“Vendem-se: sapatos de bebé, nunca usados”, atribuído a Hemingway.
“Nunca emprego o pronome pessoal na primeira pessoa, nunca expresso nenhuma emoção subjetiva, tento ser mecânico. Converti-me num copista, não escrevo textos originais, copio textos que já existem”, K. Goldsmith.
“A nova escritura consiste em não escrever e a nova leitura consiste em não ler.”
“A missão do poeta hoje é a de não escrever poesia.”
Se defendêssemos acerrimamente o acordo ortográfico, qualquer que ele fosse, e se tivéssemos tido a capacidade para ‘inventar’ aquele meio de comunicação social a que muito portuguesmente chamamos de Twitter, que alegremente nos permite enviar tweets, então, para mantermos o mesmo conceito que lhe inspirou o nome, deveríamos antes chamá-lo de Passarinho, que nos permitirá pipilar até 140 carateres.
A ideia de comprimir a linguagem, de reduzir circunstância complexas a um só enunciado, há muito que tem vindo a ser feita: ideogramas chineses, telegramas, títulos de imprensa, slogans publicitários, poemas concretos, ícones no nosso computador. À medida que a informação se move com mais velocidade e nos defrontamos com cada vez maiores quantidades de informação, somos atraídos para fragmentos de escrita cada vez mais pequenos.
Em princípio, esta autolimitação do número de carateres, invalidaria a sua utilização para devaneios literários. Só que, em 1906, Félix Fénéon publica, num jornal francês, ‘novelas’ comprimidas em três linhas, com base numa mistura de telegramas e de cabeçalhos de periódicos.
A moda pega. Em 1917, durante uma reunião de amigos mais ou menos etilizados, diz-se que Hemingway apostou com eles que conseguiria escrever um conto com apenas seis palavras. Pegou num guardanapo e escreveu: “For sale: baby shoes, never worn” (Vendem-se: sapatos de bebé, nunca usados). Aposta ganha.
Só que a história sobre Hemingway nunca aconteceu. Insere-se no campo da lenda literária. Como quase tudo na vida, a autoria pertence a outro, desconhecido. Mas era plausível, pois Hemingway já mostrara a sua capacidade de síntese em textos como “A Banal Story” com 634 palavras, e “The Revolutionist” com 500 palavras.
Esta mania ‘do conto mais breve do mundo’ passou a inscrever-se na tradição da microficção americana, tendo como expoente Frederic Brown: “The last man on Earth sat in a room. There was a knock on the door” (O último homem sobre a Terra está sozinho sentado num quarto. Eis que batem à porta).
Ainda em 2006 a revista Wired promoveu um concurso entre uns trinta escritores americanos, pedindo-lhes para escreverem um conto com apenas as tais seis palavras. As respostas não se fizeram esperar: Steven Meretzky conta que “Confundido, leu o seu próprio obituário”; Bruce Sterling escreveu que “Era muito caro continuar sendo humano”; Bem Bova, “Para salvar o mundo, voltou a morrer” e Margaret Atwood, “Acharam cadáver incompleto. Médico compra iate”.
Seja como for, esta deriva insere-se ainda naquilo que se entende ser um conto, não só porque conta histórias, como por ser “um relato que encerra sempre um relato secreto”.
Uma outra faceta foi a que surgiu com John Barton Wolgamot quando em 1929 publica o livro Em Sara, Mencken, Cristo e Beethoven Havia Homens e Mulheres, quase todo ele só com títulos e nomes. Um pequeno exemplo:
“Nas suas melodias realmente grandiosas Johannes Brahms, Sara Powell Haardt tinha chegado mui heroicamente e alegoricamente entre os seus realmente grandiosos homens e mulheres a Clarence Day Jr., John Donne, Ruggero Leoncavallo, James Owen Hannay, Gustav Frensen, Thomas Beer, Joris-Karl Huysmans e Franz Peter Schubert muito titanicamente.”
Walgamot disse que, embora tivesse passado dois anos a inventar nomes para o livro, levara muito mais tempo, dez anos, para conseguir estabelecer as ligações entre eles.
Também Gertrude Stein tentou em 1934 esta via da proliferação de nomes no seu livro Ser norte-americanos, explicando-nos que: “Os nomes podem-se repetir de distintas formas […] mas agora e sempre a poesia cria-se ao nomear nomes como os nomes de algo os nomes de alguém os nomes do que quer que seja […] Pensa no que fazes quando fazes isso quando amas o nome do que quer que seja realmente amas o seu nome.”
O facto é que os nomes, quando impressos, tornam-se tão atrativos que, apenas pela sua simples enunciação, mesmo que não se diga nada sobre eles, a sua acumulação leva os leitores a folhearem várias páginas em busca de algo que lá não está. “A situação chega ao extremo de que ver uma página de um periódico ou revista que não tenha uma certa quantidade de nomes, de preferência famosos, torna-se dececionante. Em resumo, os nomes famosos são as cartas altas do periodismo.”
O próximo passo vai ser dado por David Markson (1927 – 2010) ao conjugar nas suas novelas uma prosa muito compacta com milhares de fragmentos da história da arte, compondo uma narrativa fragmentada, e que normalmente não ocupava mais de uma ou duas linhas. Um precursor do Passarinho.
“ JamDelmore Schwartz morreu de um ataque de coração num sórdido hotel de Times Square. Só ao fim de três dias é que apareceu alguém para reclamar o corpo.
James Baldwin era antissemita.”
Mas são dois escritores canadianos, Darren Wershler e Bill Kennedy, que ao juntarem esta forma de escritura comprimida com nomes próprios a buscadores da Internet vão abrir as portas do futuro da literatura. Através da criação de um programa de extração de dados, rastreiam sítios web das redes sociais, acedendo também a todas as atualizações sobre o usuário, incluindo evidentemente o seu nome, nome que será depois retirado e substituído de maneira aleatória pelo nome de um qualquer escritor falecido. O resultado:
“Shel Silverstein vai jogar um pouco de Tomb Raider antes de ir trabalhar. Jonathan Swift tem bilhetes para o jogo de hoje à noite. Arthur Rimbaud também conseguiu por fim empregar a palavra ‘arcobotante’”.
O programa produz sem parar um poema que aparece na nossa página web cada dois minutos. Pode-se fazer clique em todos os nomes próprios da página, que nos conduzem para um arquivo com todas as atualizações do estado desse autor (não esquecer que o autor não é o autor, mas apenas o substituto do usuário cujo nome foi retirado).
Em 2001, Wershler e Bill criam um sítio web com o nome de Apostrophe Engine (www.apostropheengine.ca), que na sua página inicial apresenta um poema chamado “apostrofe” escrito por Bill em 1993, onde cada linha começa com “You are” (Tu és). Fazendo um clique em qualquer linha, cria-se um poema. E avisam “Por favor, sê paciente. Os nossos robots estão a trabalhar o mais rapidamente possível. Se estiveres perdido, confuso ou desapontado com o teu poema ou desejes voltar para o Kansas, faz clique para voltares ao início”.
