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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

O "achatamento" como dominação

Os descobrimentos fazem-se sem o acordo prévio do descoberto, pelo que o seu título de propriedade decorre de uma legitimidade superior”, C. Schmitt.
Quando Deus está morto, ou não está a olhar, nos mares sem lei, fora das zonas de respeito condicionado, também o inconcebível é possível”.
O facto central da Época Moderna não é que a Terra gira em volta do Sol, mas que o dinheiro gira à volta da Terra”, Sloterdijk.
O fascismo é o horror da vida confortável”, Mussolini.

 

Foi D. Manuel I, o Venturoso, o primeiro rei a mandar por no seu brasão um globo, e naquele século tal privilégio só viria a ser concedido a um homem privado, Sebastián del Cano (que após a morte de Magalhães trouxera a nau Victória de volta a Espanha em 1522) e a um território da Coroa portuguesa, o Brasil, que ainda hoje conserva essa esfera de D. Manuel na sua bandeira.
A representação da Terra feita através de um globo está iminentemente ligada às viagens de circunavegação, muito embora o globo mais antigo conhecido seja o de Behaim em 1492. Nunca antes a Terra fora representada como um globo. Não é de somenos importância esta forma de representação da Terra, porquanto ela implica uma visualização a partir de um ponto de vista situado no espaço exterior envolvente. A Terra era apreciada como se estivéssemos a observá-la a partir de um satélite, o que constituía uma enorme rutura com o pensamento tradicional. De igual forma, a palavra-conceito ‘globalização’ só aparece após a Idade Moderna. Antes dela não era possível concebe-la, porque ela pressupunha o conhecimento da Terra como globo.


Mas há contudo palavras-conceitos que embora tenham existido noutras épocas anteriores, mudaram radicalmente de conceito, prenunciando a Época Moderna. É o caso de ‘Descobrir’ que significava, até ao século XVI, “levantar a cobertura de um objeto, desocultar o que era conhecido”. Mas a partir daí passa a querer dizer encontrar algo desconhecido. Os ‘Descobrimentos’ têm exatamente esse significado.
Assim sendo, os Descobrimentos são as viagens através das quais o desconhecido se transforma em conhecido. O que faz com que o primado da viagem seja a ida, a partida para o exterior, o aventureirismo, sem o qual não há descobrimento. A fase que se lhe segue é o da apresentação de provas que o descoberto foi encontrado e que possa continuar a partir daí a permanecer conhecido.


Os novos países e terras só poderiam ficar debaixo da tutela dos novos senhores (europeus, evidentemente) depois de se tornarem entidades localizadas, inventariadas, delimitadas e com nome. Convenhamos que os globos não eram os instrumentos mais adequados para o desempenho destas ações, pelo que vão progressivamente sendo substituídos pelos ‘mapas’ que permitiam efetuar o levantamento das regiões pretendidas, permitindo entre outros representar o cadastro político. As recolhas de vários mapas permitem o aparecimento de novos ‘atlas’, e finalmente dos ‘planisférios’ em que o globo era representado sob a forma de superfície.
Com esta eliminação da terceira dimensão (a profundidade), o bidimensional impõe-se ao tridimensional. Como já acontecera com a utilização da perspetiva no Renascimento, a imagem sobrepõe-se ao corpo. Estão abertas as vias para a conquista do mundo como imagem.


Este “achatamento” do mundo, que deriva do facto de só poder ser dado por conquistado aquilo que se conseguir reduzir de uma dimensão, ou seja, reduzido a mapa, é decidido pelo soberano. O levantamento cartográfico é o verdadeiro título de propriedade sobre a terra desconhecida. Os tratados feitos com os povos indígenas, enquanto para estes eram acordos de amizade, eram para os europeus tratados de submissão e de exploração.


Carl Shmitt, o jurista preferido de Hitler, escrevia:


É pois totalmente falso dizer que, da mesma maneira que os espanhóis descobriram os Aztecas e os Incas, estes teriam podido, inversamente, descobrir a Europa. Falta aos Índios a força associada ao saber da racionalidade de cristo-europeia e seria grotesca ucronia imaginar que teriam podido fazer levantamentos cartográficos da Europa tão bons como os que os Europeus fizeram da América. […]
Os descobrimentos fazem-se sem o acordo prévio do descoberto, pelo que o seu título de propriedade decorre de uma legitimidade superior. Só pode descobrir quem dispõe de uma intelectualidade intelectual e histórica suficiente para compreender o que descobriu com o seu saber e a sua consciência.


Na realidade, à época, a legitimidade dos descobrimentos tal como foram feitos, não era minimamente posta em causa. Essa legitimação, essa ausência de escrúpulos jurídicos, era assumida por toda a sociedade. Afinal eles eram feitos por quem traz consigo um bem de valor superior ao levar a salvação de Cristo ao Novo Mundo. O próprio imaginário da sociedade convivia e alimentava-se dessa legitimação.
É assim que vemos Camões nos seus Lusíadas, bastantes anos depois, justificar a viagem para a Índia mandada efetuar por D. Manuel com o aparecimento em sonhos de dois sábios que convidam o rei a armar uma frota para ir conquistar os rios Indo e Ganges. Quando Shakespeare descreve no Rapto de Lucrécia os “seus seios, como globos de marfim de azul orlados, Dois mundos virgens e não conquistados… Despertando em Tarquínio uma nova ambição”, está interiorizando/exteriorizando o sentir da época, segundo o qual bastava que “um objeto fosse redondo, desejável e desse a impressão de dormir, para que pudesse ser descrito como mundo possível de ser conquistado”.


