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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

A originalidade da cópia

 “O conceito de original de restauro, tem na sociedade ocidental variado muito através dos ‘tempos’, a reboque de acontecimentos políticos, modas e outros, e tão depressa têm levado a sentimentos de admiração e culto pelas obras do passado, como a sentimentos de aversão e rejeição.

No Oriente, a descontinuidade poética da criação é substituída pelo processo linear da variação e da combinação pelo jogo.

 

 

Aquilo que é conhecido como sendo o Exército de terracota, é uma coleção de esculturas de terracota (literalmente ‘terra assada’ em fornos a baixa temperatura) em tamanho quase natural, representando os exércitos do primeiro imperador da China, Qin Shi Huang, e que foram enterrados juntamente com o imperador por volta de 210 a. C., evidentemente com a finalidade de o protegerem na sua vida após a morte.

Ao todo são mais de oito mil soldados, 130 carros de combate puxados por 520 cavalos, e ainda mais 120 cavalos prontos a serem montados.

A 25 de novembro de 2007, o Museu de Etnologia de Hamburgo abriu, com pompa, uma exposição que intitulou como o “Poder na Morte”, onde, pela primeira vez fora da China eram exibidas oito figuras de guerreiros, dois cavalos e 60 objetos menores do Exército de terracota.

Só que os “espertos” ocidentais concluíram que as peças expostas eram cópias, falsificações, o que levou a polícia a investigar a autenticidade das figuras e o Museu a devolver o valor das entradas a cerca de 10.000 visitantes que, entretanto, já tinham visto a exposição.

Para os guardiões ocidentais da cultura e não só, a China não passa de mais um país atrasado que ignora a propriedade intelectual, sempre pronta a inundar o mercado mundial com contrafações.

 

Mas, nem sempre o “Ocidente” foi assim tão severo e determinado.

 

Na Grécia antiga, a cópia era considerada como tendo igual valor à obra original. A conservação dos objetos era mais ditada por motivações económicas ou religiosas do que por preocupações de salvaguarda do original.

Na Roma antiga, a arte e a religião eram meios políticos de propaganda e conquista. O restaurar tinha como objetivo perpetuar a memória e a gloria do povo romano, o que implicava reparar e refazer sempre com formas mais grandiosas conforme as exigências do momento. Restaurar na arquitetura significava substituir elementos originais degradados por outros de fabricação nova, por materiais mais nobres.

Um monumento era mantido apenas se o poder o apreciava e queria que fosse mantido. Mudando o poder, assistia-se normalmente à decadência dos monumentos erigidos pelo regime precedente, igualando a tradição egípcia que fora removendo os revestimentos calcários que recobriam a pirâmide de Quéops para com eles construírem novos edifícios.

 

Com a advento do Cristianismo vai assistir-se a uma generalizada destruição e vandalização dos monumentos clássicos, considerados na generalidade como obras pagãs e politeístas, sendo olhados até com horror. Muitos dos antigos monumentos acabam transformados em pedreiras. Nesse tempo era, evidentemente, feito por cristãos, logo só por si justificado!

Com o Humanismo e o Renascimento começa-se a olhar para o passado como um património que devia ser salvaguardado como testemunho para o presente, fonte de aprendizagem de um método. Em 1462, o Papa Pio II publica um édito que proíbe a destruição e a reutilização dos materiais retirados dos monumentos antigos para as novas construções.

Isto significa que começa a ser particularmente valorizado um certo momento da história do homem, o da Idade Clássica. Mas, esta valorização do antigo tinha de ser reinterpretada através do conceito contemporâneo, o que levava a que tal operação só pudesse ser feita por entendidos, por artistas, com plena liberdade para executar tais trabalhos.

Com todas as suas boas intenções de amor pelo antigo, muitas das suas intervenções conduziram a alterações e falsificações das obras originais, nomeadamente devido a uma visão que não se importava assim tanto pela totalidade da obra, focalizando-se mais em pormenores isolados que mais convinham ou interessavam ao encarregue do trabalho.

As descobertas arqueológicas de Herculano e Pompeia em meados do século XVIII vão avivar a necessidade da conservação da integridade da obra de arte e da necessidade do aparecimento de teorias orientadoras, que até aí não existiam.

 

Nos meados do século XIX, Viollet-Le-Duc (1814 – 1879), escreve que “Restaurar um edifício não é, de fato, mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é o seu restabelecimento num estado completo que pode mesmo nunca ter existido num dado momento”.

Le-Duc convida o restaurador a entrar dentro da cabeça do criador original e executar projetos que, talvez, o construtor medieval nem nunca tivesse concebido, o que acabou por levar a operações de reparação e restauro totalmente arbitrárias e à falsificação de numerosas obras de arte em que os elementos originais chegavam a serem sacrificados, como podemos ver na Notre Dâme de Paris, na Santa Croce e Santa Maria del Fiore em Florença.

Já John Ruskin (1819 – 1900), propõe que que o monumento deve permanecer como está, não deve sofrer nenhuma intervenção nem ser tocado. Deve ser deixado morrer serenamente, mas procurando-se atrasar esse dia o mais possível através de uma manutenção contínua. O monumento, a sua ruína, fazem parte a dimensão infinita da natureza. Para Ruskin, o restauro como conservação é uma mentira porque substituindo-se as pedras antigas destrói-se o monumento e obtém-se apenas um modelo do velho edifício.

 

Camilo Boito (1836 – 1914), vai em 1883 enunciar os princípios fundamentais do restauro, que ainda hoje se aplicam. Para ele, as obras valem não só para o estudo do campo em que se inserem, mas servem também como documentos dos povos, devendo por isso serem respeitados. Devem ser preferencialmente consolidados em lugar de serem reparados, preferencialmente reparados em vez de restaurados, evitando-se adições e renovações. As adições executadas em tempos diferentes devem ser consideradas como partes da obra e mantidas.

 

Resumindo: o conceito de original, de restauro, tem na sociedade ocidental variado muito através dos ‘tempos’, a reboque de acontecimentos políticos, modas e outros, e que tão depressa têm levado a sentimentos de admiração e culto pelas obras do passado, como a sentimentos de aversão e rejeição.

 

Teria sido, pois, bom parar para pensar, humildade, em vez de entregar o caso à polícia. Mas eram chineses, ainda por cima comunistas sem consideração nenhuma pela propriedade intelectual ou qualquer outra. Polícia com eles.

 

Mas, que interesse teriam os chineses em ‘falsificar’ os guerreiros de terracota?

 

Para os chineses, era prática corrente a feitura de cópias, no momento e até no local onde se desenterravam as obras. Esta prática de reprodução tinha a ver, não só com a aprendizagem com o processo de produção dessas obras que acabavam por desempenhar as mesmas funções, independentemente de a data de fabricação ser mais ou menos antiga, mas também com uma garantia de fidelidade ao espírito da obra.

 

 

Explicando melhor: Todos os anos, milhões de fiéis se deslocam em peregrinação ao Santuário de Ise, o mais importante templo xintoísta do Japão. Todos eles estão convencidos que aquele edifício sagrado tem 1.300 anos. Na realidade, este templo é reconstruído todos os vinte anos. E, não se trata apenas de uma reconstrução que envolva o desmontar e o tornar a montar o edifício. Essa reconstrução inclui também a eliminação e a substituição de todos os tesouros, a queima de todas as peças combustíveis e o enterro de todas as partes metálicas.

 

Nunca é colocada a questão do que é original ou do que é cópia. Aliás, a cópia até se lhes apresenta como estando mais próxima do original que o original. Isto, porque quanto mais antigo for um monumento, mais ele se afasta do seu estado original. Só a cópia o trás de novo para o seu “estado original”.

Além do mais, a noção de artista individual, do artista como sujeito, não existia na cultura oriental. Em sua substituição aparecia antes a celebração da inteligência do povo.

 

Provavelmente, é esta indiferença perante o original, que vai conduzir ao aparecimento de inúmeras maneiras de o expressar pelas mais diversas variações, combinações e mutações, e que acaba por conduzir a muitas invenções de produtos até superiores ao original.

É assim, que apesar de muitos dos telemóveis made in China imitarem até o nome dos originais, eles são os Nokir, os Samsing, o facto é que tecnologicamente não são cópias, pois comportam desenvolvimentos que os afastam do modelo original. Quando, por exemplo, um deles vem equipado com uma função suplementar que lhe permite reconhecer se uma nota (de dinheiro) é falsa, ele passa a ser um original.

Estes produtos de ‘imitação’ ganham vida própria ao criarem sucessivas variantes progressivas do modelo original, a ponto de se tornarem eles próprios mutações, tornando-se originais.

 

É isto que o Ocidente não quer compreender. Reduz tudo a uma questão de paternidade de autor e propriedade intelectual. O resto, a cópia, a imitação, caem normalmente dentro do campo da atividade criminosa: casos de polícia.

E é por não entenderem o conceito de criatividade chinesa que nem sequer têm vocábulo que a exprima. Porque eles não são ‘cópia’, nem ‘imitação’.

 

Breve: os chineses têm um outro conceito sobre o que é criatividade, onde a descontinuidade poética da criação é substituída pelo processo linear da variação e da combinação pelo jogo.

A mulher de César

 “À mulher de César não basta ser honesta, tem também que o parecer”, Júlio César, ao Senado Romano.

“Nunca aconteceu …nunca aconteceu nada. Mesmo quando estava a acontecer, não estava a acontecer. Não tinha importância. Não tinha interesse …”, Harold Pinter.

“A mulher de César não tem que ser honesta, basta que pareça”, Júlio César, à CNN.

 

Conta-se que a 1 de maio do ano 62 a. C., numa festa realizada em casa de Júlio César, Pubius Clodius tentou entrar sem ter sido convidado para assim se tentar aproximar da mulher de César, Pompeia Sula, pela qual estava apaixonado. Apanhado pela sogra de César, esta rapidamente fez constar o sucedido pelos mais próximos. Nesse mesmo dia, César fez o pedido para se divorciar da mulher. Interrogado no Senado, declarou que nada tinha contra a mulher. Quando lhe perguntaram qual seria então a razão para o pedido de divórcio, explicou que: “À mulher de César não basta ser honesta, tem também que o parecer”.

 

Tenho para mim que a permanência da maior parte dos imaginários heroicos das nações significa apenas que o poder se tem mantido sempre nas mesmas mãos. As mãozinhas do poder.

 

É assim, que, por exemplo, no imaginário heroico da grande recém chegada nação americana, as bombas atómicas largadas sobre Hiroxima e Nagasaki são apresentadas aos americanos como tendo permitido “salvar um milhão de vidas”, a guerra do Vietnam é apresentada como “o sacrifício de 58.000 soldados americanos, que morreram defendendo a nossa liberdade” e o Iraque foi “libertado por bombardeamentos de extrema precisão”, querendo assim, para além da tentativa de rescrever a história, pretender afirmar que só os americanos é que pagaram pelo preço da liberdade, como se na contagem dos muitos milhões de mortos só os mortos americanos contassem.

 

Vejamos o que se passa com alguns dos intervenientes que nos são apresentados como sendo os principais atores em cena neste grande espetáculo das eleições americanas, em que pouco ou nada de importante se discute e muito se aplaude e publicita. O importante ficará, evidentemente, para outras reuniões mais seletas.

Quando Obama recebeu o Prémio Nobel da Paz, prometeu “libertar o mundo de armas nucleares”. Na prática, é o presidente americano em cujo mandato mais armas nucleares se têm produzido. No dizer de James Bradley, autor de As Bandeiras dos Nossos Pais e filho de um dos fuzileiros que içou a bandeira americana em Iwo Jima:

 

[Um] grande mito é aquele que vê Obama como uma pessoa de paz que está a tentar desnuclearizar o planeta. Ele é o maior armamentista nuclear. Ele comprometeu-nos numa corrida ruinosa de triliões de dólares para mais armamento nuclear. Por qualquer razão, as pessoas vivem na fantasia de que por ele dar conferências de imprensa e fazer discursos com fotos onde tudo parece estar bem e controlado, que é isso que se passa na realidade. Não é.

 

Foi na presidência de Obama que se iniciou uma segunda guerra fria, em que voltamos a estar perigosamente a viver à beira de uma confrontação armada generalizada. De novo começamos a caraterizar e a ridicularizar os opositores como sendo os maus da fita, caricaturas de estereótipos de épocas passadas. Em breve veremos os chineses serem representados com rabicho, como quando foram banidos dos Estados Unidos.

O enorme aumento de forças militares na Europa junto ás fronteiras com a Rússia, a colocação de mísseis de “defesa” também a poucos quilómetros da fronteira com a segunda maior potência nuclear que é a Rússia, e o envio de forças navais, aviões e forças especiais para as Filipinas para ameaçarem a China, tudo isto não representa, tanto para Bernie Sanders como para Hillary Clinton, qualquer perigo, quer para os Estados Unidos, quer para o mundo. Aliás, para qualquer dos dois, tudo isto não aconteceu.

Claro que a China alterou de imediato a sua política de armamento nuclear, passando do estado passivo de não iniciar o primeiro ataque para o estado de alerta, armando os seus submarinos, que se deslocam agora em todo o Pacífico, com armas nucleares.

 

Foi Clinton que, como Secretária de Estado, declarou que a América tinha “um interesse nacional” naquelas águas asiáticas. Ao mesmo tempo que as Filipinas e o Vietname são ‘encorajados’ a reclamarem e a trazerem de novo à superfície velhas inimizades para com a China, na América as pessoas são conduzidas a verem qualquer posição defensiva da China como sendo ofensiva, preparando-se assim uma rápida e ‘justificada’ escalada na corrida aos armamentos, obrigatoriamente pagos por nós. Uma vez são os bancos, outra vez são as armas.

Clinton é vista como a candidata pró-militar, não sendo necessário recorrer à lembrança histórica do Iraque, Honduras e Líbia, para reconhecer a sua posição: basta notar que a sua campanha presidencial foi a que recebeu dinheiro de todas as grandes empresas de armamento, exceto de uma. Nenhuma outra candidatura se lhe aproxima.

Mas Sanders, também não tem uma visão do mundo muito diferente da de Hillary. Apoiou o bombardeamento ilegal da Sérvia. Suporta a política de terror de Obama sobre a utilização dos drones, sobre o reenvio de forças ‘especiais’ para o Iraque, apoia o julgamento de Edward Snowden.

 

Nesta campanha, por incrível que pareça, apenas Trump tentou levantar as questões que deveriam importar para a política externa dos EUA, nomeadamente: Porque é que as forças dos EUA estão “por toda a parte no globo”? Qual é a verdadeira missão da NATO? Porque é que os EUA organizaram mudanças de regime no Iraque, Síria, Líbia e Ucrânia? Porque é que tratam a capitalista Rússia e Putin como inimigos?

Só que estas são as questões que não podem ser levantadas, por porem em causa todo o sistema estabelecido e instalado. Daí nenhum dos outros candidatos se lhes referirem.

Trump perderá as eleições, não por ser um desbocado e básico populista com a sua visão sobre os imigrantes, sobre os muçulmanos, sobre as mulheres, sobre os mexicanos, e sobre outras tantas banalidades muito arreigadas no imaginário popular americano. Trump, perderá as eleições por poder causar danos ao sistema instalado. Perderá pelas razões erradas.

 

Vivemos tempos onde, segundo bem notou Harold Pinter, “Nunca aconteceu nada. Mesmo quando estava a acontecer, não estava a acontecer. Não tinha importância. Não tinha interesse …”.

Num tempo em que a mentira é a norma e em que os interesses políticos e económicos se disfarçam por baixo das causas mais nobres e inocentes, não é de admirar que a autenticidade das pessoas seja, de todo, contrária àquela que César preconizava para a sua mulher.

Certamente, se ele hoje fosse vivo, diria à Televisão/Assembleia/Senado/O Que For:

A mulher de César não tem que ser honesta, basta que pareça.”

 

O problema, é que mesmo na Roma de César, já era assim. “Está nos genes!” As mãozinhas do poder.

O caso da deriva das gaivotas lésbicas

 “Não é de estranhar que não haja papéis fixos e determinados entre os seres vivos”.

“Esta enorme variedade de comportamentos, verifica-se também no campo da comunicação, entendendo por comunicação uma classe particular de condutas que ocorrem, com ou sem a presença do sistema nervoso, no operar dos organismos em sistemas sociais”.

“A conduta cultural aparece como um caso particular de conduta comunicativa, o que faz da dinâmica social um fenómeno biológico”.

“Na deriva natural dos seres vivos haverá muitas extinções, muitas formas surpreendentes e outras que podemos imaginar como possíveis, mas que nunca veremos surgir”.

 

 

“A caminhada” era o título que inicialmente tinha pensado para este artigo, só que tal título suporia uma ideia de direção, sentido, finalidade proposta, implicando um fechamento conceitual contrário ao que pretendia. O “caminhar que se faz caminhando” não passa de uma expressão literariamente bonita e moralmente reconfortante, por a todos nos ligar à suposta caminhada do ser humano rumo a qualquer coisa, situada sempre no futuro que ‘terá’ de existir e que por si só acabará por justificar, ou justificará, essa tal caminhada.

O que pretendia era um título que estivesse de acordo com o conceito de algo que vai transcorrendo sem uma finalidade adivinhada ou imposta, resultante de um intenso processo de adaptação inter-relacional entre o ser vivo e o meio, processo totalmente aberto e que, além do mais, decorresse sempre no presente. Uma “deriva”, uma “deriva natural”.

 

Para explicar este conceito de “deriva natural”, vou-me socorrer da analogia que Humberto Maturana, na Árvore do Conhecimento, utilizou para descrever o processo da evolução humana:

 

“Imaginemos uma colina de cimo estreito. Do alto desse cume, lançamos umas gotas de água sempre na mesma direção, ainda que a mecânica do lançamento cause variações no seu modo de cair. Imaginemos que as gotas de água sucessivamente atiradas, deixam marcas sobre a superfície da terra, que servirão como registos da sua queda. Claro que ao repetirmos várias vezes a experiência, obteremos resultados ligeiramente diferentes. Algumas gotas cairão diretamente para baixo, na direção escolhida, enquanto outras encontrarão obstáculos que contornarão de maneiras diferentes, dependendo das suas pequenas diferenças de peso e impulso, desviando-se para um ou outro lado. Mudanças na direção do vento talvez forcem algumas gotas ara caminhos mais sinuosos, afastando-as da direção inicial. E assim indefinidamente. Os caminhos que obtivermos representam adequadamente as múltiplas derivas naturais das gotas de água sobre a colina, resultados dos seus diferentes modos individuais de interagirem com as irregularidades do terreno, dos ventos e assim por diante.”

E, prossegue, ligando agora esta analogia aos seres vivos:

“O cume e a direção inicial escolhida equivalem ao organismo ancestral comum, que dá origem a descendentes com ligeiras variações estruturais. A repetição múltipla equivale às muitas linhagens que surgem a partir desses descendentes. A colina é todo o meio circundante dos seres vivos, que muda segundo o vir-a-ser das linhagens” […] “A analogia mostra-nos que a deriva natural só ocorrerá seguindo os cursos que são possíveis a cada instante, muitas vezes sem grandes variações na aparência dos organismos, e muitas vezes com múltiplas ramificações, dependendo dos tipos de relação organismo-meio que se conservam.

Organismos e meio variam de forma independente: os organismos em cada etapa reprodutiva, e o meio segundo uma dinâmica distinta. Do encontro dessas duas variações surgirão a estabilização e a diversificação fenotípicas, como resultado do mesmo processo de adaptação e da autopoiese, dependendo de quando o encontro acontece: estabilização quando o meio se transforma lentamente; diversificação e extensão quando a mudança é abrupta”.

 

É, portanto, deste jogo entre as condições históricas em que as linhagens ocorrem e das propriedades intrínsecas dos indivíduos que as constituem, que a constância e a variação das linhagens dependem.

Não é, pois, de estranhar que não haja papéis fixos e determinados entre os seres vivos, o que se pode constatar, por exemplo, na divisão de tarefas para a criação dos filhos, nos variados casos de poliandria e poliginia, e ainda na sua dinâmica comunicativa.

 

Em muitos animais que requerem um aparelho sexual para a reprodução, os filhotes precisam de receber algum cuidado dos pais, mormente na sua geração e criação. Os humanos criados numa cultura patriarcal tendem a pensar que o natural é ser a fêmea a cuidar dos filhos e o macho a sustentá-los e proteger. Provavelmente, fundamos essa suposição no facto de sermos mamíferos, em que nos períodos de amamentação a criança precisar de ficar necessariamente ligada à mãe (não existe nenhuma espécie de mamíferos em que a amamentação seja responsabilidade do macho).

No entanto, esta divisão de papéis que parece tão nítida, está longe de ser universal.

Por exemplo, entre os pássaros encontramos uma grande variedade de condutas. A fêmea da Jaçanã, uma ave sul-americana, vai definir um território mais ou menos amplo em que irá preparar vários ninhos, estabelecendo, entretanto, relações sexuais com vários machos (poliandria), tantos como os ninhos preparados. Depois de fertilizada, ela vai colocar um ovo em cada ninho, reservando só um para um ninho dela. Assim, tanto a fêmea como os machos poderão gozar do prazer de criarem os passarinhos.

Já no caso das avestruzes sul-americanas, o macho acasalará com um harém de fêmeas (poliginia), indo depois cada uma delas depositar um ovo dentro de um mesmo ninho, ficando o macho a tomar conta deles todos.

Por vezes, os locais de nidificação tornam-se tão povoados, que algumas gaivotas são levadas a procurarem outros locais. Um grupo dessas gaivotas optou por uma praia afastada, só que o grupo era composto por poucos machos, o que punha um problema, uma vez que para alimentarem os filhotes seriam necessárias duas gaivotas em permanência. Assistiu-se então ao reagrupar das gaivotas com casais de duas gaivotas fêmeas, juntando-se num ninho em que cada uma punha um ovo em que um seria rejeitado. Estava assim assegurada a alimentação do novo filhote.

Os pinguins, que também são aves, resolvem o problema de outra forma. Como se torna necessária a participação dos dois progenitores para que a alimentação dos filhotes seja assegurada, os adultos que ficam em terra permanecem em redor do grupo de filhotes, protegendo-os, formando uma verdadeira creche.

 

Também nos peixes deparamos com variedades de conduta, algumas até surpreendentes. No caso do esgana-gata, é o macho que constrói o ninho, seduz a fêmea e a expulsa logo a seguir à desova. Expulsada a fêmea, o macho passará dias a sacudir a cauda cuidadosamente, para fazer circular a agua à volta dos ovos, até aos peixinhos nascerem. Depois, dedica-se a cuidar dos filhotes até eles se tornarem independentes. A sua relação com a fêmea dura o tempo da corte e da desova.

 

Os insetos sociais tendem a resolver o problema de outra forma, evidenciando um maior grau de rigidez e inflexibilidade, uma vez que eles se organizam com base numa armadura exterior de quitina, movimentada por músculos interiores. Esta arquitetura impõe um limite máximo ao tamanho dos insetos, e, por consequência, ao tamanho do seu sistema nervoso. Daí que os insetos não se distingam individualmente pela sua variedade comportamental e pela sua capacidade de aprendizagem.

No grupo bastante estudado das formigas mirmiceas, as formas dos vários indivíduos participantes diferem consoante as atividades que realizam na colónia. Com exceção de uma, todas as outras fêmeas são estéreis, realizando tarefas que vão da coleta de alimentos, a defesa, o cuidado dos ovos e a manutenção do formigueiro. Os machos nunca saem, ficando reclusos no interior, ao serviço da única fêmea fértil, a rainha. A reprodução está, pois, restrita à rainha e aos machos. Contudo, todos os indivíduos do formigueiro se encontram ligados numa estrutura fisiológica.

Como se consegue este ‘mecanismo’ que permite a ligação entre as formigas do formigueiro? Através de um intercâmbio de substâncias químicas, oriunda de um fluxo contínuo de secreções entre os membros da colónia: trocam os seus conteúdos estomacais cada vez que se encontram, o que podemos ver quando observamos uma fila de formigas.

Este intercâmbio químico contínuo (trofolaxes) resulta na distribuição por toda a população, de uma certa quantidade de substâncias, entre elas hormônios, que são responsáveis pela diferenciação e especificação de papéis. A rainha é o que é, não por hereditariedade, mas pelo modo como é alimentada. Se a retirarmos do seu lugar, provoca-se de imediato um desequilíbrio hormonal que irá provocar uma mudança na alimentação de algumas larvas que se desenvolverão como rainhas.

 

Os vertebrados, que possuem já um esqueleto interno revestido pelos músculos, não sofrem uma limitação tão severa de tamanho, sendo ainda capazes de um crescimento prolongado. Tal permite-lhes organismos maiores, com mais células, com maiores sistemas nervosos, o que possibilita uma maior diversidade de estados e de condutas.

Por exemplo, com os antílopes, que vivem em terrenos montanhosos, verificamos que animais distintos cumprem funções distintas, permitindo que os membros do rebanho se relacionem em atividades que não lhes seriam possíveis como indivíduos isolados. Se nos tentarmos aproximar do rebanho, vamos verificar que todo ele foge, tentando alcançar um topo mais elevado, de onde ficam a observar o intruso.

Mas, se tiverem de passar por um vale que lhes impeça a visão do intruso, então o rebanho desloca-se todo com o macho dominante à frente, seguido das fêmeas e filhotes. A fechar, seguem os restantes machos do rebanho, um dos quais fica para trás, sobre o topo mais próximo, vigiando o intruso enquanto os demais descem. Logo que eles chegam à nova elevação, junta-se a eles.

 

Já no caso dos babuínos das savanas africanas, em que a ligação intergrupal tende a estabelecer uma hierarquia de dominação entre os machos, quando o grupo migra, os machos e fêmeas dominantes vão no centro, junto com os filhotes, enquanto os outros machos e fêmeas se posicionam estrategicamente à frente e atrás.

Contudo, outros grupos de primatas, revelam modos e estilos de interação diferentes, como são os exemplos das hamadrias do norte de África, habitualmente muito agressivas, com hierarquias de dominação bastante rígidas e dos chipanzés, que têm uma organização grupal muito mais fluída e variável, criando grupos familiares extensos que permitem uma maior mobilidade individual.

 

Esta enorme variedade de comportamentos, verifica-se também no campo da comunicação, entendendo-se por “comunicação, uma classe particular de condutas que ocorrem, com ou sem a presença do sistema nervoso, no operar dos organismos em sistemas sociais”.

 

Vejamos alguns casos: Os pássaros que habitualmente vivem nas selvas, como dificilmente podem manter contacto visual, comunicam-se através do canto: macho e fêmea encontram-se e acasalam estabelecendo um canto comum. Inicialmente parece que cada ave canta uma melodia completa, mas, pela análise mais detalhada, o que se verifica é que cada pássaro constrói uma frase que o outro continua, ou seja, cantam um dueto. Tal melodia é exclusiva de cada par, e assim se vai manter. Até os filhotes de cada par, quando acasalarem, darão origem a melodias que serão diferentes das dos seus pais.