Carregando na linha, entra em ação um buscador de Internet, que vai produzir uma série de páginas web. Depois, cinco robots virtuais revêm a lista, colecionando frases que começam com “tu és” e que terminam com um ponto. Depois de terem recolhido um certo número de frases ou de terem revisto um certo número de páginas, os robots param. De seguida, a Apostrophe Engine regista e edita as frases recolhidas, compila os resultados e apresenta-os como um poema, com a linha original como título e em que cada nova linha é uma hiperligação.
Assim, a qualquer momento, a versão do poema é potencialmente tão grande como a Internet, e como o conteúdo da Internet está constantemente a mudar, também o conteúdo do poema vai mudando. Obtém-se assim o que chamam de ‘poema vivo’, que se rescreve conforme se atualiza a Internet, e que continua a crescer mesmo que ninguém o leia.
Posteriormente, Wershler e Bill reaproveitaram a abundância de material fornecido pela Apostrophe Engine e resolveram fazer uma publicação. Para isso, viram-se forçados a expurgar a versão on line de muitos dos sinais e ruídos desnecessários, normalizado o espaço, retirando os números e as linhas mortas. Por exemplo, quando se fazia clique na linha que dizia “you are so beautiful to me” (canção de Joe Cocker) aparecia na versão on line:
You are so beautiful (to me) hello, you either have javascript turned off or na old version of adobe’s flash player* you are so beutiful to me 306,638 views txml added1:43 kathie lee is a creep 6288.573 views everythingisterrible added2:39 you are so beatiful 1.441.432 views caiyixian added0:37 reptile eyes* you are so beautiful (to me) 0* yyou are so beautiful 79.971….
Na versão impressa:
Tu és tão bela*tu és tão bela*tu és tão bela*tu és tão bela artista: Babyface*tu és tão bela*tu és tão bela, sim és para mim tão bela és para mim, não vês? *tu és tão bela as letras são propriedade dos seus autores*tu és tão bela*tu és tão bela*tu és tão bela artista: Ray Charles* tu és tão bela*tu és tao bela*tu és tão bela….
Eis o que Kenneth Goldsmith, escritor, Poeta Laureado do MoMA, criador da plataforma UbuWeb, diz:
“A versão impressa é uma maravilha de ler, cheia de ritmos dispares e musicalidade repetitiva […] Inclui uma disposição cuidadosa de diferentes tipos de conteúdo como a advertência dos direitos de autor, que aparece repentinamente quando estamos já a sentir-nos enfadados pela repetição das frases. Os nomes próprios a negro escuro reforçado – Babyface e Ray Charles -, precedidos da frase – ‘tu és tão bela artista’- estão suficientemente afastados para não interferirem entre si, o que produz um texto perfeitamente equilibrado.”
Mais do que ‘pôr’ um computador a escrever poesia (o que já fora feito), a ideia é fazer com que os escritores usem os buscadores da Internet para acederem às redes sociais e demais linguagens que lhes irão servir de fontes de texto, passando a utilizarem esta linguagem gerada pela Internet, quer na sua forma aleatória quer na sua forma mais elaborada, misturada e reprogramada, para criarem obras novas e originais.
“A colagem e o pastiche sempre existiram na literatura. Podia-se aproveitar uma frase ou um verso e compor outra coisa, mas agora com um par de toques no teclado pode-se copiar não já um livro inteiro, mas as obras completas de Shakespeare, que de repente se convertem em tua propriedade”.
“A escritura não deve ser criativa. Jamais emprego o pronome pessoal na primeira pessoa, nunca expresso uma opinião subjetiva, tento ser mecânico. Converti-me num copista, não escrevo textos originais, copio textos que já existem.”
Donde, logicamente, vai concluir que:
“A nova escritura consiste em não escrever e a nova leitura consiste em não ler.”
Goldsmith, que se intitula como “poeta contemporâneo”, explica-nos que “a poesia é um espaço morto de que temos de nos apoderar, sendo a rede o lugar onde há mais possibilidades para isso se verificar. Na realidade, sendo rigorosos, a missão do poeta hoje é a de não escrever poesia”.
De tudo isto uma coisa parece ser certa: continuem a pipilar, pipilem furiosamente no Passarinho garantindo com isso a possibilidade de virem a figurar como artistas anónimos na próxima Bíblia (não a de Gutenberg) da Google em atualização permanente, distribuída pela Amazon, alegremente comprada, obrigatoriamente imposta em todas as nações verdadeiramente livres (e há outras?).Por fim, um mundo de artistas.
Corolário 1: Não percam tempo a pensar, vão à Internet.
Corolário 2: Ficam assim, com mais tempo para não pensarem.
“O mais importante da vida é a ocasião”, Cleobulo de Lindos.
Para os que agora procuram asilo e liberdade, perderam a ocasião: vieram demasiado tarde.
“Criar um animal que pode fazer promessas … Não será esta precisamente a tarefa paradoxal que a natureza criou a si própria no que respeita ao homem?”, Nietzsche.
Para os que agora procuram viver uma vida digna, perderam a ocasião: vieram demasiado cedo.
Cleobulo de Lindos, um dos considerados Sete Sábios, nascido no século VI a. C. em Lindos, na ilha de Rodes, dizia que “o mais importante na vida é a ocasião”. Mal ele sabia que 2.500 anos passados este seu pensamento continuaria a ter aplicação, sendo cada vez mais atual na nossa sociedade.
1. Os que chegaram demasiado tarde.
Vejamos por exemplo o caso da onda de refugiados de agora. Tivessem eles iniciado a sua fuga algumas dezenas de anos antes e teriam sido recebidos como heróis, como aconteceu com quase todos os que se escaparam dos perigos e da opressão da União Soviética, Vietname, China e Cuba, para se acolherem no “mundo livre”.
Em 1961, ainda não existia o muro de Berlim (começara a ser construído há apenas três dias) quando Conrad Schumann, soldado de 19 anos da Alemanha de Leste, se decidiu a saltar o rolo de arame farpado que na altura separava a cidade e o país, perante os cânticos dos alemães ocidentais que o incentivavam, “Komm’ ruber!” (Vem para cá), onde já o aguardava um carro da polícia que o transportou para a segurança. A sua fotografia a saltar fardado o arame farpado tornou-se icónica, símbolo dos bravos que tudo arriscavam na procura de uma vida melhor, fugido de um regime ditatorial. Era assim que naqueles anos sessentas eram acolhidos todos os refugiados que viessem do leste da Alemanha.
Com a saída dos americanos do Vietname, os anos setentas assistiram ao maior programa de instalação de refugiados feito pelo governo americano: foram recebidos de portas abertas 125.000 refugiados provenientes do Vietname do Sul.
Com o colapso da União Soviética e o desaparecimento do Papão do Comunismo, assistimos a uma interpenetração das economias a nível mundial, tornando mais porosas as fronteiras dos países. Tal ocasionou o aumento do número de pedidos de asilo de emigrantes de países falidos ou de países em zonas de conflito.