As novas terras encontradas, a sua abundância, são o sinal de que elas foram postas à disposição das novas gerações para seu gozo e usufruto. Este sentimento de predestinação, esta arrogância, cedo se transforma na prática de extermínio, pirataria e tráfico negreiro. Sem qualquer razão aparente, Vasco da Gama manda incendiar e afundar um navio mercante com duzentos peregrinos para Meca. Estávamos ainda em 1497.
O que se lhe seguiu, a pirataria e o tráfico negreiro, além de virem a ser o fenómeno de ponta da criminalidade da globalização, levam ainda Sloterdijk a considerá-los como a primeira forma empresarial de ateísmo: “Quando Deus está morto, ou não está a olhar, nos mares sem lei, fora das zonas de respeito condicionado, também o inconcebível é possível”.


Essencialmente o que aquela época moderna nos mostra é uma cultura de ofensiva e expansão, onde num horizonte de incerteza se assumiam riscos calculados num campo de ação global. Onde o gosto pelo risco era incentivado pela necessidade de se realizar lucro para que as dívidas associadas aos créditos de investimento pudessem ser pagas. O lucro passa a ser o dinheiro que alguém arriscou e que regressa à sua conta original após ter dado a volta aos oceanos.


A sociedade globalizada herdada não nos permite concluir sobre a existência de um princípio biológico segundo o qual todos os seres humanos formam uma espécie única na Terra, sobre um comportamento moral único segundo o qual se deveria de ter um pensamento solícito e compassivo para com todos os outros, sobre uma aceitação de verdades idênticas para todos. Pelo contrário, a tendência de todos os humanos é para ignorarem a grande maioria dos outros seres humanos que se situem fora do seu próprio contentor étnico.
As promessas de abundância até conduziram a situações de superabundância, só que se concentraram num continente artificial, dinamizado e animado pelo conforto sobre oceanos de pobreza, originando até uma inversão dos valores da civilização. É assim que o “apartheid” eliminado na África do Sul passa a ser generalizado em todo o espaço económico atual, tornando invisível a pobreza nas zonas de prosperidade e a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.


Seguiu-se um modelo em que bem vistas as coisas nos conduziu a alimentarmo-nos de carvão e petróleo que foram transformados em produtos comestíveis pela agricultura industrializada. O horror dos números: Só na Alemanha consome-se por ano 400 milhões de frangos, 31 milhões de perus, 14 milhões de patos, 44,3 milhões de suínos, 4,3 milhões de bovinos e 2,1 milhões de ovinos!
Mas em compensação alargamos os nossos horizontes. Voamos agora confortavelmente para qualquer parte do mundo, comemos sushi nos arranha-céus de qualquer deserto, enfim somos “cosmopolitas”. Ou seja, somos provincianos mimados em viagem, reflexo que dá ao espaço interior do mundo capitalista um toque de abertura a tudo o que se pode obter em troca de dinheiro. Mas não exagerem. Lembrem-se do que disse Mussolini: ”O fascismo é o horror da vida confortável”.

Convém também voltar a ler o Moby Dick de Melville:

 

O que era pois a América em 1492 senão um peixe-à-solta sobre o qual Cristóvão Colombo plantou p pendão espanhol, a fim de o marcar para suas majestades, o seu senhor e a sua senhora? Que era a Polónia para o czar? E a Grécia para os turcos? E as Índias para a Inglaterra? E, por fim, o que foi o México para os Estados Unidos da América? Tudo peixes-à-solta.
Que são os direitos do homem e a liberdade do mundo senão peixes-à-solta? […] A totalidade do nosso globo, não é ela um peixe-à-solta?

 

É o que somos: “peixes-à-solta”, caça livre à disposição de quem primeiro nos apanhar.

 

 

A cartilha do fundamentalismo

“Em tempos de incerteza o conhecimento da verdade única é sempre reconfortante”.
O discurso acerca do conhecimento que Deus, em Sua glória, tem de Si próprio e do mundo, está proibido”, Averróis.
Se necessário […] romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito”, Voegelin.

 

O termo “fundamentalismo” só aparece definido nos finais do século XIX, ligado a um documento das igrejas Protestantes aprovado como reação áquilo que consideravam ser a intromissão da teoria da evolução e as constantes críticas feitas à Bíblia, o que acabou por levar na primeira metade do século XX à separação das igrejas Protestantes em Fundamentalistas e Modernistas. Atualmente o termo tem outras conotações, mas é importante conhecer as suas raízes para o compreender na sua totalidade.


