Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(196) “Tudo é vão, porque tudo é em vão”

Tempo estimado de leitura: 7 minutos.

 

 

Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade, Eclesiastes.

 

O destino do tolo também a mim acontecerá. Então porque me tornei sábio?

 

Embora o ser humano se esforce para procurar, não encontrará o que procura.

 

Não existe coisa boa para o ser humano debaixo do Sol a não ser comer e beber e sentir prazer.

 

 

 

Com os conhecimentos científicos que atualmente temos, não parece apresentar grandes dificuldades a definição do que deve o ‘ser humano’ ser. Tudo parecemos já saber sobre a sua biologia, fisiologia, química, psicologia, etc., dando já quase como certo como deverá viver o seu futuro.

Ficamos (os que ficam), no entanto, sempre um pouco desconfiados com tanta recém-certeza, dado os presentes quase sempre adiados para um futuro que nos foram dizendo estar aí sempre à porta, com as perspetivas assentes em algoritmos científicos controlados às escondidas pelos que manhosamente se creem e autointitulam como sendo os merecidamente escolhidos novos donos disto tudo.

 

Há, contudo, uma outra forma para conhecermos, reconhecermos, quais são as características da vivência do ‘ser humano’, recorrendo antes a escritos milenares em que nos revemos revelados. Metodologia  já utilizada para tentar definir o que se considera serem os paradigmas da ética, utilizando os exemplos de Job, de Ulisses, de Édipo, de  Antígona, de Sócrates (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/188-eticas-49840).

 Esses escritos baseiam-se na ideia de que a experiência, trazida pelos muitos anos vividos, pode servir de guia para as gerações seguintes. Partem da observação da vida e da necessidade de lidar com os seus diversos problemas e situações humanas, muitas vezes com instruções práticas sobre a forma como a devíamos viver, outras vezes com críticas e reflexões interrogativas sobre o sentido da vida, morte, justiça, vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc.

 

Esses escritos inscrevem-se naquilo que se costuma catalogar como “literatura de sabedoria”. Não faltam exemplos que se reportam aos muito antigos tempos da Suméria, Babilónia, Assíria, Egito e Grécia. São, por exemplo, os casos do mito da criação Enuma Elish (c. 1800 a.C.) e do épico de Gilgamesh (2800 a 2500 a.C.), onde a descrição do Dilúvio e das indicações para sobrevivência ao mesmo, são muito anteriores às descritas na Bíblia. Outros exemplos: o poema sumério Instruções de Suruppak (2500 a. C.),e os Trabalhos e Dias (700 a.C.) do poeta grego Hesíodo.

 

Também a enigmática e, talvez por isso igualmente inesgotável Bíblia, contém vários destes escritos de sabedoria, apresentados como Livros Sapienciais do Antigo Testamento: Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Job, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Salmos de Salomão.

Um desses escritos que nos dá essa sensação de ser um escrito de sempre e para sempre, é o Eclesiastes, incorretamente atribuído a Salomão (990 a 930 a.C.)  e que os especialistas atuais datam de 580 a 200 a. C., do qual reproduzo aqui alguns excertos, começando pela sua afirmação inicial:

 

 

Palavras de Eclesiates, filho de David, rei de Israel em Jerusalém.

Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade.

 /Que vantagem existe para o ser humano/ em todo o seu esforço com que se esforça debaixo do Sol? / Uma geração passa; e uma geração chega; / e a terra fica de pé para sempre.

[…] Aquilo que aconteceu, isso mesmo irá acontecer. / E aquilo que foi feito, isso mesmo será feito. / Nada de novo existe debaixo do Sol. / Quem dirá e afirmará: “Eis que isto é novo”? /Isso já aconteceu nas idades que existiram antes de nós. / Não existe memória de pessoas anteriores, / nem dos que nasceram depois.

 

[…] “O destino do tolo também a mim acontecerá. / Então porque me tornei sábio?

[…] Não há nada de bom no ser humano.

 

[…] Para todas as coisas há um tempo; / e há um tempo para todo o assunto debaixo do céu. / Tempo de dar à luz e tempo de morrer; / Tempo de plantar e tempo de arrancar o que foi plantado; / Tempo de matar e tempo de curar; / Tempo de deitar abaixo e tempo de construir; / Tempo de chorar e tempo de rir; / Tempo de estar de luto e tempo de dançar; /Tempo de atirar pedras e tempo de juntar pedras; /Tempo de abraçar e tempo de estar longe de um abraço; /Tempo de procurar e tempo de perder; / Tempo de guardar e tempo de atirar fora; / Tempo de rasgar e tempo de coser; / Tempo de calar e tempo de falar; / Tempo de amar e tempo de odiar; / Tempo de guerra e tempo de paz.

 

Que vantagem tem quem faz as coisas que faz?

[…] “Deus julgará o justo e o ímpio, / pois há um tempo para todo o assunto / e para toda a obra.”

[…] Acerca da fala de filhos do ser humano: / Pois Deus julgá-los-á / para mostrar que também eles são gado.” / Pois destino de filhos do ser humano / e destino do gado: / O destino de ambos é um. Assim como é a morte de um, do mesmo modo é morte do outro: / O espírito de todos é só um. / E o ser humano sobreleva em quê ao gado? / Nada. Porque todas as coisas são vacuidade. / Todas as coisas vão para um só lugar: / Todas as coisas vêm do pó; / e todas as coisas voltarão para o pó.

