“E depois de o ter criado, o que ficou Deus a fazer?”
“Se cada obra for apenas um fragmento, então teremos não apenas um “antes”, mas também um “depois”.
“O ‘livro’ é o que não tem lugar nem dentro do livro, nem no mundo e, por essa razão, ele deve destruir o mundo e destruir-se a si próprio”, G. Manganelli.
“Nascemos loucos. Adquirimos moralidade e tornamo-nos estúpidos e infelizes. Depois morremos.” Lawrence Durrell.
A nossa ideia sobre o que é uma obra e a sua criação, está nitidamente influenciada pelo paradigma teológico da criação divina do mundo, onde não se tratou de fazer matéria, mas de criar a partir do nada. A criação é assim entendida como algo que se realiza instantaneamente, sem hesitação e sem repetição, através de um ato benemérito e imediato da vontade, não sendo precedida de nenhuma matéria.
Pelo que se conclui que, antes de criar o mundo, Deus não precisou de fazer quaisquer esboços, nem de tomar notas.
Segundo uma tradição de origem platónica, isto só seria possível porque Deus tinha já no seu espírito as ideias de todas as criaturas que iria ciar. Não sendo um esboço nem um apontamento era, no entanto, já uma qualquer coisa que precedia a criação, um antes preexistindo a obra que viria a ser realizada.
Já segundo a cabala, o facto de a criação do mundo ter sido feita a partir do nada, significava que o nada era a matéria a partir da qual a criação se fizera, donde concluía que a obra divina era literalmente feita de nada.
Afinal: Que fazia Deus antes de criar o mundo?
E depois de o ter criado, o que ficou Deus a fazer?
Uma das respostas teológicas era que a criação divina não parara ao sexto dia, mas que continuava infinitamente, porque se Deus deixasse por um qualquer instante de criar o mundo, este destruir-se-ia.
Esta e outras dúvidas e interrogações, desde muito cedo começaram a perturbar os teólogos cristãos. A perturbação era tal que até Agostinho respondia, ironizando ameaçadoramente:
“Deus cortava canas para com elas zurzir todos os que se propunham levantar questões ilícitas.”
A ecdótica é a ciência que se ocupa da edição dos textos, e é usada pelos editores para tentarem conseguir aquilo que sempre foi a sua máxima ambição: a aproximação do texto o mais possível da sua forma original, conseguindo assim a reconstituição de uma edição critica, única, e, na medida do possível, definitiva.
O pensamento que serve de base a esta ambição dos editores e que os leva a focalizarem-se somente na obra acabada, pronta a ser publicada, tem muito a ver com o paradigma teológico da criação divina do mundo. Assim, tudo o que seja esboço, notas, apontamentos, versões possíveis, estudos, não poderá ser considerado como fazendo parte da obra.
Este problema põe-se também para o leitor. Como podem ser lidas as páginas que constituem o embrião de uma obra? Comparando-as com o texto acabado em busca de uma linha evolutiva ou, encarando-as como a fonte mágica de onde brota a obra?
E que dizer daqueles fragmentos de escrita que iriam fazer parte de uma obra acabada, mas que não passaram mais do que isso? Exemplo típico são os cadernos da Kafka, repletos de inícios de obras que aí ficaram sem qualquer continuidade. Devemos lê-los tendo em consideração a obra ausente através de projeções que façamos desses inícios ou, devemos apreciá-los por si mesmos?
O que está aqui em causa é o de considerarmos, ou não, se existe diferença entre a obra acabada e o fragmento.
O simples facto de se considerar uma obra como terminada pode não ser suficiente para lhe conferir um qualquer estatuto privilegiado. É assim que muitos dos fragmentos e esboços são tidos como superiores à obra acabada, e há quem considere que é por isso mesmo que muitos autores deixam intencionalmente os seus escritos como fragmentos. Relembremos Miguel Ângelo ao deixar ‘inacabadas’ algumas das suas melhores esculturas consideradas acabadas.
Poderemos mesmo admitir que uma obra que se diga acabada, quer devido a interrupção ou abandono, não seja mais do que um fragmento de um processo criativo potencialmente infinito. E, a ser assim, a obra dita acabada só acidentalmente se poderia distinguir da obra dita inacabada.
Cada obra passaria então a poder ser considerada com sendo apenas um fragmento, pelo que passaria a haver não só um “antes”, mas também um “depois”.
Só esta noção é que nos permitirá entender o aparecimento de obras que são rescritas pelos próprios autores, o que pressupõe que os autores possam continuar a escrever livros já por eles anteriormente escritos, como se a obra dita acabada não passasse afinal de um fragmento de uma obra sempre em curso acompanhando o desenrolar da própria vida.
Três exemplos notáveis: Agostinho e as suas Retratações, onde, três anos antes da sua morte, vem humildemente emendar defeitos, imprecisões, e esclarecer os sentidos das suas obras; Nietzsche e o Ecce homo, onde vai percorrer os “bons livros que escrevi”, dando indicações não só sobre a sua génese, mas também dizendo como deviam de ser lidos, explicando-os; e o caso de Bonnard, o pintor que entrava com um pincel nos museus onde as suas obras estavam expostas e conservadas, para as retocar e aperfeiçoar.
Há ainda casos mais singulares como o livro Petróleo de Pasolini que contém 133 fragmentos numerados, seguidos de notas críticas e uma carta dirigida a Alberto Morávia, em que ele explicava como tinha concebido aquele romance que “não tinha sido escrito como se fosse um romance normal”. Ou seja, o autor deixa-nos um livro em forma de edição crítica de um romance que ainda não tinha sido escrito! Ainda por cima acabaria por ser póstumo.
Como deveremos ler esse romance não só não publicado como nunca feito: com base nos fragmentos deixados acabados, ou estes em função do romance nunca feito?
Mas o grande mestre da indistinção entre obra, criação, fragmento, foi (é) sem dúvida Mallarmé (1842 – 1898) e o seu Livro. O seu projeto (dele sobraram 202 folhas manuscritas, frases nunca terminadas, palavras soltas, números, cálculos, gráficos, instruções sem aplicação prática para a sua leitura, todas elas esforçada e meticulosamente reconstituídas e contextualizadas por Jacques Scherer) era conseguir fazer um livro absoluto, totalmente objetivo, que fosse um reflexo do mundo, um livro concebido como uma estrutura extremamente flexível que conteria “a totalidade das relações existentes entre todas as coisas”, uma vez que “o mundo existe para acabar por ser um livro”.
Para que tal livro fosse possível, a condição essencial era eliminar o acaso em todos os níveis do processo literário. Começando pelo autor, uma vez que “a obra pura implica a desaparição elocutória do poeta, que cede a iniciativa às palavras”. Por isso, Mallarmé não se considerava com autor do Livro, mas apenas um simples executante “impessoal”, “uma forma que o Universo Espiritual tinha de se ver e de se desenvolver pela minha interposta pessoa”.
O próximo passo seria eliminar o aleatório das palavras, uma vez que cada palavra resultava da união de um som e de um sentido. Tal far-se-ia pela inclusão de “vários elementos vocais que acabariam por refazer uma palavra total, nova, estranha à linguagem”.
O próprio formato do Livro teria também de ser alterado. Para conseguir que ele fosse absolutamente coerente, desenvolveu imensos cálculos respeitantes ao número de volumes, dimensões de cada volume relativamente ao conjunto (se empilhados ou alinhados, se vistos de face ou de perfil), número de páginas (igual número para cada volume), número de carateres impressos por página (a mancha da superfície negra da impressão deveria equilibrar-se com a superfície da mancha branca não impressa), e por aí.
Para retirar o carater estático normal dos livros, cada volume deveria conter folhas móveis que deveriam ser deslocadas segundo certas combinações de dados, não sendo prescrita qualquer sequência de leitura, o que permitiria que qualquer leitor se colocasse na função de coautor. Se vivesse hoje, certamente Mallarmé seria o primeiro a comprar um smartphone e a navegar nas redes sociais.
Para conseguir isso, era sua intenção que qualquer escolha de um conjunto de folhas formasse por si só não apenas um conjunto coerente, mas que pudesse também vir a transmitir um novo sentido à obra sem que com isso viesse retirar qualquer sentido aos conjuntos de folhas anteriores, acrescentando-lhes até mais clareza.
O resultado pretendido seria o da revelação de uma verdade única, mas de múltiplas facetas.
Só assim o Livro tornaria um objeto vivo, um teatro. Teatro do mundo, imaginado por Mallarmé a ser representado perante audiências escolhidas. Deveria ser como uma espécie de performance, em que vinte e quatro leitores-espetadores (doze homens e doze mulheres) teriam vinte e quatro folhas diferentes à sua disposição, aleatoriamente distribuídas e (des)ordenadas. A instituição de um culto moderno.