Há uma parte do fundamentalismo que tem que ver com a pretensão à posse do conhecimento único, conhecimento quase intuitivo e mágico sobre os mistérios do universo, único capaz também de garantir a salvação, o que tem sido através dos tempos uma pretensão comum a todos aqueles que num âmbito mais geral são chamados de gnósticos, na sua persecução do conhecimento da verdade única. Em tempos de incerteza, esse conhecimento da verdade única, é sempre reconfortante, transmitindo uma ansiada sensação de segurança. Embora grande parte dos gnosticismos se tenham digladiado no campo das religiões, a sua secularização vai, curiosamente, dar origem a novas religiões políticas.

No século XVII surge em Inglaterra um movimento de confissão calvinista, que se apelidava de “puritano” por pretender purificar a Igreja Anglicana de todos os resíduos de catolicismo, de forma a tornar a sua liturgia mais próxima do calvinismo. Face aos ataques destes ‘puritanos’ à nova Igreja Anglicana, Richard Hooker (1554 – 1600), um dos teólogos preferidos da rainha Isabel I de Inglaterra, vai explicar e desmontar aquilo que considerava efetivamente ser o programa comum a que todos estes movimentos gnósticos obedeciam, num documento publicado em 1595 e 1597, Of the Laws of Ecclesiastical Polity.
Visto à distância de quatro séculos, trata-se de um extraordinário documento de marketing político ainda hoje plenamente válido, uma cartilha que tem sido seguida por todos os movimentos fundamentalistas.

 

Diz-nos Hooker (1595) que a primeira coisa a fazer para se iniciar um movimento desse tipo, é arranjar uma causa.
Depois, para se promover essa causa, deve-se começar por criticar severamente os males sociais bem como o comportamento das classes altas, tudo isto feito em locais públicos em que a multidão possa ouvir. Todas estas críticas devem ser frequentemente repetidas, a fim de levar os ouvintes a acreditarem que tanta indignação com o que acontece só pode vir de homens bons.
Em seguida, deve-se concentrar o ressentimento popular sobre o governo instituído, atribuindo-se todos os defeitos e corrupção a ações específicas do governo. Assim, não só mostram à população que sabem do que estão a falar ao revelarem ligações que a ela lhes teria passado ao lado, como apontam para o mal que deve ser extirpado para salvar o mundo.
Chegados aqui, é a altura para recomendar uma nova forma de governo como “remédio soberano para todos os males”. Isto porque as pessoas “que estão possuídas de aversão e descontentamento para com as coisas presentes” estão prontas para “imaginar que qualquer coisa, cuja virtude lhes havia sido recomendada, as ajudaria”.
O ideal seria que esse movimento se baseasse na autoridade de uma fonte literária, um livro/lei, para que os seguidores associassem automaticamente passagens e termos do livro/lei com a doutrina que os líderes lhes iriam transmitindo de forma a moldar “as próprias noções e conceitos mentais” por mais errónea que fosse essa associação, e que inclusivamente os pudessem levar a ignorar o conteúdo dos Escritos se eles se revelassem incompatíveis com a doutrina.
O passo seguinte será o de “persuadir os homens crédulos e inclinados a tais erros gratificantes de que sobre eles recai uma luz especial", que lhes permite discernir nas palavras da Escritura aquilo que os outros, embora a leiam, não enxergam. Com isto eles vão sentir-se como eleitos, separados do resto do mundo, o que faz com que a humanidade se divida entre “os irmãos” e os “mundanos”.
A partir daqui, tais pessoas preferirão sempre a companhia de outras envolvidas no movimento à de indivíduos a ele estranhos; aceitarão voluntariamente os conselhos e a orientação dada pelos doutrinadores; negligenciarão os seus próprios interesses, para dedicar todo o seu tempo ao serviço da causa e fornecerão ajuda material aos líderes do movimento. Estão agora prontos para receber a representação de um líder.
Uma vez criado este meio social, torna-se impossível quebrá-lo pela persuasão. Se algum indivíduo de opinião contrária abrir a boca para persuadi-los, eles comportam-se como surdos, não ponderam as razões que lhes são oferecidas, e a tudo respondem repetindo as palavras de João: ‘Nós somos de Deus; aquele que conhece Deus nos ouve’.
Eles são assim impermeáveis a quaisquer argumentos e têm respostas bem treinadas. Caso lhes sugiram que são incapazes de julgar tais matérias, responderão: ‘Deus escolheu os simples´. Caso se lhes mostre que estão dizendo coisas sem sentido, dirão: ‘Até mesmo os Apóstolos de Cristo foram considerados loucos´. Caso se lhes acene com um mínimo de disciplina, dissertarão sobre a ´crueldade dos homens sanguinários’ e apresentar-se-ão como a inocência perseguida por dizer a verdade. Em suma, não há argumento que possa abalar a rigidez psicológica da sua atitude.