 

E eu voltei-me e vi a vacuidade debaixo do Sol. / Existe um solitário e não existe um segundo que lhe faça companhia: / pois não tem filho nem irmão. / Não há fim para todo o seu esforço; / e o olho dele não se satisfaz com riqueza. / “Para quem me esforço e privo a minha vida de felicidade?” / Pois, isto é vacuidade e uma preocupação negativa. / “Melhores são dois que um, / porque têm uma boa recompensa para o seu esforço. / Pois se caírem, um levantará o seu amigo. / E ai daquele que, quando cair, / não tenha outro para o levantar! / Pois se dois dormirem juntos, terão calor; / Um sozinho, como se aquecerá? / E se um for dominado, / dois estarão do lado dele; / E a corda tripla não será depressa quebrada. / Melhor é um rapaz pobre e sábio / do que um rei velho e tolo, / que já não soube dar atenção”.

 

Um bom nome é melhor do que azeite; / e o dia da morte de alguém é melhor do que o dia do seu nascimento. / É melhor entrar numa casa de luto / do que entrar numa casa de bebida, / porque esse luto é o fim de todo o ser humano / e o vivo dá-lo-á ao seu coração. / A ira é melhor do que o riso, / pois na má disposição do rosto o coração sentir-se-á bem. / O coração dos sábios reside em casa de sofrimento, / e o coração dos tolos, em casa de alegria. / É melhor ouvir a repreensão do sábio / do que um homem que ouve uma canção de tolos.

 

E louvei o prazer, / porque não existe coisa boa para o ser humano debaixo do Sol / a não ser comer e beber e sentir prazer.

[…] Foi então que vi todas as obras de Deus, / pois nenhum ser humano conseguirá / descobrir o feito que é feito debaixo do Sol. / Embora o ser humano se esforce para procurar, / não encontrará o que procura.

 

Vacuidade é algo que está em todas as coisas. / O mesmo destino existe para o justo e para o ímpio; / para o bom e para o mau; / para o puro e para o impuro, / para o que sacrifica e para o que não sacrifica. / O homem bom é como o pecador; / o que jura é como o que receia jurar. / Isto é um mal em tudo o que é feito debaixo do Sol: / o facto de ser só um o destino de todos.

 

[…] Pois os vivos saberão que vão morrer; / e os mortos não têm noção de nada. / Não há para eles recompensa, / porque foi olvidada a memória deles. / De facto, o amor deles e o ódio deles / e a inveja deles já pereceu; / E não lhes cabe nunca mais porção / em tudo o que é feito debaixo do Sol. / Vai, come o teu pão com prazer; / e bebe de bom ânimo o teu vinho, / porque Deus já aprovou as tuas obras. / […] Vê a vida com a mulher que tu amaste, / todos os dias da tua vida de vacuidade / que te são dados debaixo do Sol; / todos os dias da tua vacuidade, / porque isto é a tua porção na tua vida / e no teu esforço, com o qual te esforças debaixo do Sol.

[…] Que não é aos céleres que a corrida pertence; / nem aos fortes pertence a guerra; / nem aos sábios, o pão; / nem aos compreensivos, a riqueza; / nem aos inteligentes, a beleza; / porque tempo e destino acontecerão a todos eles.

 

[…] Vacuidade das vacuidades – disse o Eclesiastes -, tudo é vacuidade.” 

 

 

Eclesiastes, como aquele que preside ou convoca uma assembleia, foi opção para o título escolhido pelo autor (desconhecido), apresentando-se como se fosse o próprio rei Salomão a escrevê-lo, um pseudo-Salomão. Percebe-se a escolha:

 “confere credibilidade ao discurso cético acerca do valor da riqueza e dos bens materiais. Quem melhor que Salomão, detentor e dono de tudo (sabedoria, poder, riqueza, mulheres), para nos dizer que tudo o que acontece é ilusão? Para se compreender a profunda semelhança entre ‘tudo’ e ‘nada’, é preciso ter tido a experiência desse tudo. É preciso ter experimentado tudo”.

Alguns dos temas tratados referem-se ao propósito desta vida, à vida após a morte, à realidade do mal e da morte, à justiça retributiva das recompensas ou castigos de acordo com a obediência ou desobediência do ser humano.

Apesar de nas traduções tradicionais iniciarem o escrito com: “Palavras de Eclesiastes, filho de David, rei de Israel em Jerusalém: vaidade de vaidades – disse o Eclesiastes -, vaidade de vaidades, todas as coisas são vaidade”, Frederico Lourenço explica-nos que o termo grego “vaidade” não remete para a aceção narcisista de uma pessoa vaidosa, mas para a qualidade daquilo que é “em vão”. Pelo que optou traduzi-lo por “vacuidade”, ficando mais clara a afirmação de Eclesiastes, segundo a qual tudo é vão, porque tudo é em vão.

 

Surpreende a solução apontada por Eclesiastes para minorar a insatisfação humana, preconizando a contribuição do comer, beber e gozar do bem-estar, embora reconhecendo ao mesmo tempo que o apetite do ser humano não possa ser suscetível de satisfação.

 

 Apontando para a impossibilidade da felicidade individual, também não acredita que ela possa ser alcançada coletivamente. E uma vez que bons e maus são tratados da mesma forma, tal significará que não existirá o bem comum, pelo que não vale a pena lutar por ele.

 

Interessante uma das justificações para a vivência a dois: a cama ficar mais quente.

 

Outro ponto importante tem que ver com a consciência de que todos os seres vivos da terra têm um mesmo destino comum. Ou seja, homens e animais ao terem todos o mesmo destino, faz com que o ser humano não seja considerado superior ao animal.

 

Como é que tal escrito é repescado e sucessivamente integrado na Bíblia, é algo que só os teólogos poderão aclarar. Mas que se trata de um texto para todo o tempo, profundamente atual, ninguém poderá duvidar. Os algoritmos utilizados por Eclesiastes estavam corretos, e com a vantagem de não nos condicionarem.

 

 

Nota: Frederico Lourenço, Bíblia, Antigo Testamento, Os Livros Sapienciais.

                                                 

 

 

 

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub