“Os corpos são formas de energia aprisionadas em massas de matéria à espera de serem libertadas no universo”, M. Constandi. “As fases da decomposição do corpo dependem da composição bacteriana” “Três moscas podem consumir o cadáver de um cavalo no mesmo tempo que um leão”, Lineu, 1767.
Talvez a melhor maneira para se compreender que o aparecimento de vida constituiu um longo processo passando por fases nem sempre claras para nós, seja exemplificar o que está muito mais perto de nós, mais fácil de acompanhar nas suas várias fases: o processo de morte. Além do mais, a compreensão desse processo revela-se essencial para se perceber que a morte não constitui apenas mais um instante, um final fora de tempo. A vivência da morte deverá ser vista como consumação de uma unidade de vida com sentido.
Pouco depois do coração parar, as células deixam de receber oxigénio e a sua acidez aumenta à medida que os derivados tóxicos das reações químicas se acumulam no seu interior, iniciando-se assim o processo chamado de autodigestão. As enzimas começam a digerir as membranas celulares, primeiro no fígado, rico em enzimas, e no cérebro, devido ao alto teor de água. Depois o mesmo processo vai estender-se a todos os outros tecidos e órgãos, que acabam por colapsar de igual modo: rompidos os vasos sanguíneos, as células depositam-se devido ao efeito da gravidade, nos capilares e pequenas veias, descolorando a pele.
A temperatura do corpo começa também a cair, adaptando-se ao ambiente exterior. A ação das proteínas filamentosas das células musculares desaparece, na medida em que todas as células se vêm privadas da sua fonte de energia, o que vai dar lugar à rigidez dos músculos e à paralisia das articulações: é o momento do rigor mortis, que começa pelas pálpebras, mandíbula, músculos do pescoço, passando depois para o tronco e extremidades.
É sabido que o nosso corpo alberga uma quantidade enorme de bactérias. Comunidades específicas de bactérias vivem no e do corpo humano. A maior destas comunidades está no intestino. Aí residem biliões de bactérias de milhares de espécies diferentes. Contudo, a maioria dos órgãos internos, enquanto estamos vivos, estão livres delas. Pouco depois da morte, o sistema imunitário deixa de funcionar, o que vai permitir a expansão destas bactérias por todo o corpo. Esta invasão começa a partir dos intestinos para os tecidos vizinhos, de dentro para fora. Alimentando-se das misturas que se escaparam das células estragadas, os micróbios vão invadir os capilares do sistema digestivo, os nós linfáticos, propagando-se pelo fígado e baço, antes de alcançarem o coração e o cérebro.
Após a morte, as bactérias levam em média 20 horas a alcançarem o fígado e até 58 horas para todos os outros órgãos. “ O baço, o intestino e o estômago decompõem-se primeiro, ao passo que os rins, o coração e os ossos sofrem uma decomposição mais lenta”.Os estudiosos têm também chegado à conclusão que as fases da decomposição do corpo dependem da composição bacteriana.
Assim que as bactérias começam a escapar-se do intestino, começa a fase de putrefação. É a morte molecular, a decomposição mais aguda dos tecidos moles em gases, líquidos e sais. Nesta fase, as bactérias aeróbicas, que necessitam de oxigénio, cedem o passo às que não necessitam, as anaeróbicas, que começam a alimentar-se dos tecidos do corpo, fermentando açúcares no seu interior e produzindo derivados gasosos como o metano e o amoníaco, que acumulando-se no corpo fazem com que ele inche, especialmente no abdómen. À medida que as células sanguíneas se escapam dos vasos em desintegração, as bactérias anaeróbicas transformam as moléculas da hemoglobina que levavam o oxigénio ao corpo em sulfa-hemoglobina. É a presença destas moléculas que vão agora dar ao corpo em plena decomposição aquela aparência translúcida característica.
Devido ao aumento da pressão gasosa no interior, a superfície do corpo enche-se de bolhas. Segue-se a flacidez, e logo depois dá-se o despendimento de grandes camadas de pele. Finalmente, os gases e os tecidos liquefeitos abandonam o corpo, através do ânus ou outros orifícios, ou ainda pelos sítios onde a pele se soltou. Pode até ocorrer que devido à pressão o abdómen se abra.
