O Estado do Texas teve em 2014 a mais alta mortalidade materna dos EUA, estimada em 35,8 mortes por 100.000 nascimentos, o que o coloca ao nível do México (38 por 100.000), Uzbequistão (3 por 100,000) e Egito (33 por 100.000).
Os direitos humanos foram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas reunidas em Paris, a 10 de dezembro de 1948.
Desde a administração Reagan que a política dos EUA define os direitos humanos como sendo apenas os direitos civis e políticos. Os direitos económicos, sociais e culturais são tidos como fazendo parte do estado social, ou seja, do estado socialista.
A mortalidade materna é um indicador importante sobre a qualidade dos cuidados de saúde prestados. A morte de uma mãe durante o parto ou no pós-parto, é uma das grandes tragédias que ocorre numa família, com enormes consequências para a criança, para as outras crianças, para os maridos e outros membros da família, e para a sociedade em geral.
Tendo isto em vista, as Nações Unidas fixaram como Objetivos de Desenvolvimento para o Milénio, o atingir em 2015 uma redução de 75% da mortalidade materna.
Foi com um certo espanto que se verificou que, apesar da tendência internacional da mortalidade materna (que é calculada por 100.000 nascimentos) ter vindo a diminuir entre 2000-2014, a tendência da mortalidade materna nos EUA ter aumentado de 18,8 para 23,8 em 2014 (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/?term=MacDorman+MF%2C+Morton26,6% ).
Só o Estado do Texas teve em 2014 a mais alta mortalidade materna dos EUA, estimada em 35,8 mortes por 100.000 nascimentos, o que o coloca ao nível do México (38 por 100.000), Uzbequistão (3 por 100,000) e Egito (33 por 100.000).
Este aumento da mortalidade é considerado significativamente estranho, uma vez que “não houve nenhuma guerra, desastre natural ou severa depressão económica” que o pudesse justificar.
A definição internacional de mortalidade materna é especificada pela Organização Mundial de Saúde (OMS),como sendo:
“A morte de uma mulher enquanto estiver grávida ou até 42 dias após terminar a gravidez, independentemente da duração e local da gravidez, por qualquer causa relacionada ou agravada pela gravidez ou condução desse processo, mas que não seja resultante de causas acidentais ou incidentais”.
E, complementa a definição para o caso de mortes tardias, como sendo:
“A morte de uma mulher derivada, direta ou indiretamente, de causas obstétricas, para além do período que decorre entre os 42 dias de ter terminado a gravidez até um ano”.
São estas definições que nos permitem comparar a mortalidade materna dos vários países e regiões.
Os organismos oficiais dos EUA atribuem este aumento a vários fatores burocráticos e estatísticos, como por exemplo, os diferentes critérios de certificação da causa da morte utilizados nos vários Estados, a sua progressiva normalização a partir de 2003, a necessidade da utilização de um fator de correção, a passagem da certidão de óbito de um sistema manual para um sistema eletrónico, a possibilidade de uma dupla inscrição devido à passagem de um sistema para outro, etc.
Acresce ainda o embaraço que constitui para os EUA o facto de desde 2007 não terem conseguido enviar para a OCDE e outras agências internacionais a taxa oficial de mortalidade materna americana. Isto reflete a falta de fundos adequada para estes sistemas vitais de estatística, o que só por si conduz a um grau menor de escrutínio e de controle de qualidade.
No caso do Texas, o estudo verificou que a maior parte das mortes ocorre a partir das seis semanas após o parto, e que como mais das 400.000 mães dependem da segurança social (Medicaid) cuja contribuição só abrange os primeiros 60 dias (o Texas rejeitou a expansão do Medicaid prevista no plano de cuidados de saúde de Obama), o seu acesso aos cuidados médicos passou a ser cada vez mais limitado.
Acresce ainda que o estado do Texas cortou 73,6 milhões de dólares atribuído ao planeamento familiar, forçando clínicas de planeamento familiar a encerrar ou a reduzir os seus serviços para metade (Stevenson AJ, Flores-Vasquez IM, Allgeyer RL, Schenkkan P, Potter JE. Effect of removal of Planned Parenthood from the Texas Women’s Health Program. NEJM. 2016;374(9):853–60).
Tem sido uma constante a utilização do argumento do não respeito dos direitos humanos por parte de certos países. Os direitos humanos foram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas reunidas em Paris, a 10 de dezembro de 1948.
Os direitos humanos contidos na Declaração podem ser considerados divididos em duas categorias: os direitos civis e políticos; e os direitos económicos, sociais e culturais.
Os direitos civis e políticos incluem o direito à vida, liberdade de expressão, liberdade de religião, julgamento justo, autodeterminação, bem como o de não ser torturado, vítima de tratamento cruel e de detenção arbitrária.
Os direitos económicos, sociais e culturais compreendem os direitos à educação, segurança social, garantia face ao desemprego, ausências por maternidade pagas, igualdade de salário para o mesmo trabalho, redução da mortalidade infantil, prevenção, tratamento e controle de doenças, e a possibilidade para formar sindicatos e direito à greve.
