“Todos os que trocam o valor da Liberdade, por uma pequena e temporária Segurança, não merecem nem Liberdade nem Segurança”, Benjamin Franklin.
“Os protestos são normalmente recebidos com granadas de gás lacrimogénio, gás pimenta, carros MRAP, e pelotões de forças antimotim equipados como Robocops …e em que a ordem é preservada por agentes governamentais que vêm as ruas e bairros como campos de batalha e os cidadãos como inimigos.”
“Para que serve ter estas soberbas forças armadas de que tanto nos orgulhamos, se não as pudermos usar?”, Madeleine Albright.
Nos primeiros trinta minutos da final do campeonato de futebol da Europa, todos assistimos à inutilização de Ronaldo e a várias tentativas idênticas feitas depois sobre Quaresma. Sabemos que faz parte das táticas de futebol (e não só, como veremos) as entradas duras sobre os adversários mais importantes, de forma a, no mínimo, amedrontá-los. Também os árbitros sabem disso. Uma das maneiras que têm para o evitar, é não permitir desde o início esse tipo de antijogo. Ao não fazer isso, o árbitro como que deu autorização aos jogadores franceses para utilizarem tais táticas. Conforme programado.
Em setembro de 1996, o Presidente Bill Clinton autorizou, ao abrigo da Secção 1033 da National Defense Authorization Act (NDAA), que todo o equipamento militar em excesso e que já não fizesse falta às Forças Armadas pudesse ser transferido a custo zero para as Agências Civis encarregadas de fazerem cumprir as leis.
Para se ter uma ideia do que isso significou, vejamos o que escreveu a revista Forbes:
“Os donativos feitos pelo Pentágono à polícia alcançaram em 2012 o valor de $532 milhões de dólares e de $449 milhões em 2013. Em 2014 o valor ultrapassou os $750 milhões …. Um MRAP Novo custa entre $500.000 e $750.000 dólares, mas para as polícias, através do programa 1033, o seu custo é zero.”
Nota: MRAP, abreviatura de Mine Resistant Ambush Protected (carro de assalto protegido e resistente às minas), um veículo impressionante usado no Iraque e outros teatros de guerra.
Como consequência, as forças de polícia dos EUA têm vindo a acumular um enorme arsenal de armamento que faria inveja à maior parte dos países. E, tal como acontece com qualquer organização que tenha em seu poder grande quantidade de armas letais, mais cedo ou mais tarde vão começar a usá-las. Não as têm para apanhar pó nas arrecadações.
Lógica que Madeleine Albright já tão bem expressara: “Para que serve ter estas soberbas forças armadas de que tanto nos orgulhamos, se não as pudermos usar?”.
Daí que, com uma regularidade cada vez maior, esses equipamentos e consequente treino militar tático que os acompanham, comecem a ser utilizados contra os cidadãos que a própria polícia deveria servir e proteger.
É esta militarização da polícia que vai transforma funcionários públicos, que são os polícias, em tropas do exército a atuarem em nome de corporações sem face visível.
Cidadãos e polícias passam a ser vítimas de um sistema que ‘descuidadamente’ os encheu de armas de guerra e de treino militar, enviando-os para as comunidades, no ‘convencimento’ de que a simples exibição do poder de fogo iria deter o crime.
A utilização de força excessiva por parte da polícia para quebrar manifestações passou então a ser um exercício normal.
Foi o caso das manifestações pacíficas dos estudantes da Universidade de Pittsburgh em outubro de 2009 contra a Reunião dos G-20. As táticas empregues pela polícia incluíram a utilização de gás lacrimogénio, gás pimenta, balas de borracha, e canhões de som (os célebres LRAD, Long Range Acoustic Device, até aí só usados pelo Exército americano no Iraque). Foram presas 200 pessoas durante os protestos.
No dizer de Bill Quigley, diretor do Centro para os Direitos Constitucionais:
“A polícia fora convencida de que ia lidar com terroristas, e como não apareceram terroristas, utilizaram o seu potencial, incluindo pela primeira vez nos EUA os canhões de som, contra os protestantes e posteriormente contra os estudantes. Foi uma completa reação excessiva. As forças de segurança perderam o controle.”
Outro caso bem elucidativo foi o que aconteceu após a morte de três pessoas ocasionada pela explosão de bombas durante a Maratona de Boston em 2013. Eis o que o conceituado e insuspeito Senador Ron Paul escreveu e disse sobre o assunto, relativamente às buscas feitas porta a porta sem qualquer mandato judicial para encontrar o suspeito Dzhoknhar Tsarmaev:
“Estas não são cenas de um golpe militar acontecidas numa qualquer república das bananas, mas cenas que ocorreram há menos de uma semana nos Estados Unidos, e em que Boston experimentou o sabor do que é uma lei marcial. A razão invocada para que parte de Boston fosse sujeita a essa tomada por forças paramilitares foi a de que o acusado desse crime horrível, andasse à solta. As explosões de Boston, forneceram a oportunidade para o governo transformar o que deveria ser uma investigação policial numa ocupação ao estilo militar de uma cidade Americana.”