Mas Hooker vai mais longe na desarticulação do gnosticismo, chamando a atenção para os perigos que ele representava para a destruição da ordem racional estabelecida e para a utilização da função social da persuasão. Segundo ele, a posição dos puritanos, contrariamente ao que defendiam, não se baseava nas Escrituras: eles usavam as Escrituras apenas quando certas passagens delas, retiradas de contexto, corroboravam a causa, ignorando-as nos outros casos.
Esta colagem que faziam às Escrituras fora inicialmente necessária, porquanto não se poderiam apresentar abertamente como um movimento anticristão. Mas essa camuflagem, a partir de certa altura, começou a ser incómoda. Para evitarem as críticas embaraçosas, vão servir-se de dois recursos técnicos, que ainda hoje são utilizados pelos movimentos fundamentalistas.
O primeiro era a escolha padronizada de seleções efetuadas das Escrituras, bem como pela interpretação das mesmas. A reforma de Lutero, ao dar a liberdade de interpretação das Escrituras feita por cada um de acordo com as suas preferências, conduzia ao caos; além do mais, uma vez que todas as interpretações seriam assim possíveis e equivalentes, não se poderia argumentar contra a interpretação da Igreja, porquanto essa também seria válida.
Quando Calvino publica os Institutes, uma formulação sistemática das Escrituras para a nova doutrina, o seu propósito foi o de oferecer orientação para uma leitura correta das Escrituras que evitasse o recurso a todas as obras anteriores, partindo do princípio que era nos trechos escolhidos que residia a verdade. Esta obra de Calvino foi o primeiro Livro/Lei gnóstico criado de modo deliberado por alguém capaz de romper com a tradição intelectual da humanidade, porque estava imbuído da crença, da fé, de que com ele se iniciaria uma nova verdade e um novo mundo.
Podemos encontrar antecedentes no Alcorão de Maomé, e em Escoto Eríugena e Dionísio Areopagita, e ainda no Evangellium aeternum (Evangelho Eterno) de Joaquim de Fiora.
Numa fase de posterior secularização, encontramos no século XVIII a Encyclopédie  Française de Diderot e D’Alambert, como compilação de todo o conhecimento digno de ser preservado: segundo os autores, ninguém precisaria de usar qualquer outra obra anterior e toda a ciência posterior seria acrescentada à Enciclopédia como suplemento. No século XIX, Augusto Comte e as fases da humanidade (religiosa, metafísica e científica, em que as ciências se juntam todas numa sociologia) que constam do seu Curso de Filosofia Positiva, Karl Marx e o Manifesto. No século XX, A. Hitler e A minha Luta, Mao e o seu livrinho vermelho. As doutrinas políticas da modernidade estão sempre marcadas por este desejo de refazer a história, de a recomeçar.
O segundo é o de considerar que, sendo todo esse Livro/Lei gnóstico a codificação da verdade, então ele é todo o alimento espiritual e intelectual do fiel, pelo que se deve recusar a ler outra qualquer obra que possa representar uma crítica ou um desrespeito para as suas adoradas crenças. É tabu ler-se para além do Livro; quem o fizer será socialmente boicotado e exposto à difamação pública. Este tabu vai ter consequências nefastas no que diz respeito ao debate público, especialmente nas sociedades em que os movimentos gnósticos consigam alcançar e controlar os meios de comunicação e instituições educacionais. Como dizia Hooker, o debate com os seus oponentes puritanos era impossível, porque eles não aceitavam nenhum argumento.

A este propósito vai citar Averróis (ou Ibn Rushd, 1126 – 98) quando este afirma:

 

O discurso acerca do conhecimento que Deus, em Sua glória, tem de Si próprio e do mundo, está proibido. Mais proibido é escrever sobre isso. Isto porque a compreensão do vulgo não atinge tais profundezas […] por isso lhes é vedada a discussão desse conhecimento […] A lei, cujo propósito básico é ode ensinar homens do povo, não malogrou na comunicação inteligível acerca desse assunto por ele ser inacessível ao homem […] Por conseguinte, esta questão está reservada aos sábios que Deus dedicou à verdade”.

 

Esta é a solução dada na civilização muçulmana ao problema do debate teórico: confiná-lo a círculos esotéricos, desconhecidos do público em geral, uma vez que os homens do povo devem abster-se de teorizar, dado que não estão preparados para tal, porque se o fizessem corriam o risco de destruírem Deus.
Só que, apesar de tudo, a civilização ocidental à época de Hooker já não permitiria esta solução preconizada por Averróis. Assim, posto perante o facto de que se tratava de lutar contra revolucionários gnósticos que pretendiam a subversão da ordem social inglesa, o controlo das universidades, a substituição da lei comum pela lei das Escrituras , e  que era de todo impossível conseguir chegar-se a acordo obtido através da persuasão, Hooker considera a hipótese da utilização da autoridade governamental para suster tal investida. Hooker percebia muito bem que a ação gnóstica representava uma ação política e não uma procura da verdade.

Diz-nos Eric Voegelin (1901 – 85) em A Nova Ciência da Política, obra que sigo  de perto:

 

Um governo democrático não se deve transformar em cúmplice da sua própria derrocada, permitindo que governos gnósticos cresçam prodigiosamente à sombra de uma interpretação errónea dos direitos civis; e, se por inadvertência um movimento desse género houver atingido o ponto de crítico da representação existencial através da famosa “legalidade” das eleições populares, um governo democrático não se deve curvar à “vontade do povo””, e sim sufocar o perigo pela força e, se necessário, romper a letra da constituição a fim de preservar o seu espírito”.

