(196) “Tudo é vão, porque tudo é em vão”
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Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade, Eclesiastes.
O destino do tolo também a mim acontecerá. Então porque me tornei sábio?
Embora o ser humano se esforce para procurar, não encontrará o que procura.
Não existe coisa boa para o ser humano debaixo do Sol a não ser comer e beber e sentir prazer.
Com os conhecimentos científicos que atualmente temos, não parece apresentar grandes dificuldades a definição do que deve o ‘ser humano’ ser. Tudo parecemos já saber sobre a sua biologia, fisiologia, química, psicologia, etc., dando já quase como certo como deverá viver o seu futuro.
Ficamos (os que ficam), no entanto, sempre um pouco desconfiados com tanta recém-certeza, dado os presentes quase sempre adiados para um futuro que nos foram dizendo estar aí sempre à porta, com as perspetivas assentes em algoritmos científicos controlados às escondidas pelos que manhosamente se creem e autointitulam como sendo os merecidamente escolhidos novos donos disto tudo.
Há, contudo, uma outra forma para conhecermos, reconhecermos, quais são as características da vivência do ‘ser humano’, recorrendo antes a escritos milenares em que nos revemos revelados. Metodologia já utilizada para tentar definir o que se considera serem os paradigmas da ética, utilizando os exemplos de Job, de Ulisses, de Édipo, de Antígona, de Sócrates (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/188-eticas-49840).
Esses escritos baseiam-se na ideia de que a experiência, trazida pelos muitos anos vividos, pode servir de guia para as gerações seguintes. Partem da observação da vida e da necessidade de lidar com os seus diversos problemas e situações humanas, muitas vezes com instruções práticas sobre a forma como a devíamos viver, outras vezes com críticas e reflexões interrogativas sobre o sentido da vida, morte, justiça, vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc.
Esses escritos inscrevem-se naquilo que se costuma catalogar como “literatura de sabedoria”. Não faltam exemplos que se reportam aos muito antigos tempos da Suméria, Babilónia, Assíria, Egito e Grécia. São, por exemplo, os casos do mito da criação Enuma Elish (c. 1800 a.C.) e do épico de Gilgamesh (2800 a 2500 a.C.), onde a descrição do Dilúvio e das indicações para sobrevivência ao mesmo, são muito anteriores às descritas na Bíblia. Outros exemplos: o poema sumério Instruções de Suruppak (2500 a. C.),e os Trabalhos e Dias (700 a.C.) do poeta grego Hesíodo.
Também a enigmática e, talvez por isso igualmente inesgotável Bíblia, contém vários destes escritos de sabedoria, apresentados como Livros Sapienciais do Antigo Testamento: Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Job, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Salmos de Salomão.
Um desses escritos que nos dá essa sensação de ser um escrito de sempre e para sempre, é o Eclesiastes, incorretamente atribuído a Salomão (990 a 930 a.C.) e que os especialistas atuais datam de 580 a 200 a. C., do qual reproduzo aqui alguns excertos, começando pela sua afirmação inicial:
“Palavras de Eclesiates, filho de David, rei de Israel em Jerusalém.
Vacuidade de vacuidades: todas as coisas são vacuidade.
/Que vantagem existe para o ser humano/ em todo o seu esforço com que se esforça debaixo do Sol? / Uma geração passa; e uma geração chega; / e a terra fica de pé para sempre.
[…] Aquilo que aconteceu, isso mesmo irá acontecer. / E aquilo que foi feito, isso mesmo será feito. / Nada de novo existe debaixo do Sol. / Quem dirá e afirmará: “Eis que isto é novo”? /Isso já aconteceu nas idades que existiram antes de nós. / Não existe memória de pessoas anteriores, / nem dos que nasceram depois.
[…] “O destino do tolo também a mim acontecerá. / Então porque me tornei sábio?”
[…] Não há nada de bom no ser humano.
[…] Para todas as coisas há um tempo; / e há um tempo para todo o assunto debaixo do céu. / Tempo de dar à luz e tempo de morrer; / Tempo de plantar e tempo de arrancar o que foi plantado; / Tempo de matar e tempo de curar; / Tempo de deitar abaixo e tempo de construir; / Tempo de chorar e tempo de rir; / Tempo de estar de luto e tempo de dançar; /Tempo de atirar pedras e tempo de juntar pedras; /Tempo de abraçar e tempo de estar longe de um abraço; /Tempo de procurar e tempo de perder; / Tempo de guardar e tempo de atirar fora; / Tempo de rasgar e tempo de coser; / Tempo de calar e tempo de falar; / Tempo de amar e tempo de odiar; / Tempo de guerra e tempo de paz.
Que vantagem tem quem faz as coisas que faz?
[…] “Deus julgará o justo e o ímpio, / pois há um tempo para todo o assunto / e para toda a obra.”
[…] Acerca da fala de filhos do ser humano: / Pois Deus julgá-los-á / para mostrar que também eles são gado.” / Pois destino de filhos do ser humano / e destino do gado: / O destino de ambos é um. Assim como é a morte de um, do mesmo modo é morte do outro: / O espírito de todos é só um. / E o ser humano sobreleva em quê ao gado? / Nada. Porque todas as coisas são vacuidade. / Todas as coisas vão para um só lugar: / Todas as coisas vêm do pó; / e todas as coisas voltarão para o pó.