Quando um corpo em decomposição começa a purgar-se fica exposto ao ambiente. Entramos aqui na fase dita de colonização em que o ecossistema cadavérico é já autónomo, com o seu ninho de micróbios, insetos e necrófagos. Os cadáveres exalam um cheiro fétido, adocicado, proveniente de uma mistura de compostos voláteis que se vão alterando à medida que a decomposição progride. As moscas varejeiras, as moscas da carne, detetam o cheiro através de recetores especializados nas suas antenas, poisam no cadáver e põem ovos nos orifícios das feridas abertas.
Cada mosca põe uns 250 ovos que eclodem em 24 horas. As pequenas larvas que se alimentam da carne putrefacta transformam-se em larvas maiores, que continuando a alimentarem-se voltam em algumas horas de novo a transformarem-se. A partir de certo tamanho, arrastam-se para fora do corpo, pupam (crisálidas) e transformam-se em moscas adultas, recomeçando o ciclo alimentar até que nada mais reste. Carl Lineu (1767) dizia que “três moscas podem consumir o cadáver de um cavalo no mesmo tempo que um leão”.
A presença das moscas atrai diversos predadores como o escaravelho da pele, o ácaro, a formiga, a vespa e a aranha, que se alimentam das larvas e dos ovos das moscas, ou os parasitam. Podem também aparecer os necrófagos, comum para os grandes carnívoros. O relacionamento e a mistura que se verifica neste ecossistema cadavérico é enorme. As moscas, para além de deixar os ovos, transportam com elas algumas bactérias próprias que ali deixam e levam outras que ali recolhem. Os tecidos liquefeitos que se filtram através do corpo permitem também um intercâmbio de bactérias entre o cadáver e o solo subjacente. Esta purga, ao originar a migração das larvas e ao libertar nutrientes para o solo, vai criar uma área muito concentrada de grande riqueza orgânica: não só liberta nutrientes num ecossistema mais alargado como atrai outras matérias orgânicas, insetos mortos e restos fecais de animais maiores.
Calcula-se que o corpo humano contém entre 50% a 75% de água, e que cada quilo de massa corporal seca liberta para o solo 32 gramas de nitrogénio, 10 gramas de fósforo, 4 gramas de potássio e 1 grama de magnésio. Num primeiro momento, o corpo depositado no solo vai destruir a vegetação à sua volta, devido quer à toxidade do nitrogénio quer pelos antibióticos que contém, excretados pelas larvas dos insetos enquanto se alimentam da sua carne. Mas por fim esta decomposição acaba por beneficiar o solo.
Estes novos conhecimentos de estudos científicos sobre as análises da fauna microbiana dos cadáveres e das sepulturas têm avançado muito. Gulnaz Javan da Universidade Estadual de Alabama, Montgomery, foi o primeiro a referir esta área científica como sendo a do estudo do thanatomicrobiome. Os especialistas no estudo da decomposição de cadáveres, Sibyl Bucheli e Aaron Lynne da Universidade Estadual de Sam Houston (SHSU), Texas, acreditam que em breve será normal utilizar-se a informação bacteriana nos processos criminais, o que irá permitir uma determinação quase exata da hora da morte, e a identificação do próprio morto pelo tipo de bactérias e micro organismos que desenvolve. Por outro lado, Daniel Wescott, do Centro de Antropologia Forense da Universidade do Estado do Texas em San Marcos, crê que os seus estudos sobre a análise bioquímica da terra das sepulturas irão ajudar os investigadores a calcularem o tempo que o corpo permaneceu enterrado.
Nem as bactérias, nem os terrenos escapam à vigilância. Nem a morte.
A ser verdade que a energia não se cria nem se destrói, só se transforma, tal significará que no processo em que as coisas se decompõem a sua massa converte-se em energia. “Os corpos não passam de formas de energias aprisionadas em massas de matéria a aguardar serem libertadas no universo”.
É esta a vida da morte. Pelo menos até onde hoje a conhecemos.
“Em 2045, um computador portátil terá a capacidade para efetuar o mesmo número de operações por segundo que o cérebro de toda a humanidade reunida.” “Neste mundo globalizado, caímos na indiferença globalizada. Acostumámo-nos ao sofrimento dos outros: não me afeta, não me preocupa, não é um assunto meu”, Papa Francisco.