Estes direitos foram vertidos para dois tratados multilaterais que acompanham a Declaração Universal: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (International Covenant on Civil and Political Rights) e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (Internaional Covenant on economic, Socialand Cultural Rights).
Os Estados Unidos ratificaram apenas o primeiro, recusando-se a ratificar o segundo. O que permitiu que a administração Reagan definisse que, para a política dos EUA, os direitos humanos fossem apenas os direitos civis e políticos. Os direitos económicos, sociais e culturais foram tidos como fazendo parte do estado social, ou seja, do estado socialista.
Assim, países em que, por exemplo, os cuidados de saúde sejam gratuitos, a educação seja gratuita, em que não haja pena de morte, em que as mulheres recebam 9 meses de salário a 100% durante ausência por maternidade, complementada com mais 3 meses a 75% do salário, em que o aborto é subsidiado e em que o planeamento familiar seja suportado pelo estado, podem ser considerados pelos EUA como não respeitadores dos Direitos Humanos.
Talvez este facto de não considerar como direitos humanos os consagrados no Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, explique, mais do que qualquer outro, as estatísticas da mortalidade materna dos EUA, ao arrepio do que se passa em quase todo o mundo.
É o género de preocupações que só atinge latinos, negros e pobres. Desperdícios que só fazem emperrar a economia desviando fundos que lhe são fundamentais para se manter sã e progressista.
“O Holocausto não foi uma evidência da queda, mas uma evidência do progresso da civilização”.
“Como gestor, Eichmann seria o orgulho de qualquer reputada firma europeia, incluindo de empresas cujos donos fossem judeus”, Zygmunt Bauman.
Os direitos humanos só se aplicam aos humanos que sejam cidadãos.
“O inferno dos vivos não é qualquer coisa do futuro: ele já existe, e é aquele que já aqui está, é o inferno que habitamos todos os dias, que formamos por estarmos juntos”, Ítalo Calvino.
“Os jacarés matam-se quando são pequenos”, provérbio moçambicano.
Quase todos temos conhecimento do que o padre luterano Martin Niemöller, uma das vítimas das perseguições nazis, escreveu sobre a vivência individual e social dentro do regime nazi:
“Primeiro eles levaram os comunistas, mas como eu não era comunista, não disse nada. Depois levaram os sindicalistas, mas como eu não era sindicalista, não disse nada. Depois vieram buscar os Judeus, mas como eu não era Judeu … Depois os católicos, mas como eu não era católico … E agora vieram buscar-me, e também não disse nada, pois já não havia ninguém com quem pudesse falar”.
Independentemente da relevância do problema descrito por Niemöller (esta reação que relativiza o que está a acontecer às pessoas ao serem tratadas como se fossem objetos, como se o que estava a acontecer não fosse importante porque não era a elas que estava a acontecer), o que mais importa aqui notar é a progressiva graduação temporal com que o processo era feito, que permitia que a tragédia se fizesse anunciar sem que ninguém lhe prestasse atenção.
Não só então ninguém prestava atenção, como ainda hoje fazemos todos os possíveis para não querer ver a sua aproximação, barricando-nos no pensamento de que tal era resultante, restrito e específico do regime nazi. Vejamos se é mesmo assim.
Comecemos com o problema dos campos de concentração.
A primeira vez que se procedeu ao confinamento em larga escala com base exclusiva na etnia de um grupo específico, foi em 1838 nos Estados Unidos, quando o presidente A. Jackson ordenou ao Exército para que colocassem os cherokee em campos, nos “emigration depots”.
Esta prática, embora não tenha tido a finalidade de matar os índios (a percentagem de mortes foi elevada especialmente devido à proliferação de doenças e más condições sanitárias), acabou por vir a ser sucessivamente adotada para o realojamento dos índios norte americanos.
Mais tarde, reflexo do grande número de soldados feitos prisioneiros durante a Guerra Civil dos Estados Unidos, instituiu-se a prática de os colocar em campos, chamados de campos de prisioneiros. Apesar das más condições que resultaram na morte de 25%, como os prisioneiros eram combatentes, estes campos eram considerados como campos de prisioneiros de guerra e não como campos de concentração.
Com o aparecimento do arame farpado em 1867 tornou-se muito mais fácil e barata a instalação de campos de detenção. Tal vai permitir que em 1886 os espanhóis, a fim de isolarem as guerrilhas em Cuba, metessem todos os camponeses cubanos em campos que chamavam de “reconcentración”.
Quatro anos depois, em 1890, Lord Kitchener, durante a Guerra Anglo-Bóer na África do Sul, como parte da aplicação da tática seguida de “terra queimada”, internou todos os bóeres (europeus brancos provenientes da Holanda) e os africanos negros que pôde, em “campos de concentração” (campos onde uma grande quantidade de pessoas era concentrada num só local), onde acabaram por morrer 27.927 bóeres, dos quais 22.074 crianças com menos de 16 anos, e mais de 14.154 africanos negros.