E eu voltei-me e vi a vacuidade debaixo do Sol. / Existe um solitário e não existe um segundo que lhe faça companhia: / pois não tem filho nem irmão. / Não há fim para todo o seu esforço; / e o olho dele não se satisfaz com riqueza. / “Para quem me esforço e privo a minha vida de felicidade?” / Pois, isto é vacuidade e uma preocupação negativa. / “Melhores são dois que um, / porque têm uma boa recompensa para o seu esforço. / Pois se caírem, um levantará o seu amigo. / E ai daquele que, quando cair, / não tenha outro para o levantar! / Pois se dois dormirem juntos, terão calor; / Um sozinho, como se aquecerá? / E se um for dominado, / dois estarão do lado dele; / E a corda tripla não será depressa quebrada. / Melhor é um rapaz pobre e sábio / do que um rei velho e tolo, / que já não soube dar atenção”.
Um bom nome é melhor do que azeite; / e o dia da morte de alguém é melhor do que o dia do seu nascimento. / É melhor entrar numa casa de luto / do que entrar numa casa de bebida, / porque esse luto é o fim de todo o ser humano / e o vivo dá-lo-á ao seu coração. / A ira é melhor do que o riso, / pois na má disposição do rosto o coração sentir-se-á bem. / O coração dos sábios reside em casa de sofrimento, / e o coração dos tolos, em casa de alegria. / É melhor ouvir a repreensão do sábio / do que um homem que ouve uma canção de tolos.
E louvei o prazer, / porque não existe coisa boa para o ser humano debaixo do Sol / a não ser comer e beber e sentir prazer.
[…] Foi então que vi todas as obras de Deus, / pois nenhum ser humano conseguirá / descobrir o feito que é feito debaixo do Sol. / Embora o ser humano se esforce para procurar, / não encontrará o que procura.
Vacuidade é algo que está em todas as coisas. / O mesmo destino existe para o justo e para o ímpio; / para o bom e para o mau; / para o puro e para o impuro, / para o que sacrifica e para o que não sacrifica. / O homem bom é como o pecador; / o que jura é como o que receia jurar. / Isto é um mal em tudo o que é feito debaixo do Sol: / o facto de ser só um o destino de todos.
[…] Pois os vivos saberão que vão morrer; / e os mortos não têm noção de nada. / Não há para eles recompensa, / porque foi olvidada a memória deles. / De facto, o amor deles e o ódio deles / e a inveja deles já pereceu; / E não lhes cabe nunca mais porção / em tudo o que é feito debaixo do Sol. / Vai, come o teu pão com prazer; / e bebe de bom ânimo o teu vinho, / porque Deus já aprovou as tuas obras. / […] Vê a vida com a mulher que tu amaste, / todos os dias da tua vida de vacuidade / que te são dados debaixo do Sol; / todos os dias da tua vacuidade, / porque isto é a tua porção na tua vida / e no teu esforço, com o qual te esforças debaixo do Sol.
[…] Que não é aos céleres que a corrida pertence; / nem aos fortes pertence a guerra; / nem aos sábios, o pão; / nem aos compreensivos, a riqueza; / nem aos inteligentes, a beleza; / porque tempo e destino acontecerão a todos eles.
[…] Vacuidade das vacuidades – disse o Eclesiastes -, tudo é vacuidade.”
Eclesiastes, como aquele que preside ou convoca uma assembleia, foi opção para o título escolhido pelo autor (desconhecido), apresentando-se como se fosse o próprio rei Salomão a escrevê-lo, um pseudo-Salomão. Percebe-se a escolha:
“confere credibilidade ao discurso cético acerca do valor da riqueza e dos bens materiais. Quem melhor que Salomão, detentor e dono de tudo (sabedoria, poder, riqueza, mulheres), para nos dizer que tudo o que acontece é ilusão? Para se compreender a profunda semelhança entre ‘tudo’ e ‘nada’, é preciso ter tido a experiência desse tudo. É preciso ter experimentado tudo”.
Alguns dos temas tratados referem-se ao propósito desta vida, à vida após a morte, à realidade do mal e da morte, à justiça retributiva das recompensas ou castigos de acordo com a obediência ou desobediência do ser humano.
Apesar de nas traduções tradicionais iniciarem o escrito com: “Palavras de Eclesiastes, filho de David, rei de Israel em Jerusalém: vaidade de vaidades – disse o Eclesiastes -, vaidade de vaidades, todas as coisas são vaidade”, Frederico Lourenço explica-nos que o termo grego “vaidade” não remete para a aceção narcisista de uma pessoa vaidosa, mas para a qualidade daquilo que é “em vão”. Pelo que optou traduzi-lo por “vacuidade”, ficando mais clara a afirmação de Eclesiastes, segundo a qual tudo é vão, porque tudo é em vão.
Surpreende a solução apontada por Eclesiastes para minorar a insatisfação humana, preconizando a contribuição do comer, beber e gozar do bem-estar, embora reconhecendo ao mesmo tempo que o apetite do ser humano não possa ser suscetível de satisfação.
Apontando para a impossibilidade da felicidade individual, também não acredita que ela possa ser alcançada coletivamente. E uma vez que bons e maus são tratados da mesma forma, tal significará que não existirá o bem comum, pelo que não vale a pena lutar por ele.
Interessante uma das justificações para a vivência a dois: a cama ficar mais quente.
Outro ponto importante tem que ver com a consciência de que todos os seres vivos da terra têm um mesmo destino comum. Ou seja, homens e animais ao terem todos o mesmo destino, faz com que o ser humano não seja considerado superior ao animal.
Como é que tal escrito é repescado e sucessivamente integrado na Bíblia, é algo que só os teólogos poderão aclarar. Mas que se trata de um texto para todo o tempo, profundamente atual, ninguém poderá duvidar. Os algoritmos utilizados por Eclesiastes estavam corretos, e com a vantagem de não nos condicionarem.
Nota: Frederico Lourenço, Bíblia, Antigo Testamento, Os Livros Sapienciais.