A crença na mensurabilidade e na possibilidade de quantificação da vida domina toda esta era digital, daí encontrar-se cada vez mais expandida em certos setores a ideia-certeza que o futuro está na ciência ou que o futuro é a ciência. O progresso advém da ciência e o que advém da ciência é progresso. Não é de admirar que afirmem que o crescimento que se tem verificado desde 1870 na Inglaterra e nos Estados Unidos se ficou todo a dever à inovação tecnológica. E preveem que tal processo se vai acelerar, para bem da humanidade.
Baseiam esta sua tese-constatação na chamada ‘lei de Moore’ e na contribuição que lhe é emprestada pelo ‘crescimento exponencial’. A chamada lei de Moore postula que desde 1965, a potência informática se tem vindo a multiplicar exponencialmente a cada vinte e quatro meses. Apresenta como exemplo fácil de entender e constatar, as afirmações feitas por Gary Kasparov em 1996, após ter derrotado o grande supercomputador da altura, o Deep Blue da HP, quando disse que “nenhum computador jamais poderia ganhar a um mestre de xadrez”, e no entanto, apenas mais um ano decorrido, o Deep Blue venceu Kasparov, e a partir daí nunca mais ninguém conseguiu ganhar ao computador. Outro exemplo também visível e demonstrativo dessa lei: o facto de hoje um smartphone ter mais potência informática do que a que foi necessária para colocar um homem na Lua.
Quanto ao crescimento exponencial, compreende-se melhor a sua contribuição com alguns exemplos simples: se dermos trinta passos de um metro cada, andaremos trinta metros; mas se os dermos de forma exponencial (o primeiro de um metro, o segundo de dois metros, o terceiro de quatro metros, o quarto de oito, a seguir 16, 32, 64, 128, 256…) ao chegarmos aos trinta passos teremos dado 26 voltas à Terra. Outro exemplo: se dobramos uma folha de papel que tenha 0,1 milímetros de espessura, obteremos uma espessura de 0,2 milímetros. Se dobrarmos uma terceira vez, obteremos 0,4 milímetros. Se dobrarmos 26 vezes, obteremos quase 7 quilómetros de espessura. Dobrando-a 42 vezes alcançaríamos a Lua (439.805 quilómetros).
Juntando estes dois efeitos, lei de Moore e crescimento exponencial, e sabendo que em 2008 um computador portátil realizava o mesmo número de operações por segundo que o cérebro de um inseto, que em 2013 o mesmo número de operações por segundo que o cérebro de um rato, então é previsível que em 2025 a sua capacidade computacional venha a ser idêntica à do cérebro humano, que em 2045 seja equivalente à de toda a humanidade, e que no passo seguinte (24 meses depois) venha a ter o dobro da capacidade de toda a humanidade. Em 2050 estará certamente a bater à porta de Deus.
Sabe-se também por informação de estatísticas e de “novas leis’’ que todos os quinze anos o número de cientistas aumenta para o dobro, o que por sua vez implicará idêntico crescimento exponencial no número de trabalhos científicos e de patentes. Não é pois de admirar o aparecimento de hinos à sociedade resultante da aplicação destes novos e imparáveis avances científicos. Escreve Matt Ridley n’O Otimista Racional:
“O índice de mortalidade típico de muitas sociedades caçadoras-recolectoras (0,5% da população ao ano) equivaleria a dois mil milhões de pessoas mortas no século XX (em vez dos cem milhões) […] O infanticídio era um recurso comum em tempos difíceis. As doenças estavam também sempre por perto: gangrena, tétanos, e muitas outras. Não mencionando ainda a escravidão, o mau trato das mulheres, a falta de sabão, água quente, pão, livros, cinema, papel, etc..”
E prossegue explicando que foi a tecnologia que permitiu a obtenção do superavit de alimentos, e esteve assim na origem do aumento das calorias resultantes disponíveis que permitiram que viéssemos a viver hoje três vezes mais do que o que vivíamos, o que nos deu o tempo suficiente para abordarmos novos problemas, propiciando-nos mais tempo para refletirmos e nos apercebermos do envolvente, e mais tempo para ler livros o que nos conduziu a termos mais empatia pelos outros.
