“A mulher é um ser que se veste, palra e se despe”, Voltaire.
“Quanto mais avisado é um homem na profissão, mais tolo é em casa”, dito popular.
Quando Diógenes se masturba em público, fá-lo como reação à imposição comummente aceite do amor como sentimento superior, menosprezando o papel inferior atribuído ao corpo. Contra a afirmação continuadamente repetida de que o homem não era um animal, Diógenes acha demais este sufoco continuado e omnipresente e reponde tirando o seu membro para fora da túnica: e isto é animal ou não?
Esta separação entre o corpo e a alma, entre os sexos, tem sido a fôrma constitutiva da nossa sociedade ocidental, enraizada pelo platonismo, continuada e acarinhada pelo cristianismo. É no Banquete que Platão vai sugerir como apareceu o amor entre o homem e a mulher. Segundo ele, inicialmente o humano era um ser perfeito que se bastava a si próprio, um andrógino redondo com quatro pernas, quatro braços, duas caras e com órgãos sexuais dos dois sexos. Não admira que este ser sempre tão contente consigo próprio (eis o monstro inicial narcísico) despertasse ciúme aos deuses, que resolveram como punição serrá-lo ao meio. Às metades chamaram Homem e Mulher, ficando ainda condenadas a passarem o tempo à procura da outra metade que lhes faltava para compreenderem a lição que a parte não é o todo e que o homem não é deus. Só com a ajuda de Eros poderão possivelmente virem a encontrar a parte que lhes restitui o humano perdido.
O platonismo reconhecia a beleza do corpo como guia da alma para se alcançar a experiência absoluta da verdade. Como sempre, nada disto é para ser levado à letra: como seria possível considerar perfeito um ser a que lhe faltava beleza, um ser redondo com oito tentáculos que possivelmente nem em pé se podia ter? Mais, como será possível admitir que a separação ao meio de um corpo perfeito mas sem beleza possa vir a originar a beleza do corpo humano, que propicie o sentido de um amor ardente até aí impossível de existir no polvo narcisista? É como se só após a divisão em dois, os corpos pudessem finalmente abraçar uma volúpia amorosa.
Se a tudo isto juntarmos a prática da sociedade ateniense onde as mulheres eram excluídas de todas as atividades públicas, banquetes, academias, e onde nas reuniões entre homens estes se sentiam manifestamente como seres completos, quer espiritual quer até sexualmente; onde o que os fazia vibrar num amor muito para além do resultante da união com a mulher era a busca do conhecimento, da verdade, constituindo como que comunidades homossexuais de grandes experiências bissexuais em que procuravam alcançar aquele fluido erótico entre mestre e discípulo que permitisse a abertura da porta para o conhecimento de si próprio, uma libertação da consciência através dos diálogos comungados, então tudo isto vai fazendo que o amor da sabedoria se vá tornando cada vez mais assexuado, fazendo com que a filosofia passasse a sofrer de problemas de potência, acabando por se transformar com o cristianismo numa organização de eunucos.
Claro que este erotismo idealista, quando transportado para o universal, irá aparecer a todos os que não pertençam a esse círculo, como irracional e repressivo, um sermão de espiritualização forçado. A reação a este estado de coisas vai ser protoganizada pelos cínicos de Diógenes que chegam, a sugerir em ar de gozo,que se deus pôs os órgãos sexuais à altura das mãos era para que pudessem ser masturbados. Curiosamente, os movimentos feministas atuais, defendem o onanismo como meio de emancipação, como o direito a um prazer que não se deve a ninguém. Não pode é ser em público. Mas pode-se pagar para ver.
Outra reação a que devemos estar atentos é a das mulheres, que nos chega escondida no meio de histórias contadas, como a da cortesã (como não havia corte era mesmo puta) Phyllis por quem Aristóteles se apaixonou loucamente, submetendo-se a todos os caprichos. Há uma xilogravura de 1513 (A Beleza dá o chicote à Sageza) onde se reproduz um dos caprichos da dita Phyllis e, que consistia em passear sentada sobre a garupa de Aristóteles que, posto a quatro, servia de cavalgadura à sua senhora. Várias são as conclusões que se podem tirar: “o corpo triunfa sobre a razão; a mulher nua triunfa do intelecto masculino; o entendimento não tem nada a opor à convincente força dos seios e das ancas”. Como bem nota o ditado popular: “Quanto mais avisado é um homem na profissão, mais tolo é em casa.” O que também se aplica a Sócrates que, casado com Xantipa vê o seu casamento degenerar num inferno sobre a terra, a tal ponto que Xantipa deixou de ser um simples nome próprio para se converter num nome genérico para nomear as mulheres tirânicas e quezilentas. Ou seja, o maior dos pensadores, ou não conseguiu prever o caráter da mulher, ou necessitava de uma mulher assim para ser pensador, ou ela se transformou pelo seu contacto com o pensador que mesmo não a apreciando a suportava para toda a vida. Seja qual for a hipótese há uma grande dose de cegueira por parte de Sócrates.
Esta relação não assumida, escondida, entre a moral instituída e o sexo transita plenamente para a representação cristã, claramente visível na virgindade anunciada de Maria, que já anteriormente tivera filhos, e que fica grávida por obra e graça do Espírito Santo. Sem qualquer intervenção sexual-animal do ser humano. De certa forma trata-se de uma condenação do corpo e do prazer.