 

Como epílogo, uma expressão popular que julgo adequada e sintética quanto baste: “Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades”.

 

Onde o denso flutua e o leve afunda

O equívoco é o facto fundamental da existência”, Peter Sloterdijk.
Porquê viver, se por 10 dólares já se pode ser enterrado?” Anúncio publicitário americano.
Precisamente pelo facto de a nossa vida estar privada de sentido é que se justifica o seu grande apreço”, interpretando Heidegger.

 

Normalmente, tudo o que pensamos sobre o mundo, todo o nosso pensamento, encontra-se balizado entre o que é sujeito e o que é objeto, sendo que o sujeito se encontra sempre referido como um eu intelectualmente pensante. Mas então e quando esse sujeito não for intelectualmente pensante e for antes o “sujeito” que é resultante da banalidade do seu modo de ser quotidiano, que faz da superficialidade e da trivialidade, do falar por falar, do equívoco, da indigência e da decadência intelectual, o seu pensamento? Se pretendermos levar a sério este sujeito resultante desta banalidade e erigi-lo em teoria, isso irá significar ter de pensar independentemente do bem e do mal, pensar para além do bem e do mal e portanto para cá da metafísica. É o que acontece na nossa época desencantada, secularizada e tecnológica.


Este “sujeito impessoal” é o que, de certa maneira, representa o que se tem em comum com todos os outros, é o meu eu público relativamente ao qual a mediocridade tem sempre razão, que quer facilitar tudo a si próprio, cingindo-se à aparência convencional; nada tem de si mesmo ou para si mesmo. O que ele é são os outros que lhe dizem e lhe dão. É como se andasse perdido no mundo, distraído, sendo antes o mundo que o encontra. Ele limita-se a participar no “falatório” universal, no “diz-se, diz-se”, consumindo e propalando ‘notícias’. Entrega-se à curiosidade e à novidade do momento. Abandonando-se a esta comunicação do momento, não trata de a compreender, bem pelo contrário, o que ele quer é evitar a compreensão, evitando mergulhar sobre o que é o autêntico Estar.

Mas com distinguir entre o que “aparece como” e o que verdadeiramente “é assim”? Como distinguir entre o autêntico e o inautêntico, entre o expresso e o não expresso, entre o determinado e o indeterminado? Como diz Heidegger (e é dele que temos estado a falar):

Tudo aparece como verdadeiramente compreendido, apreendido, dito, e no fundo não o é – a menos que apareça como não o sendo e no fundo o seja”.

É aqui que vamos ter de nos socorrer da hermenêutica, a arte de compreender o sentido, para se poder articular o sentido da aparente ausência de sentido.
Visto por fora, o “autêntico” não se distingue do “inautêntico”. Torna-se necessário ver no ser uma “outra dimensão” que se esquiva à demonstração por não pertencer às “coisas” demonstráveis. É o que “aparece como” que é o essencial, o verdadeiro, o autêntico. O que faz do equívoco o facto fundamental da existência.


Este “sujeito impessoal” que se encontra desde o seu nascimento lançado no mundo (“ser-no-mundo”), apesar de se convencer que leva uma vida autêntica e plena por se projetar sem reserva na agitação da quotidianidade que o rodeia, tende a permanecer sempre em queda. Permanecer em queda é encontrar-se circunscrito a um mundo de ocupações que, enquanto tal, nos limita a viver uma vida inautêntica.
Contudo, este permanecer sempre em queda desde o começo, apesar de lhe provocar um sentimento de estranheza e alienação, não remete para a comparação com a possibilidade de existência de um ser inicial mais elevado, mais essencial, sem alienação ou estranheza. Heidegger não atribui qualquer sentido valorativo, seja ele de maldade, negatividade ou falsidade, ao “ser-no-mundo”. É apenas uma constatação sobre o que somos. A vida na sua autenticidade é desprovida de fins, pelo que não há objetivos radiosos no futuro e “nenhuma instância nos encarrega de sofrer hoje por um grande amanhã”.
Sendo certo que o futuro da existência é a morte, o homem pode contudo suspender a sua queda resultante de ser um ser-no-mundo. Como o fará? Suspendendo a queda em que se encontra no mundo das ocupações, resistindo à sua tentação, para que possa encontrar-se consigo mesmo. Assumindo a sua máxima autenticidade.