Graças ao tempo que lhe foi propiciado pelos avanços tecnológicos e que assim lhe permitiram desenvolver a empatia que tem pelos outros e apressado para se adiantar a 2050, não fosse o caso de nessa altura os problemas que queria tratar estivessem já resolvidos, o Papa Francisco, veio-nos dizer a 8 de Julho de 2013:
“Quantos de nós, onde me incluo, perdemos o rumo; já não estamos atentos ao mundo em que vivemos; não nos importamos; não protegemos o que Deus criou para todos, e acabamos por ficar incapazes de cuidarmos uns dos outros. E quando a humanidade perde o rumo, acontecem tragédias como as que estamos a presenciar… Há que fazer-se a pergunta: quem é responsável pelo sangue destes nossos irmãos e irmãs? Ninguém! Esta é a nossa resposta: não sou eu; eu não tenho nada a ver com isso; deve de ser outra pessoa, mas eu é que não… No nosso mundo, hoje, ninguém se sente responsável; perdemos o sentido da responsabilidade para com os nossos irmãos e irmãs … A cultura do conforto, que nos leva a pensar só em nós próprios, tornam-nos insensíveis aos gritos das outras pessoas, empurra-nos a viver em bolas de sabão que, por mais belas que sejam, são insubstanciais; oferecem uma ilusão vã e passageira que desemboca na indiferença pelos demais, chegando mesmo à globalização da indiferença. Neste mundo globalizado, caímos na indiferença globalizada. Acostumámo-nos ao sofrimento dos outros: não me afeta, não me preocupa, não é um assunto meu.”
E diz mais, quando nos chama a eliminar a parte de Herodes que se acoberta em nós:
“Peçamos ao Senhor a graça de chorar pela nossa indiferença, de chorar pela crueldade do nosso mundo, dos nossos próprios corações e de todos aqueles que, no anonimato, tomam decisões sociais e económicas que abrem a porta a situações trágicas como esta. Tem chorado alguém? Tem chorado alguém no nosso mundo de hoje?”
Nada que a ciência e os seus computadores, ou os computadores e a sua ciência, que não estão evidentemente ao serviço de ninguém a não ser do interesse geral da humanidade, resolverão. Todos estes pequenos problemas colaterais, próprios de civilizações atrasadas, que preocupam o Papa (não mais guerras, não mais refugiados, não mais desemprego, não mais fome, não mais desajustamentos) serão resolvidos nem que seja à custa de fármacos, de pequenas intervenções cirúrgicas que nos tornem mais tranquilos e mais obedientes, ou pela alteração da nossa quantidade por desinfestação bacteriológica.
Serão tantas as certezas dadas por tão grandes capacidades computacionais que devo também apressar-me a reproduzir uma pequena nota dos cadernos de Kafka, antes que ela venha a ser incompreensível em 2050, e onde ele refletia sobre:
“Um grupo de passageiros de um comboio que teve um acidente num túnel, num local onde já se não se conseguia ver a luz da entrada e, quanto à da saída, ela aparecia tão pequena que a vista tinha de a fixar continuadamente, e constantemente se perdia, ao ponto de os passageiros acabarem por nem sequer estarem seguros se se tratava do princípio se do fim do túnel”.
“Todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis”, George E. P. Box. “Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos”, Chris Anderson.
Sabíamos já que eramos constantemente vigiados. Era o conceito já pacificamente aceite do Big Brother. Se agora estendermos esse conceito, para além da vigilância individual a que somos sujeitos, às coisas que nos rodeiam, inclusivamente às coisas que usamos na vida quotidiana, armazenando tudo isso digitalmente, teremos um enorme conjunto de informações, que se entendeu chamar de Big Data.
A explicação dada, e que convence distraídos e neoconversos, é de que assim se podem propiciar melhores opções de compra, abrindo novas possibilidades aos indivíduos, facilitando-lhes a vida. Trata-se apenas de facilitação, de marketing. Qual é pois o problema?
Em termos latos, pode-se dizer que até ao século XVII, o poder era detido pelo soberano, o poder soberano, e significava a capacidade que tinha para decidir sobre a morte de qualquer pessoa, evidentemente desde que não fosse a dele. Era o poder que se manifestava como direito a dispor e a tomar. Era através desse poder da espada que se conseguia controlar a população.
Há medida que a sociedade se foi complexificando, em que a forma de produção agrária se vê suplantada pela industrial que requer uma adaptação à produção mecânica e a uma maior disciplina do corpo, começa a surgir uma outra forma mais prática, menos evidente (é sempre este o ‘bom’ caminho) de controlar e dirigir a população. O que estava em causa já não era o dispor e tomar, mas acautelar a produção. Em vez de atormentar o corpo, este novo poder disciplinar fixa um sistema de normas através do reforço do controle administrativo e da vigilância, tendo em vista a utilização e a intervenção nos processos e leis biológicas, como era o caso da procriação, taxa de natalidade e mortalidade, nível de saúde e esperança de vida. Quem não se prestasse a esses ‘cuidados’, arriscava a ser preso, ficar fora do sistema e entregue a si próprio. A esta forma de controle feito através do aproveitamento da conduta exterior da população chamou Foucault de biopoder.
