“Há uma opinião, que para mim é extremista, segundo a qual a água é um bem público.” “A água é um bem alimentar como qualquer outro, e como qualquer bem alimentar deve ter um valor de mercado.”
Eis o que diz Peter Brabeck-Letmathe:
“A água é sem dúvida o mais importante recurso material que temos hoje no planeta […] a questão é de sabermos se devemos ou não privatizar o fornecimento de água à população. Há duas opiniões diferentes sobre o assunto. Há uma opinião, que para mim é extremista, segundo a qual a água é um bem público. Tal significa que todo ser humano deve ter direito à água. É uma solução extrema. Há outra opinião, que diz que a água é um bem alimentar como qualquer outro, e como qualquer bem alimentar deve ter um valor de mercado. Pessoalmente, julgo que é melhor dar a um bem alimentar um preço de mercado para que todos possam saber que ele tem um preço, e a partir daí tomarem-se as medidas específicas relativamente à parte da população que não tenha acesso à água, e há muitas e diferentes possibilidades para se fazer isso.”
Quem é Peter Brabeck-Letmathe? Presidente do conselho de administração da Nestlé, vice-presidente do conselho de administração da L’Oréal (a maior companhia do mundo de cosmética e beleza), vice-presidente do conselho de administração do Credit Suisse Group (um dos maiores bancos do mundo), membro do conselho de administração da Exxon Mobil (um dos maiores conglomerados de petróleo e energia), membro do conselho de administração da Roche (um dos maiores conglomerados farmacêuticos), membro do conselho de fundadores do Worl Economic Forum (“guardião da missão, valores e marca … responsável por inspirar a confiança do público e dos negócios através de uma governação exemplar”), membro da European Rond Table of Industrialists (grupo de CEOs de empresas europeias que aconselham diretamente e ajudam a indicar o caminho a seguir pala União Europeia), presença assídua no grupo de Bilderberg (fórum anual que reúne 130 das elites de empresas, bancos, media, política e militar, da Europa Ocidental e América do Norte).
Quando ele fala sobre alimentos e água, os poderosos escutam. Ele aparece como o paladino da sustentabilidade da água, “do acesso universal à água, o que só será possível através da atribuição de um preço razoável”. Contudo, este seu interesse relativo à escassez da água e à necessidade de dotar os povos pobres do mundo com acesso à água potável, nada tem que ver com humanismo ou filantropia.
“Se a Nestlé e eu chamamos a atenção para este problema, tal não tem que ver com filantropia, mas com algo muito mais simples: da análise […] sobre o que é o fator mais importante para a sustentabilidade da Nestlé, a água é o número um. […] Creio que isto faz parte da responsabilidade da companhia. Mas se eu estivesse noutra indústria diferente teria certamente outro assunto prioritário no qual deveria estar focado”. E continua a explicar porque essa é responsabilidade da companhia: “Se eu quiser convencer os meus acionistas de que esta indústria é sustentável a longo prazo, tenho de assegurar que todos os aspetos que são vitais para a companhia sejam sustentáveis […] Quando vejo, como no nosso caso, que um dos aspetos – que é a água, necessária para produzir as matéria primas para a nossa companhia – não é sustentável, então a minha empresa não é sustentável. Por isso eu tenho de fazer qualquer coisa. Daí que os interesses dos acionistas e os da sociedade serem comuns.” Quanto à filantropia, Brabeck é também muito claro: “Eu não sinto que tenha de dar qualquer retribuição à sociedade, porque nós não roubámos nada à sociedade […] isso é um problema para os CEOs de qualquer empresa, porque eu penso que nenhum CEO deve ser autorizado a fazer filantropia […] Penso que quem quiser fazer filantropia deve fazê-lo com o seu próprio dinheiro e não com o dinheiro dos acionistas […] Concordar com a responsabilidade social das empresas significa concordar com custos adicionais.”
Breve: quando Brabeck e a Nestlé patrocinam a “sustentabilidade da água”, o que estão a fazer é promoverem a garantia da sustentabilidade da Nestlé através do controle e acesso à água existente. E sendo a Nestlé uma grande multinacional, a solução natural será fazê-lo através do controle do mercado da água, ou seja, da privatização e monopolização do fornecimento mundial da água nas mãos de poucas corporações.