E continua:
“Temos sido levados a acreditar que a função do governo é a de nos providenciar segurança, quando na realidade a função do governo é a de garantir as nossas liberdades. Sempre que o governo decidir que o seu papel é manter-nos seguros … isso será feito sempre à custa das nossas liberdades. Isso foi o que aconteceu em Boston.”
Muitos são os americanos que se começam a interrogar como foi possível que o sistema degenerasse tanto até se chegar ao ponto em que “os protestos sejam normalmente recebidos com granadas de gás lacrimogénio, gás pimenta, carros MRAP, e pelotões de forças antimotim equipados como Robocops …e em que a ordem é preservada por agentes governamentais que vêm as ruas e bairros como campos de batalha e os cidadãos como inimigos.”
Cada vez mais as forças policiais se assemelham a um exército de ocupação, e o pior é que cada vez mais as pessoas se acostumam a ver os polícias de camuflado e fardados como personagens da Guerra das Estrelas (Star Wars), a deslocarem-se em carros de assalto, armados com espingardas automáticas, como se estivessem em Bagdad.
Os casos de mortes de negros às mãos da polícia, levou à formação do movimento ativista “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), que se tem desdobrado em manifestações e protestos.
Curiosamente, o número de brancos americanos mortos pela polícia em 2015 foi de 494, e o de negros foi de 258. Se nos reportarmos aos números entre 1980 e 2012, verificamos que a percentagem de brancos mortos pela polícia foi de 44 por cento.
Este ano, 2016 ainda a meio, o número de cidadãos mortos pela polícia vai já em 500, ou seja, estamos num crescendo. Face a estes valores, talvez fosse antes caso para um movimento “Human Lives Matter” (Vidas Humanas Importam), pois é exatamente isso que está posto em causa.
A transposição das atuações tidas nos campos de batalha de guerras exteriores para a sociedade civil dentro dos Estados Unidos, culminou com a morte em Dallas de Micah Johnson, que antes assassinara 5 polícias.
Micah Jonhson, era um veterano de guerra com problemas, atualmente pertencente à Reserva do Exército, após ter feito uma comissão de quatro anos no Afeganistão, que praticava táticas militares no seu quintal, e que armado com uma SKS semiautomática, usando uma proteção de corpo inteiro, e zangado com as mortes provocadas pela polícia sobre civis negros, assassinou cinco polícias brancos.
Encurralado, e como não se rendia, a polícia decidiu enviar um pequeno carro robot (um Remote Andros F5, construído pela empresa de armamentos Northrop Grumman) com explosivos (C4) acionados à distância e assim assassinar deliberadamente, sem mais demoras ou esperas, sem qualquer mandado judicial, Micah Johnson, como se estivessem numa operação de guerra contra terroristas no Iraque.
É a transposição do campo de guerra exterior para as comunidades dentro dos próprios EUA. As diferenças tornam-se cada vez mais difíceis de distinguir. Cidadãos ou terroristas?
Estes tipos de atuação constituem não apenas um perigo para os cidadãos, mas também para a própria polícia, uma vez que passa a ser encarada com medo e desconfiança por grande parte da população para a qual a polícia deixa de representar o que se espera dela: proteger e servir.
Estes tipos de atuação só podem ser propositados e consentidos. Tal como o do árbitro da final do Portugal França.
"Quem só faz meia revolução, cava a sua própria sepultura", Saint-Just.
A Base Aérea de Incirlik contém no seu inventário cerca de cinquenta bombas de hidrogénio B-61, o que constitui mais de vinte e cinco por cento do arsenal nuclear da NATO.
Há alguns meses atrás, o Pentágono deu “ordem de partida” para todos os familiares das tropas americanas estacionadas em Incirlik, com a indicação que deveriam sair imediatamente.
Vivemos num mundo, como muito bem notou Hobbes, “de guerra de todos contra todos”, pelo que se torna difícil discernir entre as várias razões e nomear conjuntos coerentes.
Nada melhor para mascarar a realidade do que atribuir-lhe uma ideologia. A ideologia não nos deixa ver o real da realidade.