Com o advento da Primeira Guerra Mundial, o recurso aos campos de concentração banalizou-se. Países tão insuspeitos como o Canadá, Suécia, Finlândia vão utilizá-los. Na Segunda Guerra, o mesmo é posto em prática pela Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Alemanha, Japão, Itália, Espanha, estendendo-se depois à China, Chile, Argentina, Camboja, Coreia do Norte, Bósnia, Herzegovina, etc.
Ou seja, a utilização do campo de concentração para civis, era internacionalmente aceite como um instrumento normal de controlo social.
Podiam-se distinguir três tipos de campos: campos de detenção e/ou internamento, campos de concentração e campos de extermínio.
Os campos de detenção / internamento tinham como finalidade o isolamento temporário dos indivíduos considerados suspeitos ou perigosos; na maioria destes campos não havia trabalho forçado ou escravo, sendo a sua função profilática e não produtiva. Nesta categoria estão os campos criados durante os conflitos armados para manter presos os “inimigos” da nação (como em agosto de 1914 e setembro de 1939) ou os percecionados como tal (caso dos americanos-japoneses nos Estados Unidos).
Os campos de concentração, que constituíam o essencial do fenómeno dos campos de concentração dos regimes totalitários, dos KZ nazis aos “gulags” soviéticos, eram caraterizados por uma lógica de humilhação, trabalho e aniquilação, sendo a sua mortalidade da ordem dos 50 por cento.
Os campos de extermínio cuja finalidade não era a de acomodarem internos, mas a de executá-los imediatamente mal chegassem.
E, muito embora as duas primeiras categorias de campos, por serem temporárias, não pudessem ser comparáveis à última, o fato é que já lá estavam todos os ingredientes que mais tarde provocaram enorme escândalo quando foram “descobertos”: a noção de punição coletiva de um grupo inteiro; a ideia de culpa prévia (a maior parte dos internados eram inocentes); a detenção administrativa (nenhum tribunal julgara os internados); as más condições de saúde, originando altas mortalidades.
Inicialmente, os campos nazis tinham como intenção isolar os inimigos do povo e reabilitá-los, por isso não se praticava o trabalho produtivo com finalidade económica (em 1933, o campo de Dachau tinha à entrada o seguinte “motto”: “O trabalho liberta”).
Mas à medida que se foram tornando permanentes, a noção de lucro irrompe, transformando-os em verdadeiras fábricas. Passam a ter que se sustentarem a eles próprios, os detidos são obrigados a trabalhar, seja qual for a tarefa que lhes for distribuída.
Não era por acaso que ficavam junto das fábricas que eram propriedade das SS (a necessidade de trabalhadores crescia exponencialmente: em 1941 os campos tinham 60.000 indivíduos, em 1942 eram 115.000, em 1944 eram 524.268 e em 1945 eram 714.211, dos quais centenas de milhares eram vendidos a empresas industriais Alemãs).
Outra caraterística dos campos de concentração é o de não estarem previstos na lei corrente, resultando antes de um estado de exceção ( uma suspensão temporária da ordem jurídico-política) e da lei marcial.
É o caso das “custódias protetivas” alemãs que têm origem numa lei Prussiana de 1851, segundo a qual era possível a aplicação de um estado de exceção a toda a Alemanha (salvo à Bavaria). Durante o período de 1919 a 1924, o governo de Weimar declarou por várias vezes o estado de exceção, prolongando-o até cinco meses.
Pelo que os primeiros campos de concentração na Alemanha não foram obra do regime nazi, mas de governos sociais-democratas quando em 1923 internaram milhares de militantes comunistas, judeus e refugiados da Europa Oriental.
A partir de 1918, os campos de concentração, que eram já normalmente aceites como forma de detenção para os inimigos externos, vão ser utilizados para o internamento de inimigos internos, nomeadamente agitadores suspeitos, oficiais contrarrevolucionários, sabotadores, parasitas e especuladores, que aí deviam permanecer até ao fim da guerra civil (referimo-nos aos campos de Mourom e Arzamas criados por Leon Trotsky).
A partir de então, o inimigo passou a ser o inimigo interno, sendo a função do campo limitar a capacidade de agir de tais indivíduos, suspeitos de serem culpados.
Um mês depois de os nazis chegarem ao poder em 1933, na manhã seguinte ao incêndio do Reichstag, foram presas 1200 pessoas. Hitler promulga o “decreto para proteção do povo e do Estado” em que suspende indefinidamente os artigos da Constituição referentes às liberdades individuais, às liberdades de expressão e de reunião, à inviolabilidade de domicílio e privacidade de correspondência e telefone, o que não se afastava muito da prática dos governos anteriores.
Com este decreto, qualquer pessoa que se opusesse ou que se pudesse vir a opor ao regime, seria presa e colocada em campos com arame farpado. Passava a ser assim possível a detenção de pessoas sem crime algum, apenas por prevenção.