Mas nem sempre foi assim no cristianismo. A Igreja levou séculos a combater aquilo que considerou como desvios da ortodoxia, para conseguir afirmar uma doutrina e moral comum. Pode-se mesmo dizer que a vitalidade do cristianismo poderia ser medida pelo aparecimento de inúmeras seitas, cada uma com os seus rituais, sem contudo deixarem de serem cristãs. Problemas como o da virgindade de Maria, de Cristo ter a mesma substância que o Pai, o que comer e não comer em dias de festa, perduraram ao longo de muitos séculos após o concílio de Niceia onde se instituiu o Credo. Reuniões com um intrínseco princípio de prazer físico só podem ser entrevistas na Ceia Sagrada e na Ceia da Páscoa. Especialmente nesta vemos oferecer-se à carne crente uma hipótese para ressuscitar. Várias seitas do cristianismo primitivo celebravam estas reuniões como Ceia de Amor. O sacerdote cristão Epifânio, numa carta dirigida ao bispo de Alexandria, relata-lhe uma dessas cerimónias, conforme se efetuavam numa seita gnóstica do Próximo-Oriente no século IV, e cuja reprodução se pode ler no livro de J. Attalli, L’Orde cannibale, Paris, 1979, pp. 52-53:
“Põem as mulheres em comum, e, caso algum estranho apareça, quer os homens para as mulheres, quer as mulheres para os homens, têm um sinal de reconhecimento; dão as mãos e acariciam a palma, o que quer dizer que o recém-chegado pertence à sua religião. Mal assim se reconhecem, começam logo a banquetear-se. Servem pratos requintados, comem carne, bebem vinho, mesmo os pobres. Quando estão bem saciados e, por assim dizer, encheram as veias com um excesso de poder, passam ao deboche. O homem deixa o lugar ao lado da sua mulher e diz-lhe: “Levanta-te e consuma o ágape (a união de amor) com o irmão.” Os desgraçados põem-se então a fornicar todos juntos e embora eu core só a ideia de descrever as suas práticas imundas, não teria vergonha de as dizer, pois eles não têm vergonha de as fazer. Portanto, depois de se terem unido, como se esse crime de prostituição não lhes baste, erguem ao céu a própria ignomínia; o homem e a mulher recolhem na mão o esperma do homem, avançam de olhos postos no céu e, com a ignomínia nas mãos, oferecem-no ao Pai, dizendo: “Nós te oferecemos este dom, o corpo de Cristo.” Depois, comem-no e comungam todos do próprio esperma, dizendo: “Eis o corpo de Cristo, eis a Páscoa pela qual sofrem os nossos corpos, pela qual confessam a paizão de Cristo.” Fazem exatamente o mesmo com o menstruo da mulher. Recolhem o sangue da sua impureza e comungam dele da mesma maneira, dizendo: “Eis o sangue de Cristo.” Mas ao mesmo tempo que praticam estas promiscuidades, ensinam que não se deve procriar filhos. É por pura vontade que praticam estes atos vergonhosos. Consumam o ato voluptuoso até à saciedade, recolhem o seu esperma para o impedir de penetrar mais adentro e depois comem o fruto da sua vergonha […] Quando um deles, por engano, deixa a sua semente penetrar demasiado e a mulher fica grávida, escutai o que fazem ainda mais abominável. Extirpam o embrião logo que conseguem agarrá-lo com os dedos, pegam nesse aborto, esmagam-no numa espécie de almofariz, misturam-no com mel, pimenta e diferentes condimentos bem como óleos perfumados para conjurar o nojo, e depois reúnem-se – verdadeira comunidade de porcos e de cães - e todos comungam com os dedos dessa pasta de aborto. Acabada a “refeição”, terminam com esta prece: “Não permitimos ao Arconte da volúpia que troçasse de nós, mas recolhemos o erro do irmão.” Isto é, aos seus olhos, a Páscoa perfeita. Praticam ainda toda a espécie de abominações. Quando, nas suas reuniões, entram em êxtase, esfregam as mãos com a vergonha do seu esperma, espalhando-o bem e, com ambas as mãos assim conspurcadas, e o corpo inteiramente nu, oram para, por esta ação, obterem o livre acesso junto a Deus.”
Cerimonial ou não, distorcido ou não, estamos perante uma manifestação religiosa de corpos nus, de cristãos que celebravam o s seus desejos. Aspetos ‘perversos’ de comportamento que fazem concessões à religião cristã ou, uma orgia cristã. Perante a denúncia, o bispo de Alexandria excomunga oitenta gnósticos.
Se Stanley Kubrick tivesse lido esta denúncia, quão diferente teria sido o "Eyes Wide Shut".
“Silêncio e escuta-me. Porque na verdade este lugar tem algo de divino, e se durante a minha exposição as ninfas destas ribeiras me inspirarem alguns rasgos entusiastas, não te surpreendas’. ‘Nada mais certo’, diz-lhe Fedro. E, o mestre termina: ‘Tu és a causa. Mas escuta o resto do meu discurso, pois a inspiração pode abandonar-me. Em todo o caso, isto corresponde ao deus que me possui”, Platão (Fedro, 230b). “O Pártenon […] fora construído para glorificar a prática primitiva do sacrifício de crianças, em honra de Atena”, Joan Connelly. “Que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer”, Marinetti.