Com a vulgarização e obrigatoriedade da utilização do computador, ficámos a saber que cada clic fica armazenado, podendo com isso rastrear-se cada passo que damos. Deixamos as nossas impressões digitais em todo o lado. Curiosamente, e contrariamente ao panótico de Bentham que se aplicava apenas a todos os que fossem prisioneiros, neste panótico digital ninguém se sente prisioneiro. Todos vivem na ilusão da liberdade, inclusivamente alimentando voluntariamente esta panótico. Os utilizadores comunicam-se entre si não por serem coagidos mas por necessidade própria. Em vez de temerem pelo reconhecimento da sua esfera privada e íntima, são eles próprios a sentirem a necessidade de se exibirem sem qualquer pudor, não estabelecendo qualquer distinção entre liberdade e controle.
Apoiados no senso comum do “quem não deve não teme”, são adeptos fervorosos de uma sociedade ‘transparente’, não percebendo a que transparência se referem (se a dos negócios, se a das suas comunicaçõezinhas) e que nesse seu caso o máximo de transparência corresponde ao máximo de controle.
A Acxiom é uma empresa com sede no Arkansas, que possui dados pessoais sobre 300 milhões de cidadãos dos Estados Unidos, ou seja, sobre quase todos eles. Sabe mais sobre eles do que o próprio FBI ou IRS. Foi ela que disponibilizou às autoridades americanas os dados pessoais de suspeitos do ataque do 11 Setembro. Neste ‘negócio’ torna-se difícil distinguir entre a espionagem com interesses meramente económicos e o serviço secreto oficial, o que faz com que na sociedade de informação em que vivemos, o Estado e o mercado sejam cada vez mais inseparáveis.
A Acxiom, a Google ou a Facebook, assemelham-se cada vez mais a serviços secretos, chegando por vezes a utilizarem o mesmo pessoal e idênticos algoritmos para rentabilizarem operações que em tudo são muito semelhantes.
A vigilância exercida totalitariza-se quando a observação se estende às coisas que nos rodeiam, às coisas que usamos na nossa vida quotidiana, num sem fim de informações sem pausas sobre o que fazemos e sobre o que não fazemos. É assim que os célebres óculos da Google, anunciados como promessa de liberdade individual sem limites, vão permitir que quaisquer estranhos nos fotografem e filmem sem cessar. Na prática trata-se de mais uma câmara de vigilância que cada um leva consigo e que fornece mais dados à empresa. O olho humano transformado em câmara de vigilância. Cada um observa e vigia o outro, espiando-se por sua vez a si próprio.
Com a exploração desta imensa quantidade de dados, estas empresas conseguem aperceber-se dos modelos coletivos de comportamento, mesmo daqueles comportamentos que nem sequer aparecem como conscientes para os próprios indivíduos. Têm assim acesso a um chamado inconsciente coletivo digital. Através deste acesso, estas empresas, para além de vigiar e controlar as massas, conseguem ainda regular o seu futuro comportamento social. Não se trata já só de conhecer os modelos de conduta no presente, mas também de conhecer os seus possíveis prognósticos.
Trata-se não só de controlar os “apetites” das massas no presente, mas também de induzir “apetites” no futuro. A esta forma de controle feito através da utilização do inconsciente coletivo digital, chamou Byung-Chul Han de psicopoder.
Mas como conseguem estas empresas analisar e tirar conclusões de tal quantidade de dados? Se seguissem o método científico tradicional, primeiro os cientistas teriam de aventar uma hipótese, um modelo visualizável nas suas cabeças, e depois testá-lo. Teriam de encontrar uma causalidade que lhes permitisse ligar os dados ao modelo e á realidade. Construir uma teoria. Evidentemente, devido à enormidade de dados, tal método seria extremamente lento, e mesmo que chegasse a alguma conclusão, já teria passado o tempo de intervir.