Diz-nos Heidegger:


O ‘-se’ não deixa surgir a coragem da angústia da própria morte

Segundo ele, perante a morte ocorrem duas atitudes: ou temor ou angústia. Temor, se se vir a morte como mero fim biológico, temendo assim o facto de se deixar de viver. Esta é a posição assumida enquanto se vive na inautenticidade, enquanto se permanece um ser em queda. Fugimos de nós mesmos e do facto de não enfrentarmos sermos “seres-para-a-morte”.
Já nas raras vezes em que se adota uma vida autêntica, assumindo a consciência da nossa finitude, surge-nos a angústia que conduz a uma reflexão sobre nós mesmos, da nossa possibilidade de projeção num futuro em aberto. A angústia coloca-nos perante a morte como sendo um limite a um futuro onde todas as possibilidades se colocam. Há aqui um poder-ser que se baseará no reconhecimento, na tomada de consciência da sua queda e no desejo de recuperar-se dela, que faz com que se assuma como um ser que se interessa por si mesmo, que reúne o seu passado, o seu presente e o seu futuro trazendo-os á sua presença para que possa projetar-se no futuro como um poder-ser em sentido próprio.
Esta construção consciente do autêntico vai desembocar no “ser-para-a-morte” como enfrentamento assumido sobre a “sua” morte. Não mais as teorias sobre a ideia de evolução, sobre revolução, sobre seleção, luta pela vida, sobrevivência dos mais aptos, progresso e raça, sempre a contarem, todas elas, com o que se passava com os outros, com o declínio dos outros. Não mais o “morre-se”, mas o “eu morro”.


Uma das dificuldades para este enfrentamento da morte reside na imensa “distração” providenciada a este sujeito impessoal pela militarização total da sociedade em que vive, que diariamente o vai narcotizando e sussurrando sobre a destruição que aí virá. Será apenas uma questão de tempo. Exatamente o tempo da sua distração.
A distração provocada por esta “constante tranquilização sobre a morte” em que está imerso e em que vive o “sujeito impessoal” não deixa surgir a “coragem da angústia da morte”. A sociedade militarizada, a sociedade do constante rearmamento, substitui esta “coragem” por uma empresa militar, a indústria da morte, que nos ocupa todo o tempo, até que a morte chegue desapercebida. “O sujeito impessoal rearma-se, distrai-se, morre”.

A privação do sentido da nossa vida pode conduzir ao desespero e ao pesadelo, mas pode também, e exatamente pela sua falta de sentido, conduzir à sua valorização, conduzindo antes a uma vida criativa, a um reconhecimento da minha posição perante o mundo, a um pensamento de que sou eu que espero a minha morte no fim do meu tempo, a uma abertura para o futuro.
Para se ser “autêntico” temos de saber o que somos. Temos de aprender a conhecer conscientemente o ser-para-a-morte como instância suprema do nosso poder-ser; é na angústia que ele nos ganha, e chegou a nossa hora se tivermos coragem suficiente para resistir à grande angústia. Mas Heidegger sabe que:


Com a supremacia do decair e ser-público […] a angústia “autêntica” é rara”.


Ou seja, a autenticidade é coisa para um pequeno número, o que é uma escolha elitista. A elite perfeitamente apolítica dos realmente existentes. Mas que vai acabar por se refletir, ganhar expressão e encaixar-se no campo social e político. O próprio Heidegger cai na armadilha ao vir a considerar o nacional-socialismo como o renascimento para a autenticidade a partir do decair, da resolução e do ser-heroico-para-a-morte.


Tudo aparece como…” escrevera ele. O problema estava no “como” e como apareceu.
Heidegger insta-nos a levar uma existência autêntica, mas não nos diz como. A sua única resposta é “conscientemente”. É um faz o que quiseres, faz o que tens a fazer, mas fá-lo em plena consciência do que fazes. O “Tu-deves” moralista e categórico é substituído pelo amoralismo moral do “Tu-podes”.


Todos os grandes filósofos têm a tendência para desenvolverem sistemas coerentes e lógicos para explicarem a totalidade do mundo das pessoas. O que se tem verificado é que todos esses sistemas têm acabado por serem refutados, rejeitados, abandonados, e contudo, a consideração pelos grandes filósofos tem-se mantido, porquanto há sempre pequenas ou grandes partes dos seus pensamentos que foram e são importantes para a compreensão do mundo em que vivemos.
Heidegger não foge a esta constatação: embora o seu sistema global possa não ter resolvido os problemas que ele se pôs, o facto é que é impossível compreender-se a sociedade contemporânea sem a utilização de alguns dos seus conceitos. Não é possível entender o nazismo e a sociedade de hoje sem os conceitos de “sujeito impessoal”, “poder-ser” e “ser-para-a-morte”. Revemo-nos ainda quando ele fala sobre as escolhas que o homem pode fazer diante da abertura do futuro dizerem respeito à sua existência, e na “distração” relativamente à necessidade de pensar a política que é hoje traduzida numa “dormência” favorecida pela própria política, agora só preocupada com as questões da vida assética (“vida nua”).


Dentro de um pouco mais de dez anos, completam-se cem anos sobre a publicação do “Ser e Tempo” (1927) de Martin Heidegger. É isso: fazem-nos andar distraídos.

 

Da merda e seus companheiros

Não entendem que tudo o que entra pela boca vai para o ventre, para depois sair do corpo?”, Mateus 15:17.
Flatum crepitumque ventris in convívio mettendi”, édito do imperador Cláudio para regulamentar flatulências em convívios.
Hitler padecia de ‘meteorismo’ ou excesso de flatulência

 

Este é um assunto que não pode ser visto com ligeireza nem menosprezado. De certa maneira, a merda constitui para a Teologia um problema bem mais complexo que o da existência do mal. É que a partir da altura em que Deus nos concedeu o livre arbítrio deixou de ser responsável pelos nossos crimes, mas o mesmo já não se passa com a merda porquanto a responsabilidade pela criação da humanidade como ela era pertencia-Lhe por inteiro.