Para além deste livro ser como que a soma de todos os livros existentes, teria ainda possibilidades infinitas de entradas para a sua leitura.
Tudo isto vai fazer com que o livro nos apareça como qualquer coisa muito menos sólida e permanente do que estamos (estávamos) habituados a pensar. Neste aspeto, ele identificar-se-ia plenamente com o mundo.
E este é um problema muito interessante: a ser assim, não teria afinal Mallarmé conseguido alcançar a sua intenção de fundir o Livro com o mundo?
Dir-me-ão: mas, não será o projeto de um Livro como este sempre impossível de acabar? A pergunta a fazer deveria ser outra: o que aconteceria ao mundo no qual uma única obra de literatura abolisse toda a literatura que o precedesse, se por acaso fosse possível acabá-lo?
Acabaríamos por estar perante um ‘livro-mundo’ que, com a pretensão de se identificar com o mundo, iria consumir e eliminar tudo o que fosse o livro e o mundo.
Como dizia Giorgio Manganelli (Nuovo Commmento):
“O ‘livro’ é o que não tem lugar nem dentro do livro, nem no mundo e, por essa razão, ele deve destruir o mundo e destruir-se a si próprio”.
Um fim do livro do mundo e do mundo livro, em qualquer dos casos sempre bem de acordo com a tradição cristã de fim do mundo. Muito curioso.
Escrevia Lawrence Durrell no Monsieur ou o Príncipe das Trevas:
“Nascemos loucos. Adquirimos moralidade e tornamo-nos estúpidos e infelizes. Depois morremos.”
“É mais difícil os Jogos Olímpicos darem deficit do que um homem dar à luz um bebé”, Jean Drapeau, presidente de Montreal, que teve depois um deficit de 1.600 milhões de dólares.
A deslocação dos pobres das zonas urbanas é uma marca das Olimpíadas modernas, uma certeza mais que um acidente que fatalmente ocorrerá.
“Os Jogos Olímpicos são uma cortina para encobrir a destruição.”
Os custos com as conquistas e ocupação militar, com a construção de infraestruturas e outros, tornavam muitas vezes a exploração das antigas colónias pouco, ou mesmo não rentáveis, gerando a exploração dos nativos maiores gastos que benefícios. E, no entanto, continuava-se a fazer. Porquê?
Apesar de tudo, deveria ser lógico que estes tempos em que vivemos permitissem uma melhor leitura sobre os acontecimentos, dada a muito maior quantidade de informação disponível. O que se passa é que essa enorme quantidade de informação serve para esconder o propósito que lhe está subjacente por raramente permitir concluir seja o que for, em que até o próprio contraditório se dilui no oceano da própria informação.
A informação a mais é usada para manter a cabeça das pessoas ocupadas com algo leve e que lhes permita ‘conversar’ com as outras, fazendo-as sentir parte desta grande comunidade sempre a par dos últimos acontecimentos que lhes são fornecidos como sendo os importantes, anestesiando-as, pacificando-as, levando-as a que, dada a enorme quantidade e velocidade a que se seguem as informações que as impede de formularem qualquer juízo, se deixem de importar. Importarem-se para quê, se não podem controlar ou intervir, ou mesmo saber qual é a verdade? Basta-lhes saber o que todos dizem que também sabem. Isso é que é o que importa. Isso é que é a verdade.
O facto é que desde que a religião baixou do céu para a terra, a verdade passou a ser relativa. Nos tempos de hoje em que não há verdades absolutas, as verdades passaram a ser parciais, mais pequenas, variando com as origens e propósitos.
Sem grandes verdades não há grandes homens. Por isso, clamar pelo aparecimento de grandes homens, é um anacronismo sem qualquer hipótese de realização. Hoje é o tempo de homens pequenos, de passagem mais ou menos rápida, o que até não seria mau se se preocupassem em ser.
Não conseguindo também definir o que é o grande acontecimento, deixa de haver diferença entre grandes e pequenos acontecimentos. Todos eles são apenas acontecimentos, coisas que dizem que acontecem para prontamente serem esquecidas e substituídas por outros acontecimentos.
As linhas de separação tornam-se pouco nítidas, esbatem-se, tornam-se voláteis. Por exemplo: para a maioria das pessoas a corrupção aparece já como sendo “natural”. Todos a fazem, portanto é “natural”. É “natural” que ser banqueiro envolva defraudar os clientes. Não admira que o presidente do Banco Federal dos EUA considerasse que o capitalismo era “natural”. Nada mais natural.
Mas vejamos então o caso dos dinheiros dos Jogos Olímpicos, numa versão sem açúcar. Porque são organizados? Quem se perfila para os fazer? O que é preciso prometer? Quem paga? Quem ganha?
Para além dos gastos com as infraestruturas necessárias tidas como imprescindíveis, e cujos valores atingirão normalmente vários milhares de milhões de euros, qualquer país ou cidade que queira apresentar a sua candidatura à organização de uns Jogos Internacionais tem, logo à partida, de gastar só por isso um mínimo de 100 milhões de euros, alguns por dentro, outros por fora.
Por exemplo, é sabido que grande parte dos membros do COI (Comité Olímpico Internacional) são aristocratas e milionários (o príncipe Feisal Bin Al Hussein da Jordânia, a princesa Haya Bint Al Hussein, Alberto de Mónaco, Nora de Liechtenstein, entre outros), e que há, evidentemente, que contar com os gastos normais que fizerem no desempenho da sua atividade. Contudo, as exigências apresentadas podem ser tão grandes que os noruegueses decidiram não se candidatarem para os jogos de 2022, por as considerarem “incrivelmente não razoáveis”.
Contar também com gastos como, por exemplo, os de Juan Antonio Samaranch, membro do COI, que não sendo aristocrata, exigia ser tratado por “excelência”, deslocava-se para todos os lados de limusina, dormia sempre em suites e vivia, à conta do COI, no Hotel Palace de Lausanne numa suite de 500.000 dólares anuais.
Quanto às comissões e presentes, os seus valores podem também alcançar níveis exorbitantes. É o caso das comissões atribuídas pelos contratos de patrocínio e de TV que podem render até 30 milhões ao membro do COI que esteja encarregado de as autorizar (e só ele é que pode). Quanto aos presentes, vão desde as ‘pequenas’ ofertas (como relógios Parmigiani de 25.000 dólares cada) a bolsas de estudo para universidades de topo aos filhos dos membros do COI.
Apesar de a regulamentação prever que os membros do COI só possam receber presentes até 150 dólares, a candidatura de Salt Lake City gastou 400.000 dólares só em presentes e bolsas de estudo a familiares de membros do COI. Para a candidatura de 2028 a Holanda já gastou 105 milhões em “estudos de viabilização e organização de acontecimentos para atrair o voto favorável dos membros do COI”. Lembremos Chicago que, só para a sua inscrição à candidatura de 2016, perdeu os tais 100 milhões.
E tudo começa sempre da mesma forma, com imensos estudos e informações detalhadas feitas por reputados economistas e outros que concordam todos com os benefícios que os países e cidades organizadoras irão ter. Ficou célebre a frase do canadiano Jean Drapeau, presidente de Montreal a quando da organização dos Jogos: “É mais difícil os Jogos Olímpicos darem deficit do que um homem dar à luz um bebé”.
A propósito, convém dizer que os Jogos Olímpicos de Montreal tiveram um deficit de 1.600 milhões de dólares, que a cidade levou trinta anos para liquidar.
E lá estão sempre os mesmos grupos de interesse a apoiar: empresas de construção, estúdios de arquitetos, companhias de seguros, cadeias hoteleiras, meios de comunicação, bancos de inversão, e os escritórios de advogados que trabalham para todos estes grupos.
Os famosos e rigorosos estudos prometem sempre enormes quantidades de visitantes. Em Pequim estimaram 400.000, chegaram 235.000. Em Sidnei 135.000, chegaram 97.000. Em Atenas 105.000 chegaram 14.000. No Mundial da África do Sul contavam com 400.000 apareceram 220.000. O Reino Unido perdeu 6,1% de turistas face ao ano anterior, Salt Lake 10% face a 2002. Em todos os casos, Sochi, Londres, Atenas, Cidade do Cabo, diminuíram as vendas do comércio local e, subiram os preços. O Mundial do Brasil não foi exceção com os seus preços abusivos relatados e expostos nas redes sociais.
Contrariamente aos estudos apresentados, o turismo baixou durante as celebrações das Olimpíadas e do Mundial de futebol. Isto porque os turistas desportivos não se somam automaticamente aos turistas convencionais. Em 2008, a China perdeu 7% das visitas turísticas, Pequim perdeu 30% em comparação com agosto do ano anterior. Os turistas naturais fogem. Além disso, os benefícios do turismo são muito relativos, uma vez que as principais cadeias hoteleiras têm muitas vezes a sua sede fiscal noutras cidades e noutros países.