Como este decreto se manteve em vigor até ao fim do Terceiro Reich, o estado de exceção passou a confundir-se com as regras jurídicas normais, ou seja, o estado de direito foi, pura e simplesmente substituído por medidas administrativas. Por isso Hitler nem sequer se deu ao trabalho de alterar a Constituição ou fazer uma nova Constituição.
Estes exemplos não foram exclusivos dos nazis, nem acabaram com eles. O exemplo mais elaborado e absurdo foi o empreendido por Alfredo Stroesser, ditador do Paraguai nos anos 60 e 70 do século XX, que governava oficialmente de acordo com uma Constituição de uma democracia parlamentar que garantia todas as liberdades.
Só que, devido à “grande” luta mundial existente à época entre o Comunismo e a Democracia, a Constituição tinha de ficar suspensa, sendo substituída por um estado permanente de emergência, por ele proclamado. Contudo, este estado de emergência era suspenso por um dia em cada quatro anos, no dia das eleições, para que as eleições pudessem ser livres e assim pudessem legitimar o estado de emergência e o Partido Colorado de Stroesser.
Ou seja, o estado de emergência passava a ser o estado normal, ao passo que a “normal” democracia passava a ser o estado de exceção.
O problema do genocídio.
O termo “genocídio” é pela primeira vez utilizado em 1944 pelo juiz polaco Raphael Lemkin em Nuremberga. Para os nazis tratava-se antes do que chamavam ser “o Grande Desígnio”, eufemismo dado ao que foi o assassinato em massa como forma de construção de uma nova ordem que durasse mil anos.
O assassinato em massa tem acontecido várias vezes ao longo da história humana, como ainda recentemente se verificou no Ruanda, Sudão e Bósnia. Apenas alguns deles se inscreveriam na classe das “soluções finais” que visavam o extermínio de uma população sem deixar nenhum sobrevivente ou testemunho.
E, ainda assim, com métodos de atuação diferentes: no caso do Holocausto, a decisão para o extermínio dos judeus constituía um segredo de estado bem guardado, ao ponto de utilizarem linguagem camuflada nas discussões do assunto, mesmo a alto nível. No caso da Bósnia e dos Hútus e Tutsis, eram os vizinhos que eram chamados para executarem os assassínios para assim serem implicados no crime coletivo, utilizando essa cumplicidade individual como cimento da comunidade.
Mas esse plano grandioso dos nazis para o rearranjo planetário das populações, também não era invenção sua. Já anteriormente o imperialismo e o colonialismo tinham utilizado essas políticas de poder e dominação.
A deslocação forçada de centenas de milhares de pessoas é o que acontece a seguir à Comuna de Paris (junho de 1848), quando bairros inteiros são transferidos para a Argélia, para o Canadá e para a Nova Caledónia.
Desde o início da chegada dos primeiros colonos à América até ao início do século XIX morreram 30 a 50 milhões de nativos (80% da sua população total). A mortandade dos nativos como orientação política é explícita. Theodore Roosevelt defendia sem qualquer problema, a exterminação dos Aborígenes para acomodar a população Europeia:
“Os pioneiros e os colonizadores tinham a justiça do seu lado: sem eles, este grande continente não passaria de uma reserva de caça para esquálidos selvagens”.
O problema dos refugiados.
Quando após a Primeira Guerra surgiu a Liga das Nações, a sua função principal era garantir a manutenção das fronteiras, daí que a sua atuação só se viesse a verificar nos casos em que houvesse violação das fronteiras. Isso implicava que dentro das fronteiras estabelecidas, a população poderia ser tratada de qualquer forma, porquanto tal era apenas um problema interno.
Só depois do impacto dos acontecimentos da Segunda Guerra é que se tentou minorar esse “esquecimento” através da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O problema é que, face à globalização desregrada de hoje, não existem instituições globais que controlem as suas consequências políticas e sociais.
O conceito de “direitos humanos” que deriva da lei natural e inalienável (dignidade, respeito) aplica-se a todos os humanos, incluindo os que são banidos, os sem cidadania, os forçados a fugir dos seus países.
O que acontece na prática é que para se ter o direito de esperar um tratamento humano, os estrangeiros precisam de ter um passaporte válido em que se reconheça a sua cidadania (só pertencendo a um estado soberano é que se pode ser cidadão) e de não ter sido proibido de entrar pelas autoridades que controlam as fronteiras (tal como acontece com o capital).
Conclusão: os direitos humanos só se aplicam aos humanos que sejam cidadãos.
Atualmente, os milhões de “refugiados” de todo o mundo (pessoas que foram obrigadas a abandonar as suas casas e o seu país devido quer a guerras tribais, massacres, proliferação de bandos de guerrilhas ou de traficantes de droga, etc.) encontram-se quase todos permanentemente instalados em campos “temporários”, seraficamente chamados “safe havens” (a mesma expressão que em inglês serve também para designar um investimento que perca pouco valor em caso da bolsa afundar e ainda um banco financeiramente seguro num offshore).