Durante o dia do golpe de estado de 15 de julho, o governo turco cortou a energia à Base Aérea de Incirlik, situada no sudeste da Turquia, tendo ainda proibido as descolagens de quaisquer aviões da Força Aérea americana. No dia seguinte, o comandante da Base, General Bekir Ercan Van e outros nove oficiais turcos foram detidos por, alegadamente, terem apoiado o golpe.
A Base Aérea de Incirlik foi construída pelos americanos logo após o fim da Segunda Guerra, e ‘entregue’ à Turquia em 1952 após esta ter aderido à NATO, constituindo um dos pontos fortes no seu esquema tático com vista a contrariar a União Soviética. Encontrando-se a uma hora de voo da URSS, abrigava imensos aviões de caça e interseção, bombardeiros, aviões tanques de reabastecimento, e aviões de espionagem como os U-2. E, como em muitas das bases da NATO, possuía armas nucleares.
Ainda hoje, a Base de Incirlik contém no seu inventário cerca de cinquenta bombas de hidrogénio B-61 (segundo Hans Kristensen, diretor do Projeto de Informação Nuclear da Federação de Cientistas Americanos), o que constitui mais de vinte e cinco por cento do arsenal nuclear da NATO.
Estas bombas B-61 têm a particularidade de a sua força explosiva poder ser ‘regulada’ de 0,3 quilotoneladas a cento e setenta quilotoneladas (a bomba que destruiu Hiroxima tinha o equivalente a 15 quilotoneladas de TNT).
Sabe-se que a partir de 1965 existiam mais de sete mil armas nucleares americanas nas várias bases da Europa Ocidental, incluindo Itália, Grécia e Turquia. De ogivas nucleares, a bombas, minas terrestes, cargas de profundidade e projéteis de artilharia, havia de tudo.
Teoricamente, estas armas estão sob a custódia de oficiais dos EUA, prontas a serem entregues em caso de conflito aos oficiais dos outros países. Na prática, não é bem assim.
Durante a Crise dos Misseis de Cuba, o Governo americano, com receio que os oficiais turcos pudessem tentar disparar alguns dos mísseis nucleares da NATO contra a União Soviética, deu ordens aos seus representantes para sabotarem os mísseis, impedindo assim que pudessem ser lançados.
A partir daí foram introduzidos códigos de lançamento (PALS- Permissive Action Links) para todos os mísseis nucleares em bases NATO. Só que estes códigos podiam ser desativados se se tivessem os conhecimentos técnicos necessários. Assim, durante os confrontos que estavam a opor a Grécia e a Turquia em 1974, os EUA retiraram secretamente da Grécia todas as armas nucleares das bases NATO e cortaram os iniciadores de todas as armas nucleares guardadas na Turquia, tornando-as inoperativas.
Atualmente, os EUA dispõem de cerca de cento e oitenta armas nucleares nas bases NATO, sendo todas elas bombas B-61. A maior parte delas está em Incirlik, e nas bases da Alemanha, Holanda, Bélgica e Itália.
Há alguns meses atrás, o Pentágono deu “ordem de partida” para todos os familiares das tropas americanas estacionadas em Incirlik, com a indicação que deveriam sair imediatamente. A guarnição americana de Incirlik manteve-se com cerca de dois mil e setecentos militares.
Vivemos num mundo, como muito bem notou Hobbes, “de guerra de todos contra todos”, pelo que se torna difícil discernir entre as várias razões de cada um e mesmo nomear conjuntos coerentes.
Por exemplo, ao dizermos “americanos”, estamos a referirmo-nos a quê? A todos os americanos? Ao governo americano? A instituições americanas? Quais? A grandes empresas? Quais?
É que os EUA são um enorme país, com grande diversidade de pontos de vista, com grandes e díspares interesses no mundo. Não é possível, a não ser em raras e muito específicas ocasiões, que os interesses de toda esta diversidade de poderes e interesses americanos coincidam.
Complexo militar-industrial, gigantescas empresas de data, Pentágono, CIA, enormes empresas financeiras, têm quase todas interesses divergentes, muitas vezes até dentro delas, tentando todas ultrapassarem-se umas às outras, seja de que maneira for. Têm todass planos alternativos e têm capacidades para os desenvolver e por em prática. É bom lembrar que as três maiores economias do mundo são os EUA, a China e depois a Califórnia!
Se a NATO apareceu inicialmente como contraponto às forças do Pacto de Varsóvia, rapidamente passou a ser uma força ao serviço da dominação económica dos EUA sobre a Europa.
Mas, sendo atualmente a Rússia um país capitalista também governado por uma plutocracia, como entender que seja considerada como o inimigo a abater, utilizando-se apara isso de todos os meios disponíveis, como se ainda fosse a União Soviética?
Como entender o porquê do provável envolvimento na preparação de um golpe de estado na Turquia, país NATO? Isto porque não é possível conceber que toda a preparação de um golpe de estado, com as suas conversações telefónicas, mensagens trocadas, reuniões, lhes tenham passado despercebidas. Tudo indica que a cartada estava para ser jogada.
Todo o programa radiofundido do Conselho da Paz vai nesse sentido: restabelecer as liberdades democráticas. Como se só agora se soubesse que o estado turco não era democrático!
A utilização da deriva empreendida pelo governo turco no sentido da islamização é o subterfúgio para que alguns órgãos de comunicação enfeudados a uma certa orientação de algumas forças americanas se apressassem a dizer que se tratava da última hipótese para evitar uma radicalização islâmica da Turquia.
Tal como para com a Rússia se agita o papão do restabelecimento do império da União Soviética, aqui agita-se o papão do estado islâmico. Aliás, o mesmo já fora também feito com a Alemanha nazi, considerada má por ser nazi. Nada melhor para mascarar a realidade do que atribuir-lhe uma ideologia. A ideologia não nos deixa ver o real da realidade.
Querem-nos fazer esquecer que quer a Rússia, a Turquia e a Alemanha Nazi, todas elas fazem parte do mesmo sistema capitalista. Todos estes países são, eram, capitalistas. Os mesmos métodos, as mesmas finalidades. Com maior ou menor brutalidade.
Porquê então guerreá-los? Em qualquer destes três casos, o capitalismo americano interessado (ou parte dele) não conseguiu dominar, penetrar, no capitalismo nacionalista instituído. Este capitalismo nacionalista entendia que a exploração e lucro teriam de ficar para eles, e, por outro lado, também porque a população ‘preferia ser explorada pelos seus próprios capitalistas’. Aquilo que para uns é um empecilho (religião, mafia, desígnio, ‘cultura’) para outros é uma defesa, um travão.
Séculos atrás dizia Saint-Just: “Quem só faz meia revolução, cava a sua própria sepultura”. A repressão que se lhe segue era totalmente previsível. O aparecimento de listas de inimigos faz parte do processo: até a PIDE prendia por listagem e até por antecipação. Os Minority Reports não apareceram com o Tom Cruise!
Deram-lhes a linha, ensinaram a pescar e agora dizem que os peixes que pescaram não são os bons!
A impaciência da arrogância conduz a situações destas. Nada de novo. Nada que não tenha remédio. Não há problema: afinal a Turquia está na NATO, portanto é um país democrático.
A técnica moderna trás consigo três grandes equívocos que nos podem vir a ser fatais. Eles são: a ilusão da liberdade, a ilusão da felicidade e a ilusão da companhia.
A concorrência globalizada faz com que a história avance independentemente da vontade dos homens, e pior, sem garantias que seja no sentido correto.
O verdadeiro problema não reside no facto do mundo poder ser secretamente guiado por alguns “poderosos”, mas no facto de ele nos escapar a todos, incluindo aos poderosos.
É facto que não escapa à observação de ninguém que, devido à concorrência generalizada hoje existente, todas as empresas e laboratórios científicos, são forçados a aumentar constantemente a sua produtividade, os seus conhecimentos, as suas aplicações, para que o consumo dos seus produtos cresça, a fim de não serem ultrapassados pelos concorrentes.
Quer lhes agrade ou não, as empresas vêem-se obrigadas a lançar, pelo menos uma vez por ano, novos produtos, novos computadores, novos sistemas operativos, telemóveis, televisores, jogos, ligações à internet. Quem não o fizer, quem ficar para trás, desaparece.As marcas que não acompanharem a “inovação”, desaparecem. Torna-se um imperativo para a sobrevivência.
O progresso que se vem verificando em quase todas as empresas e laboratórios científicos, não tem outro objetivo senão fazer com que se mantenham na corrida com os outros concorrentes. Esta concorrência globalizada faz com que a história avance independentemente da vontade dos homens, e pior, sem garantias que seja no sentido correto.
Como Margarida Amaral exemplarmente resume:
“A técnica é um processo sem finalidade, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido: no limite, já ninguém sabe onde nos conduz o curso do mundo, porque ele é mecanicamente produzido pela competição e não dirigido pela vontade consciente dos homens agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de uma sociedade, de uma causa comum”.
É, exatamente por considerar que é a técnica que está subjacente a toda a evolução que tem conduzido a um universo desprovido de sentido e que se nos escapa por todos os lados, que Heidegger nos chama a atenção para o problema que a técnica põe. O que o preocupa é que com esta técnica nos estejamos a afastar cada vez mais das promessas feitas, segundo as quais iríamos poder fazer finalmente a nossa história, termos uma palavra a dizer sobre o nosso destino para tentar melhorá-lo.
