Estados Unidos, não se torna necessário que os Estados Unidos possuam evidência clara de que um ataque específico sobre pessoas ou interesses dos Estados Unidos venham a ter lugar num futuro imediato.”
Assim, qualquer leader operacional inimigo teria sempre de ser considerado como representando “perigo iminente”, porquanto “no que diz respeito aos leaders da al-Qaeda que estão permanentemente a planear ataques, os Estados Unidos têm apenas uma pequena janela de oportunidade para se poderem defender.”
A consequência prática da aplicação desta normativa e da interpretação judicial por parte da Casa Branca, conduz, inevitavelmente, ao aparecimento de listas de ‘alvos’ a serem abatidos, “listas de morte” (“kill list”).
O reconhecimento da existência de tais listas acabou, curiosamente, por ser feito pelo próprio Governo, quando, num esforço de clarificação, se comprometeu (e cumpriu) a prestar “informações sobre o número de ataques feitos pelo Governo dos EUA contra alvos terroristas fora de áreas de hostilidades”, ou seja, fora das zonas consideradas de guerra.
Desde 1948 que a Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura o direito à vida, concedendo, no entanto, que existem certos limites a este direito, garantindo, por exemplo, aos países onde exista pena de morte, o direito de o estado poder executar uma pessoa, após um julgamento legal.
Pelo que, executar qualquer pessoa sem um julgamento é considerado como “morte extrajudicial”, sendo um crime contra os direitos humanos.
Como o governo dos EUA assumiu o compromisso de todos os anos, a 1 de maio (sem ironia na data), vir a ser publicada uma lista das pessoas que foram abatidas sem julgamento e sem estar em situação de guerra (ver Nota 1), então estamos perante a institucionalização da pratica do assassinato como parte da política permanente dos EUA.
Tratam-se de meras execuções extrajudiciais admitidas pelo próprio Governo.
A “guerra contra o terror” é uma campanha dirigida contra qualquer inimigo potencial dos EUA, a ser desenvolvida em qualquer país ou continente, e implica uma série de operações clandestinas e encobertas de todo o mundo. Não há nestas operações quaisquer resquícios de conflitos sustentados entre exércitos que caracterizam o estatuto legal de guerra.
A “guerra contra o terror” não passa de um conflito com uma cada vez maior lista de alvos, sem fronteiras geográficas definidas, e sem fim à vista.
Para que tudo isto se torne mais claro, façamos um exercício teórico sobre uma situação concreta:
Imaginemos que o governo da Turquia, tendo declarado como terrorista o pregador islamita Fethullah Gulen, por considerá-lo responsável pelo recém golpe militar falhado no qual morreram dezenas de pessoas, resolvesse eliminá-lo por ele representar uma ameaça constante para o Estado turco.
Como ele está a viver nos EUA, o único meio que o governo turco dispõe (uma vez que os EUA se negam a entregá-lo enquanto não forem apresentadas provas do seu envolvimento) é raptá-lo ou utilizar drones para o eliminar.
Ao abrigo de uma diretiva de “perigo iminente” idêntica à americana, e tendo uma oportunidade para o abater, pode o governo turco desencadear um ataque por drones em solo americano? Poderão os EUA considerar tal ação como um ato de guerra por parte da Turquia?
Uma ajuda: Depois do 11/set, os EUA ameaçaram o Afeganistão com bombardeamentos e invasão se não entregassem Osama bin Laden. A resposta dos talibans foi idêntica à que os EUA deram à Turquia:
“A nossa posição é de se os americanos têm essas evidências (de culpabilidade), que as produzam […] Sem evidência, não há entrega”.
O que é que os EUA fizeram? Duas semanas depois começaram o bombardeamento e a invasão do Afeganistão.
Mas, porque o fizeram? Porque o continuam a fazer? Porque o continuarão a fazer? Porque podem.
O tal problema de ser Império. Todos os Impérios o fazem. O tal problema do “poder”, que não obedece a esquemas racionais nem morais. Outros “valore$”.
Veremos nos anos próximos a que conduzirão tais políticas de utilização de drones, quando começarem a ser aplicadas dentro dos próprios países aos seus próprios nacionais.
Nota 1:
O Diretor do Serviço Nacional de Informações (DNI) dos EUA publicou, pela primeira vez, no passado dia 4 de julho de 2016, um resumo da lista dos ataques feitos por drones contra alvos terroristas efetuadas entre 20 janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2015 (https://www.dni.gov/files/documents/Newsroom/Press%20Releases/DNI+Release+on+CT+Strikes+Outside+Areas+of+Active+Hostilities.PDF), segundo o qual foram efetuados 473 ataques que resultaram em 2372-2581 mortes de combatentes e 64-116 de não-combatentes civis.