Eles não podem voltar para o país de origem porque o país não os quer, porque as suas casas foram destruídas ou roubadas e, por outro lado nenhum governo quer receber esses milhões de pessoas.
Fora desses campos, os refugiados serão sempre vistos como uma fonte de problemas sem possibilidades de integração. Dentro desses campos, acabarão por serem esquecidos.
Os campos e o número de refugiados têm vindo constantemente a aumentar, o que poderá significar que a sociedade globalizada atual não sabe como resolver o problema, ou então que é mesmo assim que resolve o problema através de campos depósitos de lixo em que o lixo não é reciclável (onde pessoas sem qualificações ficam depositadas num território sem nome).
O nosso problema.
Segundo Bauman, o mundo moderno desenvolveu duas indústrias de “desperdício humano”: uma primeira que é resultante da “ordem” que se quer reinante, fazendo com que todos os que não se enquadrem nessa ordem sejam rejeitados, excluídos (são os “indesejáveis”, os sem papéis, os imigrantes ilegais, etc.); uma segunda oriunda do “progresso económico”, rejeitando todos os que não têm lugar na “economia”, os que não consomem (são os consumidores falhados).
Estes dois grandes grupos de pessoas, que se situam a um nível mais baixo que a “classe baixa” por ficarem fora de qualquer classe da sociedade que se quer “normal”, constituem o “desperdício humano” (pessoas que não podem ser acomodadas pelas poucas oportunidades que a economia oferece e que não têm papel a desempenhar na sociedade).
Se a estes refugiados acrescentarmos o que tem vindo a ser feito com os empregados, com os desempregados, com os pobres, com os reformados, com as mulheres, com os jovens, e todos outros grupos que têm sido colocados em círculos de exclusão, veremos que a tendência desta nossa sociedade é nitidamente concentracionária. A servidão, a guerra, a exploração e campos de concentração são os atributos de uma civilização moderna.
Talvez agora, ao olharmos para trás, se possa admitir que “o Holocausto não foi uma evidência da queda, mas uma evidência do progresso da civilização”. Talvez agora se possa entender que a estrutura da organização da gestão da máquina de genocídio nazi não difira muito da atual organização financeira.
O que leva Bauman a dizer que:
“como gestor, Eichmann seria o orgulho de qualquer reputada firma europeia, incluindo as empresas cujos donos fossem judeus”.
A todos aqueles que se negam a encontrar uma explicação racional para o que se passou com o regime nazi, considerando-o como estando para além da compreensão humana, lembrarei Arendt quando nos diz que desistir de compreender é uma forma de sujeição aos elementos que compõem o pensamento totalitarista que ainda resta na nossa sociedade.
O totalitarismo, ao suprimir a atividade de compreender, faz dela, só por si, uma forma de resistência. O compreender é “uma profunda atividade humana … uma forma humana de estar vivo”.
Já Nietzsche há muito, mas mesmo muito, prevenira:
“As classes educadas já não são faróis ou santuários no meio de toda esta secularização turbulenta; elas próprias se tornam mais turbulentas a cada dia que passa, com menos capacidade para pensar e para amar. Tudo, incluindo a arte contemporânea e a ciência, serve o barbarismo que aí vem”.
Para lidar com ele, Ítalo Calvino sugere-nos que:
“há duas formas… sendo a primeira a mais fácil para muitos: aceitar o inferno e ser parte integrante dele de tal forma que o deixem de ver. A segunda é perigosa e exige vigilância constante e apreensão: procurar e aprender a reconhecer quem e o quê, no meio do inferno não seja inferno, e depois fazê-lo durar, dar-lhe espaço”.
Favor não esquecer o importante provérbio moçambicano.
O poder de Deus incluía o direito a negligenciar, suspender e anular qualquer ordem por Ele anteriormente dada, exatamente porque esse poder era absoluto.
“A ordem legal repousa numa decisão e não numa norma”, Carl Schmitt.
“Acabou a salvação pela sociedade”, Peter Drucker.
“A sociedade não existe, há apenas indivíduos e famílias”, Margaret Thatcher.
Porque nos deixamos conduzir tão facilmente para situações sobre as quais não temos nenhum controle? Dito de outra forma, de onde vem e onde reside a fonte do poder e da soberania a que nos sujeitamos?
Citando muito sucintamente alguns dos mais conhecidos pensadores que se debruçaram sobre este problema do poder/soberania, pode-se dizer que para Maquiavel, Hobbes e Hegel a soberania residia no poder do governo, para Bodin na Supremacia Divina, para Rousseau, Locke e Paine no povo, para Montesquieu e Locke na constituição, para Kant na lei como ditado da razão, para Stuart Mill no indivíduo e para Simone de Beauvoir no corpo feminino.
Mas, não nos estaremos a tentar iludir ao não querermos ver o verdadeiro fundo tão superficial da estrutura humana subjacente a todas essas conceções?
