Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(198) "Como pode um homem ser culpado?"

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

Todo o homem, pelo simples facto de viver, pode ser sempre posto em causa e vir a ser acusado.

 

Como é que o homem conseguiu conceber a ideia que as suas próprias ações o pudessem culpabilizar? De onde vem esta autoacusação?

 

A maneira mais simples para eliminar o crime no mundo seria abolir o código penal.

 

Aldraba-se o burro à vontade do dono.

 

 

 

 

É n’O processo que Kafka aborda uma das dúvidas escondidas mais interessantes que sempre tem acompanhado a sociedade humana. Nele, o protagonista, Joseph K., apesar de não ter cometido qualquer crime, é, contudo, acusado de o ter feito.

Não sabendo porque está a ser acusado  (aliás, a acusação nem sequer fora formulada), e com o intuito de poder ver e contactar com quem o acusava, e  para saber quem eram os juízes que o iriam julgar, dado que todos eles o evitavam e ignoravam, não hesita ele próprio em acusar-se.

 

Como não existia nenhuma sentença nem declaração da falta cometida, o processo poderia vir a prolongar-se indefinidamente no tempo, o que faria com que “o próprio processo acabasse por se transformar, aos poucos, numa sentença”. Ou seja, o próprio julgamento era a sentença.

 

Tal implicaria na prática, e para todos os efeitos, que não fosse sequer necessária qualquer acusação precisa. O que faria com que todo o homem, pelo simples facto de viver, pudesse vir a ser sempre posto em causa e ser acusado.

 

Foi esta situação que aparecia a Kafka como inaceitável, inevitável e impenetrável, e que o levou a questionar-se: “Como pode um homem ser culpado?

 

Por trás deste questionar, encontra-se um problema maior, posto à humanidade como um todo, que é o de tentar saber como é que o homem conseguiu conceber essa ideia de que as suas próprias ações o pudessem vir a fazê-lo culpado? De onde vem esta autoacusação?

 

 

 

Para Giorgio Agamben, os conceitos de ‘causa’ e de ‘falta’, constituem os alicerces do edifício do direito. E, contudo, nenhum deles tem uma definição etimológica, o que faz com que os seus sentidos originais não sejam conhecidos. O que não quer dizer que se renuncie a definir o seu significado.

É do latim ‘causa que deriva o termo ‘coisa’, “o que está em questão numa querela”, o que está em ‘causa’ entre os homens. É, portanto, a ‘coisa’ que aparece como fonte de litígio do direito e que está na origem dum processo, o que faz com que só a partir daí os homens se inscrevam na esfera da Lei.

Por sua vez, o conceito de ‘falta’, corresponde a uma elaboração a partir da noção de dolo, “dolus”, intenção de fazer mal ou de praticar uma fraude.

 

 Já o posterior conceito de ‘culpa’ se refere ao comportamento de alguém, que não tendo a intenção de fazer mal, acaba por provocar por negligência, um dano ou perca a outra pessoa, tendendo, portanto, a opor-se ao conceito de dolo.

 A introdução deste conceito, vai fazer com que a não intenção de fazer mal possa ser vista como condição de menor responsabilidade, e conduzir assim ao aparecimento de uma gradação da falta cometida, dependente do grau de implicação do sujeito e da sua ação.

Esta evolução dará lugar ao princípio moderno segundo o qual a responsabilidade assenta, em última instância, na livre vontade do sujeito, o que é normalmente visto como um progresso.

 

A relação entre a ação e o agente, que inicialmente era definida de uma forma exclusivamente factual (a ‘falta’), passa agora a ser fundamentada sobre um princípio inerente ao sujeito (a ‘culpa’), a uma interiorização da falta que o constitui como culpado, assumindo ele a inteira responsabilidade.

Esta fundamentação da falta como uma vontade do sujeito e a elaboração concomitante desse conceito de vontade, são obra da teologia cristã.