Para ele, o verdadeiro problema não residia no facto do mundo poder ser secretamente guiado por alguns “poderosos”, mas no facto de ele nos escapar a todos, incluindo aos poderosos.
E isto porque, devido à competição globalizada, o progresso científico deixou de visar “fins exteriores e superiores” a ele para se tornar um fim em si mesmo, como se o poder ou o domínio dos homens sobre o universo se tornasse ele próprio a sua finalidade.
O “progresso” torna-se assim um processo “automático, sem finalidade e autossuficiente”, o que faz com que a época atual nos apareça como “sacralização de um universo liberal votado ao não-sentido”.
Está-se, portanto, perante um caso nítido do desaparecimento dos fins em proveito da lógica única dos meios, uma vitória total da técnica.
Face a este problema que a técnica moderna põe, há os que aceitam passivamente o caminho que ela segue, e há os que a diabolizam, repudiando-a.
Para os que a aceitam (visão otimista), consideram que a técnica não é mais do que um conhecimento prático que permite alterar a Natureza, sem, contudo, constituir um atentado contra ela. Dentro destes, podemos ainda distinguir aqueles que partilham de um otimismo total, “otimismo cego”, (o que representa um perigo, na medida em que impede o aparecimento de um pensamento crítico), e os que pretendem uma certa visão lúcida entre o otimismo cego e a diabolização.
Para os que a diabolizam (tecnofóbicos), a técnica é entendida como um “demónio” que ameaça permanentemente o valor contido na dimensão espontânea da Natureza, impossibilitando um mundo futuro.
Para nos posicionarmos perante o problema, convém não esquecermos que a ciência e as suas aplicações tecnológicas mudaram o modo como vivemos a nível planetário, trazendo-nos benefícios e desvantagens.
Do lado dos benefícios podemos considerar a melhoria da qualidade de vida (para quem dela pôde beneficiar), uma libertação das tarefas rotineiras, um aumento de produtividade e riqueza (mesmo que não tenha sido igualmente distribuída), uma melhoria nos cuidados de saúde, um aumento da esperança média de vida, novas fontes e novas formas de energia, a possibilidade de um maior acesso à informação e à cultura, e a possibilidade de recuperação de espécies em risco de extinção.
Do lado das desvantagens podemos considerar a poluição, a exploração desenfreada de recursos naturais, o forte desequilíbrio dos ecossistemas, o desemprego, um maior número de acidentes, uma maior desigualdade entre ricos e pobres, a sua aplicação à guerra e a possibilidade de provocar danos irreversíveis não previstos nem acautelados.
Paul Virilio (1932-), na obra Un paysage d’événements, chama-nos ainda a atenção para um outro problema ligado aos progressos da técnica:
“Inventar o navio é inventar o ‘naufrágio’, inventar a máquina a vapor, a locomotiva, é inventar o ‘descarrilamento’, a catástrofe ferroviária. Também para a aviação, os aviões implicam o ‘embate’ com o solo, a catástrofe aérea. E, sem falar do automóvel e dos ‘choques’ em cadeia a grande velocidade, da eletricidade e da electrocução, nem sobretudo dos ‘riscos tecnológicos’ maiores resultantes do desenvolvimento das industrias químicas ou nucleares […] cada período da evolução técnica traz, juntamente com os seus instrumentos e máquinas, o aparecimento de acidentes específicos, reveladores «em negativo», do desenvolvimento do pensamento científico.”
Mas, para além da enumeração de prós e contras referidos, a técnica moderna trás consigo três grandes equívocos que nos podem vir a ser fatais. Eles são: a ilusão da liberdade, a ilusão da felicidade e a ilusão da companhia.
A ilusão da liberdade
A produção em série, apanágio da técnica moderna, onde as máquinas têm cada vez mais lugar, acabam por possibilitar ao trabalhador mais tempo livre. Teoricamente, este tempo em que o trabalhador permanece livre do tempo de produção, seria um tempo de liberdade. Mas ele só será um tempo de liberdade se o trabalhador estiver livre do ciclo de produção e consumo, para a realização de outras atividades.
O que acontece, é que o trabalhador, mesmo fora do tempo de produção, continua submetido ao ciclo de produção e à necessidade de consumo. Quando à ‘hora do almoço’ vai com o colega de trabalho, fala de trabalho; quando vai ao Centro Comercial para ‘não perder tempo’, continua dentro do ciclo de produção e consumo. Esta necessidade de consumo insaciável esgota praticamente todo o nosso “tempo livre”, restando pouco para outras atividades.