Talvez Carl Schmitt, o juiz politólogo querido do regime nazi (e não só), através da abordagem que fez a este problema na sua obra de 1922, Teologia Política (que dez anos mais tarde aparece com o nome de O Conceito da Política) nos consiga esclarecer sobre a verdadeira fonte a partir da qual tudo começou.
Para Schmitt, é linear: ‘soberano’ é aquele que tem o poder para impor regras, bem como para as suspender ou torná-las nulas.
Por isso, “a ordem legal repousa numa decisão e não numa norma”. E, acrescenta ainda, quase em jeito de conclusão, comparação, explicação, que “a exceção em jurisprudência é análoga ao milagre em teologia”.
Para percebermos o que ele pretende dizer, necessitamos de recorrer ao Livro de Job (um dos Escritos Sapienciais da Bíblia Hebraica, integrado no Antigo Testamento Cristão).
Dirimia-se então a questão, embora já definida para os Judeus, da existência dum Deus único, omnipotente e omnipresente, criador de todo o universo. Uma das dificuldades para a sua aceitação residia no facto de Israel estar situado num território geograficamente rodeado de povos onde a existência de um Deus único não fazia qualquer sentido, perante um panteão de deuses servindo para tudo o que acontecia e para todos os estados de alma, e que tudo justificavam.
Outra dificuldade para a imposição do Deus da religião monoteísta era que ao ter o poder absoluto, tal deveria também responsabilizá-lo, igualmente em absoluto, por tudo o que de mau pudesse acontecer. O poder absoluto não poderia servir de desculpa.
Só que o Livro de Job apontava, aparentemente, noutro sentido:
“O Senhor dá, o Senhor tira, abençoado seja o Seu nome”.
Ou seja, nada de responsabilização, apenas obediência resignada, sem perguntas e sem debates.
Ouçamos os rogos de Job, exemplar e virtuoso servidor de Deus, mas por Ele impiedosamente castigado:
“Dizei-me simplesmente, e eu escutarei em silêncio: mostrai-me onde é que eu errei … Porque é que me fizeste isto, e porque é que fui eu o alvo escolhido?” (Job 6: 24; 7: 20).
Esperou em vão por uma resposta de Deus. E Job continua:
“De fato tenho como verdade, que nenhum homem pode ganhar o seu caso perante Deus. Se um homem decidir argumentar contra ele, Deus não responde … Apesar de eu estar certo, não obtenho nenhuma resposta … Sem culpa, digo eu … Mas é sempre o mesmo; por isso eu digo: Ele destrói de igual modo os que não têm culpa e os culpados” (Job 9: 2-3; 9: 15, 22).
Aliás, é Deus que, ignorando as questões postas por Job, o interroga:
“Porta-te como um homem; sou Eu que faço perguntas, e tu quem respondes. Será que negas que sou Eu que estou certo e tu que estás errado?” (Job 40: 6-9).
As interrogações de Job eram inadmissíveis porque ele não tinha o direito de perguntar. Só quem tinha o poder é que podia perguntar. Consequentemente, não era Deus que lhe devia explicações, mas era ele que devia uma desculpa a Deus.
O poder de Deus incluía o direito a negligenciar, suspender e anular qualquer ordem por Ele anteriormente dada, exatamente porque esse poder era absoluto.
A história de Job, tudo o que lhe aconteceu, é a demonstração maior de que não há qualquer regra ou norma a que ele se pudesse agarrar, e que não há qualquer regra ou norma a que o poder superior se encontre vinculado.
Na história de Job, não há qualquer possibilidade de se vislumbrar lógica ou harmonia, causa e efeito. É a evidência maior da história como um fluxo caótico de acontecimentos.
Bem podem os teólogos esforçarem-se para encontrarem ligações entre o pecado e o castigo, entre a virtude e a recompensa, que Deus não os ouve, nem necessita de advogados que intercedam por Ele: não se desculpa e não se explica. A ordem reinante nada tem a ver com uma qualquer norma universal, mas apenas com as decisões tomadas.
Além do mais, todas essas decisões por Ele tomadas e que ficassem fora de qualquer ordem ‘humanamente entendível’, apareceriam aos homens como milagres.
É por aqui que Schmitt vai tentar conseguir a incorporação da ideia da ordem divina da soberania na ordem legislativa terrena, ao considerar que o milagre estava para a teologia como a exceção para a jurisprudência. E logicamente, “a exceção não só confirma a regra, como a regra como tal, só tem lugar por existir a exceção”. Era agora claro que ‘soberano’ é todo aquele que decide na exceção.
Mais, a decisão do soberano ao ser sempre excecional, será também por isso mesmo arbitrária e pessoal. Daí que a nomeação de um indivíduo como sendo inimigo político nada tenha a ver com o fato de ele ser culpado ou de ter intenções hostis, mas apenas porque em política, no capítulo das ações humanas, torna-se sempre necessário indicar quem é o ‘inimigo’ para que os ‘amigos’ se mantenham juntos.
O inimigo será sempre ‘o outro’, ‘o estranho’, a quem se declarará guerra.