Porque hoje a nossa crença em Deus é muito mais metafísica, intelectual, distante, guardada só para certos dias ou ocasiões, muito menos vivida quotidianamente, é-nos difícil entender as enormes preocupações e aflições intelectuais resultantes das interrogações dos primitivos cristãos sobre se Cristo excretava ou não. Para Valentim o Gnóstico, “Jesus comeu e bebeu à sua maneira, sem excretar a comida. O seu poder de continência era tão grande que nem sequer a comida se destruía, porquanto não experimentava qualquer corrupção”. Este parecer deu origem a novos debates para se tentar saber então o que acontecia aos alimentos.
Ainda no século IX estes assuntos eram discutidos. Por exemplo, os monges Pascacio Radberto e Ratramno de Corbie escreviam no seu tratado De corpore et sanguine Domini que o pão e o vinho consagrados na Eucaristia após serem digeridos passavam aos intestinos e eram convertidos em excrementos e urina. De forma mais elegante dizia Mateus 15:17 “Não entendem que tudo o que entra pela boca vai para o ventre, para depois sair do corpo?
Finalmente, o dilema foi resolvido pela Doutrina que afirmou que após a ingestão da hóstia consagrada, o sacramentum tantum deixava de ser apercebido pelos sentidos dissolvendo-se a sua divindade, seja durante a mastigação ou ao chegar ao estômago. Não há pois absorção do sagrado pelos intestinos.


Não nos podemos esquecer também do seu acompanhante favorito: o peido, quer nas suas versões de bufa ou de traque, consoante silencioso ou sonoro. De certa forma até mais importante, pois teve direito a um édito especial promulgado pelo imperador Cláudio, com vista a regular o modo e o local em que os comensais dos seus banquetes os deviam expelir. Chamava-se o édito Flatum crepitumque ventris in convívio mettendis.
Talvez até pela sua grande periodicidade (uma pessoa saudável solta gases em média uma vez por hora, conforme o que comeu e o stress) e volume de produção (média de dois litros dia), deram também origem a inúmeros estudos científicos, sendo um dos primeiros o de Benjamin Franklin, um ensaio de 1871 com o título Fart Proudly (Peide-se Orgulhosamente) onde procurou associar os componentes das comidas com o odor das flatulências. Era sua intenção contribuir para a possibilidade de controlo desse incómodo público.
Tal como para um instrumento musical de sopro, o ruído é causado pela vibração da abertura anal, variando em função da contração do músculo do esfíncter e a velocidade a que os gases são expelidos, dependendo ainda de outros fatores como a humidade e a gordura corporal.
Já quanto ao cheiro sabe-se que ele é definido pela concentração de três gases, o ácido sulfídrico (cheiro a ovos podres), o metanol (cheiro a verduras em decomposição) e o sulfato de di-metil (cheiro adocicado). É hoje possível a identificação destas composições através de um detetor de flatulências (um “nariz cheirador” eletrónico), com grande aplicação na veterinária para medição do estado de saúde do gado.
Na medicina tradicional chinesa, existem os “wen pishi”, especialistas que detetam doenças gastrointestinais pelos peidos dados pelos pacientes. Com a falta de recursos dos nossos sistemas de saúde, talvez não seja de desprezar esta especialização.


Um dos cientistas de topo de flatulências é Michael Levitt da Universidade de Minessota: a ele se deve a invenção da roupa interior “apanhapeidos”, fabricada em fino tecido de poliéster com carvão ativado, e de grande utilização e agrado pelos astronautas da NASA. Levitt também demonstrou que os gases expelidos pelas mulheres têm uma concentração maior de ácido sulfídrico que os dos homens, cheirando pois pior.


E já que estamos a falar do sexo feminino, convém especificar que a vagina também pode expulsar gases, muito embora eles não provenham do intestino nem sejam fruto da fermentação de bactérias, não sendo portanto mal cheirosos. É conhecido como flato vaginal, sendo frequente nas relações sexuais. Há contudo alguns casos muito raros em que esses gases cheirem tão mal quanto os peidos anais. Estaremos em presença de um problema de fístula retovaginal, possível de ter lugar em doenças como a de Crohn ou proveniente de cirurgias.


