(193) "Vestir a camisola"
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A verdadeira felicidade pode ser condicionada e, portanto, ensinada.
Vivemos em mundos criados pelas nossas interrogações, David Cooperrider.
Todas as organizações existem para eliminar os desvios, Kim Cameron.
A psicologia positiva tem como finalidade acabar com o criticismo e formatar um grupo de forma a ele se tornar fraco e maleável, sonâmbulo suficiente para poder receber ordens.
A ideologia da harmonia é um assalto concertado à democracia.
Em vez de se pensar as empresas como sendo algo inanimado que a certa altura acabaria sempre por necessitar de remendos, arranjos, alterações, David Cooperrider (1954- ) começou a vê-las como organismos vivos cuja saúde dependia essencialmente das pessoas que nelas trabalhavam. Quanto melhor se sentissem, tanto melhor seria o estado das empresas. A questão seria como conseguir que os trabalhadores se sentissem bem numa empresa em mudança permanente.
A resposta explicitou-a ele na sua tese de doutoramento, (1985), Appreciative Inquiry: A Methodology for Advancing Social Innovation (Investigação Apreciativa: uma Metodologia para o Avanço Social da Inovação), em que vai propor a necessidade de se efetuar uma “Transformação Positiva”, para garantir o futuro das mudanças organizacionais das empresas, tendo como base o “pensamento positivo” que irá originar o otimismo como estado de espírito permanente.
Será através da aplicação da “Investigação Apreciativa”, que os trabalhadores acabarão por virem a tornar-se um conjunto feliz e harmonioso, que farão aumentar os lucros das empresas.
Haver harmonia nas empresas significa poder alcançar todos os objetivos. Tudo se torna possível. Os lucros podem sempre crescer. Precisamos apenas de ter a atitude certa, que é obtida quando fundirmos o nosso ser com o coletivo da empresa. Ao juntarmos o nosso querer ao de todos os outros que lá trabalham, acabaremos também por encontrar a felicidade pessoal.
Poderemos quase que religiosamente conseguir realizar o impossível. Para isso, basta pensar sobre as coisas, visualizá-las, desejá-las, e elas acontecerão.
A rápida aceitação deste princípio pelas principais corporações empresariais, Wal-Mart, Hewlett-Packard, United Way, Boeing, U S. Navy, American Red Cross, Carter Center, Nações Unidas, levou à explosão de conferências, palestras, workshops, para ensinarem, doutrinarem gestores, trabalhadores e suas famílias, bem como ao aparecimento de currículos variados nas principais universidades, algumas até com programas exclusivos de doutoramento em “Ciência de Psicologia Positiva” (Claremont Graduate University, University of East London, Universidade de Milão, Universidade Nacional Autónoma do México, etc.)
Mas, Cooperrider previa ainda um maior alcance para a Investigação Apreciativa:
“Por outras palavras, as instituições podem ser o veículo para trazer maior coragem ao mundo, para amplificar o amor no mundo, para amplificar a temperança e a justiça, e por aí fora”.
Vários cursos em Psicologia Positiva mostram que se nos focalizarmos em cultivar as nossas forças, otimismo, gratidão, e uma perspetiva positiva, conseguiremos prosperar mesmo nos tempos difíceis.
Recomendam mesmo, técnicas terapêuticas para alcançarmos a felicidade, como, por exemplo, escrever cartas de agradecimento aos que forem amáveis para connosco, escreverem para si próprios sobre o que fizeram de melhor quando se sentiram bem, referindo os seus aspetos positivos. Depois, devem rever essa história uma vez por dia durante uma semana e refletirem sobre as qualidades que identificaram. Tal conduzirá a um aumento de felicidade e a uma diminuição de sintomas depressivos.
Utilizam pequenas frases feitas que ficam no ouvido, como “Aprenda a falhar ou falhe a aprender”.
Estes especialistas em felicidade chegam a formular leis, como a “Lei da Atração”, segundo a qual conseguiremos coisas boas na vida, seja dinheiro, relações, ou emprego, se nos focalizarmos no que desejamos. Visualizemos aquilo que queremos, acreditemos que iremos conseguir.
Imensas escolas em todo o mundo estão a pôr na prática esta teoria. Por exemplo, a Geelong Grammar School, Austrália, segue um currículo de psicologia positiva, onde centenas de professores são ensinados, tal como se fossem missionários, para “espalharem a noção de educação positiva”.
O mesmo se passa para a resolução dos problemas educacionais e do convívio de pais e filhos. Afinal, a verdadeira felicidade pode ser condicionada e, portanto, ensinada.
Também não têm dúvidas que as ilusões positivas têm um efeito que pode ser mensurável nos rácios de sobrevivência nos doentes de cancro, sida, e doenças cardiovasculares ou cirurgias.
Os que não consigam exibir atitudes positivas serão considerados como doentes que necessitam de correção. “Pesquisas feitas com pessoas dos bairros degradados e com prostitutas, mostram que as emoções positivas têm menos a ver com os recursos materiais do que pensamos; têm muito mais a ver com a atitude e o modo como encaram as circunstâncias”.
Ou seja, as mulheres e crianças que são abusadas e batidas, os desempregados, os deprimidos, os doentes mentais, os iletrados, os abandonados, os que estão de luto pelos entes queridos, os esmagados pela pobreza, os doentes terminais, os que lutam contra a droga, os traumatizados, os que estão na armadilha dos empregos mal pagos, os que enfrentam o despejo ou a bancarrota por não poderem pagar as contas médicas, afinal apenas precisam de ultrapassarem a sua negatividade. A alquimia integral redescoberta.