A objetivação do ‘inimigo’, ou seja, a existência de uma regra que determine quais os atributos ou ações praticadas que devam ser consideradas para que um indivíduo seja definido como inimigo, vai contra o princípio da soberania e da excecionalidade do seu poder.
A objetivação do inimigo nunca poderá ser tida em conta como limitação ao poder do soberano. Tal como a bondade não poderá ser tida em conta como limitação ao poder soberano do Jeová do povo de Israel, como nos mostra o Livro de Job.
Não se trata aqui de demonstrar a existência de princípios totalitários contidos nas religiões monoteístas, até porque esses mesmos princípios podem ter aparecido noutras sociedades para além da nossa, ocidental e cristã, religiosas ou não.
Poderemos inclusivamente concluir como Hannah Arendt sobre a existência de uma “inclinação totalitária endémica” presente em todas as formas modernas de poder de estado. Ou de uma inclinação totalitária intrínseca a todos os indivíduos.
O que pretendo realçar é que durante milhares de anos temos sido sujeitos a esta ‘educação’ totalitária, implícita ou explicitamente, que provavelmente nos formou e conformou, e da qual dificilmente nos livraremos e que outros, sempre que podem, quando podem e enquanto podem, usam a seu favor para nos utilizar.
Sabe-se que a base de todo o poder político assenta nos medos humanos resultantes da nossa vulnerabilidade e da incerteza a que estamos sujeitos. É com a promessa de proteção contra estes medos humanos que o poder se impõe, reclamando em compensação autoridade e obediência.
Nas sociedades modernas ocidentais, as ‘forças do mercado’ têm-se encarregado de introduzir os fatores de incerteza e insegurança, transformando-os em lei natural pacificamente aceite como fonte de desenvolvimento (filosoficamente justificadas como necessárias para o desequilíbrio sem o qual não há movimento).
O poder político limita-se a fazer cumprir a lei e a disciplina, legitimando-se na sua promessa de proteção contra a insegurança através do que ficou conhecido como ‘estado social’.
Atualmente, a par da retirada das regulamentações impostas aos mercados e sua consequente liberdade de atuação, assistimos ao desmantelamento progressivo do ‘estado social’. A proteção do estado irá incidir apenas sobre minorias, desempregados e inválidos, que mais tarde acabarão por se transformarem num ‘problema de lei e ordem’.
Tal como Pilatos, o estado lavará as mãos de todas as vulnerabilidades e incertezas oriundas da lógica do mercado livre. Terão agora de ser os indivíduos a tratar disso através dos seus recursos.
Isto é o que aqueles alguns chamam de ´finalmente o homem livre, valendo só por si’. O que os filósofos e várias filosofias foram sempre em vão tentando, o chegar ao fundo do homem, o chegar ao seu estado puro, original, vai agora ser conseguido pelas forças do mercado!
Proclamam os nossos novos velhos próceres, que “Acabou a salvação pela sociedade” e que “A sociedade não existe, há apenas indivíduos e famílias”. Resta o quê para o estado?
Para continuar a legitimar-se vai ter de encontrar outras vulnerabilidades e incertezas, uma vez que as resultantes dos mercados são aceites como lei da natureza à qual não se pode fugir (citando o guião que a toda a hora vem sendo repetido na comunicação ‘sucial’).
Há que instilar o medo. Estaline já o fizera: na ausência das forças de mercado, era o próprio poder político que se encarregava de produzir artificialmente a vulnerabilidade e incerteza, através de um terror arbitrário e aleatório.
Nada melhor que a luta contra atividades criminosas que visem o público em geral, contra as condutas anti sociais da ‘classe baixa’, ciganos e quejandos incluídos, e acima de tudo contra o terrorismo. Qualquer coisa suficientemente poderosa e dramatizável, podendo até nem ser verdadeira, que inspire medo, muito medo, e que faça passar para segundo plano a insegurança e incerteza das questões económicas, sobre as quais o estado não tenciona fazer nada.
E se for muito bem feito (aumentando e exagerando os perigos da insegurança que correm as pessoas), até mesmo a não materialização dessas ameaças pode ser relatada como um acontecimento extraordinário, sempre devido à atuação, vigilância e boa vontade do governo.
Não é de admirar que vivendo num estado de emergência permanente (devido ás constantes ameaças, reais e/ou fictícias), com uma sempre crescente nomeação de inimigos reais ou inventados (muçulmanos, árabes, imigrantes, talibans, al Qaeda, russos, comunistas, mexicanos, negros, turcos, ciganos, etc.), e com as investidas sistemáticas a favor das declarações de um poder de exceção (os ataques ás Constituições), as ideias políticas de Carl Schmitt voltem a ser apropriadas, não que alguma vez tenham deixado de ser aplicadas na prática.
Para além de vivermos numa sociedade de vigilância numérica, vivemos numa sociedade em que o poder tem acesso não só ao inconsciente coletivo, mas também aos futuros comportamentos sociais das massas.
A máquina de filmar faz aparecer algo a que o olho nu não tem acesso: o inconsciente visual.