Após se ter lido o texto de Platão, ficamos com a ideia que a Atenas do século V antes de Cristo era um local idílico, em que todos os cidadãos eram livres, iguais e sábios, que passavam o seu tempo a discutir sobre o real e o ideal, enquanto passeavam tranquilamente por entre oliveiras e regatos. Um oásis.
Esta ideia foi a que nos foi transmitida pelos românticos e idealistas Alemães dos séculos XVIII que, com base nas suas leituras e traduções de obras de arte, de filosofia e de literatura grega, muitas das vezes descontextualizando-as para servirem de fundamento ou justificação para os seus sistemas de interpretação da realidade, acabaram por dar origem a esta imagem do aparecimento de um novo renascimento, desta vez grego.
Uma das caraterísticas principais da cultura grega era a sua religiosidade que a tudo se sobrepunha: nesses tempos era impossível ser-se bom ateniense se não se acreditasse no poder de Atena, padroeira da cidade, ou no de Zeus, seu pai. Sócrates fora condenado à morte em 399 a. C. ou ao desterro (que Sócrates recusou) por “não acreditar nos deuses que a cidade reconhece, por tentar introduzir novas divindades e, de com isso corromper a juventude”. Já muitos outros cidadãos atenienses antes dele tinham sido julgados e condenados exatamente pelo mesmo motivo: por impiedade. As próprias peças de teatro (tragédias e comédias) tão aclamadas pelos românticos e idealistas alemães faziam também parte de festividades indissoluvelmente religiosas, que se realizavam num santuário de Dioniso sob a presidência do seu sacerdote, e que se inauguravam com uma purificação efetuada com sangue de porco no altar situado a meio da orquestra. Nesse primeiro dia das festas, procedia-se à imposição de uma coroa de ouro aos cidadãos beneméritos da cidade, a uma exposição dos tributos das cidades aliadas, e a uma parada e exortação aos órfãos de guerra. Só nos dias seguintes é que se realizavam as representações dramáticas: três dias para as tragédias e um dia para as comédias. Registe-se que nenhuma mulher entrava nas comédias ou tragédias: todos os papéis femininos eram desempenhados por homens. A entrada e assistência às peças era-lhes contudo facultada, muito embora para um local segregado.
O próprio Pártenon que durante todo este tempo conservou para nós a imagem criada pela interpretação do alemão Johann Winckelmann (1717 - 1768) ligando-o à república de Péricles, à democracia, à noção de liberdade individual e ao refinamento intelectual, e que veio a servir de exemplo a ser reproduzido em todo o mundo como modelo de dignidade da democracia e do conhecimento, da beleza e da intemporalidade, desde o Museu Britânico de Londres, à Caixa das Alfândegas de Wall Street em Nova Iorque, à National Portrait Gallery de Washington, ao Panteão do Quartier Latin de Paris, ao Capitólio de Havana, e muitos outros, é também hoje sujeito a novas leituras perturbadoras.
O Pártenon fora construído por Fídias durante a idade de ouro de Péricles (século V a. C.) em honra de Atena, a deusa da cidade. Na parte superior da colunada exterior há um friso que o percorre e que se supunha ser a representação das várias fases de uma cerimónia solene. Soldados cavaleiros seguidos por pessoas que levavam animais para o sacrifício com ofertas de músicos, serviçais e idosos. Ao aproximarem-se da cena central por cima da entrada oriental, podem ver-se entre outras figuras, um homem e uma criança oferecendo uma túnica (peplos) à deusa Atena. Em 1675, o inglês Francis Vernon após visitar o templo, desenhou e inventariou os frisos, vendo neles um relato de um sacrifício, com uma procissão de animais a caminho da oferenda. Esta sua teoria caiu no esquecimento perante a leitura mais consentânea para a época feita por Wincklemann: Atenas, a razão, a democracia, a liberdade, etc.. Johann Joachim Wincklemann considerado o pai da história da arte com a sua obra principal História da Arte Antiga (1764) era, acima de tudo, um helenista numa época que procurava libertar-se da estética do rococó e barroco tardio, apresentando e defendendo a arte helénica como modelo supremo da arte. E assim se manteve o conhecimento do Pártenon até que em 2014, a professora da universidade de Nova Iorque NYU, Joan Breton Connelly, publica no The American Journal of Archaeology um artigo, ‘The parthenon enigma’, onde, após ter estudado o friso do Pártenon removido por Thomas Bruce (Lord Elgin) no início do século XIX e que se encontra em Londres no British Museum (existem pequenas partes do friso espalhadas nos museus em Paris, Roma e Atenas), conclui que existe uma nova explicação para o friso que nos “encoraja a reavaliar a nossa compreensão sobre o festival das Pan-Atenaicas como acontecimento que vai para além