“A sedução do sonho da maneira de viver americana (american way of life)” “As forças armadas como serviço de proteção global de petróleo” “Há água em Marte”, agências noticiosas.
Pode dizer-se que a sedução do sonho da maneira de viver americana (american way of life) se tem vindo a estender e a conquistar o mundo. Quem não ambiciona, mesmo a troco de um emprego, ter uma casa, comida (nem que seja “pão e vinho sobre a mesa” como no caso português), carro, espetáculos para ver, poder expressar-se sem ninguém se importar com isso, consumir sem qualquer preocupação de futuro, eleger os seus representantes que lhe venham garantir a sustentabilidade desse mesmo modo de viver?
A Universidade de Michigan tem um Centro de Estudos para Sistemas Sustentáveis que se dedica a investigar, como o próprio nome o diz, as várias possibilidades de sustentabilidade da “nossa civilização”, partindo dos padrões de consumo atuais. Foi assim que por exemplo, no campo do sistema alimentar, concluíram que por cada caloria de energia que obtemos com a nossa alimentação, queimamos em média sete calorias (mais exatamente 7,3) de combustível fóssil (petróleo, gás natural, carvão). O que quer isto dizer?
Um pequeno-almoço de flocos de aveia (aquecidos juntamente com manteiga, leite e um pouco de sal para os transformar em porridge), framboesas congelados e uma chávena de café, fornecem-me 400 calorias. Aplicando o tal fator 7, significará que para obtermos essas 400 calorias “consumimos” 2.800 calorias de energia de combustível fóssil, ou seja, o equivalente a 115 gramas de petróleo. Desse consumo de energia, 20% é atribuído ao utilizado pela produção agrícola, incluindo a produção de fertilizantes químicos e pesticidas. Os 40% seguintes têm que ver com o transporte dos campos até ao vendedor na mercearia, e com os processos de feitura, embalagem, etiquetagem. Os processos de feitura absorvem 16.5%: o simples floco de aveia envolve a limpeza, vaporização, corte e enrolamento até se tornar comestível. Depois, meter dentro de sacos plásticos (feitos de petróleo), por sua vez metidos em caixas mais fortes cartonadas ou de lata. Os restantes 40% do consumo de combustível fóssil do meu pequeno-almoço têm origem no que gasto para manter a comida fresca e para depois a preparar. As cozinhas das nossas casas ou dos restaurantes, o arrefecimento ou congelamento dos produtos nos frigoríficos e a sua, quer usando fogões elétricos ou a gás, consomem muito mais energia do que supomos.
Imaginem agora este pequeno-almoço a ser tomado por mais 600 milhões de pessoas das emergentes novas classes médias chinesas e indianas: para terem o seu cafezinho, flocos de aveia e framboesas vão certamente ter de perfurar mais petróleo nos poços comunais da Terra. Haja petróleo.
Complementares e mais interessantes são os números relativos aos gastos reais em petróleo feitos pelos soldados americanos no Iraque e Afeganistão. Apenas tendo em conta a utilização de transportes, Humvees, carros de combate, camiões, helicópteros e ataques aéreos, o consumo médio diário por soldado é de 16 galões (61 litros) de petróleo. Considerando 162.000 soldados no Iraque, 24.000 no Afeganistão, e mais 30.000 nas regiões próximas (incluindo marinheiros nos navios de guerra no Golfo Pérsico), vamos já nos 3.5 milhões de galões (13 milhões de litros) de petróleo por dia necessários para as operações americanas de combate no Médio Oriente, o que dará 1.246 milhões de galões por ano (4.600 milhões de litros). Mas estes números não traduzem a realidade toda, na medida em que por cada soldado estacionado no teatro de operações há que contabilizar mais dois em trânsito, em treino ou prontos a serem transportados para a zona de guerra, que também consomem enormes quantidades de petróleo.
Mais: o Departamento de Defesa Americano (DoD) para manter operacionais todas as suas unidades estacionadas ao redor do mundo tem de movimentar milhões de toneladas de armas, munições, comida, combustível e outro equipamento. Possuindo a maior frota do mundo de aviões ultra modernos, helicópteros, carros de assalto, navios, veículos de combate, e sistemas de suporte, todos eles movidos a petróleo, o DoD tornou-se no maior consumidor de petróleo do mundo. Muito embora não se consiga saber com exatidão esse número, um relatório de 2007 de uma empresa de consultadoria da defesa, LMI Government Consulting, estimava que o Pentágono poderia consumir 340.000 barris (14 milhões de galões, 52 milhões de litros) por dia, mais do que o consumo total da Suécia ou da Suíça.
O estudo de 2007 (Transforming the Way the DoD Looks at Energy) que a LMI produziu a pedido do Office of Force Transformation do Office of the Under Secretary of Defense for Policy, conclui que o modo como o Pentágono encara a estratégia de um envolvimento militar global é incompatível com a diminuição mundial da extração de petróleo que se tem vindo a verificar (“o planeamento atual propõe uma situação na qual a capacidade operacional conjunta das forças possa vir a ser insustentável a longo prazo” […] “é possível que não possam ser executados os conceitos e capacidades operacionais que visem a nossa estratégia de segurança se não se considerarem as implicações energéticas”).
A reação do DoD a estas conclusões poderia ser de dois tipos. Uma reação em que se verificasse a aproximação a uma sociedade mais “verde”, onde se potenciasse o desenvolvimento e aquisição de sistemas de armamentos mais eficientes sob o ponto de vista do consumo energético, o que poderia permitir ao Pentágono assumir uma fachada mais amiga do ambiente ao mesmo tempo que manteria uma força de intervenção importante. Vão nesse sentido todas as recomendações “verdes” que se têm propalado: comer menos carne, comer orgânico, comer produtos locais, usar menos refrigeração, reduzir o desperdício, casas mais pequenas, ar condicionado a temperaturas médias, etc., etc.. A estas preocupações maternais somam-se os conselhos paternais sobre a inevitabilidade do precariato no emprego, dos baixos salários, da perca de regalias sociais, etc., etc.. Tudo isto é possível, leva tempo e os resultados obtidos são relativamente escassos, a não ser que se alterassem radicalmente os usos e costumes da sociedade, que no fim acabaria por já não corresponder à da ambicionada maneira de viver americana. A outra reação seria a de tentar conseguir uma fonte segura de petróleo para todo o sempre, através do controle sobre as fontes de fornecimento estrangeiras, nomeadamente dos campos petrolíferos e refinarias da região do Golfo Pérsico, no Iraque, Qatar, Arábia Saudita e Emiratos Árabes Unidos. Nitidamente foi esta a aproximação seguida. As Forças Armadas Americanas vêem-se assim transformadas num “serviço de proteção global de petróleo” para benefício das empresas americanas e dos consumidores, combatendo onde o têm de fazer e estabelecendo bases de forma a garantirem que tenhamos a nossa quantidade fixa diária de petróleo ao pequeno-almoço.