As enormes quantias gastas atingem números exorbitantes, para não adjetivar de outra forma. Atenas, 16.000 milhões. Londres, 18.000 milhões. Mundial do Brasil, 20.000 milhões. Sochi, 70.000 milhões. Mundial de Qatar, 220.000 milhões (estimado). Só na cerimónia de abertura, Pequim gastou 343 milhões.
Acresce que nos países dos BRICS, em que a grande maioria das obras tem de ser construída de raiz e em que a dívida dessas construções se manterá durante décadas (em detrimento de gastos sociais), os trabalhadores que os constroem são normalmente mal pagos, muitos de eles emigrantes em condições deploráveis. Por exemplo, no Qatar morreram já um milhar de trabalhadores, que aí ganham 0,76 dólares à hora.
Vem ao caso citar a conclusão de um grupo de historiadores belgas que recentemente analisou a realização dos Jogos em Anvers em 1920, organizados devido a um empréstimo a 4% de um milhão de francos oriundos de um fundo privado. Numa época em que apenas a classe alta dispunha de tempo para praticar desportos, o deficit deixado foi de 626.000 francos, a serem pagos pela cidade. A conclusão dos historiadores foi:
“O que fica claro é que um pequeno grupo de cidadãos proeminentes, possuidores de grandes fortunas, conseguiram utilizar os jogos olímpicos em benefício próprio, para acrescentar o seu prestígio social”.
Apenas os jogos de Los Angeles de 1984 tiveram um superavit de 215 milhões. Isto porque a maior parte das infraestruturas estavam já construídas, e porque a cidade, antes de aceitara organização, precaveu-se com a garantia de que não cobriria quaisquer perdas.
São estádios inteiros que se fazem e que não voltam a serem usados para mais nada a não ser casamentos e batizados, bairros inteiros de que se expulsam as populações. E, não se pense que isto só acontece nas cidades dos países menos desenvolvidos: acontece em Londres, Atlanta, Seoul, Pequim e outros.
Durante as últimas seis olimpíadas foram expulsas à força ou por outra forma, mais de 2 milhões de pessoas. Pequim é responsável por metade das expulsões. Agora no Rio conta-se com 70.000 a 90.000 pessoas forçadas a deixarem as suas casas.
A deslocação dos pobres das zonas urbanas é uma marca das Olimpíadas modernas, uma certeza mais que um acidente que fatalmente ocorrerá.
Nas últimas duas décadas, os Jogos Olímpicos não foram só um acontecimento desportivo. Foram um veículo para a renovação urbana, gastando as cidades centenas ou milhares de milhões de dólares em infraestruturas e outros projetos, sempre com o intuito de ficarem para o futuro e para o benefício de todos.
Na realidade, os maiores beneficiários dos jogos olímpicos são as empresas locais e internacionais de construção encarregues desses projetos, bem como os residentes ricos dessas cidades. Os pobres perdem sempre.
Os projetos de desenvolvimento de habitações dos Jogos começam sempre com as promessas de reconstrução de novas residências nas mesmas áreas, a virem de novo a serem ocupadas pelos antigos residentes. Raramente isso acontece.
Os bairros que estão na zona de destruição e passagem dos buldózeres são normalmente povoados por famílias de baixos recursos. Os novos bairros que os substituem acabam por serem ocupados por populações com maiores recursos. Mesmo aqueles apartamentos que são considerados como vindo a serem de renda acessível, não serão já acessíveis aos que anteriormente lá habitavam.
Eis o que se passou em Atlanta 1996. Das 900 famílias que habitavam Techwood e Clark Howell em 1990 quando Atlanta ‘ganhou’ a organização dos jogos, apenas 7% delas (78 famílias) tinham sido realojadas nos novos apartamentos em 2000. E, especialmente, perdeu-se todo aquele sentimento de entreajuda e conhecimento que é característico dos bairros.
Em Londres2012, onde os jogos se concentraram na parte oriental nas áreas industriais de Stratford e Newham, só na zona de Clays Lane residiam mais de 400 pessoas a quem foi prometido que metade das novas habitações a aí serem construídas seriam de rendas acessíveis.
O que aconteceu foi que, após os jogos, os preços das casas subiram drasticamente (71%), afastando da área os antigos moradores de mais fracos rendimentos.
Também a promessa de que 50% das casas seriam de renda acessível, foi rapidamente reduzida para 41%, passando atualmente para “um máximo de 31%”.