“Por isso, a liberdade é, no contexto do aumento do tempo livre possibilitado pela automação, uma ilusão e, enquanto tal, contribui para o equívoco de que há hoje maior liberdade”.
A ilusão da felicidade
O bem-estar é hoje considerado como um estado em que é possibilitado às pessoas uma satisfação instantânea e máxima das necessidades criadas numa sociedade de consumo. A técnica possibilita um bem-estar que é interpretado como sendo felicidade. A sedução do consumo.
Gilles Lipovetsky aborda este tema da sedução do consumo no seu livro A Era do Vazio, fazendo notar que o elogio da sedução (procura do prazer instantâneo) se verifica porque os produtos nos seduzem muito mais em nome do hedonismo do que em nome da construção do mundo. Segundo ele, tal sedução promove a homogeneidade – a indiferenciação das “nossas” escolhas -, o individualismo – o auto-centramento narcísico que surge obscurecido pela ilusão da companhia -, o ruído – a ausência de silêncio necessária para a tranquilidade do pensar -, e a neutralidade que até invade a nossa linguagem.
Se entendermos por felicidade uma satisfação que perdure no tempo, então o consumo de uma sociedade de consumidores, que corresponde a uma perpétua insatisfação por ambicionar uma abundância sem fim que nunca poderá ser concretizada, o mais que poderá alcançar será uma ilusão de felicidade.
“A incompletude (do consumo) reporta-nos, antes, a uma satisfação imediata e instantânea que, demasiado repentinamente, se abandona em nome de um outro desejo que a futilidade da vida atual depressa descobre”.
A ilusão da companhia
O apelo ao consumo que leva os indivíduos a lugares de aglomeração, e os meios técnicos que favorecem a socialização, são duas características da sociedade de consumo atual que favorecem o encontro alargado entre pessoas que, na grande maioria dos casos, nem se conhecem. Trata-se de “um encontro indiferenciado potenciado pelo consumo”.
“Somos os narcisos que convivem em nome do consumo e que, em tais circunstâncias, olham os outros não como seres plurais e relacionais em ato ou em potência, mas como iguais a si e, na pior das hipóteses, igualmente como produtos prontos a consumir num breve instante”.
É vulgar ouvirmos dizer que a técnica moderna propicia hoje mais encontros entre os indivíduos. O problema que se põe é o de saber se a técnica que é inerente à sociedade de consumo atual e que parece favorecer um encontro indiferenciado, permitirá um encontro efetivo entre os indivíduos ou, se pelo contrário, o contraria?
Esta dúvida, esta ilusão, vem da confusão estabelecida entre acompanhamento e verdadeira companhia. Este é o terceiro equívoco da técnica moderna.
O perigo desta ilusão é ela tender a fazer-nos esquecer o seu contrário: o individualismo contemporâneo e o auto-centramento narcísico.
Estas são as ilusões que nos têm vindo a ser vendidas. Estas são as ilusões que nós, alegre e incautamente, temos tendência a comprar. Algoritmo do futuro presente.
“Se os votos alterassem alguma coisa, eles não nos deixariam votar”, atribuído a Mark Twain.
Imaginemos dois rebanhos, um de cabras e outro de ovelhas: acreditar que quem ganhou foram as ovelhas ou as cabras é não perceber que quem ganha são sempre os pastores.
Julgo que ninguém duvida que, na sua base, os governos britânicos e os da união europeia têm métodos operacionais idênticos e seguem políticas semelhantes.
Daí, que não seja de estranhar que o divórcio que se verifica entre o povo e as políticas governamentais seguidas vá na mesma direção.
Por exemplo: muito embora a campanha dos que queriam sair da EU apontasse para o restabelecimento da soberania do povo, o facto é que a democracia britânica tem sempre operado mais através de uma subtil manipulação do que por uma genuína consulta popular.Há muito que as preferências populares vêm sendo negligenciadas pelo sistema eleitoral britânico.
A constatação é fácil: nas eleições de 2015, o partido trabalhista apesar de ter aumentado 1,4% o número de votos, perdeu 26 deputados. Em 1983, no campo oposto, Margaret Thatcher, apesar de ter perdido quase 700.000 votos, ganhou dúzias a mais de deputados.
Ou seja, para se ganharem eleições não se torna necessário ter mais votos, mas antes ter mais lugares, conseguidos através da canalização de dinheiro para causas populares e fáceis em detrimento de causas necessárias e difíceis. Esse é o dinheiro que vem dos grandes interesses, daí a côrte que ambos os maiores partidos fazem às grandes empresas de construção, aos investidores financeiros, aos magnates dos média e à indústria de bebidas alcoólicas.