Esta aproximação tem vários perigos, o maior dos quais decorre do facto das forças armadas poderem acabar por entrar em guerras apenas para conseguirem garantir o combustível necessário para a sua própria sustentação, para os seus próprios foguetões, satélites, aviões, barcos, carros de combate.
Mas até lá tivemos sorte: felizmente parece que descobriram que há água em Marte.
“Matem os a todos, o Senhor saberá quais são os seus”, Amaury, Abade de Citeaux, 1209. “Somos todos Charlie”!? “Em Portugal, todos somos judeus”, Marquês de Pombal. “Agora somos um império, e quando agimos, criamos a nossa própria realidade”, Administração Bush.
Lisboa, 19 de Abril de 1506.
Há três anos que se fazia sentir uma forte seca em todo o reino. A fome e a peste estavam no seu auge: desde Janeiro morriam mais de cem pessoas por dia. Os suspeitos eram os do costume: os cem mil judeus vindos de Espanha, após os Reis Católicos os terem expulsado em 1492. D. Manuel, desejando casar-se com a infanta D. Isabel, filha dos Reis Católicos D. Isabel e D. Fernando, e viúva do seu primo príncipe D.Afonso, filho do defunto rei D. João II, vai de certa forma ser forçado a aceitar idêntica política de expulsão. A 24 de Dezembro de 1496 publica a lei com ordem de expulsão do reino para todos os judeus sob pena de morte natural e perca dos bens. Só então o casamento real se poderá vir a concretizar, o que aconteceu em Outubro de 1497 (um ano depois, em 1498, a Rainha D. Isabel morre de parto, mas D. Manuel não desiste e volta a casar-se de novo com uma outra filha dos Reis Católicos, D. Maria, irmã da defunta: hábitos, crença, política, ambições, provincianismo).
Como sabia da importância dos judeus para a economia e bom funcionamento do reino, D. Manuel vai utilizar um subterfúgio que lhe permitiria manter os judeus em Portugal, o que só poderia ser feito através da conversão. Para os obrigar a converterem-se vai ameaçá-los (e não só, evidentemente) com a retirada (rapto) dos filhos menores de 14 anos e posterior entrega a famílias cristãs para serem educados, o que levou a que grande parte dos judeus se vissem forçados a permanecerem em Portugal, agora convertidos em “cristãos-novos”. O facto é que em 1506 oficialmente já não existiam judeus em Portugal.
Esta fixação na atribuição de culpas aos judeus, para além do antagonismo religioso, tinha a ver com alguns fatores práticos, nomeadamente o de serem o grupo menos afetado pela seca e peste. Tal tinha que ver com ritos mais higiénicos, com o facto de os seus ofícios serem quase todos no comércio e artesanais, portanto menos vulneráveis à seca, e pelos altos cargos que ocupavam na Coroa, especialmente nas finanças.
Voltemos a 1506. Para fugirem à peste, o rei e a corte foram para Abrantes. Ficara também decidido que todos os dias 15 de cada mês se faria uma procissão de penitência pelas ruas de Lisboa em direção à igreja de S. Domingos, onde se celebraria missa solene pelo fim da seca, clamando pela divina misericórdia. E assim sucedeu naquele dia 15 de Abril da Semana Santa. E eis que aparece o que se julgou ser um reflexo num cruxifixo de Cristo. A crença de que se estava em presença de um milagre começou a propagar-se, levando cada vez maior número de pessoas à procissão e à igreja. No dia 19 de Abril alguém alvitrou que poderia tratar-se de um reflexo de uma vela ou de um raio de sol. Alguém o identificou como sendo cristão-novo, e de imediato foi levado para fora da igreja aos gritos de traidor e judeu, onde foi brutalmente assassinado juntamente com um seu companheiro. Outros decidiram queimá-los ali mesmo, o que só incitou ainda mais a turba que julgou chegado o momento para acabarem de vez com os causadores de todo aquele mal, pelo que se precipitaram para os bairros judeus. Depois dos assassinatos, seguia-se o roubo e a pilhagem. Só naquele dia foram queimadas e mortas quinhentas pessoas. No dia seguinte, ainda fumegavam as fogueiras, quando apareceram dois frades dominicanos, que erguendo alto os crucifixos, percorreram as ruas gritando “Heresia! Heresia!”, prometendo a absolvição dos pecados mortais dos últimos cem dias a quem denunciasse ou matasse hereges.
Eis o relato de Damião de Gois (1502 – 1574) na Crónica d’El-Rei D. Manuel:
“ […] juntos mais de quinhentos começaram a matar todos os cristãos-novos que achavam pelas ruas, e os corpos mortos e meios vivos lançavam e queimavam em fogueiras que tinham feitas na Ribeira e no Rossio, ao qual negócio lhe serviam escravos e moços que com muita diligência acarretavam lenha e outros materiais para acender o fogo. No qual Domingo de Pascoela mataram mais de quinhentas pessoas. […] Segunda- feira continuaram nesta maldade com maior crueza. E por já nas ruas não acharem nenhuns cristãos-novos, foram cometer com vaivéns e escadas as casas em que viviam, ou onde sabiam que estavam, e tirando-os delas a arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres e filhas os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas, fendendo-os em pedaços e esborrachando-os de arremesso nas paredes. Nas quais cruezas não se esqueciam de lhes meter a saque as casas, e roubar todo o ouro, prata e enxovais que nelas achavam, e logo foram às igrejas, onde alguns se tinham refugiado, e dali tiravam os homens, mulheres e crianças inocentes escondidos nas capelas e abraçados às imagens, tudo queimando sem temor a Deus. Neste dia mais de mil almas pereceram nas fogueiras da cidade e ninguém se atreveu a resistir, os poucos afortunados que se salvaram estavam fora dela, por causa da peste.”