É quando aparece o termo “repatriação forçada” justificando o reenvio dos “boat people” que, fugidos do Vietname para se acolherem em Hong Kong (muito inglesa na altura), foram colocados em campos de detenção, para serem de novo encaminhados de volta ao Vietname, exceção feita para alguns escolhidos. A Tailândia e a Malásia rebocavam os barcos dos “boat people” de volta para as águas internacionais, muitas vezes sem lhes darem água ou alimentação. A Austrália gasta um bilião de dólares por ano na interseção de barcos que transportam refugiados em águas internacionais, encaminhando-os para Papua Nova Guiné, Nauru e Camboja.
Na Europa é o que se vê. A América, a principal responsável do caos no Médio Oriente, após grande insistência internacional, propôs-se aumentar o número de refugiados Sírios a receber para os anos de 2015-16 de 5.000 para 10.000.
Os que há cinquenta anos eram vistos como heróis e acolhidos sem reservas, são agora vistos como indesejáveis a manter fora das nossas fronteiras. Para os que agora procuram asilo e liberdade, perderam a ocasião: vieram demasiado tarde.
2. Os que chegaram demasiado cedo.
Para Hannah Arendt, a natalidade, a vinda ao mundo, era a condição ontológica da ação: cada nascimento continha em si a promessa dum novo recomeçar. Agir era assim o iniciar de uma nova partida, a possibilidade de aparecimento de um mundo novo.
Para ela, esta dimensão soteriológica da ação tinha a sua mais bela expressão “na pequena frase dos Evangelhos ao anunciarem a sua ‘boa nova’: ‘Nasceu-nos uma criança’”.
De facto, o mais importante que nos aconteceu na vida foi termos nascido e, contudo, “todo o ser humano só sabe que nasceu, porque lho contaram, já que não esteve lá para o presenciar” (Hans Blumenberg).
Só que ao nascermos ficamos imediatamente expostos a algo que não é seguro, que não é por nós controlável e sobre o qual não temos qualquer conhecimento: o mundo.
Deixamos a casa-mãe da nossa vida intrauterina, única que constitui nossa verdadeira terra natal, seguindo para um lugar incerto em que nada está de antemão assente, mas que tem de ser definido, onde se inclui ainda entre outros, o azar ou a sorte do local de chegada, sem, contudo, estarmos verdadeiramente preparados para o que vamos encontrar.
Se não encontrarmos uma mãe e outras pessoas que nos prometam um mundo para viver ou como viver num mundo, mesmo sabendo-se que devido à instabilidade das condições de vida na terra tais promessas estarão predestinadas a serem quebradas, é pouco provável que se sobreviva para além das primeiras 48 horas. O que seria o regresso ao nada.
O nosso simples nascimento constitui uma promessa para esse mundo que se sabe ser uma impossibilidade de cumprimento enquanto promessa, pelo que nos conduzirá previsivelmente a uma queda no que não é possível de se cumprir.
Todos aqueles que não conseguem ter o controle da sua própria vida, que continuam ao fim de 40 ou mais anos de vida a viver em casa dos pais e avós, deles no todo ou em parte dependentes, chegaram certamente demasiado cedo à vida. O que acabará por acontecer a todos nós.
Será, portanto, ainda possível hoje aquele ‘agir’ de que nos falava Arendt? Não estarão já os nossos atos à mercê de processos automáticos que nem mesmo o milagre de um recomeço radical poderá interromper, retirando-nos todo o poder de decisão? Não estaremos a viver numa época de mortos-vivos na qual já não seja possível não só a vinda ao mundo como a própria morte?
Para não sermos vidas abortadas à nascença por chegarmos demasiado cedo, talvez venha a ser possível, dados os grandes progressos científicos, nascermos com 40 ou 50 anos. Se mesmo assim, as promessas não poderem ser cumpridas, então talvez optar por suprimir uma, ou duas gerações. Ou todas. Por fim, as contas darão certas. É para isso que elas servem.
Para os que agora procuram viver uma vida digna, perderam a ocasião: vieram demasiado cedo.
“Nesta época da informação, os acontecimentos desprendem-se com rapidez uns dos outros sem deixar qualquer marca. Tudo se passa superficialmente. Nada tem importância. Nada é definitivo. Quando já não se sabe o que é importante, tudo perde importância. Deste processo aberto e infinito, nada chega ao fim. Nada se conclui. A ‘inconclusão’ é o estado permanente.”
“Vamos fazendo zapping pelo mundo”.
“Porque é que não temos tempo? Em que medida não queremos perder tempo? Porque dele temos necessidade e queremos empregá-lo. Para quê? Para as nossas ocupações quotidianas, das que desde há uns tempos nos temos tornado escravos”, M. Heidegger.
O tempo da narrativa
Uma narrativa é um contar de acontecimentos que se encadeiam formando uma história. É este encadeamento narrativo que, operando através de uma seleção de acontecimentos, vai fixar uma sucessão de fatos, dando assim origem a um sentido. Ao contrário, uma sucessão de frases indistintas não dará origem a qualquer sentido, não constrói uma história, não constituindo, portanto, uma narrativa.
No primeiro dos tempos, o chamado tempo mítico, a função dos deuses era a de conferir sentido e significado ao mundo. Narravam a relação entre as coisas e os acontecimentos. A relação que se narra gera sentido. A narração cria assim mundo do nada.
Tudo ocupa o seu lugar, tudo tem significado numa ordem (o cosmos) que encaixa perfeitamente. Os acontecimentos mantêm uma relação estreita, um encadeamento cheio de sentido, refletindo a substância do mundo, eterna e imutável, sobre uma superfície estática. Nesse mundo, o que tem sentido é a eterna repetição do mesmo, a reprodução do que já tenha sido, de uma sempre e mesma verdade. O homem do tempo mítico vive num eterno retorno dum presente duradouro. O seu tempo é um tempo cíclico (curiosamente, continuamos a arrastar connosco algumas dessas vivências).
Com o posterior ‘aparecimento’ do chamado tempo histórico, o mundo já não se apresenta como uma imagem acabada de uma ordem imutável, mas como uma possibilidade de mudança. O tempo histórico deixe de ser circular e passe a ser linear. Tudo é um processo, que implica um progresso ou uma decadência.
Para que o tempo nos seja minimamente entendível, necessitamos de lhe criar (a ele e a nós) umas balizas por onde ele ‘deverá’ passar, para assim nos assegurarmos que ao encadear os acontecimentos, o tempo lhes comunique sentido. Daí que o tempo histórico só produza significado quando está orientado. O ‘nosso’ tempo histórico está orientado linearmente.
Mesmo orientado linearmente, essa orientação não é única. Por exemplo, o tempo cristão ou escatológico remete para o final dos tempos, para o fim da história. O homem encontra-se atirado para o fim do mundo, não sendo, portanto, sujeito da história, não se projeta no futuro. Não é livre, está submetido a Deus. É Deus quem dirige.
Já no tempo do iluminismo, a história está animada pelas ideias da liberdade e do progresso da razão humana. O sujeito do tempo já não é um Deus dirigente, mas um homem livre que se projeta no futuro.
Todos estes tempos apresentados até aqui têm em comum o facto de se expressarem como uma continuidade narrativa, quer através da imagem ou quer através da linha, narrativa essa que não comporta qualquer possibilidade de intervalos que deem origem a espaços vazios. O tempo narrativo é um tempo contínuo no qual um acontecimento anuncia, sempre a partir de si mesmo, o seguinte. Os acontecimentos sucedem-se dando origem a um sentido.
Há, contudo, diferenças entre eles: ao passo que no tempo escatológico é Deus que imprime e serve de garante a uma estrutura de ordem e sentido, estabilizando o tempo, já no tempo do iluminismo essa função de Deus tem vindo a ser substituída pela crença no progresso, num futuro alcançável e moldável pelo homem.
Esta propensão, esta orientação cada vez maior para o futuro, induz como que uma aspiração para a frente, que poderá vir a ser entendida como uma aceleração. Por isso, a significação que o tempo venha a dar a uma nova ordem oriunda deste movimento e mudança, provém do futuro. E, é assim que cada vez mais o presente nos aparecerá apenas como um ponto de transição. “Nada é. Tudo será”. E neste presente cada vez mais reduzido e fugidio, não se torna possível discernir a verdade.
Por mais abertos que estejamos ao futuro que vai vir, é fundamental não nos esquecermos que para a compreensão do nosso presente, o passado fará sempre parte dele, uma vez que estamos sempre a transitar entre passado e futuro. Sem este balizamento temporal nunca poderemos fazer com que o conhecimento se abra à compreensão. A compreensão necessita este balizamento temporal.
O tempo da informação
A grande diferença que existe entre compreensão e informação é que a informação está vazia de tempo, é intemporal. Não necessita desse balizamento temporal. Ela é neutral. Esta neutralidade da informação é o que lhe permite ser armazenada e utilizada à vontade. Ela desloca-se num espaço sem tempo, a-histórico. O perigo subjacente é que o apagar do tempo histórico corresponde a um apagar da memória.
Quando se perde a tensão narrativa ou teleológica, deixa de haver o que quer que ligue os acontecimentos entre eles. Deixa de haver relação entre eles, deixa de haver duração. A linha, que era a narrativa, vai decompor-se em pontos que se movimentam sem qualquer direção. Cada ponto do presente, sem qualquer força de atração temporal, faz com que o tempo se desbloqueie, que os processos se acelerem sem qualquer direção.
O tempo aparece então como uma sucessão sem fim de um presente pontual. É um tempo descomposto, um tempo deslaçado, sem qualquer tensão. O presente reduz-se a picos de atualidade. Já não dura. Já não tem nada que o ligue interiormente como quando, por exemplo, Deus era um estabilizador do tempo.
O tempo da informação representa assim um novo paradigma, pois no seu interior habita uma temporalidade muito diferente. É uma manifestação do tempo atomizado, de um tempo de pontos.
Contrariamente aos tempos míticos e históricos que ao constituírem uma continuidade narrativa não deixavam qualquer espaço vazio, no tempo da informação abre-se necessariamente um intervalo vazio entre os pontos em que nada sucede, não ocorre nenhuma sensação. Só o atrasam.
Por isso o tempo dos pontos sente o impulso para suprimir ou encurtar os intervalos vazios. A falta de tensão narrativa faz com que o tempo atomizado não consiga manter a atenção de maneira duradoura. A perceção vai abastecer-se constantemente de novidades e radicalismos. Para evitar que se demorem em demasia, intenta-se que as sensações se sucedam cada vez mais rapidamente. O tempo dos pontos não permite nenhuma demora contemplativa. É antes um tempo das emoções.
Nesta época da informação, os acontecimentos desprendem-se com rapidez uns dos outros sem deixar qualquer marca. Tudo se passa superficialmente. Nada tem importância. Nada é definitivo. Quando já não se sabe o que é importante, tudo perde importância. Deste processo aberto e infinito, nada chega ao fim. Nada se conclui. A ‘inconclusão’ é o estado permanente.
Num espaço sem orientação, desorientado, a ação pode-se interromper a qualquer momento e começar de novo. Perante uma enorme quantidade de enlaces (links), a conclusão acaba por não ter muito sentido. Estamos perante um espaço em que se decide constantemente e onde estão sempre a aparecer novas possibilidades. Não há decisões que sejam definitivas. Cada vez que se toma uma decisão, surgem sempre outras novas.
Num processo de produção, a eficiência de um produto mede-se pela rapidez com que ele chega à fase de finalização. A aceleração é inerente ao processo de produção. Talvez por isso também se chame ao computador, ‘processador’. Também ele se deixa acelerar e fá-lo com gosto, porque ao não ter nenhuma estrutura de sentido está reduzido à mera eficiência funcional. O computador não duvida. Qualquer atraso é sempre registado como sendo uma doença. Qualquer atraso deve ser eliminado o mais depressa possível. A tranquilidade, a pausa, não tem qualquer significado do ponto de vista do cálculo.
Contudo, os intervalos não funcionam apenas como retardadores. De certa forma funcionam também como articuladores. Sem intervalos, haverá apenas uma justaposição ou um caos de acontecimentos desarticulados, sem orientação. Isto é mais visível no campo da arte, que se esvazia, passando a ser uma arte de presença. Tonalidades, cores, timbres e tudo o mais perdem todo o significado que a cultura lhes dava. A sua tarefa consiste apenas em dar testemunho do que aconteceu, na melhor das hipóteses justapondo acontecidos.
Encurtando-se os intervalos, acelera-se a sucessão dos acontecimentos. A densificação dos acontecimentos, informações e imagens tornam impossível a demora. As imagens que passam de maneira fugaz pela retina, não conseguem captar uma atenção duradoura. Propagam o seu atrativo visual e desvanecem-se. As imagens e os acontecimentos não têm um efeito duradouro ou profundo. A consequência da aglomeração de imagens, acontecimentos e informações, tornam impossível qualquer demora contemplativa. E é assim que vamos fazendo zapping pelo mundo.
A desintegração do tempo linear-narrativo não supõe necessariamente uma catástrofe. Pode também conter em si uma possibilidade de libertação da prisão narrativa. É um ficar-se livre para se poder abordar os acontecimentos narrativos independentes, para os acontecimentos em sentido pleno. Pode-se ter o caminho aberto para o acesso a coisas que antes eram inexistentes.
Mas atenção: nos intervalos do tempo onde nada acontece, a tendência é para a letargia. A existência vai tornar-se muito mais frágil, enfrentando-se constantemente ao medo ao nada, ao perigo da morte, porque ao acontecimento que a afasta da morte falta-lhe todo o tipo de duração. A alegria mistura-se com o medo da morte. À exaltação segue-se a depressão.