de uma celebração do aniversário de Atena”. Depois de ler os fragmentos de uma tragédia perdida de Eurípedes sobre Erecteu, que fora escrita em 423 a. C. dez anos depois de acabado o Pártenon, e que acabara por ser encontrada em papiros que envolviam uma múmia egípcia do Louvre de Paris, a Dra. Connelly concluiu que, contrariamente á interpretação tradicional que via no friso a oferta de uma túnica a Atena, a representação do friso central era antes a de Erecteu, rei de Atenas, da sua mulher Praxítea, e das suas três filhas, numa procissão sacrificial que conduziria à morte das meninas, a fim de salvar a cidade duma invasão, conforme pedido expresso pelo Oráculo de Delfos. O rei ajuda a sua filha mais nova, à direita, a desdobrar a mortalha: ela seria a primeira a morrer. A segunda filha, atrás à esquerda, leva a mortalha ainda dobrada, à cabeça; a filha mais velha entrega a sua mortalha à mãe. Atena ‘não estava pois a receber a túnica mas sim as mortalhas que cobriam os corpos das filhas de Erecteu’. Connelly sabe que esta nova interpretação tem ‘implicações muito grandes para o nosso conhecimento sobre o papel das mulheres nos mitos e cultura Gregos’. É que para o bem da cidade, os rapazes iam para a guerra mas as raparigas iam para o sacrifício imediato. E continua dizendo que ao tempo, a vida na república de Péricles ‘era muito mais obscura e primitiva do que se crê’. Era ‘um mundo cheio de ansiedade, dominado por uma obsessão egocêntrica em definir o seu lugar no mundo, saturado de espiritualidade e marcado pela necessidade de se estar de boas relações com os deuses’. Um mundo ‘permanentemente ameaçado pela violência, pela guerra e pela morte’. O próprio Péricles era um homem marcado pela superstição. Para Connelly, a particularidade de Atenas não era o gosto pela razão mas antes o gosto por uma certa cultura da excelência. A república não era uma sociedade em que a religião fosse um conjunto de fábulas com deuses em vez de animais, que nos transmitiam conhecimentos, dando animação e divertimento à vida. Na Grécia, a religião era tudo. A Acrópole era um recinto sagrado e não um monumento à razão. Atena, a deusa da sabedoria, não era aquela amiga sábia e compreensiva que nos têm posto na cabeça. O Pártenon, aquela estrutura de proporções e graça, fora construído para glorificar a prática primitiva do sacrifício de crianças, em honra de Atena.
Um dos problemas importantes destas interpretações é a de nos revelar a possibilidade de algo de bom (o embrião do sistema democrático, uma arquitetura equilibrada, um teatro e filosofias marcantes) poder comungar do mesmo espaço de algo de mau (deuses que exigem sacrifícios humanos, nomeadamente de crianças). Exemplo mais recente é o da relação entre a cultura Alemã e o nazismo: já Steiner perguntava como era possível ler-se Rilke à noite, ouvir-se Schubert de manhã e torturar ao meio-dia. E a resposta é que os objetos culturais, por si só, nada podem contra a barbárie, quer agora quer então. Só que possivelmente na Grécia Antiga a cultura era entendida como quadro de referências comuns, como cultivo de saber e de um encontro com outros, o que talvez tenha evitado a barbárie.
A perplexidade manifestada por Steiner aparecerá sempre que procedermos à análise de uma questão separando-a de tudo o que a rodeia. É por isso que Le Corbusier e a grande maioria dos arquitetos vê no Pártenon um tratado de geometria e de abstração ímpar, um edifício perfeito. Nem mais altura, nem mais corpo, nem mais profundidade. Tudo perfeito. Da mesma forma que os engenheiros construtores dos fornos crematórios nazis se orgulhavam das suas obras perfeitas, ao ponto de gravarem nas portas os nomes das firmas de proveniência: Thyssen, Krupp.
Ou seja: será correto não ter em consideração a finalidade das obras, sejam elas de arte ou outras? É possível extasiarmo-nos diante de uma obra que nos deveria provocar indignação e horror? Claro que sim, tudo isso já foi há muito tempo, da mesma forma que temos em casa moinhos de café Krupp e andamos em elevadores Thyssen (e tomamos aspirina Bayer, que fornecia o Ziklon-B para as câmaras de gás). E quando os islamitas radicais destroem obras de arte ‘ocidentais’ por a sua finalidade ser contra o Islão, dizemos que eles são fundamentalistas. Como dizia o José Mário Branco no seu ‘FMI’: ‘Piramiza filho, que eles tratam de ti’.
“A democracia é o pior regime possível, excetuando todos os outros”, W. Churchill
“Porque não lutamos contra a carne e o sangue, mas contra os príncipes, contra as autoridades, contra os que governam este mundo de trevas e contra os espíritos do mal que estão nos céus”, S. Paulo in Efésios 6:12.
"A vida é o preço que, em geral, pagamos pela sobrevivência”, Arthur Feldmann.