Estima-se que perderam a vida neste massacre da Semana Santa cerca de quatro mil pessoas.
Cairo, Outubro de 1798.
No dia 1 de Julho de 1798, os exércitos de Napoleão desembarcaram no porto de Alexandria. Ao todo 36.000 soldados, milhares de marinheiros, centenas de cientistas (lembram-se da descoberta da Pedra de Roseta que veio permitir a descodificação dos hieróglifos?), que ouviram Napoleão dizer-lhes, para além do famoso e populista “Do alto destas pirâmides quarenta séculos nos contemplam”, das razões que faziam daquela invasão o início de uma nova época histórica: “ Soldados de França! Vão agora iniciar uma conquista com efeitos incalculáveis para a civilização e para o comércio […] em breve deixarão de existir os Mamelucos, que favorecem exclusivamente o comércio dos Ingleses, cuja extorsão oprime os nossos mercadores, e que tiranizam os infelizes habitantes do Nilo.”
Curiosamente, a importância desta arenga de Napoleão reside muito mais nas justificações dadas para uma invasão imperialista a outro Estado, do que para marcar o advento de uma nova época. A culpabilidade do outro estado por colaborar com um inimigo da república, por ter posto em causa os interesses positivos da nação, e pela sua falta de legitimidade resultante da atuação despótica para com o seu povo. A trindade das justificações que continuam a serem usadas. Outro antecedente consequente.
Duas semanas e meio após o desembarque, o exército Francês avançava para o Cairo, seguindo o Nilo. Encontrou uma pequena resistência oferecida por 1.800 camponeses armados com mosquetes. Depois de alcançarem os muros da vila, dispararam contra a multidão, tendo morto cerca de 900 homens. Depois de confiscarem todos os camelos, burros, cavalos, ovos, vacas, carneiros, pegaram fogo às palhotas que restavam, com a finalidade de “dar uma lição a esse povo meio selvagem e bárbaro.” O Exército de Bonaparte entra no Cairo a 24 de Julho. E começa logo a reorganizar a sociedade: um Instituto Egípcio para o avanço da ciência, reforma da polícia, dos tribunais, e novas leis. Mas o fundo de terror mantinha-se. Envia para o General Jacques Menou, comandante da guarnição do porto de Roseta, a seguinte missiva: “Só é possível lidar com os Turcos (Egípcios) com grande severidade. Todos os dias mando cortar cinco ou seis cabeças nas ruas do Cairo […] porque eles, só obedecem se tiverem medo.” Para as regiões fora do Cairo a ordem de Napoleão para os seus generais era “Queimem as vilas! Façam disso um exemplo de terror.”
Mas o confronto principal era o que se iria produzir no Cairo. Em Outubro, a maior parte da cidade estava mobilizada para atacar os mais de 20.000 Franceses que a ocupavam. O centro da revolta estava localizado em al-Husayn, onde se concentravam 14.000 estudantes da madraça (seminário) de al-Azhar e os mercadores mais ricos. Ao mesmo tempo estalava uma rebelião de camponeses e Beduínos contra pequenas guarnições francesas que se encontravam à volta do Cairo. Napoleão não hesita, e vira a sua artilharia para dentro da cidade, e arrasa qualquer núcleo de resistência, por mais pequeno que fosse. Depois da batalha, mandou executar todos os rebeldes que sobraram. Dos arredores, os seus oficiais trouxeram em sacos novecentas cabeças decepadas de revoltosos e despejaram-nas ostensivamente frente a uma multidão de Cairotas, numa das maiores praças da cidade. Julgo que nem ainda o EI conseguiu igualar de uma só vez o número, mas lá que têm um antecedente, têm.
Europa, Setembro 2015.
Felizmente nestes últimos séculos muito progredimos. Perante algumas mortes simultâneas de jornalistas, em defesa da liberdade de qualquer coisa que já não nos lembramos ou que já não sabemos o que é, sucederam-se grandes manifestações irmanadas pelo conceito de que “Eu sou Carlinhos”. Na realidade, tem-se visto, todos nós somos Carlinhos, se não formos refugiados, se não formos pretos, se não formos ciganos, se não formos comunistas, se não formos sindicalistas, se não formos desempregados, se não formos reformados e velhos, se não formos saudáveis, se não formos, se não formos, se não formos. É isso o que somos: não somos. Se ao menos fôssemos o que não somos já seríamos alguma coisa.
Mas até nisto de sermos Carlinhos existem antecedentes. A onda de antissemitismo surgida após o terramoto de 1755 levou a que muitos dos influentes pedissem ao rei D. José que, perante uma legislação que iria eliminar a distinção entre cristãos-novos e velhos, houvesse uma forma para os distinguir, um emblema, umas palavras. D. José deu instruções ao Marquês de Pombal para lhe apresentar os vários emblemas ou dizeres. Dias depois Pombal levou ao Rei não três dizeres mas apenas um igual para todos: “Para o judeu, para mim e para Vós mesmo. Em Portugal, todos somos judeus.”
Claro que sabemos que o altruísmo de Pombal estava ligado à defesa dos convertidos que financiavam a reconstrução de Lisboa. Já o do Carlinhos temos dificuldade em ver, é o tal problema do cego que não quer ver.
“Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode […] Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males?”, Epicuro. “O mundo quer ser enganado, que seja pois enganado”, Sebastian Brant (1494-1533). “Quanto mais inteligência possuímos, tanto mais tendemos a naufragar no mar dos absurdos”, Charles Richet. “A palavra poderia ser de Hitler, se este tivesse aprendido latim”, Ernst Weiss.
Perante a perplexidade de pensarmos um Deus criador e infinitamente bom com a existência do mal, da dor, do sofrimento e da injustiça, Leibnitz (1646 – 1716) denominou de Teodiceia o seu tratado “sobre a liberdade do homem e a origem do mal”, numa tentativa de por de acordo a existência de Deus com o aparecimento do mal e do resultante sofrimento. Em todos os casos, trata-se sempre de um sofrimento sentido muito para além da dor física. Tal como a dor anunciadora da morte, estamos aqui perante a necessidade de uma interpretação metafísica da dor.