Chris Anderson tem um artigo muito interessante, “The end of theory: the data deluge makes the scientific method obsolete”, que começa com uma citação do matemático George E. P. Box que diz que “Todos os modelos estão errados, há é alguns que são úteis”. Segundo Anderson, a teoria aparece como uma construção, um meio auxiliar para compensar a falta de dados. Se dispusermos de dados suficientes, a teoria passa a ser supérflua. Em vez da criação de modelos de teorias hipotéticas, podemos passar diretamente à análise matemática sem o estabelecimento de hipóteses sobre o que poderão significar, deixando para depois o estabelecimento do contexto. Podemos lançar números para as maiores constelações de computadores existentes e deixar que sejam os algoritmos estatísticos a encontrar os padrões que a ciência não consegue. A correlação substitui assim a causalidade. O “é assim” substitui o “porque”.
Transcrevendo Anderson:
“Empresas como a Google, que cresceram numa época de massas de dados enormemente grandes, hoje em dia não têm que decidir-se por modelos errados. Aliás, não têm mesmo que decidir-se em geral por nenhum modelo […] Quem pode dizer porque é que os homens fazem o que fazem? Fazem-no simplesmente, e podemos constatá-lo e medi-lo com uma exatidão sem precedentes. Se dispusermos de suficiente data, os números falam por si mesmos.”
Foi assim que a Google conquistou o mundo dos anunciantes, sem saber nada sobre a cultura e convenções de anúncios. Assumiu que tendo melhores dados e melhores ferramentas de análise, tal seria suficiente para ganhar. E foi. Ela não sabe porque é que uma página é melhor do que outra: é-lhe suficiente que as estatísticas que lhes chegam dos enlaces digam que é. Não é necessária qualquer análise semântica ou causal. É por isto que a Google pode traduzir linguagens sem as ‘conhecer’, e é por isso que pode adicionar anúncios a conteúdos sem conhecer nem os anúncios nem os conteúdos.
Deparámo-nos aqui com duas das mais importantes linhas de força que podem definir a presente e futura sociedade: a da vigilância digital, que permitindo o acesso ao inconsciente coletivo pode vir a influenciar o futuro comportamento social das massas, com o consequente controle por parte de grandes grupos, sejam eles empresas ou complexos militares-industriais, resultando numa crescente apatia ou militarização da sociedade; o desaparecimento da teoria que nos permitia pensar o mundo ou como o compreender de forma a poder-nos situar nele, quer fosse através da ontologia, da linguística, da sociologia ou de qualquer outra teoria sobre comportamento humano, e sua substituição por matemática aplicada à massificação de dados (“A quantificação do real na busca de dados expulsa o espírito do conhecimento”).
São enormes e muito pessimistas as implicações resultantes. Deixo no entanto dois apontamentos de otimismo: um pensamento de Bernard Lonergan e uma pequena história.
O pensamento:
“O que é provável ocorre mais tarde ou mais cedo, mas também pode nunca surgir. Quando surge, a probabilidade de ocorrência é substituída pela probabilidade de sobrevivência e vai permitir o surgimento de esquemas futuros.”
A pequena história:
No tempo dos índios e dos cowboys, um índio, montado no seu cavalo, dirigia-se velozmente para o aldeamento dos cowboys. Quando lá chegou, no seu falar inglês resumido de filme americano, disse ao capataz: “Big Chief, no shit!” O capataz, também já habituado aos grunhidos monossilábicos dos cowboys de Holywood, percebeu que o grande chefe índio não cagava (lamento, mas não posso dizer de outra forma pois na altura não existiam casas de banho, e os índios eram preguiçosos pelo que não obravam, e defecar parece-me pretensioso para um índio), pelo que lhe mandou um purgante. No dia seguinte repete-se a cena. Lá vem o índio e diz “Big Chief, no shit!”. Lá levou novo purgante. Isto repete-se por mais quatro dias, até que o capataz, para acabar de vez com a situação, resolve mandar-lhe uma dose para vários cavalos. Para seu grande espanto, no dia seguinte lá vê ao longe o índio montado no cavalo a correr na sua direção. Mas eis que o índio chega e diz: “Big shit, no Chief!”
Não sei o que as Googles ou o que for concluirão desta história do índio, mas julgo saber o que o índio, que somos todos nós, concluirá sobre as Googles ou o que for: “Big Data, big shit!”