E como isso exige contrapartidas, o povo britânico vive agora debaixo de um regime de cortes sociais, de privatização dos cuidados de saúde e precarização do trabalho, apesar de só um quarto deles ter consentido em tal com o seu voto.
É óbvio que este estado de coisas não vai mudar com a saída da EU! Nem com a sua permanência na EU!
Na UE passa-se o mesmo. O vice-primeiro ministro Nick Clegg, favorável à continuação na UE, apresentava o seguinte lamento/argumento a favor da democraticidade da organização:
“A UE levou quase 30 anos para acordar numa definição de chocolate – em parte porque os puristas continentais objetavam à inclusão de gordura vegetal como principal ingrediente, presente em muitas barras de chocolate inglesas.”
E concluia: “Um organismo que leva três décadas a definir chocolate, pode ser acusado de muitas coisas – no mínimo vagaroso e burocrático – mas certamente não poderá ser considerado como antidemocrático.”
Como esta Guerra do Chocolate não foi uma luta sobre gostos culinários, mas antes um esforço concertado entre os maiores fabricantes de chocolate do mundo (Nestle, Cadbury, Mars, Hershey, Jacob Suchard – da Philip Morris – e Ferrero) para que o mercado continental europeu se abrisse aos seus chocolates mais baratos e de menor qualidade, ficamos a saber quais são os valores democráticos porque se regem os governos britânicos e europeus.
Aliás, basta verificar a lista de encontros diários e constantes dos Comissários Europeus (www.ec.europa.eu/transparecyinitia) com os principais representantes das maiores empresas globais, seus advogados e seus grupos de consultores e técnicos ‘independentes’. Não é de estranhar que tudo o que não seja de interesse para os negócios fique negligenciado.
Percebe-se agora melhor a campanha do Ficar na UE. Afinal, trata-se de defender um mesmo processo de governar a que os governos britânicos já estão habituados.
Devido às diferenças entre as duas posições serem muito ténues, assistiu-se a uma campanha com argumentos muito confusos, primários e falsos. Tentando jogar com as reais preocupações das pessoas, quando, por exemplo, se perguntava se ‘Queres um trabalho decente?’ o que se estava era a insinuar se ‘Há muitos imigrantes?’, e no limite se ‘Pensas que a UE faz alguma coisa?’
Nada de discutir assuntos como o salário mínimo ou a habitação condigna, a crescente desigualdade, a especulação financeira, a política de imigração, a segurança nacional, ou as relações entre as várias regiões do Reino Unido. O assunto a discutir é só o ser a favor ou contra a permanência na UE, mas sem nada se prometer e sem nada ser certo.
Fica-se entre as promessas e as projeções de maior ou menor riqueza, em mais ou menos tempo, nada a que os comentadores de prognósticos de futebol e de economia não nos tenham habituado.
Para o conhecido jornalista britânico Tom Ewing, o resultado do referendo deve-se “à arrogância das elites neoliberais e das suas políticas que sempre pretenderam pôr de lado e rodear a democracia, deixando-a, contudo, formalmente intacta.”
Para o filósofo Michael Sandel: “Um grande número de votantes da classe trabalhadora sente que não só a economia os deixou para trás, mas também a sua cultura, as fontes da sua dignidade, a dignidade do trabalho, foram sendo socavadas e ridicularizadas pelo desenvolvimento da globalização, pela importância crescente das finanças, pela atenção despudorada que os grandes partidos prestavam ao económico e às elites financeiras e pela enfâse cada vez mais tecnocrática.”
Para o jornalista do Los Angeles Times, Vincent Bevins, “desde os anos oitenta as elites dos países ricos têm exagerado, ficando com todos os ganhos para elas e tapando os ouvidos quando alguém falava sobre isso, e agora vêm com horror a revolta dos votantes.”
No geral, as reações da elite política e dos media institucionalizados, podem ser agrupadas em dois tipos: as que pretendem inutilmente tentar entender porque tanto se enganaram, e as que atacam os votantes do Sair, por serem ignorantes, cabeças duras, estúpidos, xenófobos.
As elites financeiras, académicas, políticas, e jornalísticas, adoram o estatuto que essa sua posição lhes dá. Esse estatuto recompensa-os, envolve-os em prestígio e posição, acolhe-os em círculos exclusivos, permite-lhes estarem perto do poder enquanto percorrem o seu país ou o mundo, dá-lhes uma plataforma de visibilidade, enche-os de autoestima e dá-lhes um sentimento de missão messiânica (evidentemente sem o Messias, aliás, até contra o Messias).
Não é, pois, possível que estas mesmas elites que ajudaram à implementação da miséria e desigualdades crescentes, ao esvaziamento de cidades e à inúmera falência de comércios, consigam minimamente concluir seja o que for sobre as causas que levaram ao voto maioritário da Saída, sem se porem em causa.