Mas nem sempre as variadíssimas vias de aproximação a Deus pelo sofrimento e dor seguiram este caminho de interpretação intelectual. Muitas delas estiveram mesmo na origem de variadas perversões.
Foi o caso da monja Margarita Maria Alacoque (1647 – 1690) do convento de Pary-le-Monial na Borgonha, tida sempre como uma fiel seguidora muito asseada a quem repugnava qualquer resquício de sujidade, e que de um dia para o outro, começou a comer o vomitado de uma doente arrependida, e os excrementos de uma doente com disenteria. Afirmava ela que Jesus lhe tinha aparecido e confrontado com a sua exagerada preocupação com a limpeza que a impedia de alcançar a comunhão com o outro. Com esta sua nova atitude pretendia mostrar que boca e ânus, limpo e sujo, tudo era o mesmo, tudo era obra de Deus. Na sua biografia escreve que “tinha um caráter tão delicado que a menor sujidade lhe alterava o coração […] Jesus admoestou-me vigorosamente por esta minha debilidade o que me levou a encher-me de coragem e um dia comecei a limpar com a língua o chão sujo pelo vómito de um doente. Deu-me tanto prazer que quereria fazê-lo todos os dias […] Uma vez senti uma certa repugnância quando servia um doente que estava com disenteria. Jesus admoestou-me tão severamente, que para corrigir o meu erro, enchi a boca com os excrementos, e tê-los-ia engolido se a Norma não me impedisse de comer fora das refeições”. Em 1920, a Irmã Margarita foi santificada pelo papa Bento XV.
Também Catarina de Siena (1347 – 1380) após ter bebido o pus que brotava dos peitos de uma mulher cancerosa ouviu Cristo dizer-lhe “Minha bem-amada, suportaste por mim duros combates e com a minha ajuda saíste vitoriosa. […] Não só depreciaste os prazeres sensuais, mas também conseguiste vencer a natureza ao beber com alegria, por amor a Mim, uma beberragem horrível. Pois bem, uma vez que realizaste um ato que excede a natureza, quero dar-te um licor que excede a natureza”. Então, Cristo abre a ferida no seu peito e dá-lhe a beber do seu sangue. A Irmã Catalina foi santificada em 1461 por Pio II. Juntamente com São Francisco de Assis, é declarada patrona principal de Itália em 1939 por Pio XII, sendo elevada a Doutora da Igreja em 1970 por Paulo VI. Em 1999 João Paulo II faz dela Santa Patrona da Europa.
A peste negra que apareceu durante a Idade Média era considerada como castigo divino devido aos pecados cometidos pelas gentes. Para aplacarem a ira divina, espalhou-se o hábito da flagelação, onde grupos inteiros se impunham regras como o de se absterem de sexo, de comerem qualquer alimento supérfluo e de se autoflagelarem açoitando-se nas costas, a fim de “manifestarem e sentirem em si mesmos que a carne era desprezível, que o corpo era de deficiente composição, e pedirem assim que lhes fosse concedido outra corporalidade”. Na prática, as dores provocadas pelos açoites repetidos acabavam por fazê-los entrar em transe, deixando assim de sentirem o próprio corpo. Só que aos poucos, quer porque os açoites começassem a baixar das costas para regiões mais abaixo o que acabou em afagos mútuos e orgias, quer porque essa libertação do corpo acabasse por deixar espaço para o aparecimento de um pensamento ‘verdadeiro’ que preconizava o anúncio da vinda do Anticristo, esses “transes” levaram a Igreja a substituir esta “idolatria do corpo”, esta “punição exuberante da carne”, por um autocontrole espiritual baseado no amor e na confissão. A flagelação como obra boa para merecer a Cristo rapidamente passou a ser considerada como perversa.
Mas se não se acreditar na existência de Deus, ou se Deus não existir, e se portanto não houver um sentido de desígnio superior, como fazer para se suportar essa dor?
Durante a Primeira Grande Guerra a resposta veio com as políticas nacionalistas, rápidas e concludentes na ocupação do espaço deixado vago: os enormes sofrimentos da guerra só fariam sentido se fossem considerados como sacrifícios pela pátria.
Para a direita, este problema foi agravado por ter perdido a guerra. Como explicar essa dor agora sem sentido? Rapidamente se difunde a teoria da punhalada pelas costas atribuída aos políticos que abandonaram os militares. A pregação de Hitler vai nesse sentido. A sua solução: forjar um homem novo através do endurecimento heroico, da afirmação e orgulho, que se tornasse num bloco dotado de razão. Só assim, através da sua frieza, é que poderá manter-se vigilante no meio dos horrores. A superação viria do abandono da compaixão em proveito de uma frieza contemplativa. Para a esquerda, o fim da guerra imperialista, permitiria o avanço para uma sociedade em que os sacrifícios pela pátria nunca seriam em vão, na construção de um homem novo empenhado num futuro de bem-estar e liberdade.
Fora destes nacionalismos políticos, muitos intelectuais se manifestaram de variadas formas, numa amálgama muito característica da época.
No seu pequeno livro L’Homme stupide escrito em 1921, Charles Richet, professor de Fisiologia na Faculdade de Medicina de Paris, prémio Nobel (1913), refere-se desta forma à Grande Guerra: “Não são os mortos e as ruínas que me levam a dizer que a guerra é a grande infame. É que os recém-nascidos substituem os mortos; as ruínas restauram-se; as árvores crescem; as colheitas renascem. Mas há uma realidade sinistra que nada na eternidade dos tempos poderá apagar: é a dor.” Fervoroso pacifista vê a guerra como uma loucura humana que o leva a duvidar da classificação antropológica do homem como homo sapiens, propondo em sua substituição a de homem estúpido, homo stultus. Dedica alguns capítulos à enumeração e explicação das imbecilidades humanas: mutilação, circuncisão, castração, drogas, tabaco, álcool, modas, joalharia, guerra, armamento, superstição, culto dos mortos, tauromaquia, destruição de espécies animais e vegetais, celibato, monarquia, servilismo, sociedade de classes, doenças causadas por negligência, e outros. À boa maneira estoica, clássica, discorre sobre o culto dos mortos, erigindo como exemplo a morte nobre e serena de Sócrates. Preconiza uma indiferença do ser humano perante a morte, caracteriza todo o culto dos mortos como estupidez e alienação supersticiosa, muito embora admita o luto dos familiares. Para ele, o nosso corpo morto, “os nossos trapos terrestres”, não merece qualquer veneração. E no entanto, os dois primeiros capítulos do seu livro são expressamente dedicados à demonstração da estupidez dos negros e à nulidade das culturas das raças amarelas e vermelhas. É pouco dizer que “no melhor pano cai a nódoa” porque tal nada explica, limitando-se apenas a confirmar um facto. Uma das características daquela época tão iluminada residia no facto de aparecerem simultaneamente com um pensamento inteligente e avançado formas de verdadeira “estupidez”. Já Nietzsche notara o aparecimento de uma “vontade de noite”, de uma tendência “para apagar a luz, para se deitar no chão, para ser estúpido”. É como um não se querer avançar, uma recusa.