Convém lembrar que quando se fala em privatizar a água, não se está a falar sobre a “leal competição” que tal bem-intencionado processo acarretaria, e isto porque em todo o mundo só existem uma meia dúzia de corporações capazes dessas privatizações a escala global: a Suez Environment, a Veolia Environment, seguidas da Thames Water, Nestlé, PepsiCo e Coca-Cola.
A agenda para a privatização da água está organizada a nível internacional, através do World Water Forum (WWF) e do World Water Council (WWC). A WWC aparece em 1996 como um organização francesa não lucrativa, com mais de 400 membros entre organizações intergovernamentais, agências governamentais, corporações, ONGs dominadas por corporações, organizações ambientais, companhias de água, organizações internacionais e instituições académicas. A cada três anos a WWC recebe o WWF, onde milhares de participantes de todo o mundo se reúnem para decidirem do futuro da água, e claro está, para promoverem a sua privatização. Para além dos membros normais da organização, encontram-se lá o African Development Bank, African Union Commission, Arab Water Council, Asian Development Bank, Conselho da Europa, Comissão Europeia, Banco Investimento Europeu, Parlamento Europeu, EuropeanWater Assiciation, Food and Agricultural Organization, Global Environment Facility, Inter-American Development Bank, Nature Conservancy, Organização dos Estados Americanos, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Oxfam, Banco Mundial, Organização Mundial de Saúde, World Wildlife Fund, e vários sponsors como a RioTinto, Alcan, EDF, Suez Environment, Veolia, HSBC.
Mais ainda: no WWF de 2008 foi formado por um consórcio de corporações e organizações internacionais o “2030 Water Resources Group”, evidentemente presidido por Peter Brabeck. A finalidade do “2030” é a de dar “forma à agenda” para a discussão dos recursos da água, e “criar novos modelos para a colaboração” entre as entidades públicas e privadas. Eram seus administradores o vice-presidente e CEO da International Finance Corporation (IFC), braço de investimento do Banco Mundial, o administrador do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP), o diretor executivo do WWF, o presidente do Banco Africano para o Desenvolvimento, o presidente e CEO da Coca-Cola, o presidente do Banco Asiático para o Desenvolvimento; o diretor geral da World Wildlife Fund, o presidente do Banco de Desenvolvimento Inter-Americano, o presidente e Ceo da PepsiCo, e outros.
Com tantas tão bem intencionadas e preocupadas pessoas em resolver os problemas ambientais, podemos descansar: vai haver água para todas as pessoas, muita água para todo o sempre se…
Se esta vasta e complexa operação for razoavelmente bem-sucedida, está-se já a pensar avançar para o ar: vendo bem, não passa de água vaporizada, mais coisa menos coisa. Se já bebemos água de marca engarrafada, se já tapamos os ouvidos com auscultadores para não ouvirmos o som deste mundo, se já tapamos os olhos com óculos para conseguirmos ver melhor o verdadeiro mundo que gostamos e que não é este, porque não taparmos nariz e boca para consumirmos o bom ar engarrafado de marca que não é o que temos? Se os colonos de Marte vivem e respiram esse bom ar nos seus fatos e nas suas casas, porque não termos direito e liberdade para termos esse bom ar nos nossos apartamentos e nos nossos fatos? Vamos todos dar aos nossos filhos casas com ar puro, muito puro, para que eles possam ficar confortavelmente desempregados em casa e viver muito tempo. Quanto ao vestuário à colono-astronauta, a moda se encarregará disso.
O Livro das Orações virá acrescentado com a seguinte imploração:
“O ar nosso de cada dia nos dai hoje, aqui na Terra como em Marte.”
“O homem que fui, já não existe”, Proust. “Mas quando já nada subsiste de um passado antigo, quando já morreram os seres e já se desmoronaram as coisas, sozinhos, mais frágeis, mais vivos, mais imateriais, mais persistentes e mais fiéis que nunca, o cheiro e o sabor perduram muito mais, e recordam, e aguardam, e esperam”, Proust.
Só em 1963 é que o Ocidente se apercebeu que aquilo que considerava ser apenas um queimador de incenso, um incensário, era afinal um medidor de tempo, um relógio, de acordo com uma prática de medida de tempo própria do Extremo Oriente feita através da utilização do fogo e do incenso (S. A. Bedini, “The Scent of Time, A Study of the Use of Fire and Incense for Time Measurement in Oriental Countries”). O que até aí se acreditava ser um incensário era antes um relógio de incenso (hsiang yin). O aroma como forma de medir o tempo, o tempo com a forma de um aroma.
Nestes relógios de incenso, o tempo, que tem aroma, leva imenso tempo a passar, não passa, não se pode esvaziar, contrariamente aos já então conhecidos relógios de água e de areia. O aroma de incenso enche o espaço. E ao dar um espaço ao tempo, está a dar-lhe uma aparência de duração. Fá-lo até duplamente, porque além do aroma de incenso acabar por intensificar o aroma do tempo, as nuvens de fumo que dele se desprendem acabam por dotar o tempo de espaço.
Vem tudo isto a propósito de uma obra maior da literatura, Em busca do tempo perdido, que Proust escreveu entre 1908 e 1922.
A inquietação premonitória que lhe está na base tem a ver com a aparente inadaptação de Proust à velocidade com que para ele o tempo passava na época em que vivia, a “época das pressas” segundo ele, impossibilitando-o de se encontrar a si próprio.
Apesar dessa “época de pressas” ser na altura a dos caminhos-de-ferro, essa subentendida pressa da vida era para ele já impeditivo do encontro de qualquer continuidade do Ser. Ao sentir-se obrigado pela sociedade a decompor-se numa sucessão de momentos, o seu eu como que perdia qualquer continuidade, qualquer consciência de permanência. O que Proust pretendia era encontrar-se, saber o que constituía verdadeiramente aquilo que o definia, a sua identidade, saber quem era, uma vez que o sentimento que o acompanhava era que “o homem que fui, já não existe” (je suis un autre).
Essencialmente necessitava, a seu ver, que o tempo recuperasse uma duração mais conforme que lhe viesse a permitir esse encontro. O caminho que se lhe surgiu como ato de inteleção para que essa recuperação fosse possível é magnificamente exposto nas páginas em que relata a merenda de chá com madalenas que estava a tomar.
O prazer que se evolvia do aroma do chá fazia-o esquecer-se dos desastres da vida, restituindo-lhe uma continuidade de sensações que lhe permitiam ressuscitar o mundo da sua infância, reencontrar-se com o que conhecia de si. O aroma, impregnado de imagens e história, devolvia-lhe a estabilidade a um eu ameaçado pela dissociação, permitindo-lhe como que um regresso a si próprio. Reconhecia assim que a sua existência era histórica, que tinha uma trajetória. Essa essência aromática que era do chá, era afinal do tempo, dando assim lugar a um sentimento de duração.
Para ele, o gosto e o odor sobreviviam mesmo à morte das pessoas e à deterioração das coisas: “Mas quando já nada subsiste de um passado antigo, quando já morreram os seres e já se desmoronaram as coisas, sozinhos, mais frágeis, mais vivos, mais imateriais, mais persistentes e mais fiéis que nunca, o cheiro e o sabor perduram muito mais, e recordam, e aguardam, e esperam”.
E é propositada esta escolha do aroma, porque sendo a sua transmissão por natureza, lenta, não se adequava a uma época de pressas. A época das pressas é, para ele, a de um “tempo de visão cinematográfica”, que acelera o mundo convertendo-o num “desfile cinematográfico das coisas”. O tempo desintegra-se numa mera sucessão de presentes. Ao contrário, uma sociedade em que perdurasse o aroma teria como base a recordação, a memória, a lentidão e a perdurabilidade, não sendo portanto, ou contudo, propensa à aceleração e à mudança. O aroma, não só não tem a velocidade das imagens óticas, como não pode ser acelerado.
Não será de surpreender que, para Proust, a época das pressas com a sua sucessão “cinematográfica” de presentes pontuais, não tenha acesso ao belo. O “gozo imediato” do “desfile cinematográfico das coisas” não dá lugar ao belo, pois a beleza tem que ver, não com uma atração fugaz, mas com uma persistência, “uma fosforescência” das coisas. Tal como com o chá, só quando nos recolhemos na contemplação das coisas é que elas revelam a sua beleza, nos mostram a sua essência aromática.
Esta maneira de estar encontra-se também refletida na sua narrativa, onde perante a falta de relação entre os presentes pontuais que ameaçam desintegrar o tempo, Proust vai urdir uma rede de acontecimentos relacionados que “tece sem cessar […] entre o menor ponto do nosso passado e todos os demais” criando uma espessa rede de recordações, uma trama temporal de referências e afinidades em que tudo está entrelaçado, em que a menor das coisas se comunica com a totalidade.
Esta é a forma que Proust utiliza para, através da sua escrita, reunindo o passado e o futuro no presente, criar uma trajetória narrativa dos sucessivos acontecimentos sem quaisquer interrupções, e por meio dessa relação conseguir obter uma tensão que confere sentido a essa sucessão. Cria significatividade. Cria mundo.
Proust sabe que na época das pressas não tem tempo para conseguir um espaço que lhe permita aprofundar essa sua perceção de que todas as coisas se aproximam e se comunicam umas com as outras. Só mesmo no seu amago mais profundo conseguirá dispor desta “cordialidade para com o mundo” que lhe permita contemplar, sentir o aroma do mundo.
“Milton Friedman acreditava que quando a economia se encontrava muito distorcida, a única maneira para se alcançar o estado anterior era a de infligir deliberadamente dolorosos choques.”, Naomi Klein. “Hoje, a sociedade neoliberal não opera com ameaças mas por estímulos positivos.” “I like it.”
Como bom representante da sua época, o psiquiatra canadense Donald Ewen Cameron (1901 – 1967), acreditava que as doenças mentais eram contagiosas e que o seu contágio acabaria por se transmitir aos genes, pelo que grupos de pessoas com essas doenças deveriam ser colocadas em isolamento e estudadas como portadoras de doença social contagiosa. O que não o impediu, ele que foi presidente da Associação Psiquiátrica do Canadá e das Associações Psiquiátricas Americana e do Mundo, de ter sido o primeiro a levar à prática o conceito inovador de “porta aberta” e de “hospital do dia”, segundo o qual os doentes estavam autorizados a deixar o instituto quando quisessem e que lhes era permitido regressarem todos os dias para receberem tratamento.
Contudo, o seu nome vai acabar por ficar ligado à participação que teve (1957 – 1964) no programa de controle da mente (MKUltra) financiado e dirigido pela CIA, e que conduziria à publicação do KUBARK, Manual de Interrogatório da Contrainformação. Conforme relatório do Supremo Tribunal dos EUA, a finalidade do MKultra era “a pesquisa e desenvolvimento de materiais químicos, biológicos e radiológicos capazes de serem empregues em operações clandestinas para controlarem o comportamento humano”. O programa era constituído por 194 subprojectos que a Agência contratava com várias universidades, fundações de pesquisa, e instituições similares. Pelo menos participaram 80 instituições e 185 investigadores privados.
Aí, num dos seus laboratórios, Donald Cameron, sem prévio conhecimento dos pacientes, administrava-lhes intensos e desproporcionados choques elétricos (30 a 40 vezes sobre a dosagem normal) e drogas experimentais, incluindo LSD, chegando ao ponto de provocar um estado comatoso permanente em alguns deles. A finalidade era de através dos choques dados conduzir os pacientes a um estado caótico, a partir do qual poderia então vir a ser feito o “renascimento” de um cidadão modelo. Para lhes retirar a memória, submetia-os a um mês de violentos choques elétricos, ao mesmo tempo que lhes dava drogas para alterar a consciência e induzia o sono. Eram apenas acordados para comer e defecar. Para evitar que se confrontassem com a sua própria imagem, os braços dos pacientes eram envolvidos em tubos de cartão. Não havia qualquer tipo de contacto pessoal. O pessoal do hospital estava proibido de falar com os pacientes.
Naomi Klein no seu livro A Doutrina de Choque, vai apontar Cameron como o principal contribuinte, não para as pesquisas relacionadas com o controle da mente e da lavagem de cérebro, mas antes para a “criação de um sistema científico com a finalidade de extrair informações a ‘fontes resistentes’. Ou seja, de tortura.” Chama-o de “Doutor Choque”, porquanto a sua teoria para alteração do comportamento das pessoas baseava-se na aplicação de fortes eletrochoques iniciais que as fizessem entrar num estado de aniquilação dos conteúdos psíquicos, de vazio de alma, de medo, a partir do qual elas se acolheriam a qualquer coisa que lhes oferecesse um mínimo de referências, de segurança.