As várias causas que ‘abraçaram’ e de que se fizeram arautos, desde a destruição do Iraque baseada em pressupostos falsos, os esquemas de corrupção que deram origem à crise económica de 2008 e que os encontrou colocados do lado da defesa dos plutocratas advogando como única saída a globalização crescente e a austeridade sem qualquer preocupação pela destruição da segurança económica que essas políticas originavam, o bombardeamento da Líbia e a instauração da anarquia prevista, o Estado Islâmico como produto subsidiário das guerras impostas ao Iraque e à Líbia, os sucessivos escândalos financeiros para os quais invariavelmente advogavam sempre a solução de serem suportados pelos mesmos, tudo isto e muito mais, levam, embora eles não acreditem, a que “os mesmos” comecem a pôr em causa quem os governa e quem os informa.
Como nota Chris Hayes em O Crepúsculo das Elites:
“Dada a amplitude e profundidade da desconfiança [nas instituições das elites], é claro que estamos no meio de algo muito maior e mais perigoso do que uma simples crise de governo ou do capitalismo. Estamos é no meio de uma mais larga e devastadora crise de autoridade.”
Esta crise de autoridade (não de polícia, não de maior coerção, não de mais armas), é também rapidamente apercebida por forças xenófobas, autoritárias, racistas, fascistas, que se manifestam e organizam perante este vácuo de autoridade.
As políticas plutocráticas com esta austeridade, ao privarem largas porções das populações de oportunidades básicas e esperança, ao promoverem o sofrimento económico sem fim à vista, torna as pessoas mais recetivas à aceitação de retóricas políticas de extrema direita, que, ao atribuírem a culpa às minorias e aos estrangeiros, dão-lhes ilusões para a resolução dos seus problemas (M. Funke, M. Schulaick, Going to extremes: Politics after financial crises, 1870-2014).
É exatamente por isto que as políticas plutocráticas e desta austeridade são tão perigosas.
Todos aqueles que se mostram satisfeitos e agradados com as tão desinteressadas e neutras instituições internacionalistas de salvaguarda do sistema, o Banco Mundial, o FMI, a NATO, a Reserva Federal, Wall Street, a City e aUE, não podem entender como há pessoas que, não só possam estar desiludidos com essas instituições, mas, crime dos crimes, até se queiram afastar delas.
Tendo sempre sido protegidos pelo sistema, não conseguem entender o sofrimento e revolta que ele causa nos outros.
Fazem parte do grupo de pessoas que tendo concordado com o bombardeamento de países muçulmanos, não percebem porque é que eles os queiram atacar. Procuram, em vão, tentar encontrar por todos os meios um racional que lhes explique o Brexit. Não o conseguindo, concluem: “Estas pessoas não têm quaisquer motivos legítimos provenientes de mágoas, ressentimentos ou de sofrimento económico. Elas são apenas pessoas gastas, velhas, ingratas, imorais, que tudo odeiam, racistas e ignorantes.”
Ou seja, em vez de atribuírem para si a responsabilidade pelos principais falhanços de situação criada, canalizam as suas energias para a demonização das vítimas da sua corrupção, tentando com isso deslegitimar as queixas e retirar deles a responsabilidade pela situação.
Chegam ao cúmulo, depois de acusarem os do ‘Saio’ como intolerantes, de responsabilizarem os mais velhos por cortarem as pernas aos mais novos, como se os mais velhos (e mais velhos serão quem? Os que têm 30 ou 40 ou 70?), pelo facto de serem velhos fossem estúpidos, imorais, ignorantes. Bem sabemos que só são tudo isso porque não votaram ‘Fico’: aí seriam tolerantes, inteligentes, preocupados com o futuro! A intolerância escondida com rabo de fora!
A minha proposta para que se mantenha o mito da democracia é que se façam novos referendos até que ganhem (procedimento já várias vezes utilizado), e se mesmo assim não ganharem, sugiro que da próxima vez ponham as crianças a votar. Essas é que sabem, e, para além do mais, têm o futuro (que não sabem) à sua frente.
Em boa verdade, as únicas duas ‘escolhas’ do referendo tinham que ver apenas com o tipo de neoliberalismo que aos britânicos se lhes oferecia: se o neoliberalismo britânico, se o neoliberalismo europeu.
Dizer que ganharam os do ‘Saio’ ou o dos ‘Fico’ é ver o problema dentro de baias. Imaginemos dois rebanhos, um de cabras e outro de ovelhas: dizer que ganharam as ovelhas ou as cabras é não perceber que quem ganha são sempre os pastores. Como é o caso!