Da mesma época, 1916, é também o livro do advogado americano Madison Grant (1865-1937) intitulado The Passing of the Great Race (A Queda da Grande Raça), que Hitler dizia ser “a sua bíblia”. O livro era sobre a decadência da Grande Raça branca. Devido à imigração indiscriminada as raças inferiores estavam a destruir a América. Segundo ele, dividia os “caucásicos” (já de si muito superiores aos “negroides” e “mongoloides”) em três classes. Os melhores eram os “nórdicos”, logo seguidos dos “alpinos”. Por último os “mediterrânicos” preguiçosos e apalermados, como os gregos, italianos e espanhóis. A sua solução: “um rígido sistema de seleção através da eliminação dos mais débeis ou incapacitados”. Nem seria necessário matá-los, bastava esterilizá-los. Em cem anos o problema estaria resolvido. Esta corrente eugénica tinha tanta aceitação pública que poucos anos depois o Supremo Tribunal americano declarou constitucional a esterilização dos “débeis mantais”. Na década seguinte perto de 60.000 mulheres foram esterilizadas. Como consequência desta “tendência”, em 1924 o governo americano publica o Inmigration Act onde estabelece um sistema de quotas que impunha limites à chegada de italianos, polacos, chineses, japoneses e outros.
Mas havia quem estivesse atento. Ernst Weiss escreve em 1938:
“Aos olhos dos estúpidos, Deus é estúpido. O povo quer um Deus estúpido. Um Deus que compreendesse a química e a física da relatividade não seria do seu gosto. Lutero dizia: Deus stultissimus. A palavra poderia ser de Hitler, se este tivesse aprendido latim”.
“A moda nunca o é. Ela existe sempre num permanente estado de vir a ser”, George Simmel. “A moda implica sempre uma certa desqualificação do passado” “Todas as indústrias se esforçam por copiar os métodos dos grandes costureiros. É a chave do comércio moderno”, L. Cheskin.
Fredéric Tcheng realizou em 2014 o filme Dior e Eu que atualmente se encontra em exibição em Portugal. Pareceu-me interessante integrá-lo na faceta mais geral sobre o conhecimento do que na realidade é a moda, em vez de ficarmos só pelas imagens superficiais, ainda que sedutoras, do produto tido como acabado, que nos são mostradas.
Por Moda entendemos todo o sistema que inclua o culto da novidade, da imitação e da obsolescência de modelos, da organização do efémero, do superficial e da sedução, das metamorfoses incessantes e dos seus exageros. Neste sentido dificilmente se poderá dizer que a moda tenha sempre existido, em todos os tempos e em todas as civilizações. Não que os antigos não se vestissem, para o que basta recordar o vestido-túnica do Egito, o peplos da Grécia, a toga e a túnica de Roma, o kimono do Japão. Só que todos estes trajes se mantiveram praticamente inalteráveis. As pequenas variações introduzidas (pequenos apontamentos de esteticismo e de aprimoramentos frívolos que aqui e ali vão surgindo: os Gregos passam a cortar a barba porque Alexandre o faz; em Roma, os homens passam a frisar e a pintar o cabelo, e as mulheres passam a exibir penteados altos e complicados, cobertos de diademas) não provinham de uma lógica autónoma estética, mas antes de influências ocasionais ou de dominação. Pode-se dizer que até ao século XIV permanecem os mesmos tipos de decoração, de acessórios, de penteados, transmitidos tradicionalmente de geração em geração. O mesmo se passa com o vestuário, onde se mantém sempre o traje comprido e flutuante para os dois sexos. Não aparecem novas estruturas e formas de vestuário, só alterações das existentes. E poderiam ter aparecido. Quem não se lembra da Wilma dos Filinstones que em plena Idade da Pedra exibia, ela e a família, trajes diferentes para as várias ocasiões? Ou seja, mesmo com meios escassos, seria possível fazer moda na Idade da Pedra. O que temos de entender é porque é que tal não aconteceu.
Sabemos que até metade do século XIV as sociedades eram muito conservadoras, organizadas para conter e mesmo negar qualquer dinâmica de mudança e da história. O que reinava era o prestígio do antigo e a imitação dos ascendentes. Ora a moda impõe o culto da novidade e a imitação de modelos do presente e do estrangeiro. O presente é que passaria a inspirar o respeito, deixando o antigo de ser venerável. A moda implica sempre uma certa desqualificação do passado, pelo que o seu aparecimento nessas sociedades seria quase uma impossibilidade. Mas essas sociedades não estavam tão imóveis como se pretendia fazer crer. Atentemos em alguns sinais: a cultura cavaleiresca e cortesã com a sua aspiração ao gozo dos prazeres terrestres, ao prazer de agradar e ao prazer de surpreender; o aparecimento, no campo da arte, das visões anatómicas do tronco, membros e dos nus; o aparecimento do retrato, do autorretrato e das obras autobiográficas; o aparecimento dos humanistas que, ao acentuarem o medo de envelhecer, a nostalgia da juventude, a proximidade da morte, vão corporizar uma nova sensibilidade coletiva de procura acelerada dos prazeres. Estavam reunidas as condições para a tomada de consciência de uma identidade subjetiva, para uma vontade de expressão da singularidade individual e da exaltação da individualidade. Quando a sociedade reconhecer o poder dos homens para a modificar e quando os homens acreditarem em si como agentes da mudança, vai dar-se o aparecimento do indivíduo livre e criador, dominador e extasiado perante as suas próprias capacidades, do “êxtase frívolo do Eu”. É esta consagração da individualidade e da novidade que vai permitir substituir a referência do passado pela do presente. A partir daí, a diferenciação individual passa a ser o sinal da excelência social. É o aparecimento do reino da moda.
Contrariamente ao século XII para o qual se dizia que “Tudo o que muda perde valor”, a partir de agora tudo o que não mudava é que perdia valor. O novo valor passava a ser o da Novidade. A partir daqui a moda passa a ser “teatro permanente de metamorfoses fugidias”. Na prática, verificamos que a partir de 1350 se dá uma modificação na estrutura dos trajes e uma separação radical entre os trajes masculinos e femininos: o vestuário masculino passa a ser curto, justo no peito e nas costas, desenhando o corpo, valorizando as pernas envolvidas em meias compridas; o vestuário feminino passa a modelar o corpo, sublinhando as ancas, aparecendo os decotes nos ombros e no peito. Trata-se de exibir os encantos do corpo, acentuando ainda a diferença entre os sexos. A finalidade é a de seduzir. Esta conquista individual de ostentar um gosto pessoal, de inovar com audácia e originalidade, restringe-se às classes superiores, repousando inicialmente na arbitrariedade dos grandes dignatários (reis e afins). A moda surge como um desejo de afirmar a personalidade própria do indivíduo, embora ainda só nas classes superiores. Aos poucos, estas alterações do vestuário começam a ser cada vez mais frequentes, mais extravagantes e arbitrárias, passando a constar como regra dos prazeres da alta sociedade. É no vestuário que o que é moda mais se reflete, porque é aí que mais facilmente se pode fazer notar este jogo das aparências. No século XVI, considerando a atenção e importância que o efémero das alterações do vestuário passara já a ter, Matthäus Schwartz, então diretor financeiro dos Fugger, vai compor o primeiro catálogo da moda onde, num livro a cores, desenha (é o primeiro figurino) todos os modelos existentes desde a sua infância. Por isto, há quem considere a moda como um esquema de distinção social que depois se expandiu de cima para baixo, em virtude dos indivíduos desejarem assemelhar-se aos que se lhe apresentam como tendo mais prestígio ou estatuto. Contudo, tal não chega para explicar a lógica da inconstância, da extravagância e o ritmo acelerado característico da moda. Dito de outra forma, o consumo ostensivo, luxuoso e fútil das elites, apenas para suscitar admiração e representar um estatuto social, poderá dar origem à sumptuosidade mas nunca àquelas inúmeras novidades que fazem a moda.
Durante muito tempo, o vestuário de moda, restringiu-se à nobreza. Para que esse privilégio fosse mantido, face à ascensão da burguesia e seus desejos de promoção social e aceleração dos fenómenos de imitação por contágio, proclamaram-se vários éditos sumptuários que proibiam às outras classes de se vestirem como os nobres. Sem resultados: a partir do século XVI até a pequena burguesia já imitava o vestuário da nobreza; no século XVIII, até artesãos urbanos usavam peruca! Finalmente com a Revolução, dá-se a abolição das corporações (1791), e a publicação de um decreto (1793) em que se declara o princípio democrático da liberdade de vestuário para todas as classes! A abolição das corporações pela Constituinte vai libertar a produção do vestuário dos seus constrangimentos: até aí, o alfaiate, a costureira, estavam proibidos de armazenarem ou de venderem tecidos, o que os impedia de terem trajes feitos de antemão.
Até aqui, podemos constatar o aparecimento de duas características da moda. A primeira é que no seu caminho ambíguo vai por um lado atuar como um discriminante social apoiando a lógica da ostentação dos símbolos do poder, e por outro lado vai aparecer como agente de democratização social ao esbater as distinções estabelecidas, permitindo a igualização de utilização. A segunda é que a moda, contrariamente à tradição, requer sempre a intervenção individual livre e caprichosa.
A segunda grande transformação da moda vai dar-se na última metade do século XIX, com o aparecimento em 1858 da Alta-costura, criação de luxo feita à medida, introduzida pelo inglês Charles Frederick Worth (1826 – 1895) na sua casa de Paris, e com o aparecimento da confeção industrial, produção de massa a baixo custo, imitando modelos de Alta-costura (a máquina de costura aparece em 1860).
Até Worth, o alfaiate e a costureira, trabalhavam sempre em ligação direta com o cliente para elaborarem a toilette, sem liberdade criativa, apenas sujeitos à vontade do cliente. Com Worth, o vestido é inventado e concebido pelo profissional, a partir da sua inspiração e gosto. O cliente passa a simples consumidor, ainda que de luxo, e o costureiro passa a artista. Esta alteração organizacional da moda está na origem do aparecimento da moda no sentido atual, e o da Alta-costura.
Com Worth, pela primeira vez os modelos inéditos são apresentados aos clientes em salões luxuosos, não em desenhos, mas em modelos vivos (as futuras “manequins” então chamadas de “sósias”). Só depois de serem escolhidos pelos clientes é que eram executados à medida. Estava feita a junção entre uma empresa de criação com um espetáculo publicitário.
Em 1900 existem já 20 casas de Alta-costura. Com o fim da Grande Guerra, o progresso da indústria química que permitiu a obtenção de cores mais ricas, a divisão acrescida do trabalho e a nova maquinaria, a Alta-costura afirma-se. Em 1920 esta indústria de luxo ocupa o segundo lugar das exportações francesas, representando 15%. A partir de 1920, com a simplificação dos trajes introduzida por Chanel, a moda torna-se menos inacessível, por ser mais fácil de imitar. Ela e as suas criações eram vistas como “O Ford com assinatura Chanel”, ou “Chanel lançou o ‘género pobre’”! Cá está a tal característica da moda que, paradoxalmente, vai fazer com que a própria Alta-costura, indústria de luxo por excelência, vá contribuir para a democratização da moda. Um dos feitos conseguidos pela Alta-costura é de, ao mesmo tempo que se encontra hipercentralizada e sediada em Paris, ser hegemónica, ditando uma moda que é simultaneamente internacional e seguida por todas as mulheres. A indústria da moda surge assim como primeira manifestação dum consenso de massa, homogéneo, normalizado, indiferente às fronteiras, uniformizada sob a égide de Paris.