Quando em Inglaterra foram introduzidas as novas tampas de alumínio, em substituição das tampas de papelão, para as garrafas de leite, aconteceu que poucos dias depois desta introdução, as cotovias aprenderam a picotar essas embalagens para se alimentarem da camada superior de nata. O interessante é que esta conduta se expandiu daí para todas as ilhas britânicas, e em pouco tempo todos os pássaros haviam aprendido o truque.

A imitação é uma tendência essencial caraterística dos vertebrados. No caso acima, o que começou como uma conduta localizada, expandiu-se rapidamente. Se os filhotes dos pássaros não fossem capazes de imitar, o hábito de furtar a nata das garrafas teria de ser reinventado a cada geração.

Mas há outros casos de permanência transgeracional de uma conduta adquirida:

Quando, como procedimento de pesquisa numa reserva de macacos situada num arquipélago do Japão, os investigadores espalharam batatas e trigo sobre a areia da praia como forma de atrair os macacos a saírem da selva e virem para o mar, verificaram que uma das fêmeas começou a lavar na água as batatas, retirando-lhes assim a areia que as tornava desagradáveis de comer. Em poucos dias os outros macacos, especialmente os jovens, já a imitavam, lavando as suas batatas. E, com o passar de meses, esta nova conduta já se havia estendido a todas as colónias vizinhas.

Mais tarde, esta mesma macaca, Imo de seu nome cristão, descobriu também a forma de retirar a areia dos grãos de trigo, mergulhando na água a mão cheia de cereais com os dedos entreabertos. Esta invenção expandiu-se também gradualmente pelas colónias da ilha, sendo mais lentos na sua utilização os mais velhos.

 

Esta configurações comportamentais adquiridas na dinâmica comunicativa de um meio social, mantidas estáveis através de gerações, são, efetivamente, condutas culturais. Elas permitem uma certa invariância na história do grupo, para além da história particular dos indivíduos participantes.

A imitação e a continua seleção comportamental entre os grupos desempenham um papel essencial que se expressa no fenómeno cultural. A conduta cultural aparece, assim, como um caso particular de conduta comunicativa, o que faz da dinâmica social um fenómeno biológico.

 

Percebe-se agora melhor que ao longo desta deriva natural dos seres vivos, não seja de admirar que haja muitas extinções, muitas formas surpreendentes e outras que podemos imaginar como possíveis, mas que nunca veremos surgir. Não seria, pois, possível chamá-la de ‘caminhada’.

 

As gaivotas levantaram voo. O que me impediu de verificar se, na sua deriva, eram ainda lésbicas.

Quem nos representa?

 “A fotografia transporta sempre consigo o seu referente”, R. Barthes.

Isto não é um cachimbo”, quadro de René Magritte.

Cada um é em si um partido.

Os parlamentares como espelhos da hiper-realidade que projetamos de nós, única ‘realidade’ em que nos reconhecemos.

 

 

Por princípio, ou melhor, no princípio, os representantes parlamentares eram os porta-vozes das massas trabalhadoras. Esta sua representação política era muito importante e tinha grande força. E isto porque defendiam realmente os interesses das classes trabalhadoras que representavam. Dizemos então que eles estavam diretamente ligados ao seu referente.

Hoje em dia, os representantes políticos não são vistos como os porta-vozes do ‘povo’, mas como empregados do sistema. Os parlamentares já não representam os cidadãos ou a opinião pública. Eles são o sistema político-económico e representam o sistema político-económico. Ou seja, o sistema político-económico passou a ser autorreferencial.

 

Sobre a fotografia, dizia Roland Barthes que ela era “uma emanação do referente”, querendo com isso significar que ela era a representação de um objeto real. O objeto real emitiria, no momento em que era captado, como que uma luminescência que impressionava a película, o que permitiria que a fotografia conservasse os traços quase materiais do referente real. A fotografia “transporta(va) sempre consigo o seu referente”.

Ou seja, a fotografia estava sempre ligada ao objeto real que ela representava. Ela era a emanação de um referente a que permaneceria ligada. Assim, a fotografia não era o lugar da ficção ou da manipulação. A fotografia era o lugar da verdade.

A tal ponto defendia Barthes a verdade da fotografia, que chegou a escrever que “por natureza, a Fotografia tem qualquer coisa de tautológico: um cachimbo é sempre um cachimbo, invariavelmente”, provavelmente reagindo ao quadro de Magritte “A traição das imagens” onde, debaixo da pintura de um cachimbo, Magritte tinha escrito “Isto não é um cachimbo”.

Com o aparecimento da fotografia digital ou numérica, tudo isto se vai alterar. Com ela, o real passa a estar presente apenas como citação ou como fragmento, mas não é representado. Estas citações, que são tiradas do real, são depois relacionadas entre si e misturadas à medida da imaginação de cada um.

É assim posta em causa de maneira radical a veracidade da fotografia. Ela já não representa o real, conduzindo mesmo a um divórcio definitivo entre a representação e o seu referente real. Reconstrói o real, apresentando uma hiper-realidade que deverá ser mais real que a realidade.

Entramos assim, e é onde estamos, no domínio da híper-fotografia criadora de um espaço hiper-real, autorreferencial, inteiramente independente do referente.

 

Se transpusermos este conceito para o sistema político-económico, poderemos igualmente dizer que o sistema político-económico é hoje autorreferencial, já não representando os cidadãos ou a opinião pública.

As massas, que antigamente estavam organizadas em partidos ou em associações, e que eram animadas por uma ideologia, encontram-se hoje decompostas em indivíduos isolados, meras quantidades numéricas unitárias, que vivem só para eles próprios, e que não participam em nenhum discurso público. Aliás, também não há qualquer discurso público.

Face ao apagamento da esfera pública, face à narcisação e ao inchaço do ego humano, que política, que democracia, poderá hoje ser concebida?

É concebível a existência de democracia sem discurso público?

Numa época em que cada um é em si um partido, em que as ideologias, que de certa maneira apontavam para um horizonte político, se desfizeram num sem número de opiniões e opções, para que servem os partidos políticos?

Deveremos fazer campanha pela instauração de uma democracia numérica na qual a tecla de “Eu gosto” substituiria o boletim de voto tornando totalmente supérfluas as campanhas eleitorais, os parlamentos, as assembleias gerais, as ideologias?

 

Pode até ser que, afinal os parlamentares de agora sejam mesmo os representantes desta sociedade em que vivemos, podendo por eles tomarmos consciência do referente verdadeiro que somos nós. Os parlamentares como espelhos da hiper-realidade que projetamos de nós, única ‘realidade’ em que nos reconhecemos.

As forças que nós armamos

 “São as palavras donas dos homens ou são os homens donos das palavras ao determinarem os seus significados?” Lewis Carroll in Alice do Outro Lado do Espelho.