“Nunca ninguém diz toda a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade”, G. Vattimo. “Não saberíamos o que é uma proposição que não está certa, se não soubéssemos o que são umas calças que não nos servem”, P. Sloterdijk.
“Acertou!” É o que nos dizem nos variados concursos de televisão quando a resposta, ou lá o que é, se adequa à pergunta, ou lá o que foi, num pequeno assomo daquilo que é a racionalidade como princípio de perceção das coisas que nos dizem respeito sob o ponto de vista da sua proporcionalidade, mensurabilidade e calculabilidade. Não se tivesse já anteriormente definido ratio como cômputo, medida, relação, porção, correspondência, e não chamaríamos de racionalidade a esse princípio. O que também significa que até haver essa correspondência, o que antes existira fora a não-correspondência. É lento o processo que leva da não-correspondência até ao encontro da correspondência. E é isso que a civilização é: lugar onde se exercitam esses encontros.
Muito longo foi o tempo transcorrido até que se começasse a acertar a correspondência entre os solos, as estações do ano, as sementes plantadas, e as colheitas. De tal forma longo, matricial, que levou Cícero a importar essa ação humana milenar de cultivar para apanágio de uma alma que se queria elevada, a cultura. Ainda hoje considerada como forma de vida racional, correta, conveniente.
Atentemos noutros pequenos exemplos que pré-existiram e formaram este caldo de cultura da verdade, e que se insiste em obscurecer, em não ver, parentes pobres da filosofia. Alguns deles datados já muito antes de cultivarmos as terras, presentes nos povos caçadores para os quais o correto, o verdadeiro, era o que acertava. Lançado o dardo, a seta, o projétil, o acertar irá passar a fazer parte da nossa história da racionalidade. Pode-se até dizer que a precisão de tiro das artilharias modernas, ao decidirem sobre o resultado das grandes guerras, permite-nos estabelecer uma relação entre a função de verdade e o motivo balístico. “Tem razão quem ganha”.
Quando nos metemos nas caravelas e partimos para descobrir, e quando encontrámos o que quer que fosse que necessitávamos, e quando nos apropriámos e trouxemos para casa, estávamos a repetir aquela racionalidade arreigada há muito nos prospetores de tempos passados e segundo a qual o que achássemos poderíamos trazer para casa como nosso. Séculos depois dos descobrimentos, a quando das expedições científicas, voltámos a utilizar exatamente o mesmo processo mental só que nessa altura o coligir e trazer para casa se faziam já com meios muito mais modernos. A racionalidade, a ratio, era exatamente a mesma entre o procurar, achar e o direito à apropriação.
Estes exemplos de funções de verdade, o acertar e o achar e muitos outros, encontram-se em muitas outras artes e ofícios, cada uma com as suas pequenas verdades, razões, exatidões, adequações. É assim que para o carpinteiro a verdade é o que se ajusta, para o pedreiro a verdade é o que está direito e se aguenta, para o músico é o que está afinado, para o farmacêutico é o que ajuda, para o alfaiate é o que serve. É porque têm sido feitos durante sempre estes exercícios de ajustamento e adequação, que foi possível um caminho intelectual que conduziu ao aparecimento da formação de juízos, e que esses próprios juízos sejam por todos aceites como evidentes. Sem esses exercícios de acertar, encaixar, ajustar, afinar e outros que tais, não teriam sido possíveis todas as outras funções complexas do espírito humano nos domínios da teoria, da prática e da arte. Eles foram a preparação do terreno para as verdades da ciência, da metafísica, da ética, da religião e da estética.
Na frase lapidar de Sloterdijk:
“Provavelmente, não saberíamos o que é uma proposição que não está certa, se não soubéssemos o que são umas calças que não nos servem”.
Que rapidamente tenhamos esquecido ou negligenciado as funções de verdade desses naturais raciocínios em favor de outros que nos parecem ou aparecem mais carregados de verdade, diz bem da sociedade que fomos protagonizando. Como sempre, fomos carreando para ‘casa’ os achados, sem nunca equacionarmos o que esses achados, uma vez dentro de ‘casa’, farão de nós.
No dia em que colocámos a verdade como algo exterior a nós, com existência própria, perfeita de sempre e para sempre, inalcançável, nesse dia o mundo mudou, tudo justificando em nome dela. É isso que subtilmente nos vem lembrar G. Vattimo quando conclui que “nunca ninguém diz toda a verdade, só a verdade e nada mais que a verdade”.