Para evitar situações dúbias como estas e outras resultantes de ações judiciais movidas contra soldados do RU por infligirem maus tratos, assassinatos, abusos e torturas, o muito experiente governo britânico vai decidir permitir que os seus militares, quando no campo de batalha, possam violar as leis sobre direitos humanos da Convenção Europeia.
A natureza feminina como matriz da cultura e da civilização.
A vida é feita de limiares sucessivos cuja superação é a própria essência do viver.
O ser humano é um turista que se passeia para que se continue a passear e a admirar e a “viver” o maravilhoso mundo novo.
Há 11 anos, Ray Kurzweil, escreveu A Singularidade Está Perto, Quando os Humanos Transcendem a Biologia (The Singularity Is Near, When Humans Transcend Biolog), obra em que nos explicava que, devido aos rápidos e impactantes avanços tecnológicos, acabaremos por chegar a um ponto (singularidade) a partir do qual a vida humana se verá irreversivelmente transformada em todos os seus aspetos, numa total simbiose com o computador.
Será o nascer de uma nova civilização que nos irá permitir transcender as nossas limitações biológicas e ampliar a nossa criatividade. Nesse novo mundo, não haverá uma distinção clara entre o que é humano e o que é máquina, entre realidade real e realidade virtual. Poderemos assumir diferentes corpos e ser a personagem que escolhermos.
Em termos práticos, o envelhecimento e a doença serão revertidos; a poluição acabará; a fome e a pobreza mundiais serão resolvidas, e possivelmente, até a morte terá uma solução.
Não se fala de valores, não se fala de sofrimento, não se fala de alegrias, de desemprego, de guerras, de refugiados, de reformados. O ser humano é um turista que se passeia para que se continue a passear e a admirar e a “viver” o maravilhoso mundo novo.
Há 4.000 anos aproximadamente, século XX ou XXI a. C., foram inscritos em placas de argila poemas épicos que narravam as aventuras do semideus Gilgamesh, rei da cidade de Uruk (antiga Suméria, sul da Mesopotâmia, atual Iraque).
Essas 12 placas, cada uma com o seu ciclo de aventuras, que foram mandadas reescrever por Assurbanipal e guardadas na sua Biblioteca, em Nínive, durante o século VII a. C., e que constituem uma das mais antigas obras da literatura (1.500 anos antes dos poemas de Homero), estiveram perdidas durante cerca de 2.500 anos, sendo redescobertas em meados do século XIX por um arqueólogo assírio de Mossul, Hormuzd Rassam.
São conhecidas como A Epopeia de Gilgamesh ou o Ciclo de Gilgamesh.
Breve descrição dos poemas
A introdução começa com o elogio de Gilgamesh, que por todo o lado andara e que tudo já vira, e da sua cidade, Uruk. Gilgamesh tinha sido criado pelos deuses, como ser superior a todos os outros, pois era dois terços deus e um terço homem. É apresentado como sendo um herói inquieto, que a tudo vai, que não suporta nenhum rival nem se sujeita a qualquer disciplina, e que oprime os súbditos. Tirânicas são as suas exigências para satisfazer os seus apetites sexuais: a “sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro, nem a mulher do nobre”.
Os habitantes de Uruk acabam por se queixarem aos deuses, pedindo-lhes que criem outro ser de igual força, para que eles se aniquilem entre si e deixem Uruk em paz. Então, Aruru, a deusa da criação, mergulhou as mãos na água e agarrando um pedaço de barro, deixou-o depois cair na selva, criando Enkidu. E assim foi vivendo entre os animais selvagens das planícies, mais animal que homem.
Quando um caçador o viu, atemorizou-se e foi contar a Gilgamesh sobre a força do estranho. Gilgamesh diz-lhe para levar uma meretriz, “uma filha do prazer”, e deixá-la nua junto ao poço. “Ao vê-la acenando, ele a tomará em seus braços e os animais da selva certamente passarão a repudia-lo.” E, assim aconteceu.
Durante seis dias e sete noites, Enkidu e a meretriz permaneceram enlaçados. Finalmente, Enkidu volta para os animais selvagens, mas não só eles começaram a fugir dele, como ele também já não os conseguia acompanhar. “Enkidu perdera a força, pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam o seu coração.”
Entretanto, a mulher ensina-o a vestir-se, a comer pão e a beber cerveja, ao mesmo tempo que lhe vai falando da grande cidade. Quando Enkidu ouve falar do hábito de Gilgamesh de se deitar com as noivas dos outros homens no dia do casamento, fica cheio de raiva e dirige-se para Uruk pronto para enfrentar Gilgamesh.
