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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Em Busca do Tempo Perdido

O homem que fui, já não existe”, Proust.
Mas quando já nada subsiste de um passado antigo, quando já morreram os seres e já se desmoronaram as coisas, sozinhos, mais frágeis, mais vivos, mais imateriais, mais persistentes e mais fiéis que nunca, o cheiro e o sabor perduram muito mais, e recordam, e aguardam, e esperam”, Proust.

 

Só em 1963 é que o Ocidente se apercebeu que aquilo que considerava ser apenas um queimador de incenso, um incensário, era afinal um medidor de tempo, um relógio, de acordo com uma prática de medida de tempo própria do Extremo Oriente feita através da utilização do fogo e do incenso (S. A. Bedini, “The Scent of Time, A Study of the Use of Fire and Incense for Time Measurement in Oriental Countries”). O que até aí se acreditava ser um incensário era antes um relógio de incenso (hsiang yin). O aroma como forma de medir o tempo, o tempo com a forma de um aroma.


Nestes relógios de incenso, o tempo, que tem aroma, leva imenso tempo a passar, não passa, não se pode esvaziar, contrariamente aos já então conhecidos relógios de água e de areia. O aroma de incenso enche o espaço. E ao dar um espaço ao tempo, está a dar-lhe uma aparência de duração. Fá-lo até duplamente, porque além do aroma de incenso acabar por intensificar o aroma do tempo, as nuvens de fumo que dele se desprendem acabam por dotar o tempo de espaço.


Vem tudo isto a propósito de uma obra maior da literatura, Em busca do tempo perdido, que Proust escreveu entre 1908 e 1922.


A inquietação premonitória que lhe está na base tem a ver com a aparente inadaptação de Proust à velocidade com que para ele o tempo passava na época em que vivia, a “época das pressas” segundo ele, impossibilitando-o de se encontrar a si próprio.


Apesar dessa “época de pressas” ser na altura a dos caminhos-de-ferro, essa subentendida pressa da vida era para ele já impeditivo do encontro de qualquer continuidade do Ser. Ao sentir-se obrigado pela sociedade a decompor-se numa sucessão de momentos, o seu eu como que perdia qualquer continuidade, qualquer consciência de permanência. O que Proust pretendia era encontrar-se, saber o que constituía verdadeiramente aquilo que o definia, a sua identidade, saber quem era, uma vez que o sentimento que o acompanhava era que “o homem que fui, já não existe” (je suis un autre).


Essencialmente necessitava, a seu ver, que o tempo recuperasse uma duração mais conforme que lhe viesse a permitir esse encontro. O caminho que se lhe surgiu como ato de inteleção para que essa recuperação fosse possível é magnificamente exposto nas páginas em que relata a merenda de chá com madalenas que estava a tomar.


O prazer que se evolvia do aroma do chá fazia-o esquecer-se dos desastres da vida, restituindo-lhe uma continuidade de sensações que lhe permitiam ressuscitar o mundo da sua infância, reencontrar-se com o que conhecia de si. O aroma, impregnado de imagens e história, devolvia-lhe a estabilidade a um eu ameaçado pela dissociação, permitindo-lhe como que um regresso a si próprio. Reconhecia assim que a sua existência era histórica, que tinha uma trajetória. Essa essência aromática que era do chá, era afinal do tempo, dando assim lugar a um sentimento de duração.


Para ele, o gosto e o odor sobreviviam mesmo à morte das pessoas e à deterioração das coisas:
Mas quando já nada subsiste de um passado antigo, quando já morreram os seres e já se desmoronaram as coisas, sozinhos, mais frágeis, mais vivos, mais imateriais, mais persistentes e mais fiéis que nunca, o cheiro e o sabor perduram muito mais, e recordam, e aguardam, e esperam”.


E é propositada esta escolha do aroma, porque sendo a sua transmissão por natureza, lenta, não se adequava a uma época de pressas.
A época das pressas é, para ele, a de um “tempo de visão cinematográfica”, que acelera o mundo convertendo-o num “desfile cinematográfico das coisas”. O tempo desintegra-se numa mera sucessão de presentes. Ao contrário, uma sociedade em que perdurasse o aroma teria como base a recordação, a memória, a lentidão e a perdurabilidade, não sendo portanto, ou contudo, propensa à aceleração e à mudança. O aroma, não só não tem a velocidade das imagens óticas, como não pode ser acelerado.


Não será de surpreender que, para Proust, a época das pressas com a sua sucessão “cinematográfica” de presentes pontuais, não tenha acesso ao belo. O “gozo imediato” do “desfile cinematográfico das coisas” não dá lugar ao belo, pois a beleza tem que ver, não com uma atração fugaz, mas com uma persistência, “uma fosforescência” das coisas. Tal como com o chá, só quando nos recolhemos na contemplação das coisas é que elas revelam a sua beleza, nos mostram a sua essência aromática.


Esta maneira de estar encontra-se também refletida na sua narrativa, onde perante a falta de relação entre os presentes pontuais que ameaçam desintegrar o tempo, Proust vai urdir uma rede de acontecimentos relacionados que “tece sem cessar […] entre o menor ponto do nosso passado e todos os demais” criando uma espessa rede de recordações, uma trama temporal de referências e afinidades em que tudo está entrelaçado, em que a menor das coisas se comunica com a totalidade.


Esta é a forma que Proust utiliza para, através da sua escrita, reunindo o passado e o futuro no presente, criar uma trajetória narrativa dos sucessivos acontecimentos sem quaisquer interrupções, e por meio dessa relação conseguir obter uma tensão que confere sentido a essa sucessão. Cria significatividade. Cria mundo.


Proust sabe que na época das pressas não tem tempo para conseguir um espaço que lhe permita aprofundar essa sua perceção de que todas as coisas se aproximam e se comunicam umas com as outras. Só mesmo no seu amago mais profundo conseguirá dispor desta “cordialidade para com o mundo” que lhe permita contemplar, sentir o aroma do mundo.

 

 

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