Sobre os projetos urbanísticos do Rio 2016 dizia Christopher Gaffney, da Universidade de Zurique:
“Isto não é um produto subsidiário dos jogos. Isto é oproduto dos jogos.”
Sempre que se fizerem construções Olímpicas, vão sempre ser deslocadas as populações mais pobres.
Segundo Larry Keatin, professor da Georgia Tech:
“Os Jogos Olímpicos são a cortina para encobrir a destruição. Não penso que fossem possíveis tais planos de destruição feitos através de uma campanha política, mesmo que efetiva, se não fosse a cobertura dada pelos Jogos Olímpicos.”
Sabemos que os custos com as conquistas e ocupação militar, com a construção de infraestruturas e outros, tornavam muitas vezes a exploração das antigas colónias pouco, ou mesmo não rentáveis, gerando até a exploração dos nativos maiores gastos que benefícios. E, no entanto, continuava-se a fazer. Porquê?
O truque foi sempre o mesmo: os gastos eram pagos pelo Estado (britânico, francês, espanhol, italiano, alemão, português…) através dos impostos de todos (especialmente numa época onde a progressividade fiscal era praticamente inexistente), ao passo que os benefícios ficavam para os monarcas, para os donos das companhias mineiras e comerciais que exploravam de forma privada as principais plantações e minas donde extraiam o açúcar, o café, os diamantes, o ouro, a prata, a borracha, o petróleo.
Ou seja, socialização dos gastos tendo em vista razões estratégicas e de prestígio, logo seguida da privatização dos benefícios económicos. Dantes, como agora.
Não é, pois, de estranhar que estes “Jogos” contemporâneos, apesar de estarem sempre relacionados com dinheiros, se continuem a chamar de “Olímpicos”. Sendo o Olimpo o monte onde residiam os deuses da antiguidade grega, é perfeitamente coerente a manutenção do termo “Olímpicos” para estes novos jogos, uma vez que na realidade apenas foram substituídos os deuses antigos pelos deuses da contemporaneidade: dólares, euros, libras, rublos …
A religião tornou-se mais transparente, sendo, contudo, menos religião. Mas, ainda assim, religião.
“Quanto custa, afinal quanto custa uma quinhenta de amendoins do negrinho de faces tatuadas de ranhos seco?”.
“Zita mulata com três recrutas, mas ela ficou a Zita mulata com três filhos”.
“E o machimbombo amarelo e vermelho esgota-se de xipamanines de olhos até ao estribo”.
Agora que no mês de agosto gozamos quase todos das férias que nos foram generosamente ‘concedidas’, em que o calor aperta e nos afasta de leituras elaboradas aproximando-nos mais das notícias das TVês 24, que de tanto repetidas nos dão o conforto de um qualquer conhecimento prévio que nos aparece como inerente e “déjà vu”, lembrei-me de reproduzir, ao longo destas quatro semanas, alguns poemas que faziam parte de uns caderninhos de folhetos artesanais, “Caliban”, que circulavam num restrito meio intelectual moçambicano, em 1971. Em Lourenço Marques, evidentemente.
De José Craveirinha:
Zita Mulata com Três Recrutas
Mas ela ficou
a Zita mulata com três filhos
voluntários irrecuperáveis a vinho das cantinas
com indústria de pernas “self-service” platónico às dúzias
um por um às vezes seis maridos em hora e meia de núpcias
sorte de inguavana na percentagem dessa noite
enquanto um chofer negro dormita
inexorável ao taxímetro
lá fora.
Nossa Cidade
Nossa cidade
esquisita na bilharziose das compridas
noites amansadas como gatas de estimação ronronando
aos pés do dono e sobre as citadinas
coxas de pedra entreabertas no lençol como
uma mulher saciada à segunda vez.
E nas ilhargas
da cidade os malditos meninos
de rostos tatuados de ranho seco
todos como pássaros fisgados no cajueiro dos malefícios
todos com os olhos amarelos de gemadas longínquas de sol africano
todos em carne viva sem sulfas de um naco de pão
todos a castanha de caju mastigada nos molares antropófagos da rua.
Nossa cidade
cemitério de mortos antes de o serem
e deserto povoado de um José-mulato jipe de carícias
nos joelhos nus das raparigas esfomeadas
também de angústias de cio
fêmeas e machos abotoados de ociosidade
devorando-se entre um boato e os relatos de futebol
ou enclausurando o universo no automóvel a prestações