Há uma frase dita por Winston Churchill que vale a pena revisitar: “A democracia é o pior regime possível, excetuando todos os outros”. Esta frase é pronunciada na altura em que era já latente o conflito que opunha as ‘democracias’ ocidentais às ‘democracias´ soviéticas. Tratava-se pois de acrescentar mais um argumento de peso, vindo de uma pessoa muito considerada, chamando a atenção e tentando convencer os mal-informados e indecisos, para o regime de ‘bondade’ em que, apesar de tudo, viviam. Se reparamos bem no sistema político americano vemos que os dois principais partidos que sempre governaram se arrogam ambos do seu ‘liberalismo’. O ‘republicano’ pondo uma enfâse maior num liberalismo económico, no individualismo do mercado livre, na oposição a uma regulamentação forte por parte do Estado, e o ‘democrático’ pondo uma enfâse maior na igualdade, na solidariedade social, na permissividade. Estas são no entanto as duas faces opostas do mesmo ‘liberalismo’. Este ‘liberalismo’ pretendeu sempre convencer-nos que era ‘uma política do mal menor’ que permitiria a construção de uma sociedade ‘o menos má possível’ face às ‘ditaduras e totalitarismos’ existentes. É aqui que se inscreve a frase proferida por Churchill. Comecei por ela porque hoje em dia já ‘ninguém’ a recorda, muito menos sequer a discute. É tido por adquirido que ‘nada se dever querer para além do mal menor’ seja um princípio indiscutível que, não só ninguém se atreve agora a contestar, como acabou por se erigir como princípio da nova ordem global. Este mundo em que vivemos é o melhor de todos os mundos possíveis, tudo o resto não passaram de utopias.
Ou seja, rejeitando as utopias, este mundo acaba por nos impor a sua própria utopia do ‘mercado livre’ que, evidentemente, só se tornará realidade quando nos submetermos aos mecanismos do mercado e dos direitos humanos universais. Estamos lá quase.
Toda esta ‘construção’ assenta num princípio pessimista sobre a natureza humana. O homem é um ser egoísta e invejoso, pelo que se torna impossível arranjar um sistema político baseado na sua bondade e altruísmo. Todas as tentativas feitas nessa base conduziram a regimes de terror (evidentemente não se inclui o nazismo porque isso foi obra de um louco).
E contudo estes conceitos não são obra dos novos capitalistas e seus intelectuais. No século XIII, perante um feudalismo onde os ricos senhores governavam camponeses espoliados e miseráveis, como seria possível conciliar tal realidade com a igualdade pregada pelo cristianismo? Coube a S. Tomás de Aquino encontrar a resposta inteligente, elegante, abrangente que Churchill tão oportunisticamente sintetizou. Dizia então Aquino que muito embora um regime de propriedade comum fosse superior, tal regime só poderia resultar com seres humanos perfeitos. Como a maior parte dos seres humanos vive no pecado, a propriedade privada e a diferença de fortuna aparecem como naturais. Reclamar pois por um igualitarismo torna-se até pecaminoso porque tal significaria estarmos a reclamar para seres imperfeitos o que convém apenas à perfeição. E assim tem sido.
Da mesma Igreja surge S. Paulo que nos diz que aquele estado de coisas acontecia “porque não lutamos contra a carne e o sangue, mas contra os príncipes, contra as autoridades, contra os que governam este mundo de trevas e contra os espíritos do mal que estão nos céus”.
Nem sempre este combate se faz ao nível da exterioridade. Temos primeiro de nos aperceber que o “estado espontâneo das nossas vidas quotidianas é um estado de mentira vivida, e romper com ele requer uma luta constante”. Como o poema de Rilke dizia: “Não há lugar que não te veja. Tens de mudar a tua vida”.
Apesar dos senhores feudais terem desaparecido, substituídos por reis, príncipes, bispos, banqueiros, industriais, financeiros, filantropos, “a vida [continua a ser] é o preço que, em geral, pagamos pela sobrevivência”.
“Prefiro contratar uma mulher com mais de 45 ou menos de 25 anos, e assim evitar o problema de ficarem grávidas”, Mónica Oriol. “À política o que é da política, à economia o que é da economia”, velho sonho dos donos da economia. “Nós inventámos a felicidade”, Nietzsche.
Na sua comunicação à XXV Assembleia Plenária do Conselho Empresarial da América Latina, a presidente do Círculo de Empresários de Espanha, Mónica Oriol, disse: “Esta é uma ideia que aqui deixo ficar… mas a única coisa que lhes quero dizer é que prefiro contratar uma mulher com mais de 45 anos ou com menos de 25, porque se ficar grávida teremos de arcar com o problema”. Deixou também um conselho para as mulheres que quisessem ser empresárias: “O sacrifício para chegar a um posto diretivo tem um preço: ou se casam com um funcionário da empresa ou com um marido que goste de ficar a cuidar dos filhos”.
Outra ‘sua’ ideia incidiu sobre o salário mínimo: “O salário mínimo obriga-te a pagar um salário a estes jovens, mesmo que eles não valham nada. É dar dinheiro que não produz”. O salário mínimo só deveria ser dado a trabalhadores que já tenham uma ‘certa formação’, ou seja, só se deverá dar salário mínimo aos ‘trabalhadores que produzam o que custam’. De seu nome Mónica de Oriol y de Icaza, é neta do empresário do setor elétrico do franquismo José Maria de Oriol, filha do arquiteto Miguel de Oriol e da empresária Carmen de Icaza, e sobrinha do ex-presidente da Iberdrola, Iñigo de Oriol. Digamos pois que pelo menos tem uma pertença social que lhe permite expressar ideias próprias entranhadas na família, o que já de si é respeitável quando comparada aos novos aprendizes que os progenitores se esforçaram em colocar em escolas económicas lá de fora para depois se juntarem aos nossos exploradores com berço.