 

Recordemos que, foi o facto de a partir de determinada altura se querer considerar o homem como possuidor de “livre-arbítrio”, uma vontade do sujeito, sem o qual não poderia ser perfeito, pondo, portanto, em risco a intenção da criação do homem e da perfetibilidade do próprio Deus.

 

 

Agamben, vai explicar-nos que ‘pecado’, significa etimologicamente “passo em falso”. E que da análise dos documentos bíblicos, o ‘pecado’ tinha apenas que ver com um erro do homem na sua relação com Deus, um passo em falso, nada tendo que ver com uma vontade culpável.

 Tratava-se apenas da transgressão de um mandamento divino, mas a razão porque era feita, mantinha-se inexplicável e inexplicada.

Recorda-nos que no Génesis nunca aparece o termo ‘pecado’. Aparece sim, a relação puramente factual entre o ato cometido por Adão e Eva e as suas consequências: a tomada de consciência da sua nudez, a expulsão do jardim de Éden e a condenação ao sofrimento e ao trabalho.

Mas, para os teólogos, o que é fundamental é que “os dois se apercebam que podem violar, se o quiserem, o mandamento de Deus”. Tal não passa de uma interpretação forçada com o objetivo de inscrever a recitação bíblica na esfera da falta (como livre arbítrio e vontade culpável), de acordo com o sentido moderno do termo.

 

No direito canónico arcaico, a violação de um mandamento, “Dado […] que comeste da árvore que te tinha ordenado para o não fazeres […]”, era imediatamente seguida pelo enunciado da pena, do castigo.

Pelo que se não houvesse castigo, não haveria também falta, ou seja, o castigo só poderia ser aplicado em consequência de um ato cometido. Mas a falta só existe em virtude do castigo que a sanciona, logo, “Não há falta sem castigo”. O que faz com que essencialmente a lei consista, em última análise, na sanção.

 

Coube ao famoso jurista alemão infelizmente preferido de Hitler, Carl Schmitt, pôr em questão esse princípio jurídico fundamental segundo o qual “não há falta sem castigo”. Segundo ele, “o castigo precede logicamente a falta, uma vez que não haveria qualquer falta se ela não fosse punida”. O que acarreta que “não há castigo sem falta”.

Pelo que a maneira mais simples para eliminar o crime no mundo seria abolir o código penal.

 

Mas, será então que é possível existir uma lei sem sanção? Teoricamente sim. Aliás, tal era perfeitamente concebível para os juristas romanos, que distinguiam as leis de acordo com a existência ou não de sanções:

 

 “Diz-se perfeita a lei que proíba qualquer coisa de ser feita, mas se for feita, anula-se […], imperfeita a lei que proíba que se faça qualquer coisa e que, se for feita, não a anula nem se inflige um castigo a quem agir contra a lei […], e menos que perfeita a lei que proíba que se faça qualquer coisa e que, se for feita, não a anula, mas inflige um castigo a quem agir contra a lei”

 

A lei perfeita é, pois, a que afirma a sua omnipotência perante a inexistência jurídica daquilo que a viole. Percebe-se a preferência de Hitler por tal interpretação.

 

Como conclui Agamben, “é singular que a cultura que nos transmitiu os princípios fundamentais do direito, veja a sanção como uma imperfeição, ou pelo menos como uma menor perfeição da lei”.

 

 

Mais terra a terra, menos intelectualmente, bem diz o povo:

 

Albarda-se o burro à vontade do dono”.  Ou, como contemporaneamente se faz: “Aldraba-se o burro à vontade do dono”.

 

Alteram-se palavras, mas o conceito permanece: o burro é quem acaba por pagar, quem carrega. O burro, animal humilde sempre à disposição. Para a guerra, os mandantes montam antes o cavalo. Talvez por isso (e também para cumprimento de uma profecia), Jesus montou um burro com que entrou em Jerusalém, indicação que não ia para conquistar. Foi preso.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub