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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(192) Emigrar para o Palácio de Cristal

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

O facto essencial da Idade Moderna não foi a descoberta que a Terra andasse à volta do Sol, mas que o dinheiro andasse à volta da Terra.

 

O Palácio de Cristal representa a tentativa para integrar toda a vida social num habitáculo protetor.

 

No modo de operar do ‘apartheid’ universal, encontramos por um lado, o facto de tornar invisível a pobreza nas zonas de prosperidade, e por outro, a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.

 

É esta mudança uma utopia? Não, a verdadeira utopia é acreditarmos que conseguiremos sobreviver sem essa mudança radical, Zizek.

 

 

 

No Hyde Park de Londres, a 1 de maio de 1851, a rainha Vitória, inaugurou a primeira Exposição Universal do mundo. Para a albergar, ergueu-se uma enorme construção feita com elementos modulares prefabricados, de metal, vidro e madeira, qual estufa gigante, de acordo com o plano traçado pelo perito em horticultura, Joseph Paxton. Acolhia dezassete mil expositores, sete mil dos quais da Grã-Bretanha e das suas trinta colónias, além de fontes, jardins e climatização.

Em 1854, num novo alarde de prodígio tecnológico, a construção foi desmontada, aumentada, e transportada para Sydenham, South Kensington, subúrbio de Londres, onde permaneceu como uma grande estufa e museu imperial da cultura, local de concertos com programas de música clássica interpretados perante enormes audiências (percursor dos centros comerciais e dos concertos pop nos estádios). Em 1936, acabou totalmente destruída por um incêndio.

 

Anotemos duas pequenas curiosidades: é a revista Punch, que na sua edição de 2 de novembro de 1850, vai chamar pela primeira vez ao palácio da Exposição,  “Palácio de Cristal”; o clube inglês de futebol, Crystal Palace, retira o seu nome do local para onde a Exposição fora transferida em 1854, e onde se veio a situar o seu campo de jogos.

 

Em 1862, quando Dostoiévski (1821-1881) visitou a Exposição Universal, já ela estava em South Kensington. As impressões  dessa sua visita, encontram-se reunidas  nas Notas de Inverno sobre Impressões de Verão, 1863, onde, entre outras considerações, zomba dos “sargentos-chefes da civilização”, e do “apego à estufa dos progressistas de orangerie”(uma referência jocosa e crítica, uma vez  que já desde 1617 as arcadas do Palácio do Louvre tinham sido fechadas com grandes superfícies transparentes de vidro, por baixo das quais se plantaram laranjeiras que ficavam assim protegidas do inverno).

Mas Dostoiévsky, manifesta sobretudo o grande receio que lhe inspirava a ostentação do que considera ser o “culto jubiloso e triunfal de Baal” (numa antevisão do que no século XX se viria a chamar de consumismo) que, quanto a ele, impregnava todo o palácio daquela Exposição Universal.

 Um edifício de luxo com ar climatizado, no qual devia reinar uma eterna primavera do consenso […] que haveria de levar a uma participação espontânea de todos no destino de todos”, “destinada a fazer da sociedade enquanto tal um objeto de uma exposição em si própria”.

É, ainda, o primeiro a comparar a civilização ocidental a esse “palácio de cristal”, onde a burguesia se pretendia rever como equação pós-histórica da humanidade, convencida da detenção do poder de compra, e segundo a qual: “Possuir dinheiro [era] a maior virtude e o maior dever humano”.

 

 

Passado pouco mais de um século, Peter Sloterdijk (1947-), já não tem dúvidas em considerar que o Palácio de Cristal representava “uma tentativa para integrar toda a vida social num habitáculo protetor”.

Essa camada protetora estaria para o capitalismo de então como a globalização está hoje para o sistema capitalista atual: determina-lhe as condições de vida, permitindo a construção e expansão de um mundo interior cujas fronteiras são invisíveis, e sem as quais ele não poderia subsistir, e que hoje é “habitado internamente” por um bilião e meio de vencedores. Fora dele são deixados mais de três vezes esse número.

 

Esse espaço interior capitalista global a que se chama geralmente “Ocidente ou esfera ocidentalizada”, “não constitui uma estrutura arquitetónica coerente: não é uma entidade semelhante a um prédio de habitação, mas uma instalação de conforto com a qualidade de uma estufa, … composto de enclaves pretensiosos e de cápsulas acolchoadas que formam um único continente artificial”.