Encontramo-nos assim perante a possibilidade a uma vida que não necessitando já de teologia nem de teleologia, não necessitando já de Deus como fonte absoluta da verdade nem da razão como fonte universal do sistema de valores, contém em contrapartida todos os perigos acima descritos. Uma vida em que o quadro de referência será antes uma estética de sedução visando especificamente dar satisfação aos nossos desejos (e não às nossas necessidades).
Quereremos fazer um esforço no sentido de introduzir qualquer elemento reflexivo/contemplativo na vida humana, qualquer capacidade para ela se poder demorar?
“As imagens em movimento tomam o lugar dos nossos pensamentos”.
“Em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, permite-nos um outro espaço preenchido inconscientemente”.
“Cinema como imitação da realidade”.
Falemos então um pouco sobre cinema.
Por opção ou não, quando decidimos sobre a forma de expressão que vamos utilizar (escrever, pintar, fotografar, filmar, fazer teatro, música, etc.) para exprimir o que pretendemos transmitir, ficamos sempre dependentes do seu meio, das suas limitações e possibilidades. É diferente escrever ou pintar, pintar ou fotografar, fotografar ou filmar. Daí que as limitações do meio nos aparecerem por vezes como prisões que intentamos quebrar.
Uma das características do cinema (que por um lado constitui uma sua limitação e que curiosamente por outro lado faz parte do seu sucesso) é o facto de a sucessão de imagens projetadas perturbarem o processo de associação daquele que as observa: as imagens em movimento tomam o lugar dos nossos pensamentos. A velocidade de passagem dos fotogramas não nos deixa tempo para pensarmos sobre eles. Como resultado, a forma tende a impor-se ao conteúdo, o valor de exposição ao valor de culto, o que faz com que o cinema esteja particularmente apetrechado para contar histórias que absorvemos natural e acriticamente. Como alguém dizia: “O público é um examinador, mas distraído”.
Alguns realizadores, conscientes desta limitação, tentam por vários meios superá-la, o que só abona a favor das suas intenções, mas não do produto obtido, exatamente pelas limitações próprias do meio. Torna-se necessário um grande equilíbrio e domínio, especialmente nos casos onde não há história ou naqueles onde a história é “construída” ou mais “construída” que o normal.
Outra característica muito importante do cinema é a capacidade que tem de nos retirar das coisas que parecem aprisionar-nos (dos nossos escritórios, dos nossos quartos mobilados, das nossas ruas, das nossas estações de metro, das nossas fábricas, das nossas relações, das nossas rotinas, etc.), fazendo-as desaparecer e permitindo-nos viajar calma e aventurosamente até por entre os destroços espalhados. É assim que, por exemplo, uma ampliação nos permite acreditar na revelação de estruturas completamente novas; o ralenti, permite-nos sobrevoos deslizantes para fora do espaço verdadeiro. Em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, permite-nos ‘viver’ um outro espaço preenchido inconscientemente.
Avancemos. O cinema passou por várias fases, cada uma com características próprias. Para as reproduzir vou aproveitar-me do estudo de Gilles Lipovetsky, L’écran global, por considera-lo o mais abrangente, explicativo e atual.
O cinema mudo corresponde a uma primeira fase que se convencionou chamar de modernidade primitiva (não é o mesmo que primária). Sendo um modo de expressão capaz de mostrar o mundo de uma forma radicalmente nova, como nunca fora até aí possível, começou por se apoiar nos espetáculos forenses, nas pequenas cenas do quotidiano e no pequeno teatro. Complexificando-se, passa a abordar o romance literário.
A inexistência de som leva, por parte dos atores, a representações com uma mímica hipertrofiada e a um estilo melodramático. Rapidamente surge a necessidade de cenários próprios, guarda roupas e maquilhagens excessivas, que juntamente com as imagens saltitantes fazem parte desta primeira fase primitiva. E, contudo, ela foi capaz de produzir obras como Intolerância, Vento, A Aurora, ter realizadores como Griffith, Sjöström, Lang, e criar através das suas imagens valor de ícones (as ‘estrelas’) como Valentino, Dietrich e Garbo.
Dos princípios dos anos 30 a finais dos 50 entramos numa segunda fase que se convencionou chamar de modernidade clássica. É a chamada época de ouro dos estúdios, em que o cinema se converte no divertimento popular mais favorito dos americanos e de todo o mundo.
Sem dúvida impulsionado pela introdução do som que só por si vai revolucionar o que seriam apenas simples representações de peças de teatro filmadas, tal vai também obrigar ao aparecimento de uma nova linguagem e gramática. Seguem-se algumas inovações técnicas como o aparecimento dos filmes a cores a partir de finais de 30, maiores écrans panorâmicos e o cinemascópio. Tudo isto contribuiu para um mais ‘adequado’ tratamento da realidade, transformando-o no idealizado e desejado pelo público: Hollywood como máquina produtora de sonhos cujos valores eram encarnados pelas suas ‘estrelas’ (da divina e inalcançável Garbo ao viril e indestrutível John Wayne).
É a época de um cinema padronizado no que respeita aos géneros, temas, estética e moral, com recurso a cenários, cabeças de cartaz e produção em estúdios. A finalidade é entregar um produto fácil de entender pelo espetador, através de uma história ou intriga que tenha um desenvolvimento lógico e progressivo, sem qualquer ambiguidade, onde nada se interponha à compreensão do final. Uma história que se encaminha desde o princípio para um fim. Narrativa simples, nada de alterações de tempo com recurso a passados que não estejam já inscritos na história: o tempo decorre do princípio para o fim.
Ao privilegiar a filmagem em estúdio serão os cenários os encarregues de gerarem a atmosfera do filme. Como as características psicológicas das personagens são tipificadas, a utilização de vedetas ‘estrelas’ são a garantia de sucesso popular. Ao realizador cabia a função meramente técnica de ‘fotografar’ o filme para que o enredo fosse percetível, dentro das coordenadas de tempo e dinheiro disponibilizado pelo estúdio.
De finais dos anos 50 até aos anos 70 surge uma nova fase que se convencionou chamar de modernidade modernista e emancipadora. Começara já anteriormente com a emancipação de alguns realizadores face às exigências dos estúdios. É o caso de Jean Renoir que, já em 1930 começa a filmar no exterior e a captar o som em direto. É assim com Orson Welles que em 1941 com o seu Citizen Kane desconstrói e fragmenta toda a estrutura narrativa contínua até então seguida, abrindo caminho ao cinema moderno.
A rutura estética acentua-se com o neorrealismo italiano assente na realidade da miséria do pós-guerra. A nouvelle vague, não só de jovens realizadores como de novas vias fora do cinema clássico, aparece em França em finais de 50, estendendo-se pelos 60. O free cinema que surge na Inglaterra, o cinema contestatário na Europa de leste, e o cinema novo no Brasil vão fazer estremecer Hollywood e o seu sistema padronizado.
Contrariamente ao ilusionismo mussoliniano que projetava uma imagem rosa da sociedade, uma representação idealizada dos indivíduos, sem dificuldades económicas, sem conflitos de classe e em que todos os comboios chegavam ao horário (lembram-se que ‘carga’ transportavam e para onde iam?!), o neorrealismo italiano faz descer os filmes à terra mostrando a vida real de desempregados, camponeses explorados, pescadores, jovens engraxadores, sendo Roma cidade aberta o seu exemplo maior. Inserem-se nesta modernidade Bergman, Visconti, Antonioni, Pasolini, Fellini, Buñuel, Losey, Resnais, Godard, Truffaut, Bresson, Tati, que, embora diferentes, todos eles procuravam explorar a representação da realidade por novos caminhos.
São “obras abertas” como tão bem caracterizou Umberto Eco, devido à sua ambiguidade, indeterminação e polivalência, que obrigavam o público a um trabalho de reflexão para as entenderem: Hiroxima meu amor, A Aventura, O Criado, 2001 Odisseia no espaço, Providence. Era Godard e os seus puzzles narrativos que pulverizavam a intriga. Antonioni que fazia desaparecer a intriga na lentidão da procura que se perdia no nada. Resnais que a escondia por trás dos seus labirintos mentais.
Surgem temáticas novas: a solidão, a incomunicabilidade, o silêncio, o passar do tempo, o casal, a liberdade, a memória, a violência, a vagabundagem, o aborrecimento. Difícil esquecer Anna Karina a dizer monótona e repetidamente em Pedro o louco: “O que é que vou fazer? Não sei o que vou fazer.” A personagem perde o seu caráter definido, estável passando a indeciso, flutuante, incerto quanto à sua aparência. À sua volta o mundo torna-se dificilmente explicável reduzido a um presente sem espessura caído no seu imediatismo. A banalidade, o insignificante, os tempos mortos passam a ter um lugar até aqui negado, os acontecimentos são conduzidos pela sorte, boa ou má. É uma fase eminentemente reflexiva e de desconstrução na qual o cinema de autor reivindica o estatuto de obra de arte por oposição aos produtos descartáveis do cinema comercial. É nesta fase que aparece o conceito de cinefilia.
Contar a história de outra forma, não utilizar cenários, filmar na rua, quebrar as normas da montagem, abandonar a teatralidade dos diálogos e sua interpretação por atores novos, independentizando-se do jugo da produção, são farpas lançadas a Hollywood. Tal como se passava na moderna sociedade individualista de consumo, a juventude e o seu espírito rebelde, a liberdade, os prazeres, a felicidade, a autenticidade, o sexo e a recusa das normas convencionais são impostos como valores.
Hollywood tenta resistir abrindo-se a um psicologismo com a integração de Freud nos seus argumentos, na procura e exposição dos segredos íntimos e da libido. Abre-se tenuemente a via da libertação estilística, narrativa e temática que progressivamente levam à desconstrução do clássico.
A partir dos anos 70 uma nova geração toma conta de Hollywood: Copolla, Spielberg, Lucas,De Palma. Utilizando o seu sentido de grande espetáculo e fazendo uso de todas as tecnologias de vanguarda vão recuperar para Hollywood a condução do cinema. Esta ‘neo Hollywood’ ficou muito a dever à geração europeia que a precedeu, como reconheceu Spielberg em 1977 ao chamar Truffaut para realizar o seu filme Encontros do terceiro grau.
A partir dos anos 80 a globalização vem alterar (ou acelerar) radicalmente a vivência ao nível da economia, cultura, consumo, estética, tecnologias e dos media. Como tudo se produziu ao mesmo tempo, podemos dizer que estamos perante uma mutação. Nas fases anteriores do cinema, as inovações técnicas que lhe estiveram na origem, apenas afetavam sectorialmente o universo cinematográfico. Agora, todo esse universo, criação, produção, promoção, difusão e consumo, foram atingidos e alterados simultaneamente. Entramos numa nova fase de cinema que Lipovetsky vai chamar de hipercinema.
A globalização económica e a internacionalização dos investimentos financeiros andam de mãos dadas, daí que grande parte das maiores empresas de cinema de Hollywood tenham passado para o controlo de grandes grupos europeus, australianos e japoneses, o que fez com que os filmes americanos fossem os que obtivessem maior financiamento por capitais estrangeiros. Esta internacionalização de financiamento vai conduzir a um cinema planetário, transnacional, cada vez mais mestiçado, multicultural, na tentativa de alargar continuamente o seu mercado, não excluindo nenhum tipo de identidade e de experiência.
Digitalização, ciberespaço, tecnologias genéticas, fluxos financeiros, megacidades, mas também pornografia, condutas de risco, desportos extremos, performances, happenings, obesidade, dependência, tudo em grande escala, tudo extremado, tudo vertiginoso, para além dos limites: esta é a espiral hiperbólica de escalada da vida económica, social e individual que caracterizam a sociedade a partir dos anos 80. Lógica de modernização exponencial que o cinema segue.
As invenções tecnológicas, o vídeo a partir de 80 e o digital a partir de 90, vão permitir uma alteração na abordagem da conceção das cenas, da realização e da montagem, reduzindo ou suprimindo o palco, retocando as imagens, inscrevendo os atores em ambientes de síntese, captar os movimentos por computador para os restituir sob forma animada, realizar personagens sintéticas ou puramente virtuais, exemplarmente mostrados em filmes de grande sucesso e impacto (Titanic, Parque Jurássico, O Senhor dos anéis).
A digitalização do som, quer dos filmes quer das salas de cinema, bem como a criação de sociedades de efeitos especiais vão fazer literalmente ‘vibrar’ o novo espetador, não só já pelos acontecimentos, mas pelos efeitos de cores, sons, formas e ritmos levando-o a sentir sensações diretas e imediatas daquele instante de imagens excessivas.
Os custos de produção, de publicidade e dos vencimentos das estrelas também se hiperinflacionam. O Titanic custou 247 milhões de dólares em 1997, o Homem Aranha 3 ultrapassou os 300 milhões em 2007. A ‘financeirização’ que constitui a coluna vertebral do mundo económico contemporâneo terá de estar presente no cinema: é assim que o Deutsche Bank suporta com 600 milhões de dólares metade da produção da Universal e da Sony Columbia, o Goldman Sachs financia com mil milhões a Weinstein Company.
O pagamento aos atores também cresce enormemente: Brad Pitt, Tom Cruise, Julia Roberts, Nicole Kidman recebem 16 a 20 milhões por filme, Tom Hanks recebeu 25 milhões pela atuação no Código Da Vinci. A isto devemos acrescentar os ganhos pela participação nas campanhas de publicidade. Mas, seguindo o padrão do sistema económico vigente, este enriquecimento dos mais famosos não é seguido por um aumento proporcional dos outros profissionais: assiste-se ao reforço das desigualdades entre categorias e géneros.
Quanto às campanhas de publicidade, enquanto em 1940 o máximo a que se assistiu foi a utilização de 7% do total previsto para a realização do filme, hoje o normal cifra-se em 30%, e em alguns casos mesmo mais de 50%. Em 1985 os gastos médios em publicidade com um filme eram de 6,5 milhões de dólares passando para 39 milhões em 2003. O objetivo é o da criação de um mega-acontecimento mediático que leve as pessoas a acorrerem à sua apresentação, o que vai implicar que a maior parte das receitas se obtenham nas primeiras semanas em que o filme sai (80% das receitas são obtidas nas quatro primeiras semanas).
