(198) "Como pode um homem ser culpado?"
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Todo o homem, pelo simples facto de viver, pode ser sempre posto em causa e vir a ser acusado.
Como é que o homem conseguiu conceber a ideia que as suas próprias ações o pudessem culpabilizar? De onde vem esta autoacusação?
A maneira mais simples para eliminar o crime no mundo seria abolir o código penal.
Aldraba-se o burro à vontade do dono.
É n’O processo que Kafka aborda uma das dúvidas escondidas mais interessantes que sempre tem acompanhado a sociedade humana. Nele, o protagonista, Joseph K., apesar de não ter cometido qualquer crime, é, contudo, acusado de o ter feito.
Não sabendo porque está a ser acusado (aliás, a acusação nem sequer fora formulada), e com o intuito de poder ver e contactar com quem o acusava, e para saber quem eram os juízes que o iriam julgar, dado que todos eles o evitavam e ignoravam, não hesita ele próprio em acusar-se.
Como não existia nenhuma sentença nem declaração da falta cometida, o processo poderia vir a prolongar-se indefinidamente no tempo, o que faria com que “o próprio processo acabasse por se transformar, aos poucos, numa sentença”. Ou seja, o próprio julgamento era a sentença.
Tal implicaria na prática, e para todos os efeitos, que não fosse sequer necessária qualquer acusação precisa. O que faria com que todo o homem, pelo simples facto de viver, pudesse vir a ser sempre posto em causa e ser acusado.
Foi esta situação que aparecia a Kafka como inaceitável, inevitável e impenetrável, e que o levou a questionar-se: “Como pode um homem ser culpado?”
Por trás deste questionar, encontra-se um problema maior, posto à humanidade como um todo, que é o de tentar saber como é que o homem conseguiu conceber essa ideia de que as suas próprias ações o pudessem vir a fazê-lo culpado? De onde vem esta autoacusação?
Para Giorgio Agamben, os conceitos de ‘causa’ e de ‘falta’, constituem os alicerces do edifício do direito. E, contudo, nenhum deles tem uma definição etimológica, o que faz com que os seus sentidos originais não sejam conhecidos. O que não quer dizer que se renuncie a definir o seu significado.
É do latim ‘causa’ que deriva o termo ‘coisa’, “o que está em questão numa querela”, o que está em ‘causa’ entre os homens. É, portanto, a ‘coisa’ que aparece como fonte de litígio do direito e que está na origem dum processo, o que faz com que só a partir daí os homens se inscrevam na esfera da Lei.
Por sua vez, o conceito de ‘falta’, corresponde a uma elaboração a partir da noção de dolo, “dolus”, intenção de fazer mal ou de praticar uma fraude.
Já o posterior conceito de ‘culpa’ se refere ao comportamento de alguém, que não tendo a intenção de fazer mal, acaba por provocar por negligência, um dano ou perca a outra pessoa, tendendo, portanto, a opor-se ao conceito de dolo.
A introdução deste conceito, vai fazer com que a não intenção de fazer mal possa ser vista como condição de menor responsabilidade, e conduzir assim ao aparecimento de uma gradação da falta cometida, dependente do grau de implicação do sujeito e da sua ação.
Esta evolução dará lugar ao princípio moderno segundo o qual a responsabilidade assenta, em última instância, na livre vontade do sujeito, o que é normalmente visto como um progresso.
A relação entre a ação e o agente, que inicialmente era definida de uma forma exclusivamente factual (a ‘falta’), passa agora a ser fundamentada sobre um princípio inerente ao sujeito (a ‘culpa’), a uma interiorização da falta que o constitui como culpado, assumindo ele a inteira responsabilidade.
Esta fundamentação da falta como uma vontade do sujeito e a elaboração concomitante desse conceito de vontade, são obra da teologia cristã.
Recordemos que, foi o facto de a partir de determinada altura se querer considerar o homem como possuidor de “livre-arbítrio”, uma vontade do sujeito, sem o qual não poderia ser perfeito, pondo, portanto, em risco a intenção da criação do homem e da perfetibilidade do próprio Deus.
Agamben, vai explicar-nos que ‘pecado’, significa etimologicamente “passo em falso”. E que da análise dos documentos bíblicos, o ‘pecado’ tinha apenas que ver com um erro do homem na sua relação com Deus, um passo em falso, nada tendo que ver com uma vontade culpável.
Tratava-se apenas da transgressão de um mandamento divino, mas a razão porque era feita, mantinha-se inexplicável e inexplicada.
Recorda-nos que no Génesis nunca aparece o termo ‘pecado’. Aparece sim, a relação puramente factual entre o ato cometido por Adão e Eva e as suas consequências: a tomada de consciência da sua nudez, a expulsão do jardim de Éden e a condenação ao sofrimento e ao trabalho.
Mas, para os teólogos, o que é fundamental é que “os dois se apercebam que podem violar, se o quiserem, o mandamento de Deus”. Tal não passa de uma interpretação forçada com o objetivo de inscrever a recitação bíblica na esfera da falta (como livre arbítrio e vontade culpável), de acordo com o sentido moderno do termo.
No direito canónico arcaico, a violação de um mandamento, “Dado […] que comeste da árvore que te tinha ordenado para o não fazeres […]”, era imediatamente seguida pelo enunciado da pena, do castigo.
Pelo que se não houvesse castigo, não haveria também falta, ou seja, o castigo só poderia ser aplicado em consequência de um ato cometido. Mas a falta só existe em virtude do castigo que a sanciona, logo, “Não há falta sem castigo”. O que faz com que essencialmente a lei consista, em última análise, na sanção.
Coube ao famoso jurista alemão infelizmente preferido de Hitler, Carl Schmitt, pôr em questão esse princípio jurídico fundamental segundo o qual “não há falta sem castigo”. Segundo ele, “o castigo precede logicamente a falta, uma vez que não haveria qualquer falta se ela não fosse punida”. O que acarreta que “não há castigo sem falta”.
Pelo que a maneira mais simples para eliminar o crime no mundo seria abolir o código penal.
Mas, será então que é possível existir uma lei sem sanção? Teoricamente sim. Aliás, tal era perfeitamente concebível para os juristas romanos, que distinguiam as leis de acordo com a existência ou não de sanções:
“Diz-se perfeita a lei que proíba qualquer coisa de ser feita, mas se for feita, anula-se […], imperfeita a lei que proíba que se faça qualquer coisa e que, se for feita, não a anula nem se inflige um castigo a quem agir contra a lei […], e menos que perfeita a lei que proíba que se faça qualquer coisa e que, se for feita, não a anula, mas inflige um castigo a quem agir contra a lei”
A lei perfeita é, pois, a que afirma a sua omnipotência perante a inexistência jurídica daquilo que a viole. Percebe-se a preferência de Hitler por tal interpretação.
Como conclui Agamben, “é singular que a cultura que nos transmitiu os princípios fundamentais do direito, veja a sanção como uma imperfeição, ou pelo menos como uma menor perfeição da lei”.
Mais terra a terra, menos intelectualmente, bem diz o povo:
“Albarda-se o burro à vontade do dono”. Ou, como contemporaneamente se faz: “Aldraba-se o burro à vontade do dono”.
Alteram-se palavras, mas o conceito permanece: o burro é quem acaba por pagar, quem carrega. O burro, animal humilde sempre à disposição. Para a guerra, os mandantes montam antes o cavalo. Talvez por isso (e também para cumprimento de uma profecia), Jesus montou um burro com que entrou em Jerusalém, indicação que não ia para conquistar. Foi preso.