As forças armadas têm vindo a transformarem-se numa instituição maciçamente autossustentável e central para a vida americana: o que elas dizem, o que elas querem, o que elas fazem, contam e muito”, G. Foster.

Os militares estabelecem as suas próprias normas, fazem e produzem as suas próprias notícias, e apropriam-se da política mais conveniente para os seus fins.

Para nós não há muito que enganar: será sempre ou pau ou cenoura.

 

 

As forças armadas são instituições a quem é dada carta-branca para poderem exercer violência total em representação dos estados. São também enormes instituições sociais fortemente ligadas às sociedades nacionais. É compreensível que em tempo de guerra sejam especialmente tidas em consideração, para elas convergindo todo o esforço nacional possível, adotando práticas e procedimentos de acordo com as regras militares, naquilo que possa ser visto como uma militarização da sociedade.

A consequência normal será o aparecimento de um autoconvencimento por parte dos militares da sua excecional importância, originando, uma vez terminada a situação de guerra, sinais de arrogância e menosprezo por normas de conduta conflituantes com as da sociedade em que estão inseridos. Será mesmo assim?

 

Gregory Foster, licenciado em West Point, veterano da guerra do Vietname, professor na National Defense University em Washington, publicou um artigo, “Pentagon Excess Has Fueled a Civil-Military Crisis” (Os Excessos do Pentágono na Origem da Crise Civil-Militar), no qual pretende demonstrar que a crise latente existente nas relações entre civis e militares nos Estados Unidos não se deve ao cada vez maior distanciamento cultural, ideológico e experiencial entre os militares e a sociedade, mas sim à subjugação, perante os militares, dos civis que se encontram à frente dos principais organismos de tomada de decisão militar.

Sendo condição mínima para a democracia que a direção, a supervisão e a autoridade de tomada de decisões no que respeita às forças armadas seja feita por civis eleitos ou nomeados, tal condição devia implicar que os civis que fossem colocados nessas posições tivessem a competência para as desempenhar.

O que se passa é que a grande maioria dos civis colocados nessas posições são largamente iletrados sob o ponto de vista militar, mais militaristas que os próprios militares, protetores cegos da instituição e politicamente amedrontados, não se os vá tomar por frouxos nas questões de defesa e segurança.

E o que acontece é que em vez de se ter uma supremacia do civil sobre o militar, ou mesmo apenas um controle civil sobre o militar, cai-se exatamente no oposto: na subjugação do poder civil pelo militar. As autoridades civis mostram-se quase sempre inequivocamente, e até reverencialmente, de acordo com as preferências, práticas e maneiras de pensar dos militares. Assim sendo, os militares estabelecem as suas próprias normas, fazem e produzem as suas próprias notícias, e apropriam-se da política que mais convenha para os seus fins. “As forças armadas têm vindo a transformarem-se numa instituição maciçamente autossustentável e central para a vida americana: o que elas dizem, o que elas querem, o que elas fazem, contam e muito.”

 

Eis alguns dos exemplos e argumentos nos quais Foster se apoiou e que serviram de justificativos para a sua tese sobre a crise existente nas relações entre civis e militares nos EUA:

 

#. As forças armadas impõem as suas regras, independentemente do que a sociedade civil possa pensar delas.

 

- Como o acontecido no caso do General David Petraeus que, por ter passado ilegalmente material de classificação de segurança elevada (uma ofensa criminal) à sua amante (adultério, punível de acordo com o Código de Justiça Militar) e mentir a oficiais do FBI (ofensa criminal), foi condenado por prevaricações menores a dois anos com pena suspensa, e a uma multa de 100.000 dólares, tendo o Pentágono decidido manter-lhe a patente, garantindo com isso que continuaria a receber o seu salário e reforma por inteiro.

Contudo, por ter entregado documentos classificados à WikiLeaks, documentos esses que incluíam vídeos gravados a bordo de um helicóptero Apache durante um ataque feito em Bagdad em 2007 do qual resultou a morte de 18 civis, incluindo dois jornalistas da Reuters e ferimentos em duas crianças, e um vídeo de um massacre feito no Afeganistão em 2009 pelo bombardeamento de um B-1 que matou 147 civis, incluindo 93 crianças, o soldado Bradley (agora Chelsea) Manning continua a cumprir a pena a que foi condenado de 35 anos de prisão, tendo sido despromovido para a mais baixa patente do Exército, para além de ter sido expulso sem honra.

- Como o acontecido no caso dos dois botes de patrulha da Marinha americana que entraram em águas territoriais iranianas, tendo todos os seus militares sido aprisionados e entregues à guarda revolucionária iraniana, precipitando durante 24 horas uma crise internacional da maior gravidade, até o governo conseguir a sua libertação. Contudo, as informações que até hoje o Pentágono se dignou ir fornecendo sobre o que aconteceu, são escassas e contraditórias: erro de navegação, falha mecânica, falta de combustível, em vez de admitir que se tratou ou de uma procura de informações, ou de uma provocação intencional ou de um ato de gabarolice individual.

- Como nos casos de partidarização e politização de altos responsáveis militares, nomeadamente quando o Chefe dos Estados-maiores Colin Powell, falou publicamente contra a intervenção nos Balcãs e contra a admissão de homossexuais nas forças armadas, contrariando nitidamente a agenda decidida e apresentada pelo Presidente Clinton, e quando um major general da Força Aérea numa reunião de militares, caraterizou o Presidente como “amante de maricas”, “fumador de charros”, “refratário” e “mulherengo”.

- O Pentágono tem sistematicamente dificultado os esforços da Casa Branca para fechar a prisão de Guantánamo, bem como a libertação de presos. Têm recusado repetidamente entregar a documentação básica aos governos estrangeiros que pretendem acolher esses detidos, tornando ainda extremamente difícil a visita de delegações estrangeiras à prisão. Dos 799 presos, noventa e um estão lá há mais de três anos, encontrando-se 34 prontos para serem entregues.

 

#. Gastos exorbitantes com a Defesa.

 

Impondo a teoria de que se queremos paz devemos preparar-nos para a guerra, tal vem conduzindo a conduta do Estado a uma preferência por soluções militares, que tem vindo a alimentar e engordar os orçamentos militares para níveis nunca jamais vistos:

- O orçamento das forças armadas americanas excede o do somado pelas 10 nações que se lhe seguem, bem como o produto interno bruto de todos os países, com exceção de 20. O custo das guerras americanas desde 2001, $1,6 triliões, daria para pagar 2,2 milhões de professores primários durante uma década. Um simples 1% do orçamento de defesa, mais de $5 biliões, daria para pagar 152.000 bolsa universitárias durante quatro anos ou 6.342 polícias durante 10 anos. Só os $19,3 biliões que se gastam por ano com o armamento nuclear, daria para cobrir por uma década os cuidados de saúde de 825.000 crianças ou de 549.000 adultos.

- A isto devemos acrescentar gastos extravagantes sem qualquer controle e não auditados, como foram e são os casos do 150 milhões de dólares para residências privadas no Afeganistão, 2,7 biliões para um balão de observação que nunca funcionou, 8.000 dólares para peças de um só helicóptero cujo custo verdadeiro era de 500 dólares, 50.000 dólares para a investigação sobre as capacidades dos elefantes africanos para detetarem bombas, 640 dólares num assento de sanita, 7.600 dólares num pote de café, muitos milhões de dólares numa estrada que não vai dar a parte nenhuma no Afeganistão, bem como 4 milhões para uma estação de serviço, 25 milhões para um aquartelamento na província de Helmand que nunca foi usado, e o pagamento de salários a soldados não existentes.

- A exorbitância é tanta que chega ao ponto de o Departamento de Defesa não conseguir dizer quais as quantidades de equipamento que comprou, quantos contratantes emprega e quantas vezes foi sobre faturado.

- Como, por exemplo, o caso do avião de combate da Lockheed Martin F-35, com custos de produção e operação previstos no valor de 1.4 triliões de dólares, o de sempre mais caro programa de armas de mundo, e que apesar de já ter uma derrapagem de dezenas de biliões de dólares, mesmo assim não consegue cumprir o exigido e estipulado para o programa de voo. A Lockheed não estará certamente muito preocupada, pois, como já sucedeu a quando do seu contrato para a construção do avião de transporte C-5, o Congresso sempre irá aprovar a entrega de mais dinheiro com o argumento ‘ingénuo e cândido’ de que se deixassem falir a empresa, tal iria causar a perda de 34.000 empregos em 35 estados.

 

#. O poço sem fundo do nuclear.

 

As forças armadas americanas estão encarregues da guarda e operacionalidade do maior arsenal nuclear do mundo, com cerca de 4.700 cabeças nucleares e 800 sistemas de lançamento, e ainda de outras 2.340 “retiradas” de serviço, mas ainda intactas e provavelmente utilizáveis. Está atualmente em curso uma modernização (upgrade) deste arsenal para os próximos trinta anos para o qual se estima o valor de um trilião de dólares.

 

#. O contornar  tratados internacionais.

 

Apesar dos Estados Unidos advogarem e pretenderem praticar o estado de direito, propondo e respeitando a legislação internacional, as várias administrações americanas têm vindo sucessivamente a não ratificarem muitos dos acordos internacionais a que se tinham comprometido, fazendo-o normalmente por razões meramente paroquiais, grande parte delas apoiada em argumentativos militares.

Entre os tratados internacionais não assinados constam a Convenção Sobre Crimes de Guerra e Crimes Contra a Humanidades (1969), o Tratado de Ottawa Contra a Utilização de Minas Terrestres (1997), o Protocolo Opcional à Convenção Contra a Tortura (2002), a Convenção Internacional Sobre Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado (2006) e a Convenção sobre Munições de Fragmentação (2008).

Entre os que Washington assinou, mas não ratificou encontram-se os Protocolos I e II das Convenções de Genebra (1977), a Convenção de Segurança da Nações Unidas e Seu Pessoal (1994), o Tratado Compreensivo Contra aa Experiências Nucleares (1996), o Protocolo de Kyoto (1997), e o Estatuto de Roma sobre o Tribunal Internacional de Justiça. Temos ainda o Tratado Contra Mísseis Balísticos (1972) que os Estados Unidos ratificaram em 1972, mas do qual se retiraram em 2002.

Depois existem aqueles acordos em que os Estados Unidos embora fazendo parte, por qualquer razão escolheram ignorar ou rodear, no todo ou em parte. Entre estes estão o Tratado Geral Kellog-Briard sobre a Renúncia à Guerra como Instrumento de Política Nacional (1928), o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (1968), a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e alguns artigos selecionados das Convenções de Genebra (“combatentes inimigos desleais” em vez de prisioneiros de guerra, “interrogatório reforçado” em vez de tortura, e outros tecnicismos).

 

#. Militarização do mundo americano, no país e fora dele.

 

As forças armadas americanas mantêm 800 bases em mais de 70 países, a que devemos acrescentar mais de 200.000 pessoas em serviço ativo estacionadas em 150 países.

Por natureza, instituições como a militar tendem a auto perpetuar constelações de valores e práticas que originam as suas próprias realidades, e que uma vez nascidas dificilmente poderão virem a ser alteradas. Tal acaba por conduzir a uma hipertrofia organizacional.

Hoje existem 16 agências separadas que se ocupam da informação, recolha e análise de dados, nove das quais são militares. A própria Agência de Segurança Nacional (NSA) é sempre comandada por um oficial general ou almirante, que simultaneamente dirige também o U.S. Cyber Command.

Das nove agências militares, seis delas dividem entre si as regiões do planeta, e com exceção da NATO, nenhuma delas tem embaixadores, o que significa que a face que se mostra ao mundo, região a região, é puramente militar e não diplomática. Até a “segurança interna” (homeland) tem um comando de combate, o Comando Norte. Estas agências militares, em conjunto com o considerado ‘civil’ Departamento da Segurança Interna, têm vindo a serem responsáveis pela militarização da frente doméstica, aumentando as preocupações sobre as liberdades cívicas, alimentando um estado de paranoia e alarme permanente sobre a imigração ilegal e terrorismo.

Um caso particularmente importante é o que se passa com o Comando de Operações Especiais, que tendo começado por ser um pequeno grupo de especialistas de elite, se transformou numa força maior que muitas das forças armadas de muitos países. A sua finalidade é a condução de uma ‘guerra’ permanente contra o terrorismo.

Atualmente é constituído por aproximadamente 70.000 membros (o equivalente a quatro divisões do Exército) e está presente em todos os serviços armados, espalhado por várias partes do globo, operando entre as linhas divisórias pouco claras que separam organizações militares, serviços de informação, polícia e segurança interior.

De todas as várias formas de operação que os militares têm, estas Operações Especiais (SOFs) são as que põem em maior perigo o controle civil efetivo sobre os militares. O aumento de confiança e reverência para com elas, apenas exacerba a deferência já existente na preferência dos civis por estes tipos de operação. Ao conduzir operações que vão desde as de baixo nível de visibilidade até a missões secretas de que poucos americanos têm conhecimento, algumas mesmo fora do conhecimento do Congresso, este tipo de operações introduz uma cultura militar que é particularmente destrutiva para a sua responsabilização e controle. É um incentivo para que as ‘coisas’ sejam feitas contornando o Congresso, uma tentação para o emprego de forças quando se quer evitar qualquer objeção.

 

#. Falha na responsabilidade social.