A meio do combate, bruscamente (por qualquer razão desconhecida) a cólera de Gilgamesh desaparece e os dois adversários beijam-se e abraçam-se. É o princípio de uma longa amizade entre os dois heróis.
Mas a vida alegre e sensual da cidade entristece e debilita Enkidu. Gilgamesh expõe-lhe então o plano de se dirigirem á longínqua floresta dos cedros para matarem o seu temível guardião, Humbaba, cortarem os cedros e expurgarem a terra de tudo o que ela tinha de mau. E, assim fazem.
Durante o regresso a Uruk, a deusa do amor e da luxúria, Ishtar, apaixona-se por Gilgamesh. Juntamente com a promessa da concessão de muitos grandes favores, diz-lhe: “Vem comigo e sê meu consorte; infunde-me a semente de teu corpo; deixa-me ser tua mulher e serás meu marido.” Mas Gilgamesh, sabendo que ela já tivera numerosos amantes e que a todos tinha sido infiel, ridiculariza as suas propostas e repele-a.
Ofendida, Ishtar, convence o seu pai deus do Céu, Anu, a enviar o Touro Celeste a Ukuk a fim de matar Gilgamesh e destruir a sua cidade. O Touro Celeste desce à Terra, devasta a cidade de Uruk e massacra centenas de guerreiros. Mas, Gilgamesh e Enkidu lutam contra o monstro e matam-no.
Então os deuses, receosos da enorme força que os dois juntos tinham, resolvem condenar á morte Enkidu, provocando-lhe uma doença fatal. Doze dias leva Enkidu a morrer, sempre debaixo dos olhos do seu amigo Gilgamesh, esmagado pelo desgosto e pelo sentimento da sua impotência.
Um sentimento amargo obceca o espírito de Gilgamesh: Enkidu morreu e mais tarde ou mais cedo ele próprio terá o mesmo destino. A fama e a glória que os seus feitos lhe tinham valido eram apenas uma fraca consolação. Ele desejava uma mais tangível imortalidade: a do corpo. Precisava procurar e encontrar o segredo da vida eterna.
No passado, apenas um único homem conseguira alcançar a imortalidade, Utnapishtim, o sábio e piedoso monarca da antiga Shuruppak, uma das cinco cidades capitais de reinos que existiam antes do Dilúvio. Gilgamesh decide dirigir-se ao muito distante lugar onde agora vivia Utnapishtim, para que este lhe revelasse o seu segredo.
Percorre montanhas e planícies, exposto aos ataques das feras e à fome. Atravessa por dentro as grandes montanhas com a altura das muralhas do céu, que guardam o nascer e o pôr do sol, continuamente vigiadas pelos homens-escorpião. Depois das doze léguas de intensa escuridão dentro das montanhas, finalmente começa a entrever a luz do sol, acabando por entrar num jardim de arbustos carregados de pedras preciosas.
Junto ao mar primordial que teria de atravessar, encontra uma jovem estalajadeira, Siduri, a quem conta ao que andava. Esta diz-lhe:
“Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, enche a tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é destino do homem. “
Atravessadas as “águas da morte”, extenuado, cabelos crescidos e hirsutos, o corpo imundo coberto por peles de animais, o orgulhoso rei de Uruk chega finalmente à presença de Utnapishtim. Mas a conversa com Utnapishtim é dececionante.
Ele conta-lhe a história do pavoroso Dilúvio que os deuses enviaram à Terra para exterminarem todas as criaturas vivas (“O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia”). Ele próprio e a mulher teriam também perecido se não tivessem podido abrigar-se no grande navio que o deus da sabedoria, Ea, o tinha aconselhado a construir.
Quanto à vida eterna, tinha sido um dom que os deuses lhe tinham querido dar por ser o único que se conseguira salvar. E pergunta a Gilgamesh:
“Quanto a ti, quem irá reunir os deuses por tua causa, de maneira a poderes encontrar a vida que estás buscando?”
Sugere-lhe uma alternativa: lutar contra o sono por seis dias e sete noites. Gilgamesh aceita, mas cansado, logo adormece. Finalmente acordado por Utnapishtim, desculpa-se dizendo que mal havia começado a dormir. Para o convencer de que tinha dormido todo o tempo, Utnapishtim tinha dito à mulher para fazer um pão todos os dias e colocá-lo ao lado de Gilgamesh, pois “todos os homens são impostores, até a ti te tentará enganar”.
Desesperado com a sua sorte, Gilgamesh está disposto a regressar a Uruk de mãos vazias. Utnapishtim, a pedido de sua mulher, diz-lhe então que ele poderá encontrar uma planta que cresce no fundo do mar, que tem um espinho que lhe irá ferir as mãos, mas que, uma vez comida, lhe dará a eterna juventude.