Contudo, o mais importante destas declarações da Mónica de, vêm do fato de elas terem sido proferidas numa organização internacional, e nada têm que ver com coragem ou ligeireza por parte da conferencista. Trata-se antes de um sintoma do descaramento do sistema em que vivemos, que não se coíbe já de impunemente propagandear os seus valores como as únicas verdades por todos aceites. Isso significa que esta dominação neoliberal se considera já estabilizada e que enfrenta muito pouca resistência, apesar do crescente abismo entre ricos e pobres.
O poder estabilizador da anterior sociedade industrial era repressivo e visível. Mas os trabalhadores industriais explorados de forma brutal sabiam então perfeitamente quem eram os seus opressores. Sabiam perfeitamente contra quem tinham de resistir. No sistema de dominação atual, o poder estabilizador já não é repressor, mas antes sedutor, cativante, e muito pouco visível. A repressão visível foi substituída pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.
Uma das formas de sedução é a utilizada pelas Googles, Microsofts, Face Books, Intels, e outras similares, que fazem parte dum conjunto de grandes empresas onde se contratam e trabalham os hackers e programadores modernos, para que continuem a praticar os seus passatempos num ambiente legal e informal, sem restrições de maior, tudo isto em espaços arquitetonicamente envolventes que nos comunicam sensações de bem-estar e liberdade e onde todos nós gostaríamos de trabalhar. Podem continuar a ir para o emprego como se estivessem em casa, não há normas sociais de trajo e comportamento. Ténis, havaianas, skates, jeans, fato completo ou meio fato, camisa ou t-shirt, calções e sapatos, e tudo o mais que a imaginação à venda ditar, tudo serve para a realização dessa espécie de utopia proto socialista em que se pretende anular a oposição entre a atividade comercial alienada, mas pela qual se ganha dinheiro, e o passatempo privado que se leva a cabo por prazer. A finalidade é fazer com que o trabalho apareça transformado em passatempo, levando assim que se passem longas horas no local de trabalho, sábados e domingos, à frente do computador: é que quando alguém é pago para desenvolver e finalizar o seu passatempo, fica exposto por ele próprio a uma maior pressão do que se estivesse a trabalhar segundo a ‘boa velha ética de trabalho protestante’.
Uma outra forma de sedução passa por converter o trabalhador oprimido em empresário, empreendedor, empregador de si próprio. O que se pretende é que cada um seja um trabalhador que se explore a si mesmo na sua própria empresa. Cada um é ao mesmo tempo explorador e explorado, amo e escravo. Assim, quando alguém fracassar, culpa-se a si próprio e não à sociedade. Se a pessoa fracassar no seu projeto, aparece (assume-se a si própria) como culpada. Contra quem protestar? Contra si próprio? A luta de classes passa a ser uma luta interna consigo mesmo.
Neste sistema os novos empreendedores trabalhadores nem sequer se dão conta da sujeição em que se encontram, e isto porque acreditam que são livres por trabalharem em algo que é “seu”. Assim, esta ‘exploração com liberdade’ não origina qualquer efeito de resistência, o que torna estável o sistema neoliberal. É por isso que hoje, após um programa violento de restrições impostas pelos Credores (aqueles que sendo ‘científicos’ nos dizem para termos fé no sistema), assistimos a um grande conformismo e consenso, originando depressões, fadiga crónica, ineficácia, aumento no número de suicídios. A violência é empregue contra si mesmo, em vez de se a utilizar para mudar a sociedade. Ou seja, em vez da agressão dirigida contra o exterior, que poderia ter como resultado uma forte contestação, fica-se pela autoagressão.
É um mundo que se quer de autoempregados isolados, separados, depressivos, que se dedicam com euforia ao trabalho até à exaustão, até à fadiga crónica. É por isso que não há hoje uma multidão cooperante, interligada, capaz de se converter numa massa protestante e globalmente revolucionária. Não vale a pena esperar que tal multidão de pessoas algumas vez esteja disposta a alterar ou instaurar seja qualquer novo tipo de sociedade.
O neoliberalismo é adepto, conduz à despolitização radical da economia. A necessidade de acabar ou reduzir ao mínimo a segurança social, a escola pública, os serviços de saúde públicos, as atividades culturais públicas, etc., (tudo em nome da “sustentabilidade” e da “liberdade”) são exemplos de como se pretende que a economia funcione: como simples manifestação do estado de coisas objetivo. Ou seja, a aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade, que não exista qualquer forma de limitação radical da liberdade do capital, nem qualquer subordinação do processo de produção ao controle social. O velho sonho de que “À política o que é da política, à economia o que é da economia”. Não é por acaso que apareceu a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.
Na sua alegoria sobre o amo e o escravo, Hegel pretendeu demonstrar como o progresso histórico para a liberdade se tornava possível através do jogo dialético entre o amo e o escravo: só com a libertação do escravo é que o amo se sentiria também libertado. A história só chegaria ao fim quando fossemos na realidade livres de fato, quando não fossemos nem amos nem escravos, nem escravos do amo, nem amos do escravo. O que acontece hoje é que nos encontramos numa fase histórica em que o amo e o escravo formam uma unidade. O escravo não trabalha para o amo, mas explora-se voluntariamente a si mesmo. Como empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.