 

É subentendido e esperado que as forças armadas tenham um comportamento socialmente responsável e que os seus membros demonstrem profissionalismo na sua conduta. E, contudo, isso não se tem passado, sendo cada vez mais alarmantes os sinais dados de arrogância e menosprezo por normas e condutas que deveriam ser as de uma conduta moral superior. Centenas de incidentes são disso prova: atrocidades, corrupção e chantagem, fraude e desperdício, conduta sexual inapropriada, perseguição racial e religiosa, atos de intolerância cultural e encobrimentos.

Seguem-se algumas páginas com uma amostragem de alguns exemplos recentes, nomeadamente:

*A resignação do vice secretário da Marinha por um escândalo em que o irmão de um oficial da segurança naval cobrou aos militares $1,6 milhões por silenciadores de armas que custaram apenas $8.000;*os relatórios sobre assaltos sexuais nas forças armadas (22.000 só entre 2010 e 2014); *o escândalo do “Leonardo Gordo” envolvendo extorsões, prendas e prostitutas em troca de informações classificadas sobre o movimento de navios, com o envolvimento de pelo menos sete oficiais e que já levaram à censura a três contra-almirantes; *a fraude no recrutamento da Guarda Nacional do Exército, que atinge já milhares de soldados e já vai na ordem dos milhões de dólares de pagamentos ilegais; *o general de quatro-estrelas chefe co Comando de África, despromovido e obrigado a pagar pela restituição do gasto opulento de públicos fundos em negócios privados; *o comandante de três-estrelas de uma força nuclear que usava num casino fichas de poker viciadas; *o comandante de duas-estrelas de uma força de mísseis balísticos intercontinentais que, podre de bêbado num exercício conjunto com os russos, os insultou gravemente; *o comandante de uma-estrela de Fort Jackson, retirado de funções por adultério e por ter agredido a amante; *o comandante de uma-estrela, adjunto da 82ª Divisão Aerotransportada de ‘elite´, multado em $20.000 devido aos seus muitos programas sexuais e conduta imprópria; *os escândalos relacionados com as fraudes e cópias nos exames de proficiência de armamento nuclear que implicaram dezenas de militares da Força Aérea e da Marinha; *o sargento do Exército, sentenciado a prisão perpétua pelo assassinato de 16 civis e ferimentos em mais 6 no Afeganistão; *o sargento do Exército, também condenado a prisão perpétua, bem como outros 5 soldados, por terem assassinados 3 civis afegãos apenas por divertimento, tendo depois ficado com partes dos corpos como troféus; *o vídeo de 4 fuzileiros urinando em corpos de afegãos mortos; *as fotos de soldados da 82ª Divisão Aerotransportada posando com partes de corpos de guerrilheiros afegãos mortos; *a queima de 100 Alcorões e de outros textos religiosos, feito por tropas no Afeganistão; *os suicídios do fuzileiro Harry Lew e do soldado Danny Chen por perseguição e abusos de outros seus camaradas; *a ação em Khataba no Afeganistão em que Rangers do Exército mataram 5 civis, incluindo duas mulheres grávidas e uma adolescente; *o escândalo sexual da Base da Força Aérea de Lackland em que 43 mulheres alunas foram sujeitas a práticas predatórias por parte dos instrutores; *as revelações sobre um programa do Pentágono sobre análise militar, no qual os comentadores de notícias, oficiais na reforma, tinham acesso a informações privilegiadas de briefings internos em troca por promoverem publicamente as políticas da administração Bush; *o escândalo da Academia Naval em que um médico da Marinha gravava secretamente marinheiros envolvidos em atos sexuais; *o escândalo do Centro médico do Exército de Walter Reed mostrando o desleixo extensivo a que os doentes eram deixados bem como das condições execráveis em que viviam; *as revelações sobre fraudes, suborno e pagamentos no respeitante aos contratos com a Guerra do Iraque no valor de $15 milhões; *a substituição do comandante do USS Enterprise por produzir e mostrar vídeos sexualmente explícitos ao pessoal embarcado; *a violação seguida de assassinato de uma adolescente de 14 anos, e de toda a sua família, feito por 5 soldados do Exército, em Mahmudiyah, Iraque; *o massacre de 24 homens, mulheres e crianças em Haditha, Iraque, feito por fuzileiros e posterior encobrimento que levou a que não fossem apresentadas quaisquer queixas; *a morte por ‘fogo-amigo’ de Pat Tillman e o seu encobrimento até às mais altas hierarquias no Pentágono; *o extensivo e massivo abuso sexual, tortura, violação, sodomia e assassinato de prisioneiros em Abu Ghraib, feito por pessoal do Exército; *a morte de dois prisioneiros afegãos civis, que tinham sido acorrentados ao teto e espancados por pessoal do Exército, em Bagram.

Face a esta amostragem, Foster conclui que os militares não se podem arrogar de supremacia moral relativamente aos civis, uma vez que tantos casos não poderão serem vistos como meras exceções, as maçãs podres, como pretendem ser apresentados pelos que defendem a instituição.

 

#. Conclusão

 

Por todas as razões apresentadas, Foster propõe a necessidade de se ‘desmilitarizar’ as Forças Armadas (o que para além de uma alteração de mentalidade implicaria também que os civis que fossem colocados nas posições de supervisão e tomada de decisão, tivessem a competência para os desempenhar), sob risco de os militares se converterem em nossos donos.

 

O que Foster parece não pretender ver é que a partir do momento em que os militares se tornam autossuficientes (como ele reconhece que são), alimentando-se já a eles próprios e à sua clientela empresarial e outra, através de venda de armamentos e guerras que provocam e irão provocando, passam a ser uma nação em crescimento com a sua própria lógica e sistema de valores, tentando impô-los com base na força e no medo.

Curiosamente, a ideia estratégica subjacente veiculada para a manutenção desta crescente autossuficiência tem como base a economia: sai mais barato o domínio pela força.

O seu principal adversário nesta luta pela liderança global aparece dentro do próprio sistema económico em que ambos se movimentam, e é constituído por todas aquelas enormes empresas da vanguarda tecnológica que fazem avançar o sistema através da sedução, da comparticipação, numa aceitação religiosa de um futuro sempre posto nas nossas mãos, olhos, ouvidos, nariz e pele.

Só assim se poderá compreender o pedido do FBI à Apple, via Tribunal, visando obriga-la a desencriptar o telefone de um terrorista morto. Trata-se de um medir de forças entre adversários. E tanto assim é que a Google já se juntou à Apple, ao emitir um comunicado a toda a largura das primeiras páginas em que alerta todos os seus utilizadores para a possibilidade do Governo estar a tentar ilegalmente aceder às palavras-passe dos utilizadores, avisando que, se tal acontecer, o Governo pode vir a espiar-nos, aceder aos nossos dados, ou outras atividades.

Várias serão as escaramuças que se seguirão e conforme se forem desenrolando poderemos ver quem estará a ganhar a guerra. O problema é que não sabemos quem é o lobo nem quem é o cordeiro, isto no caso de haver cordeiro.

É que para nós, não há muito que enganar: será sempre ou pau ou cenoura.

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