Gilgamesh mergulha até ao fundo das águas, consegue colher a planta, mas não a come, resolvendo voltar com ela para Uruk. A meio do caminho de regresso, Gilgamesh pára para tomar banho num poço de água fresca. Uma serpente que vivia no fundo do poço, sentindo o cheiro que emanava da flor, come-a e imediatamente rejuvenesce trocando de pele, voltando de imediato para o fundo do poço.
Gilgamesh fica inconsolável: “Foi para isto que esfolei as minhas mãos? Foi para isto que arranquei sangue do meu coração?”
Chegado a Uruk, recolhe-se à segurança das fortes muralhas que rodeavam a magnífica cidade, mandando gravar na pedra toda a sua história.
Comentário breve
A 3 de dezembro de 1862, o mundo ocidental foi surpreendido por uma comunicação do inglês George Smith, lida na Society of Biblical Archeology. Numa das placas de argila exumadas da biblioteca, há muito soterrada, do rei Assurbanipal, Smith descobrira e decifrara uma versão do mito do Dilúvio que tinha enormes semelhanças com a narrativa muito posterior do Dilúvio contada no Livro do Génesis.
Na continuação das suas pesquisas, deu-se conta que este mito era apenas uma pequena parte de um longo poema a que os próprios babilónios se referiam como Ciclo de Gilgamesh.
Poema que exerceu profunda influência nas diversas literaturas épicas da antiguidade, pois o seu valor dramático transcendia as limitações do tempo e espaço.
Contém temas, problemas e significados que são comuns aos homens de todos os tempos e de todos os países: a necessidade de amizade, o sentido de lealdade, a ânsia de celebridade e glória, o amor à aventura e altos feitos, a absorvente angústia da morte, o irresistível desejo de imortalidade.
Vejamos mais em pormenor, ainda que resumidamente, alguns desses temas que aparecem na Epopeia, e sua possível interpretação.
A força e vitalidade atribuídas a Gilgamesh, que tudo procura superar, submeter e possuir, são bem humanas, se entendermos esses extremos de ação como uma forma de lutar contra a possibilidade de cessação de vida.
De notar ainda, que ambos, Gilgamesh e Enkidu, são considerados como tendo sido criados a partir de uma intervenção divina. Contudo, a Gilgamesh é-lhe atribuído uma maior dignidade humana e divina por ter tido origem a partir do ventre de mulher, humana ou divina. Tal não aconteceu com Enkidu, o que o leva a comportar-se inicialmente como as bestas.
O processo de transformação de Enkidu em ser humano só se começa a realizar durante o encontro com a meretriz, que representa o ventre e o seio de mulher que lhe faltavam para ser humano, o que curiosamente significa que a sua humanidade não lhe é dada pelo divino, mas por outro ser humano.
Ou seja, a humanização faz-se através de contacto direto: para que haja humanidade tem de haver amplexo humano. O homem não é homem sem um contacto profundamente íntimo com outro humano. Neste caso, o poder civilizador é dado pelo contacto com a mulher. A natureza feminina aparece assim aqui como a matriz da cultura e da civilização. É na mulher que está simbolicamente a humanidade do homem, o que faz dela o reservatório da humanidade.
É quando come pão, bebe cerveja, mas principalmente quando contempla pela primeira vez o rosto da mulher, igual ao seu, embora diferente, que se apercebe da semelhança entre seres humanos. Depois, na sua luta com Gilgamesh, ambos acabam por se reconhecer como semelhantes, o humano reconhece o humano, nascendo daí uma primeira relação de verdadeira amizade.
Essa amizade vai potenciar a força de Gilgamesh. Ao reconhecer a humanidade não apenas em si, mas noutro que lhe é semelhante, ao querer o bem de outrem e ao ser também correspondido, estamos perante um novo ser formado pela comunhão de dois seres unidos pela consciência da sua essencial semelhança. E é isto que o torna superior a tudo o resto.
Gilgamesh quer experimentar essa nova força que reforça o seu poder, com novas expedições que acabam por fazer aumentar o temor dos deuses por este seu novo poder. Receosos, os deuses decidem acabar com o problema, eliminando o que está na sua base: a amizade. Segue-se a eliminação do que tem menos dignidade, Enkidu.
Gilgamesh vê-se então, pela primeira vez, confrontado com problemas que não tem qualquer possibilidade de resolver. Não só o da morte do amigo, mas também com a possibilidade da sua própria aniquilação, sem nada poder fazer. Abraçado ao amigo morto durante seis dias e sete noites, como que a imitar o ciclo de geração da cortesã, não consegue dar-lhe nova vida: não tem o poder matricial da mulher, não tem ventre que crie.