“Embora seja concebida como um universo ‘indoors’, a grande estufa não precisa de epiderme fixa […] Só em casos excecionais concretiza as suas fronteiras num material duro, como no caso da barreira que separa o México e os Estados Unidos ou na chamada barreira de segurança entre Israel e a Cisjordânia. Mas as suas divisões mais eficazes… erige-as sobre a forma de descriminações, muros constituídos pela possibilidade de acesso à capacidade financeira que separam os possuidores e os não possuidores, muros erigidos pela repartição extremamente assimétrica das possibilidades de vida e das opções de emprego.

Na face interna, a comuna dos detentores do poder de compra põe em cena o seu sonho acordado de uma imunidade global que se acrescenta a um conforto de altitude estável e em expansão; na face externa, as maiorias mais ou menos esquecidas tentam sobreviver, entre as suas tradições e improvisações.

Há boas razões para afirmar que o conceito de ‘apartheid’, tendo sido eliminado na África do Sul, passa-se a ser generalizado a todo o espaço capitalista, após se ter desfeito da sua formulação racista e ter passado para um estado económico-cultural dificilmente compreensível.

Neste ‘modus operandi’ do ‘apartheid’ universal, encontramos por um lado, o facto de tornar invisível a pobreza nas zonas de prosperidade, e por outro, a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.”

 

Por tudo isto se pode dizer que a expressão “mundo globalizado” diz apenas respeito à instalação dinâmica que serve de invólucro do “mundo da vida” à fração de humanidade com poder de compra.

 

Para Sloterdijk, “o facto essencial da Idade Moderna não foi que a Terra andasse à volta do Sol, mas que o dinheiro andasse à volta da Terra”.

Essa primeira globalização não trouxe consigo apenas abertura e conquista, mas também a separação entre os que ficaram dentro e os que ficaram fora desse globo limitado. São processos inseparáveis, daí que o capitalismo global tenha introduzido uma divisão radical de classe, separando aqueles que tinham a proteção da esfera dos que ficavam fora da cúpula.

 Após esse processo que transformou o mundo numa cúpula, “a vida social só passou a ser possível num interior expandido, num espaço interior domesticado e artificialmente climatizado”.

É por isso que, por exemplo, quando as televisões nos trazem as imagens das migrações miseráveis em terras fora da cúpula, devemos lembrarmo-nos que, pelo menos, somos também corresponsáveis por esses horrores.

 

 

Quais são as respostas possíveis para este estado das coisas?

 

Uma primeira resposta, é tentar protegermo-nos do que está a acontecer “lá fora”, construindo muros de vários tipos. Um deles, mais sofisticado, é o apontar para a criação de uma “Nova Ordem Mundial” que garanta a coexistência pacífica de civilizações, aceitando “tolerantemente” as várias maneiras de viver de cada uma delas, desde que sejam nas suas regiões. O que implica aceitar que nos seus países, por exemplo, se realizem casamentos forçados de crianças, se pratique a homofobia, ou a violação de mulheres se forem sozinhas a locais públicos.

 Ao aceitar esta “tolerância”, o que o sistema nos está a dizer é que já não lhe interessa, já não comporta uma visão positiva da emancipação da humanidade. O problema é que falhando essa visão universalista, aparecerão as visões populistas, nacionalistas, de direita ou de esquerda.

 

A segunda resposta é a fornecida pelo capitalismo global de rosto humano, de grandes empresas socialmente responsáveis, personificadas nas figuras de Bill Gates, George Soros, e que na sua forma extrema podem até chegar a advogar a abertura das fronteiras para os refugiados, tratando-os como se fossem um de nós.

Com isso apenas minoram os sintomas do problema, deixando na mesma a situação global. Trazer todos para dentro da Cúpula poderá resolver os problemas sob o ponto de vista humanitário, mas já não resolve o problema maior que é o da sobrevivência do planeta Terra. Emigrar para o palácio de cristal já não resolve o problema.

 

A terceira resposta será a de termos a coragem para impor uma mudança radical que nos leve a assumir todas as consequências de vivermos numa só Terra, num único mundo. Pergunta e responde Zizek:

“É esta mudança uma utopia? Não, a verdadeira utopia é acreditarmos que conseguiremos sobreviver sem essa revolução”.

 

 

Notas:

Ver, Palácio de Cristal, (https://en.wikipedia.org/wiki/The_Crystal_Palace).

 

Ler também, o artigo de Sloterdijk sobre o Palácio de Cristal,

(https://public.journals.yorku.ca/index.php/public/article/viewFile/30252/27786).

 

Sobre a divisão do globo, consultar meu blog de 25 novembro de 2015, “O achatamento como forma de dominação”, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/o-achatamento-como-dominacao-8979).

 

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