A alimentação tem especial importância não só no cheiro como na quantidade de gases expelidos. Estudos comprovam que a ingestão de carne vermelha e de alimentos como os frutos secos, cerveja, vinho, sidra e outros que contenham sulfitos como conservantes são os maiores contribuintes para as flatulências mais mal cheirosas. Já a altitude é a responsável pelo maior número de libertações: ao nível do mar emitimos 15,1 ventosidades ao dia, mas a 7.000 metros emitimos 129,6, daí que para combater este excesso de gás a bordo dos aviões se deva reduzir drasticamente a fibra dos menus que se servem no ar.
Mesmo depois de morrermos, nas três horas seguintes, até ao aparecimento do rigor mortis, podemos ainda expelir matéria fecal e flatulências resultantes da contração muscular e inchamento do cadáver.
O excesso de flatulências podem ser sintomas de intolerância à lactose ou de alergia a alimentos, ou de “importantes transtornos gastrointestinais, como cálculos biliares, síndrome de cólon irritável ou doença inflamatória do intestino. O excesso de flatulência pode delatar algumas vezes um câncer de esófago, de cólon ou de reto”. “Meteorismo” é o termo médico para exprimir o excesso de flatulência, e de que apropriadamente padecia Hitler: para o combater tomava vinte e oito medicamentos diferentes.


Notava Freud no Mal-estar da civilização que a civilização tinha como exigências a “limpeza, ordem e beleza”, daí o processo pelo que as crianças passavam (para elas o cócó não lhes fazia qualquer diferença, brincando com ele e até o comendo) tinha em vista o civilizarem-se. A merda só começou a ser considerada como algo de vergonhoso a partir da Idade Moderna. Na civilizadíssima Roma, a da Cloaca Máxima, cagava-se nas latrinas públicas em companhia e animada conversação. Punham as notícias em dia, enviavam faxes.


Há quem conclua que a consideração da merda como algo de vergonhoso tem a ver com o aparecimento da lógica capitalista, porquanto era considerada como algo improdutivo para a sociedade. Embora possa ter sido verdade, o facto é que hoje tudo isso está ultrapassado, porquanto a merda é ´hoje fonte de cada vez maiores investimentos e rendimentos, do campo económico ao cultural.
Misturando merda humana com animal, expondo-a a certos micro-organismos num ambiente sem oxigénio e retirando as impurezas, obtemos bio metano, um gás energético que podemos fazer circular nas redes de gás natural, ou gerando eletricidade. Autocarros passam a funcionar com excremento. Bill Gates já bebe água extraída das fezes e propõe-se assim matar a sede aos africanos. A EcoFaeBrick produz ladrilhos de caca como material de construção 20% mais leve e resistente que o barro. Os holandeses do Poo Project fabricam papel a partir das bostas de vaca. Ouro e metais preciosos poderão ser extraídos da merda: cálculos dão que da merda produzida por um milhão de pessoas poderão obter-se metais no valor de treze milhões de dólares.


Vários são os artistas que começam a empregar merda nas suas obras, o que tem certas vantagens, especialmente em épocas de crise: é um material acessível, versátil e barato, passível de autoabastecimento, podendo usar-se como pigmento ou matéria-prima, sólida ou líquida.
Em 1961, Piero Manzoni cagou para noventa latas cada uma de trinta gramas, fechou-as hermeticamente, e vendeu-as como “Merda de Artista”, “algo genuinamente íntimo e pessoal” a 37 dólares cada, indexada ao preço do ouro. Em 2008 vendeu a última por cento e trinta e três mil dólares.
Numa performance célebre, em 1997 o colombiano Fernando Pertuz, barrou com a sua merda fatias de pão e comeu-as acompanhadas com uma taça de urina. A finalidade era a de “refletir sobre a vida num país onde diariamente muita gente se come literalmente a si própria"
Nos salões da Universidade de Viena, numa das performances exibidas por Günter Brus debaixo do título Kunst und Revolution, “faz com uma navalha cortes no peito e nos músculos. Urina, bebe a sua urina e vomita. De seguida, enquanto entoa o hino nacional austríaco mostra o processo de excreção anal. Unta o corpo com as suas fezes. Deita-se no chão e começa a masturbar-se”.


No campo da medicina, o topo é agora o transplante de fezes, procedimento muito eficaz na renovação da flora intestinal, aplicado no tratamento da doença de Crohn, colites ulcerosa, diarreia persistente. Estão ainda a fazerem-se experiências com ratos “tranquilos” e ratos “ansiosos”, em que através de transplantes de fezes acalmam os ratos “ansiosos”. Ou seja, afinal o estado de calma ou ansiedade que temos depende do conteúdo dos nossos intestinos, daí que o tratamento de substituição do Prozac para a depressão e ansiedade poderá vir a ser um transplante fecal. Já tomou hoje o seu comprimido de merda?

Afinal, para qualquer lado que nos voltemos, o mundo está sempre inundado de merda, pelo que o seu problema não é despiciente. Para aligeirar assunto tão pesado e pegajoso, nada melhor do que um soneto de Paulino António Cabral de Vasconcelos, abade de Jazente no Bispado do Porto, nascido em 1720:

 

“Cagando estava a dama mais formosa/ E nunca se viu cu de tanta alvura / Mas ver cagar, contudo a formosura / Mete nojo à vontade mais gulosa!
Ela a massa expulsou fedentinosa / Com algum custo, porque estava dura / Uma carta de amores de alimpadura / Serviu àquela parte mal cheirosa
Ora mandem à moça mais bonita / Um escrito de amor que, lisonjeiro, / Afectos move, corações incita
Para o ir ver servir de reposteiro / À porta onde o fedor e a trampa habita / Do sombrio palácio do alcatreiro!”

 

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