Preciso é ter a atitude certa. E a atitude certa é nunca questionar as finalidades e os objetivos das empresas. Questioná-los é entrar no criticismo dos objetivos de um coletivo, é ser obstrutivo e negativo. As corporações é que têm o poder de determinar as suas identidades. As corporações dizem-nos quem nós somos e quem vamos ser. São o único caminho para o nosso preenchimento e salvação. Se não estivermos lá felizes é porque há qualquer coisa de errado connosco. Debater e criticar os objetivos e a estrutura da corporação é condenável, negativo e contraprodutivo.
Kim Cameron, professor de Gestão e Organizações, na Universidade de Michigan, explica como é que as corporações podem usar práticas “positivas e virtuosas” que levam ao aumento dos lucros:
“Todas as organizações existem para eliminar os desvios. A razão porque nos organizamos é para minimizar o não espectável, o caótico, o comportamento imprevisível. A organização existe para eliminar o desvio negativo.”
Cameron explicou aos executivos das empresas como através da felicidade, compaixão e bondade, conseguiriam aumentar os lucros. “Na organização ótima, o empregado é mais feliz, mais saudável, mais produtivo e mais barato. O trabalhador ótimo faz menos queixas. Obedece mais. Custa menos ao empregador em despesas com cuidados de saúde.”
Esta promoção de uma harmonia coletiva, debaixo da promessa de se alcançar a felicidade, é mais um outro mecanismo disfarçado para se conseguir a conformidade. A psicologia positiva tem como finalidade acabar com o criticismo e formatar um grupo por forma a ele se tornar fraco e maleável, sonâmbulo suficiente para poder receber ordens. Assim, por exemplo, quando ensinam aos gestores como falar com os empregados, não é para comunicarem com eles, mas para melhor os controlarem.
Quando os seus adeptos a apresentam apenas como “uma forma de gestão”, que até é bem melhor que a “gestão científica” de Frederick Taylor e a “engenharia social” de Henry Ford, estão mais uma vez a enganar-nos.
A desumanização a que conduziu a aplicação dos princípios de Taylor, “ao partir cada movimento dos operários num certo número de passos, para os reorganizar numa sequência mais eficiente, pela eliminação de movimentos desnecessários”, levou a que nos anos vinte do século passado, se tentasse uma nova aproximação com a finalidade do estabelecimento de uma nova ordem viável para as empresas.
Surgiram então os programas que permitiam a contratação coletiva, margens de lucro, seguros, planos de pensões, segurança na reforma, horas máximas de trabalho, e salário mínimo.
Sabemos que todos os sistemas de poder ao longo dos séculos, cujos exemplos mais recentes vão do colonialismo à globalização, têm usado a ideia da harmonia social como um mecanismo de controle. Qual, então, a diferença entre o que praticava Taylor, Ford, o acarinhado “amor à camisola” desportivo, e o que está agora sendo aplicado com esta teoria do “pensamento positivo”?
Resumidamente, são duas as grandes diferenças: a utilização de técnicas psicológicas específicas para motivar os trabalhadores, e o aumento cada vez maior do número de empresas que têm vindo a experimentar essas técnicas.
Dito de outra forma: há uma grande diferença entre harmonia social e ideologia da harmonia, entre positividade e ser genuinamente positivo. Esta caminhada para a harmonia conduz à censura encoberta e à autocensura. A tirania da harmonia levada ao limite, conduz a uma vida de fantasia que nos afasta da realidade presente. A ideologia da harmonia é um assalto concertado à democracia.
Durante os anos oitenta, a indústria automobilística dos EUA utilizou estas táticas de cooperação entre trabalho e gestão, para competirem com a indústria japonesa. Passaram a ser afixados nas paredes das fábricas, os números de carros japoneses e americanos vendidos. Ao lado dessas listagens, afixavam-se cartazes que diziam, “Estão a entrar na zona de guerra. Qualidade e produtividade são as nossas armas”.
Por exemplo, os trabalhadores da GM passaram a ser agrupados em “autogestionados”, em “círculos de qualidade” ou em equipas que formassem uma identidade. As equipas competiam entre si e com outras equipas por forma a aumentarem a produtividade, cada uma delas com nomes dados à sua escolha.
Deixaram de haver espaços reservados para estacionar ou casas de banho para os executivos. Gestores e trabalhadores comiam na cafetaria comum. Os trabalhadores da produção passaram a ser chamados de “associados” ou “técnicos” em vez de “trabalhadores” ou “empregados”.
Foram introduzidos sistemas de prestígio que indicavam o grau de apreciação que a empresa tinha dos seus “associados”, como bonés de cores diferentes, braçadeiras ou mesmo divisas. Eram reconhecidas as “equipas do mês”, incentivando os “jogadores da equipa” (team player).
Contudo, “qualquer símbolo de estatuto que fizesse lembrar qualquer sentimento de consciência de classe, era removido do local de trabalho”.
A base desta teoria, que reflete a ideologia de um estado empresarial, assenta na afirmação/ilusão de que a realização do indivíduo só é possível de atingir quando estiver em sintonia perfeita e em conformidade social, uma conformidade que todas as estruturas autoritárias e totalitárias procuram impor à queles que dominam. Já vimos o que isso deu. Estamos a ver o que isso dá.
Notas:
# Exemplo interessante de “team player” é o mostrado no filme passado em 2077, Esquecido (Oblivion), em que a parelha constituída por Jack Harper (Tom Cruise) e Vika (Andrea Riseborough) é constantemente relembrada pela supervisora Sally (Melissa Leo) sobre o seu trabalho como equipa, essencial para o cumprimento da “sua Missão”.
# Sobre o funcionamento de uma fábrica da GM-Toyota, ver Robert Ozaki, Human Capitalism: The Japanese Enterprise System as World Model.
# Sobre as novas relações de trabalho, ver Roberto González, Brave New Workplace: Cooperation, Control, and the New Industrial Relations.