Ao nível da economia, Naomi Klein vai juntar-lhe o nome do economista Milton Friedman (1915 -2006), o teólogo do mercado neoliberal, para quem o estado social de choque em que se encontravam as populações após uma catástrofe (exemplo dos golpes militares no Chile e na Indonésia) oferecia uma oportunidade única para que se tentasse uma nova impregnação neoliberal da sociedade. Oportunidade que teria de ser aproveitada enquanto a sociedade ainda estivesse paralisada, traumatizada, ao ponto de se submeter voluntariamente a uma reprogramação radical. Friedman “acreditava que quando a economia se encontrava muito distorcida, a única maneira para se alcançar o estado anterior era a de infligir deliberadamente dolorosos choques.”
Não está aqui em causa se essas políticas económicas neoliberais preconizadas contribuem para o aumento das disparidades e das desigualdades, ou se elas são apenas uma capa ideológica para a acumulação de capital pelas corporações multinacionais. O importante é apercebermo-nos de que estas terapias baseadas no choque e apontadas por Naomi Klein como sendo características do neoliberalismo, correspondem eminentemente a técnicas disciplinarias, e que como tal, já não servem para definir a atual sociedade neoliberal.
Hoje, a sociedade neoliberal não opera com ameaças mas por estímulos positivos. O que se pretende é que o fluxo de dados se faça o mais rapidamente possível, aumentando assim a quantidade recebida (big Data), pelo que quaisquer ações que levem à sua interrupção ou atraso são encaradas como negativas. A positividade desejada é contrária a tudo aquilo que se oponha ao fluir dos dados: ameaças, ‘abanões’, ‘acidentes’, ou ‘choques’, constituem entraves a esse fluxo.
Para que tudo (o fluxo de dados) corra bem, há que lisonjear, há que seduzir. Se se conseguir ‘adivinhar’ os anseios, as necessidades e desejos, em vez de os desincentivar, adiantando-se a eles, melhor ainda. Em vez de submeter, procurar envolver, cativar, agradar. É a política tranquilizante e libertária do “Eu gosto”, “I like it”, apesar de ser essa a única alternativa que aparece no programa.
Esta é a nova psicopolítica neoliberal inteligente, em que todos corremos por gosto e pelo gosto de virmos a ser empreendedores e artistas, evidentemente de sucesso ou com fortes possibilidades de, ou até mesmo sem possibilidades nenhumas. Preciso é correr por gosto, não importa de quem nem porquê. Deixar correr e não levantar obstáculos. “I like it”.
“As práticas seguidas pelos serviços policiais e de justiça […] têm mais em vista a obtenção de receitas do que a segurança dos cidadãos “. “Numa população de 22.000 habitantes, foram emitidas 32.975 notificações de prisão, ou seja, uma e meia por cada habitante”, Harvard Law Review.
A ‘privatização da justiça’.
Esta “moda” da liberalização de tudo, ou seja da privatização de tudo, conduz a situações estranhas a que possivelmente nos teremos de ir habituando, até porque a privatização de cada um de nós há muito tem vindo a ser feita. Talvez não tenhamos ainda dado por isso, mas cada vez que nos expomos nos FB, nos concursos de TV, etc. estamos a privatizar-nos. A sociedade americana é a que tem levado esse caminho mais longe, desde a privatização das cadeias e das academias militares às estradas (compram-se estradas e pontes), polícias e até da administração da justiça. E também, claro está, dos governos. Como há muitas pessoas bem-intencionadas que advogam tais práticas, ocorreu-me exemplificar com casos reais, o que é isso de ‘privatizar a justiça’. É que não se trata apenas de os ‘casos’ poderem vir a ser ‘resolvidos’ mais rapidamente nos gabinetes de advogados ou noutras instituições para isso ‘vocacionadas’, sempre sem ‘custos’ para o Estado. O que não é contabilizado é o que este ‘sem custos para o Estado’ vai provocar por arrastamento no viver da sociedade.