“Devido à forma de existência coletiva da humanidade, em grandes épocas históricas altera-se o modo da sua perceção sensorial”, Walter Benjamin.
Uma das características importantes do cinema é a capacidade que tem de nos ‘retirar’ das coisas que nos parecem aprisionar (das nossas casas, dos nossos quartos, dos nossos empregos, dos nossos escritórios, das nossas ruas, das nossas estações de metro, das nossas fábricas, das nossas relações, das nossas rotinas, etc.), fazendo-as desaparecer e permitindo-nos viajar calma e aventurosamente até por entre os destroços espalhados.
É a utilização da máquina de filmar que, por exemplo, nos vai permitir acreditar na revelação de estruturas completamente novas, tudo isto através de uma simples ampliação; e que nos vai permitir pairar ou deslizar no ar, sobrevoando para fora do espaço verdadeiro, tudo isto através do ralenti.
Eis o que Walter Benjamim escreve no seu trabalho “A obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica”(1933-36):
“Graças ao grande plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que ganha novas dimensões. […]. É, portanto, bem claro que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem surge um outro preenchido inconscientemente. […] Em geral, o ato de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efetuar esses gestos, para não falar de como neles atua a nossa flutuação de humor. É neste domínio que a câmara penetra, com os seus meios auxiliares, os seus ‘mergulhos’ e subidas, os seus cortes e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções. Pela primeira vez, a câmara abre-nos o acesso ao inconsciente visual, tal como a psicanálise nos abre o acesso ao inconsciente das pulsões”.
Em resumo: Em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, o cinema permite-nos ‘viver’ um outro espaço preenchido inconscientemente.
Mas, W. Benjamim vai retirar um outro ensinamento muito mais importante, ao inserir o cinema num conceito muito mais geral, segundo o qual a maneira de ver do homem é condicionada não só pela sua natureza, mas também pelas épocas históricas. Pelo que, sempre que se introduzir um novo médium, ele irá também revelar uma nova perceção, um novo inconsciente.
É o que pretende dizer quando nessa obra, na parte que se refere à introdução ao cinema, escreve:
“Devido à forma de existência coletiva da humanidade, em grandes épocas históricas altera-se o modo da sua perceção sensorial”.
A máquina de filmar faz, portanto, aparecer algo a que o olho nu não tinha, até aí, acesso: o “inconsciente visual”.
Michel Foucault, na sua História da sexualidade, descreve-nos a alteração das ‘regras’ do poder verificada na sociedade depois do século XVII. Segundo ele, até ao século XVII, era privilégio do soberano o exercer poder de vida e de morte sobre os súbditos, mediante a permanente ameaça de destruição física.
Após o século XVII, devido à necessidade/finalidade que se impunha de fazer crescer as forças de produção e de as controlar (era a economia que interessava), o poder, para controlar essas forças de produção, passou a utilizar incentivos, reforços, supervisão, vigilância.
O poder de morte detido pelo soberano (que vinha pondo cada vez mais entraves ao desenvolvimento da economia) vai, então, começar a ser substituído por uma administração e controle minuciosos da população.
Consequentemente, o poder começa a preocupar-se, entre outros, com o número de nascimentos, a mortalidade, o estado de saúde, como meio para melhor governar e dirigir a população. É esta preocupação com os processos e leis meramente biológicas, que leva Foucault a considerar esta forma de poder como sendo um “biopoder”.
Note-se, que este tipo de controle, chamado por isso de “biopolítico”, limita-se exclusivamente ao controle sobre esses fatores exteriores, e não se imiscui nos pensamentos da população.
Na nossa sociedade atual, devido à possibilidade e à capacidade de se registarem (numericamente) todos os pensamentos, ações e desejos de uma população, surge a possibilidade de poder intervir, de modo subtil, sobre a psique humana.
Assim que tivermos uma quantidade suficientemente grande de dados (Big Data), através da exploração desses dados (data mining), torna-se possível perceber certos esquemas comportamentais coletivos que, como simples indivíduos, não teríamos sequer consciência da sua existência.
Tal como a máquina de filmar expõe o “inconsciente visual”, esta imensidão de dados recolhidos e trabalhados pelo novo médium, os computadores, permite o acesso ao que é um “inconsciente coletivo”.
Já sabíamos que vivíamos numa sociedade de vigilância numérica. Passámos a saber também que vivemos numa sociedade em que o poder passou a ter acesso ao inconsciente coletivo. Só que, ao ter acesso ao inconsciente coletivo, o poder passou agora a ter acesso aos futuros comportamentos sociais das massas.
A este poder, que é muito mais eficaz que o “biopoder”, porque além de vigiar e controlar, ainda tem o poder de influenciar as pessoas, chamou Byung-Chul Han de “psicopoder”.
Detendo o conhecimento do funcionamento da lógica inconsciente, ele controla o comportamento social das massas. Ele submete-nos a uma programação e a um controle psicopolíticos.
Entrámos assim numa nova era, a da “psicopolítica”. Parabéns.