Mas Worth faz algo que se vai revelar ainda mais importante para toda a indústria futura, para qualquer indústria. Impõe uma organização em pirâmide, em que o vértice é o studio a quem cabe elaborar os modelos, que são depois enviados para os diferentes ateliers com as suas diversas especializações, cada um com as suas várias hierarquias. Vai assim separar as funções de direção e execução, de conceção e fabricação, dando origem a uma lógica que irá presidir à organização futura de fábricas, hospitais, escolas e força militares. Ou seja, vai colocar o processo da moda na origem da substituição da ordem artesanal pela moderna ordem burocrática.
A diferença é que para a moda, essa substituição é feita em nome do gosto e da novidade. “Em vez da produção de objetos úteis, a Alta-costura propõe a glorificação do luxo e o refinamento frívolo. Em vez de um traje uniforme, propõe a pluralidade de modelos. Em vez de uma programação e de um código regulamentar, propõe a iniciativa pessoal. Em vez da coerção regular, impessoal e constante, propõe a sedução das metamorfoses da aparência.”
Mais uma vez adiantando-se a todas as outras indústrias, a moda propõe antes um processo de sedução como lógica do poder. Esta sedução, com a teatralização e sobre-exposição do produto, com a multiplicação de protótipos e a possibilidade de escolha individual (a tal “liberdade de escolha”), irá estimular e desculpabilizar a compra e o consumo.
Outra caraterística pioneira da Alta-costura é a indeterminação resultante do facto de os costureiros não saberem de antemão quais vão ser os modelos que irão ter sucesso, ou mesmo qual vai ser a moda (do gosto do público, das escolhas dos grandes armazéns, das “estrelas” de cinema). Daí o programa da moda contemplar uma panóplia de escolhas, onde se tenta incluir os gostos imprevisíveis e diversificados desses agentes. É o que as outras indústrias tentam hoje fazer através da personalização da escolha e da liberdade combinatória dos seus produtos (a Renault tem mais de 200.000 opções de cores, acessórios, e modelos; a Nike e a Adidas têm centenas de modelos training de cores diferentes, e personalizáveis).
Por outro lado, a Alta-costura, embora estando sempre envolvida num processo de inovação estética, não deixa contudo de ser uma empresa industrial e comercial de luxo, cujo objetivo é o lucro, e cujas criações intermináveis produzem uma obsolescência propícia à aceleração do consumo. Exatamente por isso, apesar do seu caráter de indústria de luxo destinada a tornar ostensiva a hierarquia social, a Alta-costura aparece como uma organização individualista democrática, na medida em que vai adaptar a sua produção de acordo com os ideais do indivíduo, como melhor se verá no seu terceiro momento da revolução democrática do pronto-a-vestir dos anos 50-60 do século passado. O pronto-a-vestir, produção industrial de vestuário acessível a todos, inspirado nas modas e tendências do momento, vai ter uma grande expansão a partir dos anos 60. Com o aparecimento da nova vaga de estilistas (Cacharel e o camiseiro em 1960, Mary Quant e a minissaia em 1963, Ellie Jacobson, Kenzo, Montana, Gaultier, Issey Miyaké) o pronto-a-vestir vai começar a preparar-se com dois anos de antecedência, começando os seus criativos a definir os seus próprios temas e tendências de moda, oferecendo produtos com boa qualidade estética a bons preços.
A Alta-costura apresentava grande homogeneidade do gosto, comandando a existência de tendências anuais relativamente unificadas. A sua ambição era incarnar superiormente a elegância, o luxo, valorizar uma feminilidade preciosa e ideal. É este consenso estético que vai ser posto em causa com o aparecimento da moda desportiva, das modas jovens marginais e dos criativos do pronto-a-vestir. A Alta-costura vai perder o seu estatuto de “avant-garde” e não só: enquanto a Chanel tinha 2500 empregados antes da 2ª Guerra, o total de empregados atuais em toda a Alta-costura é de 2000, reduzindo-se o número de clientes a 3000 com apenas algumas dezenas de encomendas para algumas casas, centenas para as mais cotadas. Cardin é o primeiro a reagir, quando abre o primeiro espaço de pronto-a-vestir da Alta-costura em 1963, logo seguido de Courreges com os seus valores juvenis e Saint-Laurent com as calças de cerimónia, safaris e jeans!
As casas de Alta-costura reconhecem que só são rentáveis pela combinação do seu pronto-a-vestir com os seus contratos de licenciamento (para cosmética, óculos, canetas, lingerie, malas, sapatos, perfumes, etc.,) através da venda da sua marca (griffe). Ninguém vai hoje a uma passagem de modelos da Alta-costura para ver o “último grito” da moda. A vocação da Alta-costura é agora a de perpetuar a tradição do grande luxo, da virtuosidade da confeção e promover a política de marca para vender o seu pronto-a-vestir e artigos da sua griffe. Ou seja, o luxo já não é a incarnação privilegiada da moda: o luxo supremo e a moda separaram-se. Na prática, o grande público já não distingue as griffes da Alta-costura das marcas especializadas (Levi’s, Rodier, Benetton, etc.) nem os criadores da Alta-costura do das marcas especializadas (Kenzo, Cacharel, etc.).
Tais alterações têm diversas causas como a elevação do nível de vida, a cultura do bem-estar, do tempo livre e da felicidade imediata, o aparecimento de uma cultura juvenil ligada ao baby boom e ao poder de compra dos jovens, de si menos preocupados com a perfeição e mais preocupados com a originalidade e impacto imediato, ao acesso das mulheres ao ensino superior e a profissões de gestão. São novos valores de uma cultura de massa hedonista, não conformista e jovem, que transforma o jovem no protótipo da moda. Notou muito bem Y. S. Laurent esta inversão de comportamento quando dizia que “Antes, uma rapariga queria parecer-se com a mãe. Agora, é o contrário”.