É o momento do total abandono à angústia, ao desespero, em que o ser humano percebe, pela primeira vez, que se for mesmo assim, então de nada serve viver, pois a vida não tem qualquer sentido, pois qualquer sentido será aniquilado pelo nada. Viver ou ir-se morrendo é o mesmo.
Mas, eis que uma memória o visita com a história de um homem que alcançou a imortalidade para si e para a sua mulher. Gilgamesh parte, de imediato, em sua busca. Para onde? Para o oriente, onde o sol, a vida, têm origem.
A travessia pelo interior escuro das montanhas pode equivaler à passagem pelo útero da vida, ou à prefiguração do reino dos mortos, ponto de passagem para a vida que tem de ser vencido e abandonado sob pena de não se ter vida. Do outro lado reaparece um mundo onde reina a luz.
Gilgamesh julga-se já em terreno divino. Engano seu: não passa de um novo limiar. Tal como a vida que é feita de limiares sucessivos cuja superação é a própria essência do viver, também aqui lhe aparece um novo ensinamento.
Após ouvir a sua história, a estalajadeira aconselha-o a desistir da do que tem sido a exuberância exterior da sua vida, passando antes a prestar mais atenção à vida no que ela tem de mais efémero, à vida enquanto festa quotidiana da vida, sem a qual não há vida. À importância que cada ação tem no transcurso da vida.
De certa maneira o que ela lhe diz é que “não dar à vida a atenção que a vida merece é incorrer na negação da própria vida, é voltar ao grau zero da vida que é a lama”. E, se for esse o caminho escolhido, o dilúvio se encarregará de levar de enxurrada toda a humanidade.
O mesmo conselho lhe é dado pelo imortal Utnapishtim: “Nada busques mais do que a Vida”. Foi assim que ele, Utnapishtim, sobreviveu ao dilúvio. “Deixar tudo o que não interessa”, o que é exatamente o mesmo que prestar atenção a tudo o que interessa. E prestar atenção a tudo o que interessa, é exatamente salvá-lo: para isso serve a “arca da vida”.
E quando finalmente Gilgamesh consegue colher a flor da juventude, não a come. Reserva-a. Deixa-a ao lado, para primeiro se lavar e aprimorar antes de entrar na cidade, mais preocupado com o seu aspeto exterior, convicto que mais tarde a poderia comer. Como se a vida tivesse depois. A vida não pode ser deixada para depois, ela é o presente. “A refeição do amanhã sonhado é a ilusão da realidade do porvir, o nada futuro da inação do presente.”
Gilgamesh, que diziam que tudo tinha visto, o grande conquistador, o senhor das muralhas e dos tijolos, tudo viu, mas não saboreou: o turista-mor.
Passa desconsolado pela vida, morrendo inconsolado. Paradigma de uma humanidade angustiada pela possível perda da possibilidade e em busca desesperada da realização dessa mesma possibilidade, reduzida a uma vontade de fama.
Aparentemente, Ray Kurzweil, deve considerar que tudo isto não são mais que limitações biológicas sem qualquer sentido, numa era em que o computador nos pode abrir novos caminhos infinitos de criatividade. Há 4.000 anos que a história de Gilgamesh nos mostra o que é o ser humano, o que deveria ser, porque deveria ser, e como e porque se perde.
Sempre que nos afastarmos deste padrão, estaremos a criar talvez outro ser, mas, certamente que não será o ser humano. Por outro lado, sempre que criarmos computadores que retenham todas, mas todas, essas propriedades humanas, poderemos estar certos que criámos novos seres humanos.
Mas, não é isso que Kurzweil nos propõe. Não são os seres humanos complexos, com angústias, medos, alegrias que nos propõe. Propõe-nos Gilgameshes, turistas sempre prontos para a aceitação e gozo de tudo o que de novidade nos quiserem impingir. Turistas que tudo viram, mas não saborearam.
“Quando nosso senhor e mestre Jesus Cristo disse “fazei penitência”, o que quis dizer foi que toda a vida dos fiéis fosse dedicada à penitência”, M. Lutero, 1ª das 95 teses.
“Todos, salvo os idiotas, sabem que se devem manter pobres as classes baixas, caso contrário nunca trabalhariam”, Arthur Young.
“Ideais? O bem comum? Não creio que essas coisas sejam relevantes. Não saberia como trabalhar com tudo isso”, J. Buchatnan, economista de Margaret Thatcher, em The Trap, Adam Curtis no You Tube.