Na sua Política, Aristóteles escreve:
“Em consequência, algumas pessoas supõem que é uma função da administração doméstica o aumentar a propriedade e vivem continuamente com a ideia que é um dever salvaguardar as suas posses monetárias ou aumentá-las para um patamar ilimitado. A causa desta atitude da mente reside no fato de os seus interesses se concentrarem apenas na vida, e não na vida boa”.
Traduzido para a atualidade, tal significará que o capitalismo de hoje, com a sua compulsão para a acumulação e para o crescimento, absolutiza a mera vida. O seu fim não é a “vida boa”. Perdida esta teleologia da vida boa, o processo do capital e da produção acelera-se até ao infinito, perdendo a sua direção, a sua finalidade. Estamos nisto. Estaremos nisso.
“A ereção é um dos últimos vestígios da espontaneidade autêntica, qualquer coisa de não inteiramente dominável por meio de operações racionais-instrumentais”, Adorno. “O homem que toma Viagra é um homem com pénis mas sem falo”.
Não é por acaso que a ereção é considerada importante, não só em si, mas também pelo que ela representa. E no entanto, pensando bem, ela constitui um paradoxo porque, se por um lado depende inteiramente de mim, do meu espírito, ela é ao mesmo tempo, algo sobre o qual não tenho qualquer controle. Razão tinha Santo Agostinho ao considerar que o facto de a ereção escapar ao controle da vontade humana fosse um sinal de punição divina, para assim castigar a arrogância e a pretensão do homem em se tornar senhor do universo. Ou seja, estivemos a um pequeno passo de dominar o universo.
Curiosamente é exatamente por “a ereção ser um dos últimos vestígios da espontaneidade autêntica, qualquer coisa de não inteiramente dominável por meio de operações racionais-instrumentais”, por essa indeterminação inconsciente não constituir qualquer problema para o homem, que um homem sexualmente potente suscita atração e desejo. É esse algo que ele tem mas que não detém, que o faz aparecer como recetáculo de um poder especial e milagroso que habita nele.
Compreender-se-á melhor o que quero dizer se fizermos a distinção entre o membro erétil que é o pénis e o falo representante da potência, da dimensão simbólica que confere autoridade. É como só pelo simples fato de se ser macho, essa dimensão simbólica induzisse potência ao seu membro. Tal como quando um juiz exerce a autoridade a partir do momento em que começa a falar em nome da Lei, excede e ultrapassa o valor próprio que possa ter, que até pode ser pequeno, quando fala em nome próprio. É por isto que quem tomar a pilula, vê o seu pénis funcionar mas perde o acesso à dimensão fálica da potência simbólica, ou seja, o homem que toma Viagra é um homem com pénis mas sem falo.
Daqui podem decorrer várias implicações com algumas consequências, para as quais não temos ainda respostas. Por exemplo: Se o homem necessita de tomar a pílula para ter ereção, com que ideia ficará uma mulher sobre os seus poderes de atração e excitação? E com que ideia ficará o homem sobre o seu verdadeiro estado psíquico ao não saber se a ‘sua’ ereção é realmente dele ou devido ao fármaco? Retirado esse sinal de impotência devido à ingestão da pilula, sobre que outras formas é que essa insatisfação ou resistência se manifestará? Porque, não tenhamos ilusões, ela fica lá dentro. Sendo vulgarmente aceite que o homem pensa quando o desejo surge, com a cabeça de baixo e não com a de cima, o que acontecerá quando for só a cabeça de cima a comandar? Passando a ereção a ser uma operação meramente mecânica, não se estará a retirar a componente humana do ato sexual? Ou dito de outra forma, será necessária a componente humana do ato sexual?
São perguntas deste tipo, e outras, que nos poderão aproximar mais da tentativa de saber o que é vida humana, sempre entendendo que tudo o que dela decorrer não exista separado da demais realidade. Não as fazer, substituindo-as pela mera ação ‘curativa’, vai afastar-nos cada vez mais da tentativa para a pretensão de compreendermos o que somos.
“O mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma só página”, Santo Agostinho.
“Só depois de conhecido a superfície das coisas nos podemos aventurar a procurar o que está por baixo. Mas, a superfície das coisas é inesgotável”, Ítalo Calvino.
“Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca”, Constantin Cavafy.