As primeiras modas jovens apoiadas num anticonformismo exacerbado, dirigido não só contra o mundo dos adultos mas também ao de outros jovens, com um forte desejo de emancipação (reflexo do avanço do ideal individualista) aparecem após a 2ª Guerra, em forma ainda insipiente com os beatniks, e já com bastante mais expressão a partir dos anos 60, com os hippies, punks, rasta, skinheads, etc.. Estas modas marginais vão-se afirmar como rutura contra a moda profissional. Começa-se a assistir a uma apropriação da iniciativa da aparência feita a partir de frações da sociedade civil, conquistando uma autonomia, revelando uma enorme criatividade relativamente à moda, acabando mesmo por servir de inspiração aos criadores consagrados para renovarem o espírito das suas coleções. Interessa cada vez menos andar segundo os últimos gritos da moda, ou dar uma de social. O que importa é tornar-se apreciado, espantar os outros, inquietá-los, ser jovem. O vestuário é cada vez menos um sinal de honorabilidade social. A relação com o Outro é que passou a ser importante, pelo que a sedução se sobrepõe à representação social. Também aí Y. S. Laurent acertou: “As pessoas já não lhes interessa serem elegantes, querem é seduzir”.
Deixa de haver moda, passa a haver modas. Tudo é possível de se misturar, nada é interdito. Tal como para a arte moderna, com o seu experimentalismo, onde não há regras estéticas comuns. Assistimos ao fim da imposição unanimista da moda e das tendências ditadas pela Alta-costura. O modelo segundo o qual os artigos novos se difundiam a partir das classes superiores passando progressivamente para as classes inferiores acabou. Agora, todas as classes se encontram submetidas ao reino do efémero, da sedução e da diferenciação marginal, ou seja submetidas ao reino da moda. A obsolescência, a sedução e a diversificação são as leis a que obedecem a produção e o consumo de massa de uma sociedade de consumo. Daí que se possa dizer que, estruturalmente, é a generalização do processo da moda que a define. Todos os princípios de vanguarda utilizados pela Alta-costura fazem hoje parte das indústrias de consumo: iniciativa e independência do fabricante na elaboração dos produtos, variação regular e rápida das formas, desmultiplicação dos modelos e séries. Já em 1950, L. Cheskin fazia notar que “Todas as indústrias se esforçam por copiar os métodos dos grandes costureiros. É a chave do comércio moderno”.
Para Lipovetsky, “A sociedade de consumo é programação do quotidiano, manipulação racional da vida individual e social, em que tudo se transforma em artifício e ilusão ao serviço do lucro capitalista e das classes dominantes”. Para Marcuse esta nova sociedade é definida como “a racionalidade da irracionalidade”, para Debord como “a organização totalitária da aparência e alienação generalizada”, para Galbraith como “condicionamento global”, para Lefebvre como “sociedade terrorista” e para Baudrillard como “sistema fetichista e perverso reconduzindo à dominação de classe”.
Contudo, a cultura hedonista proveniente do individualismo, ao estimular cada um a ser antes de tudo senhor da sua própria vida, a autodeterminar-se relativamente aos outros, a viver mais para si mesmo, vai desenraizar o indivíduo das normas e comportamento tradicionais, generalizar o espírito de curiosidade, democratizar o gosto e a paixão pelo Novo estendendo-o a todas as camadas sociais. Consequentemente, a moda, para lá da sua irracionalidade e desperdício aparente, contribui para a edificação de uma sociedade mais racional, porque socializando as pessoas na perspetiva das mudanças, prepara-as para a reciclagem permanente. Mas este exacerbamento das paixões individuais vai conduzir ao “cada um por si”, à indiferença relativamente ao bem público, à prioridade do presente sobre o futuro, à prioridade dos particularismos sobre os interesses coletivos, à desagregação do sentido do dever ou da dívida para com o coletivo. Vai ainda dissolver as identidades de grupo e as solidariedades de classe. As solidariedades e consciências de classes são quebradas em benefício das reivindicações e preocupações explicitamente individualistas.
Temos hoje, relativamente às sociedades anteriores, menos certezas nas convicções, menos resistência face à sedução do novo, mas, por outro lado, temos um espírito que embora sendo menos firme é mais recetivo à crítica, é menos estável mas mais tolerante, é menos seguro de si mesmo mas mais aberto à diferença, à prova, à argumentação do outro.
A nível psicológico a moda tornou-se possível devido a alguns desejos humanos conflituantes: o desejo de pertencer a um grupo e simultaneamente de se ser distinto do grupo, de adquirir individualidade e originalidade; o sonho de pertença e o sonho de independência; a necessidade de apoio social e a procura de autonomia; o desejo de ser como todos os outros e a procura de ser único; o medo de ser diferente e o medo de perder a individualidade. Há aqui sempre um compromisso entre uma tendência para a igualdade social e uma tendência para a individualidade separada. Este compromisso não é um estado permanente, nem pode ser estabelecido para sempre. Ou seja, não é nunca o “é” mas sempre “o que vai ser”, o que de certa maneira se enquadra na definição daquilo que é a moda. Daí a moda aparecer como um dos principais condutores do “progresso” se o considerarmos como o tipo de mudança que desvaloriza tudo o que deixa para trás e o substitui por algo novo.
É apenas tendo em conta esta definição de “progresso”, que a sociedade atual se baseia para nos convencer que nos traz “felicidade”. “Felicidade” como condição segura e permanente, obtida assim pela obsolescência de tudo, levando a uma cada vez mais rápida substituição dos bens (computadores, tablettes, telemóveis, roupas, etc.) e mudança de identidade da pessoa (nem que seja pela alteração do traje ou aparência), e que só se poderá verificar numa sociedade desregulamentada, privatizada e individualizada. É dessa forma que as pessoas desejam escapar à necessidade de pensar sobre a sua “condição infeliz”. Procuram apenas ocupações urgentes e que as absorvam, para assim poderem parar de pensarem sobre elas, colocando como finalidades objetos atrativos que as possam seduzir. A vida passa a girar à volta da perseguição constantemente elusiva da moda, não dando qualquer sentido à vida. Aliás, a finalidade é mesmo banir dos nossos pensamentos a questão do significado da vida.
A moda, a Alta-costura, foram precursores desta organização do efémero e do superficial. Muito embora todas as instituições possam ser suscetíveis de serem conduzidas pelo espírito da moda, pela fascinação do novo, não é a moda o que explica a sociedade. Ela não passa de mais um indicador de tendência do mundo da consciência. Mas, consciência da inconsciência? “Racionalidade da irracionalidade”? Veremos!