“Lá vamos cantando e rindo, levados, levados sim”, do hino da Mocidade Portuguesa.
Uma das principais teses de Freud é a refere que os estados mais arcaicos do Ego não excluem os mais recentes, podendo até coexistir com eles, o que significa que o passado nunca é completamente destruído.
Para validar esta tese apoia-se no desenvolvimento do embrião onde cada fase parece reproduzir as fases anteriores do desenvolvimento da espécie.
Teríamos assim como que um gene histórico, onde todo o desenvolvimento da humanidade tivesse ficado registado, o que certamente iria poupar muito trabalho na transmissão de conhecimentos e na educação dos seres humanos. Sem querer entrar na discussão sobre a aquisição e transmissão do conhecimento, quer ela se faça por transmissão genética, por transmissão social, ou até por computadores, o problema mais importante é o de se saber qual é a ‘verdade’ transmitida.
Por exemplo, para a geração atual, o individualismo, o narcisismo, o emprego precário, as relações precárias, aparecem como ‘valores’ naturais que assumem como fazendo parte desta sociedade, a única que conhecem, e que julgam terem sempre existido. Esta é a ‘verdade’ transmitida. Mas será essa mesmo a ‘verdade’?
Vejamos, por exemplo, o que se passa com a ‘ciência’ dominadora do ‘nosso’ mundo: a economia. Ela é vista como sendo uma ciência exata, que sempre existiu nesta forma e para a qual não existem grandes escapatórias: só há uma única maneira de fazer ‘as coisas’. Como as mantas curtas, se se puxar de um lado, vai-se destapar do outro.
E isto apesar dos enormes falhanços que lhe são imputados, da sua capacidade preditiva ser irrisóri e do abuso mais que suspeito que faz da indução.
Vivemos numa civilização em que se admite a liberdade de culto, mas que não permite que não se acredite na economia. Dizem-nos que a economia é o real, é aquilo que se vê (ela é de fato o real, aquilo que não querem que se veja).
Vivemos numa civilização que considera como absurda e aleatória a observação que os romanos faziam do fígado dos animais para se inteirarem como iria decorrer esse dia, mas que, contudo, ausculta diariamente as cotações da Bolsa ou vive pendente de um sinal do presidente do BCE, tentando aí descortinar algum indício de prosperidade futura.
A atitude do homem de hoje para com a economia, perante as catástrofes e mudanças do sistema, é idêntica à de qualquer crente daqueles cultos antigos: as crises são castigos naturais, catástrofes induzidas pelos nossos pecados (nomeadamente a avareza, a preguiça, o viver acima das possibilidades, o não acreditar nos deuses).
Claro que da ira e zanga dos deuses, os sacerdotes nunca têm culpa, tal como os economistas nunca têm culpa do estado da economia.
Ciência ou crença, exata ou não, o importante é verificarmos que a economia esteve sempre ao serviço dos poderosos na sua exploração dos mais fracos. As draconianas e inflexíveis leis da economia só funcionam para serem aplicadas aos outros, especialmente para com aqueles que são mais pobres e para com aqueles que nada entendem de economia.
Muitas das ideias económicas que nos aparecem como sendo naturais e comuns a todas as sociedades e que nos querem fazer crer que sempre tenham existido, não o são.
Por exemplo, a ideia que nos é tão cara da acumulação de bens. Em muitas sociedades ela era mesmo proibida, pelo que quando morria o rei todo o seu tesouro era com ele enterrado, garantindo assim o equilíbrio social e patrimonial entre os seus descendentes.
Outra ideia tida como imutável é a de sempre ter havido necessidade de trabalharmos todos os dias da nossa vida. Esta é uma ideia que nos foi imposta há pouco mais de trezentos anos. Por exemplo: para as culturas clássicas antigas, todo o trabalho que houvesse para fazer seria executado por escravos. Os gregos associavam mesmo o trabalho a fadiga, angústia, batalha, dor, sofrimento, sendo, portanto, uma atividade pouco gratificante e com pouca dignidade. Para eles, energúmeno era quem trabalhava, quem produzia obra (ergon).
Este sistema em que o trabalho era feito por escravos esteve na origem dos maiores abusos e indignidades infligidas a outros seres humanos ao longo de milhares de anos, iniquidades e abusos que serviram de húmus para o aparecimento do Cristianismo, a tal ponto que muitos o chamavam depreciativamente como sendo a “religião dos escravos”.
Outra ideia ‘feita’: a de que em todas as sociedades foram sempre valorizados os empresários e os homens de ação, por criaram emprego e riqueza.