Michael Barrett, cidadão de Augusta, capital da Georgia, EUA, foi preso em 2014 por roubar uma lata de cerveja. Mesmo antes de ser levado a julgamento teve de pagar $80 para que o tribunal lhe dispensasse um defensor público, que era obrigatório. Condenado, teria de pagar uma multa de $200 e ficaria em regime de liberdade vigiada. Como a acusação envolvia o uso de álcool, o tribunal exigia que Barrett tivesse de usar uma pulseira eletrónica especial que lhe monitorasse o consumo de álcool, mesmo apesar de a sentença não o impedir de consumir álcool. Por essa pulseira especial (Sentinel) teria de pagar à cabeça $50, uma prestação mensal de $39, e ainda $12 pelo seu uso diário. Ou seja, ele seria obrigado a pagar $400 por mês para ser monitorizado para algo que estava legalmente autorizado a fazer. Como Barrett não tinha sequer dinheiro para pagar os $50 iniciais, foi mandado para a prisão.
A Sentinel Offender Services,LLC, é a empresa escolhida que faz os equipamentos de monitorização eletrónica usados pelo estado e agências governamentais, desde o Los Angeles County Probation Department até ao Massachusetts Office of the Commissioner of Probation, e que cobra diretamente os seus serviços aos arguidos, isentando assim os tribunais dos custos administrativos correspondentes.
Num relatório de 2015 sobre a cidade de Fergusson, Missouri, o Departamento de Justiça dizia o seguinte:
“As práticas seguidas pelos serviços policiais e de justiça de Fergusson têm mais em vista a obtenção de receitas do que a segurança dos cidadãos. […] A enfâse nas receitas comprometeu todo o caráter institucional do departamento de polícia de Fergusson, contribuindo para um padrão inconstitucional do policiamento que arrastou consigo o tribunal municipal, originando procedimentos que levantam sérias dúvidas como provocam danos desnecessários aos membros da comunidade de Fergusson.”
Em Fergusson, os habitantes que se atrasassem no pagamento de multas tinham de pagar um adicional de $130 acrescido de uma nova multa de $50 pela emissão da nova multa, mais 56 cêntimos por cada milha que o oficial de polícia fosse obrigado a percorrer para a entregar. Uma vez presos, todos os que não conseguissem pagar as multas, eram mantidos detidos até à próxima sessão do tribunal, o que só acontecia três dias por mês. Quem ficasse preso teria ainda de pagar $30 a $60 por cada dia que ficasse na cadeia.
Com uma população de 22.000 habitantes, só num ano foram emitidas 32.975 notificações de prisão por violações menores, ou seja, uma e meia por cada habitante. Era-se multado “por não se ter o cinto de segurança posto, mesmo estando estacionado”, “por prestar falsas declarações” como por exemplo dizer-se que se chamava “Zé” quando o verdadeiro nome era “José”, ou se fosses negro por “estar sentado em cima de um carro”.
Na pequena cidade de Pagedale, Missouri, os 3.300 habitantes “contribuíam” com $340.000 de multas para o orçamento da cidade, multas que vinham de violações como por exemplo, “não terem persianas nas casas”, “não terem cortinas idênticas e a condizerem” ou “terem relvados em locais não visíveis”.
Sistemas idênticos estão a espalhar-se por todos os EUA. Segundo um artigo da Harvard Law Review, algumas cidades cobram já um valor a quem quer que seja preso, independentemente de virem ou não a serem condenados. Outras cobram a quem for detido o custo pelas investigações policiais, pelas acusações, pelos serviços do defensor público, pelo júri e pelas pernoitas nas prisões. Outras, como Washington na Columbia, permitem que “certas violações do código de estrada e outras violações consideradas menores” possam ser pagas logo na altura ao agente de polícia, a fim de evitar “custos excessivos e demoras prolongadas”.
“Dinheiro de ladrão” era aquele quantitativo mínimo que cada um tinha de ter nos bolsos quando circulava pelas ruas de algumas cidades do Brasil, para no caso de ser assaltado, o que era frequente, entregar ao ladrão. Menos do que essa quantidade corria-se o risco de se ser violentado pelo ladrão. Claro que isso passava-se num país do terceiro mundo. Nos países do primeiro mundo tal anarquia não aconteceria porque existem regulamentos e normas sociais que definem quem pode roubar e quem não pode, quem será condenado se o fizer e quem não será, tendo sempre em vista e consideração o superior interesse da Nação ou a sanidade do sistema económico.
Se não nos fizessem estar tão ocupados a estar ocupados, todos deveríamos saber onde isto conduz.