As novas tecnologias, particularmente a digitalização, favorecem os géneros que maior consumo façam de efeitos especiais: filmes de ação, de ficção científica, de aventuras, de horror, filmes para crianças. Sem elas seriam impossíveis transpor para o cinema o universo fantástico do Senhor dos Anéis de Tolkien, nem os vários Matrix.
Se acrescentarmos à imagem o som das salas de cinema em que os graves tocam diretamente o corpo e o seu sistema sensorial obteremos um efeito/estado de imersão alucinatório dos sentidos. Simulação do real, de um novo mundo, através da modificação e desestabilização das perceções, numa espécie de trip sensorial: ‘realidade’ virtual.
Este cinema de sensações visuais e sonoras conduz a um ultra movimento de imagens mostradas a um ritmo infernal, a um efeito em que a velocidade se torna por si própria um fim. A duração média dos planos passa a ser de dois segundos: esta repetição acelerada transforma-se num autêntico bombardeamento visual. Montagem nervosa, diálogo curto e abreviado, multiplicação das cenas de perseguição, acentuação sonora. A velocidade passa a ser a estética de referência, exportada e/ou importada da televisão, dos jogos de vídeo, da publicidade. Cada vez mais o espetador não suporta tempos mortos ou de espera, quer cada vez mais emoções, mais sensações, mais espetáculos, mais coisas para ver e sentir que o arranquem da banalidade dos dias. A velocidade da imagem torna-se como que uma droga hipnótica e exaltante. A velocidade é o belo.
É também um cinema de profusão: de cores, cada vez mais cores, de imagens, cada vez mais imagens, de sons, cada vez mais sons. Mas, contrariamente ao barroco de Fellini que fazia da profusão de um sem número de imagens de personagens, cores e barulhos, um espetáculo, o cinema contemporâneo faz do espetáculo uma profusão. É a profusão pela profusão. São os efeitos especiais constantes, as perseguições, as explosões, as lutas. E quando um herói já não for suficiente, acumulam-se e repetem-se como em 2004 no caso de Van Helsing que se defronta no mesmo filme contra três adversários: Drácula, Frankenstein e lobisomem.
Mesmo quando as melhores obras declinam esta posição excessiva, não conseguem fugir a este tempo de desregulamentação, de saturação, e de horror ao pouco. Daí a opacidade labiríntica de David Lynch, a violência cada vez mais complexa de Cronenberg, a exuberância de Pedro Almodóvar.
É também um cinema no qual a violência é filmada por ela própria. Na anterior fase a violência era mostrada integrada num conjunto de adolescentes revoltados, de gangsters e da mafia, de conflitos sociais ou da selva urbana. Tudo isso começa a mudar em 1974 quando Sam Peckinpah realiza um filme centrado numa cabeça cortada, Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia.
Em 1979 é a vez de Copolla com o Apocalypse Now juntar a violência à estética. De referir o precursor da junção da estética a uma cultura da violência pura: Kubrick e o seu Laranja Mecânica de 1971.
Hoje, a violência nada tem a ver com a estética ou tema do filme. Ela existe por si mesma. O exemplo acabado é o de Kill Bill onde durante vinte minutos a heroína decapita e mata de variadíssimas formas um exército de oponentes de sabre. É a violência por ela mesma, que acaba por criar os seus próprios géneros. Um dos seus últimos produtos mais refinados é o do serial killer onde se encontram desde as loucuras assassinas ao canibalismo (O Silencio dos Inocentes) até ao ‘excesso’ de mortes horríveis ligadas aos sete pecados capitais (Seven). Não falando já sobre o horror da crucificação de Cristo do filme de Mel Gibson, dos costumes bárbaros dos Maias (Apocalypto) e dos modos de matar híper-sádicos dos Saw 1,2, 3…6 e 7.
O mesmo acontece com o sexo. Longe vão os tempos da sensualidade pretensamente chic de Emmanuelle e do cruzar de pernas de Sharon Stone que no Basic Instinct incendiou o planeta (e não só). Não há hoje um filme de grande audiência que não tenha uma cena de sexo e orgasmo. Progressivamente, o que era reservado aos filmes pornográficos passou a ser considerado normal. Troca de casais, sodomia, masturbação, copulação, felação, são mostrados em direto. Não se trata já da transgressão, mas da exacerbação pura e ilimitada dos órgãos e suas combinações eróticas, sem qualquer tipo de sentido ou de afetividade: há que ver e mostrar tudo como mera função performativa. E não só mostrar, mas também tudo dizer, e assim comprometer o espetador com a vulgaridade e a obscenidade das palavras. De homens e de mulheres.
Seria atribuir muita importância ao cinema ou à lógica comercial a culpabilização por este crescendo exponencial do sexo. Grande parte destas transformações têm que ver com as modificações dos costumes e com o desaparecimento de muitos tabus na sociedade a partir dos anos 60. Esta mistura entre velocidade e profusão, entre velocidade e sexo, é hoje aceite como corrente e legítima. O excesso não é hoje percebido como excessivo, o que já fora previsto por Pasolini no Salo e utilizado atualmente por Cronenberg no Crash ao reunir velocidade, violência e prazer.
De igual maneira, limitar o cinema contemporâneo apenas ao marketing, às grandes produções de Hollywood concebidas com a simplicidade necessária para que sejam acessíveis ao maior número de pessoas e onde as personagens são definidas como estereótipos (com comportamentos simples e identificáveis como a fleuma de Indiana Jones ou a coragem e força de Rambo) é ver apenas a ponta do icebergue.
Também não podemos ver como sendo filmes de autor toda aquela produção de filmes que não caibam nesse esquema de blockbusters ( que constituem 98%). É que mesmo que a enorme maioria desses filmes continuem a reproduzir um esquema simples quase clássico, entrou-se numa fase de mundialização acelerada em que todos os países, mesmo pequenos, pretendem utilizar o cinema como vetor de diferenciação e afirmação cultural, daí o aparecimento na distribuição ocidental de filmes sírios, iraquianos, cazaques, tajiques, albaneses, islandeses, lituanos, angolanos, malgaxes, etc.
O que se temia, que a globalização conduzisse a uma homogeneização dos produtos e culturas, a uma americanização do mundo, pode não ser tão linear. O sincretismo daí resultante pode antes vir a ser um cinema transnacional, para além de qualquer território específico e plural. Exemplo: Radu Mihaileanu, romeno de nascimento, filho de pai judeu imigrado na Roménia, muda de nome e emigra para o Ocidente, apátrida por momentos até ter a nacionalidade francesa, conta a história de uma criança na Etiópia que a mãe faz passar por falasha, emigrada em Israel numa família de judeus sefarditas que falam francês. O filme, Babel, será rodado pelo mexicano González Iñárritu que Hollywood atraiu para o realizar.
Tudo isto foi conduzindo a uma desregulamentação estética dos filmes, começando pela narrativa. Ao não distinguirem entre a ação principal e ações acessórias, a narrativa que contava uma história com princípio, desenvolvimento e fim é posta em causa. Depois a própria estrutura é posta em causa quando o acessório passa a ser tão importante como o principal. Começou com Easy Rider, mais tarde com Thelma e Louise e Sideways. A estrada, que era o acessório, passou a ser o principal, num discurso descontínuo, fragmentário e até caótico.
O mesmo se passou com o cinema de ação: a racionalidade da história é preterida a favor da exibição de uma cascata de imagens/sensações que fazem vibrar o espetador. Quando nos anos 50 e 60 se ia ver Hitchcock esperávamos sempre por uma explicação que nos permitiria entender o filme. Quando vamos ver A Orquídea Negra de Brian de Palma saímos sem compreender grande coisa, o que face às imagens apresentadas até nos dá um certo prazer. O prazer da sombra da dúvida. Mas David Lynch vai ainda mais longe: ele recusa qualquer explicação, é o mistério que tem sentido e não o sentido que tem mistério.
Voltando ao Sideways: eis um bom exemplo de como o insignificante, o pormenor, se pode ir desenvolvendo em cenas que valem por elas mesmas sem necessidade de uma narrativa central. É o pequeno prazer do primeiro copo de vinho que leva a falar-se de tudo e de nada, do grande e do pequeno, do simples e do complexo, ficando-se sem se saber qual seria o verdadeiro assunto.
Apesar de Elvis Presley e o rock estarem na origem do aparecimento da juventude como valor maior na sociedade, o cinema só vem a introduzir filmes que se debruçavam exclusivamente sobre jovens, tratados como jovens, com Os Quatrocentos Golpes de Truffaut em 1959. Na fase clássica as histórias eram normalmente centradas em personagens de idade média, nem muito jovens nem muito velhas. Seguem-se Fúria de Viver e Rock around the Clock.
A partir daí todos os grupos etários e seus problemas são incluídos, com pares amorosos de idade avançada (Jack Nicholson e Diane Keaton do Tudo pode acontecer, Clint Eastwood e Meryl Streep nas Pontes de Madison), papéis especialmente criados para a terceira idade e interpretados pela terceira idade (Danielle Darrieux com 89 anos na Nouvelle Chance) e realizadores centenários (Manoel de Oliveira realiza com 99 anos o Belle Toujours, um filme homenagem a Belle de jour de Buñuel em que vai buscar 40 anos depois os mesmos atores que nele participaram, Michel Piccoli com 82 anos na altura).
A partir dos anos 70 assiste-se quase a uma invasão de filmes sobre mulheres e com mulheres, numa panóplia de situações que iam para além do considerado como seus papéis típicos: megera, puta e amante. Executivas (Working Girl), detentoras de poder (O diabo usava Prada), ocupando atividades destinadas a homens (Million Dollar Baby), super heroínas (Catwoman, Elektra) são alguns exemplos.
Mais importante: equiparam-se aos homens ao nível do comportamento sexual, utilizando o sexo como puro prazer sexual. O dinheiro, o sexo e a carreira passaram a ser questões comuns a homens e mulheres. Nada lhes é interdito: desde a iniciativa a avanços sexuais (Glenn Close na Ligaçao Fatal em 1987), até ao rirem-se delas próprias e dos homens (como o faz Bridget Jones). Anote-se também nesta época, a entrada das mulheres para a realização, domínio até aí quase exclusivo dos homens: entre 1900 e 1980 não existiam mais de vinte realizadoras em todo o mundo; em 2004, só em França apareceram 68 filmes realizados por mulheres.
De igual forma assistimos a uma quase inversão dos papéis para além dos tradicionais atribuídos aos homens, ligados à perca do poder viril, à impotência, à pedofilia. Há um recentrar de nova personagem do homem, de que são exemplos o aparecimento do strip-tease feito por homens (The Full Monty) e o escândalo de uma cidade mineira perante o desejo de o filho de um operário em querer ser bailarino em pontas (Billy Eliott).
A homossexualidade é hoje totalmente legitimada no cinema, sendo mostrada no seu contexto, fora da condenação moral ou da sua apresentação boçal. Não há já qualquer comparação entre a timidez d’A Gaiola das Loucas de 1978 com My Beautiful Laundrette, Philadelphia, O Segredo de Brokeback Mountain: a homossexualidade impõe-se agora até na sua diversidade. Também a homossexualidade feminina começa a ter presença no grande ecrã: Charlize Theron em Monster e A Tentação de Jessica.
Estamos perante uma procura e uma afirmação mais ou menos ansiosa que diz respeito a todas as categorias sociais, sejam elas sexuais, de idade ou de cultura. Não se trata já de uma busca de libertação sexual. O cinema aparece como uma visão expressa do “magma desorganizado” que, através de hibridações culturais, de desregulamentação dos papéis sexuais e da particularização do perfil dos seres, constitui o estado social individualista contemporâneo.
Há, contudo, um aspeto extremamente interessante do cinema.
Durante muito tempo ele estava associado com uma saída em família e com as salas de cinema. Entre 1930 e 1944 quase todos os americanos iam uma vez por semana ao cinema. Depois do aparecimento da televisão e do vídeo, a frequência das salas de cinema diminuiu drasticamente. Em 2002 os americanos iam ao cinema 5,4 vezes por ano, os europeus 2,4 vezes por ano. Os mais assíduos eram jovens entre os 15 a 24 anos, que iam em média 7 vezes por ano. A visualização do cinema desregulamenta-se: os filmes passam a poderem ver-se pela internet no quarto ou qualquer outro local com net, em qualquer leitor portátil, nos telemóveis, em viagem nos aviões e comboios em pequenos ecrãs individuais onde se pode optar pela língua falada. Não mais salas escuras, dias e horários programados. Pode-se até construir uma própria cinemateca pessoal que se poderá ver quando e como se entender.
Assiste-se, pois, a uma erosão da frequência das salas, a uma visualização nómada e a uma desmultiplicação dos pequenos écrans. Pareceria que o cinema tinha perdido a sua posição hegemónica face a toda esta situação e perante a ‘concorrência’ dos novos écrans eletrónicos.
Mas é exatamente nesse momento que o cinema triunfa como media predominante, não o seu dispositivo material, mas o seu dispositivo imaginário constituído pelo grande espetáculo, o cuidado com a imagem e o star-system. Televisão, jogos de vídeo, espetáculos desportivos e culturais, todos eles pretendem imitar o espírito do cinema que influencia gostos e comportamentos quotidianos.
Filmar, enquadrar, visionar, registar os movimentos da vida e da nossa vida, através de telemóveis ou outros meios, fazem de todos nós atores e realizadores de cinema, esquecendo assim que sempre fomos realizadores e atores da nossa própria vida . Cinema como imitação da realidade. E também, intencionalmente, alegremente, tristemente, por vezes, realidade como imitação do cinema.