Segundo nos conta J. K. Huysmans, em 1884 o duque de Esseintes vivia só num grande palacete nos arredores de Paris, passando os seus dias a ler os clássicos, colecionando pensamentos sobre a humanidade. Das poucas vezes que saíra para ir a uma aldeia vizinha, depressa começara a sentir um sentimento de repulsa, que o levara a não mais querer afastar-se de casa. “Para evitara fealdade e a estupidez”. Até que, talvez por influência do que lera de Dickens, um dia acordou com o enorme desejo de conhecer Londres. Mandou os criados fazerem-lhe as malas, vestiu-se à inglesa, fato de tweed, chapéu de coco e capa de inverno, e eis que parte para Paris no primeiro comboio. Dispondo de tempo até apanhar o transporte que o levaria para Londres, foi a uma livraria comprar o Guia de Londres de Baedeker, o que lhe permitiu sonhar com os passeios que procurava vir a fazer. À hora do almoço, entrou numa taberna inglesa da rua de Amsterdão, perto da Gare Saint Lazare. Local tipicamente inglês, escuro e cheio de fumo, um grande balcão e filas de torneiras de cerveja de barril, pequenas mesas de bancos corridos onde se sentavam “robustas inglesas de traços masculinos, com os seus dentes grandes como espátulas, as suas faces afogueadas como maçãs, e as mãos e os pés enormes”. Comeu sopa de rabo de boi, rosbife com batatas, dois pintos de cerveja e queijo de Stilton. Quando por fim chegou a hora do transporte para Londres, Des Esseintes sentiu-se subitamente muito cansado só de antever que teria ainda de se pôr a caminho da estação, disputar um bagageiro, subir para o comboio, dormir numa cama estranha, apanhar frio, pôr-se em bichas só para visitar afinal os lugares que o Baedeker tão minuciosamente descrevia.
“Para que se há-de mover quem pode fazer viagens maravilhosas sentado na sua cadeira? Não estaria ele já em Londres, cujos cheiros, clima, população, pratos de cozinha sem que faltassem sequer os talheres, o rodeavam? Que mais poderia esperar para além de tudo isso, a não ser novas deceções?” Des Esseintes pagou a conta, saiu da taberna, e com os seus baús, os seus sacos, os seus fatos emalados, guarda-chuvas e bengalas, apanhou o primeiro comboio de regresso, e nunca mais saiu de casa.
Bem sei que Desseintes pertence aquela categoria para a qual a realidade não pode deixar de ser dececionante. Charles Tomlinson acrescentava que “os melhores dias são aqueles em que não se tem de ir a nenhum lado”
. O que nos leva a pôr a questão: porque viajamos? Para Jack Kerouac, porque “a estrada é a vida”; para Bill Bryson, “para experimentar as coisas pela primeira vez”; para Mark Twain, porque é um antídoto contra “o preconceito e a intolerância”; para Santo Agostinho, porque “o mundo é um livro e aqueles que não viajam leem apenas uma só página”.
Como é Verão, está muito calor e é tempo de férias (“féria” era o dia em que, devido a uma prescrição religiosa, se não trabalhava, daí a primeira feira, segunda feira, até à sétima feira, em que a primeira feira foi substituída pelo dia do Senhor –Dominicus dies -, o Domingo, e a sétima pelo Sábado, dia em que os primeiros judeus cristãos se reuniam para orar, o que faz da tradição portuguesa única no mundo por ainda a conservar; talvez seja interessante lembrar que se por férias entendermos o tempo em que se não está ocupado, tal já há muito se vinha verificando, por exemplo, sempre que aparecia o Inverno obrigando as pessoas a recolherem-se em casa sem nada para cultivar nos campos; lembrar também que as primeiras verdadeiras férias em todo o mundo só apareceram em 1936 quando o governo Francês da Frente Popular decretou duas semanas de férias pagas a todos os trabalhadores – três semanas em 1956, quatro em 1969 e cinco em 1981), não vou falar sobre o significado das viagens, dos descobrimentos, dessa primeira tentativa de “unificação da Terra através do dinheiro em todos os seus avatares, como mercadoria, como texto, como conta, como número, como imagem, como notoriedade”, dessa primeira globalização realizada pelas descobertas marítimas cristo-capitalistas e implantada politicamente pelo colonialismo dos Estados-nação da Europa.
Nem tão pouco vou falar da real relacionação entre viagens e férias. Ficarei apenas pela superficialidade da viagem e das férias como aventura, tendo em atenção o que Ítalo Calvino nos dizia: "Só depois de conhecido a superfície das coisas nos podemos aventurar a procurar o que por baixo. Mas, a superfície das coisas é inesgotável”.
Assim, deixo-vos aqui Ítaca, um poema do grego CAVAFY, Constantin, 1986, Constantin Cavafy, 90 e mais quatro poemas, versão portuguesa, prefácio, comentários e notas de Jorge de Sena, 2ª Edição, Centelha, Coimbra, que espero vos acompanhe em todas as vossas viagens e férias.
Quando partires de regresso a Ítaca, deves orar por uma viagem longa, plena de aventuras e de experiências. Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, um Poseidon irado – não os temas, jamais encontrarás tais coisas no caminho, se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime teu corpo toca e o espírito te habita. Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Poseidon em fúria – nunca encontrarás, se não é na tua alma que os transportes, ou ela os não erguer perante ti. Deves orar por uma viagem longa. Que sejam muitas as manhãs de Verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos! Em colónias fenícias deverás deter-te Para comprar mercadorias raras: coral e madrepérola, âmbar e marfim, e perfumes subtis de toda a espécie: compra desses perfumes quanto possas. E vai ver as cidades do Egipto, Para aprenderes com os que sabem muito. Terás sempre Ítaca no teu espírito, Que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem. É melhor que ela dure muitos anos, que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho, e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, Terás compreendido o sentido de Ítaca.