Sem irmos muito longe, a Idade Média cristã, tinha em pé de igualdade ricos, poderosos e pobres. Embora respeitando os ricos, elogiava os pobres por estarem mais próximos do reino do céu. A ética medieval, não só tolerava a mendicidade como ainda a glorificava, o que é bem patente na existência das ordens mendicantes (grupos de monges dedicados profissionalmente a serem pobres).
Os pobres (mendigos, doentes, órfãos e rameiras) eram considerados livres de qualquer responsabilidade social, servindo para que os demais pudessem exercer a virtude da caridade.
Esta imagem da época que era a do pobre submisso, bendito, sentado à porta da paróquia, vai ser totalmente abalada pela peste negra do século XIV. Dois terços da população desaparecem, escasseia a mão-de-obra sobretudo nas cidades, dá-se a fuga dos campos e da submissão feudal, os súbditos transformam-se em pessoas que se deslocam.
A imagem é agora a do sobrevivente que vai de um lado para o outro, como lhe aprouver, trabalhando onde puder, descobrindo o valor dos seus braços.
A pobreza começa a aparecer como um ‘problema’ de ordem pública: os mandantes preocupavam-se não por eles serem pobres, mas por se poderem movimentar livremente, o que significava poderem reunir-se, pressionarem, revoltarem-se.
A pobreza passa a ser tema de assunto em livros e discussões. Surge o Tratado do socorro dos pobres de Luís Vives com a sua proposta de criação de ‘casas de Caridade’ para os acolher, ou seja, para os fixar, imobilizar e controlar.
Introduz dois conceitos que se vão revelar importantes: o da responsabilidade social da república para com os pobres, e o da obrigatoriedade do trabalho para todos os acolhidos nas casas de Caridade.
Ao mesmo tempo, os humanistas e os reformadores protestantes proclamam que o homem, ao ser dono do seu destino, passava a ser o único responsável por determinar como viria a ser a sua vida.
O pobre, ao ser pobre porque queria, porque não tinha vontade suficiente, só demonstrava ou a sua fraqueza interior, ou então que tal era o desejo de Deus para que a sua vida fosse de sofrimento.
Estava esvaziado o conteúdo da ideia da caridade até então predominante.
Os séculos XVI a XVIII vão ainda assistir em toda a Europa ao aparecimento dos cercados (enclosures) das terras do rei e dos senhores.
À época, para além das terras senhoriais, existiam muitas terras comunais que eram utilizadas como reserva para o autoabastecimento dos aldeões nos tempos de penúria. Os cercados acabaram com quase todas estas terras, convertendo-as em pasto para as ovelhas, tendo em vista as crescentes exportações de lã inglesa.
Era muito mais importante para a coroa (mais impostos), para os comerciantes (mais divisas) e para os senhores (o império) manter vivas as ovelhas.
Como resultado, muitos dos jornaleiros que subsistiam graças às terras comunais, foram obrigados a deslocarem-se para as cidades, aumentando o número dos pobres.
Isabel I publica em 1601 a primeira das leis dos pobres, Poors Law, criando ao mesmo tempo as casas de trabalho, workhouse. Todo o pobre que fosse fisicamente útil teria de se acolher obrigatoriamente na workhouse da paróquia em que estivesse registado. Ali, eram obrigados a trabalhar a troco de um salário de subsistência.
Por toda a Europa surgiram idênticos lugares de trabalho, onde a troco de um salário mínimo se mantinham vivos os trabalhadores. Esta prática de estabelecimentos estatais de trabalho foram o embrião do aparecimento das grandes empresas privadas.
Durante este percurso vimos como a pobreza mudou de estatuto, como o Estado se tornou cada vez mais forte colocando cada um no seu local, e assistimos ainda ao aparecimento da espantosa invenção que foi o trabalho assalariado.
Os séculos XVII e XVIII prosseguem nesta procura incessante do método para controlar a sociedade, agora já sem ser através do chicote ou das amputações. Algumas pérolas destas ‘preocupações’:
“A fome domesticará os animais mais ferozes, ensinará aos mais perversos a decência, a obediência e a sujeição. No geral, só a fome poderá levar a ajoelhar (os pobres) e a obrigá-los a trabalhar”, Joseph Townsed, na Dissertation on the Poor Laws.
“Se se lhes fizer a vida impossível, o número de mendigos reduzir-se-á: um método ainda mais rápido é pela utilização de arsénico, que seria até uma forma mais suave se fosse permitido”, Thomas Carlyle.
“Pôr os pobres a trabalhar é um dever do homem para com Deus e a Natureza’’, segundo o bem-intencionado Josiah Child.
“Todos, salvo os idiotas, sabem que se devem manter pobres as classes baixas, caso contrário nunca trabalhariam”, Arthur Young.
Até Jeremy Bentham (1748 – 1832), um dos grandes filósofos ingleses, fundador da doutrina do utilitarismo, um progressista da época, adepto da independência americana e da Revolução francesa, se preocupou com o controle da sociedade, propondo o seu célebre ‘panótico’.
Dado que as prisões existentes consistiam numa série de calabouços, em que os castigos mais vulgares eram a escuridão e a incomunicação (‘solitária’), obrigando a um sem número de guardas, Bentham submeteu ao rei Jorge III o plano de uma prisão na qual se conseguiriam vigiar todos os reclusos a partir apenas de um só ponto.
Segundo Bentham, o preso, ao saber-se permanentemente vigiado, nem sequer tentaria fugir, facilitando o trabalho do vigilante.
Previa, também, que este seu plano se pudesse vir a aplicar às workhouses e às fábricas:
‘Apenas uma única autoridade deve ser encarregue de administrar os organismos dos pobres em todo o Sul de Inglaterra, devendo apenas uma única fundação ficar encarregue dos gastos … Esta autoridade revestirá a forma de uma sociedade por ações, que poderá ser denominada de Companhia Nacional de Caridade’.
Nasce assim, das boas intenções de que o inferno está cheio, a ´fábrica-prisão’ onde se reúne repressão e exploração. Ou seja, o trabalho, como os modernos o entendem, nasce como castigo, e o lugar de trabalho, como prisão. Utopia ou distopia em que os acionistas e carcereiros se juntam com vista ao nascimento do trabalho como sistema de opressão económico.
No livro Rebels Against the Future, eis o que um trabalhador da indústria de lã já dizia em 1840:
‘Temos de trabalhar de catorze a dezasseis horas diárias e apesar de todo esse esforço não somos capazes de obter os meios de vida suficientes para subsistir. Quando pela noite deixamos o trabalho, a nossa capacidade sensorial encontra-se extenuada pela fadiga … Não temos tempo para sermos sensatos, nem tempo livre para sermos bons: estamos deprimidos, afundados, castrados, enervados pelo esforço, incapazes de virtude, sem forças para nada que se suponha vir a ser benéfico para nós mesmos quer no presente quer em qualquer período futuro’.
O filósofo contemporâneo Giorgio Agamben escreve:
‘O homem de hoje chega à noite a casa extenuado por um sem número de acontecimentos – divertidos ou aborrecidos, insólitos ou comuns, atrozes ou prazenteiros - sem que nenhum deles se tenha convertido em experiência. Essa incapacidade para se traduzir em experiência é o que hoje torna insuportável como nunca a existência quotidiana’.
Há questões que têm de ser muito bem explicadas. Por exemplo: para levar uma vida simples, um caçador do Paleolítico necessitava de despender três horas de atividade. Hoje, para uma mesma vida simples, necessitamos de trabalhar dez a doze horas. Porquê?
Que sentido tem, pois, o trabalho? Nenhum. O objetivo do trabalho é reproduzir-se a si mesmo. Trabalha-se para se continuar a trabalhar.
A RAND Corporation era uma empresa americana que nos anos cinquenta empregava os melhores cientistas existentes, especialmente matemáticos. A sua principal finalidade era a de tentar prever como seria o comportamento das pessoas numa guerra contra a URSS.
Jogos de guerra, não como divertimento, mas como modelos matemáticos que pudessem inferir quais as regras possíveis do comportamento humano, antes e depois da guerra, por forma a que a guerra comportamental fosse ganha.
O matemático John F. Nash (interpretado por Russell Crowe no filme Mentes Brilhantes), vai concluir, aplicando a ‘teoria dos jogos’, que qualquer ser humano convertido num jogador isolado do resto do mundo, ganharia sempre que se comportasse de uma forma totalmente egoísta, não se coibindo de trair toda a confiança em si depositada e a palavra dada.
Segundo Nash, num mundo de pessoas isoladas, egoístas e racionais, era perfeitamente possível criar um sistema que desse satisfação a todos os jogadores, utilizando apenas como único incentivo a ambição pessoal de cada um.
A conclusão mais geral que se retira do seu trabalho é que o egoísmo de um indivíduo isolado não conduzirá fatalmente ao caos, podendo até estabilizar um sistema de vários indivíduos. Este é o conhecido e famoso ‘equilíbrio de Nash’.
Ficou assim demonstrado que é possível, e até desejável, a existência de uma sociedade de indivíduos racionais e isolados, uma sociedade de indivíduos livres, mas controlados e regulados pelo seu próprio egoísmo, sem leis nem polícias. Eis de novo, o velho panótico de Bentham ressuscitado.