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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(184) Nada de novo no admirável novo mundo

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

 

Governar através do terror produz menos resultados que governar através da manipulação não violenta do ambiente, dos pensamentos e das sensações dos indivíduos, sejam eles homens, mulheres ou crianças, A. Huxley.

 

Tal como a religião, a droga tem o poder de consolar e compensar, induzindo-nos visões de um outro mundo melhor, oferecendo-nos esperança, fortalecendo a fé e promovendo a caridade.

 

As drogas faziam parte do arsenal das armas utilizadas pelos Controladores do Mundo para pacificar e distrair os cidadãos da sua existência triste e sem significado.

 

A monogamia encarada como o “inimigo da civilização” onde a “promiscuidade era a norma”.

 

 

 

 

Bem interessante é aquela imagem popular do burro a ser alternadamente convencido a andar a bem ou a mal, com pau ou com cenoura, porque de certa forma ela encerra em si a nossa visão sobre as únicas possibilidades de movimentação da sociedade.

Em qualquer dos casos, as mentes mais lúcidas, até a extrapolam com vista ao futuro, curiosamente criando sempre distopias, ainda que distintas, como foram os casos de Aldous Huxley com o Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, e de George Orwell com o 1984, publicado em 1948.

 

Orwell, assentava a sua visão da sociedade do futuro, no controle total obtido pela aplicação de penalizações e castigos, apoiada numa burocracia estatal centralizada e disseminada a todos os níveis, que nos escamoteava a verdade, escondendo-nos os livros, não nos permitindo aceder à cultura, na tentativa de uniformização de todos os cidadãos.

Já para Huxley, o controle da sociedade do futuro, seria feito pela inoculação de doses de prazer através das quais a verdade desapareceria submersa num mar de irrelevância, onde não se necessitaria de esconder os livros porque ninguém os quereria ler, onde a informação não necessitaria de ser escamoteada porque era dada em quantidades tais que já ninguém ligava, ruído de fundo que nos tornava indiferentes, passivos e egoístas, e onde o aparecimento de tiranias era menorizado perante o quase infinito apetite dos homens por outras distrações.

 

Vinte e seis anos depois de ter escrito o Admirável Mundo Novo, Huxley publica o Admirável Mundo Novo Revisitado, (1958), concluindo que:

 

À medida que o tempo decorre, tornou-se claro que o controle dos comportamentos indesejáveis através da punição é menos efetivo que o controle dos comportamentos indesejáveis feito através do reforço de recompensas, e que o governo através do terror produz menos resultados que o governo feito através da manipulação não violenta do ambiente, dos pensamentos e sensações dos indivíduos, sejam eles homens, mulheres ou crianças “.

 

Recordemos, contudo, alguns condicionalismos previstos e seguidos para que esse Admirável Mundo Novo fosse possível. Por exemplo, uma das práticas correntes de controle societário era a utilização da manipulação pré-natal, pela eugenia ou digenia. Todos as crianças eram incubadas em provetas, uns com esperma biologicamente superior para produzirem Betas, Alfas ou Alfas +, que seriam os futuros condutores desse Mundo, e outros com esperma biologicamente inferior, tratados com álcool e proteínas nocivas para retardarem o seu desenvolvimento, que seriam os futuros trabalhadores.

 

Estes seriam quase sub-humanos, mas seriam capazes de desempenharem trabalhos não especializados e que, quando devidamente condicionados, com a possibilidade do acesso frequente e gratuito ao sexo oposto, com o acesso constante a espetáculos gratuitos e a doses diárias de Soma (drogas), não representariam qualquer problema para os seus superiores”.

 

A utilização indiscriminada e doseada de Soma (drogas) que não teriam qualquer efeito “psicológico ou mental”, permitiria “fazer com que todos andassem bem dispostos, retirando-lhes quaisquer constrangimentos que tivessem no trabalho e na vida familiar, sem com isso sacrificarem a saúde ou reduzirem a sua eficiência […] não constituía um vício privado, sendo antes a essência da Vida, Liberdade e da Via para a Felicidade garantidas na Declaração dos Direitos”.

 

O Soma era a religião do povo, pois, “como a religião, a droga tinha o poder de consolar e compensar, induzindo-nos visões de um outro mundo melhor, oferecendo-nos esperança, fortalecendo a fé e promovendo a caridade.”

O Soma era parte do arsenal das armas utilizadas pelos Controladores do Mundo para pacificar e distrair os cidadãos da sua existência triste e sem significado.

 

A euforia quimicamente induzida funcionava como substituto à satisfação de nos sentirmos livres e criativos […] alterando a química dos cérebros, usando tranquilizantes para acalmar os excitados, estimulantes para entusiasmar os indiferentes, alucinantes para distrair a atenção das misérias dos destroçados.”

 

Era assim que o sexo aparecia totalmente separado da emoção, funcionando apenas como uma compensação e distração prazenteira, e como indicador de estatuto ou sucesso. Pelo que a monogamia era encarada como o “inimigo da civilização” onde a “promiscuidade era a norma” e o “romance era considerado degenerado”.

A emoção, inteligência e família, eram vistos como travões ao desenvolvimento da individualidade. A escolha deveria ser sempre a de passar mais tempo consigo próprio.

 

Mas, mesmo este Admirável Mundo não era para todos. Fora desse Mundo onde todos viviam encantadoramente bem, nessa zona de consentimento,  existia fora dela, noutros terrenos separados por muros eletrificados, uma zona de coerção, uma “reserva” onde viviam os pobres e povos indígenas não condicionados, onde se praticava o casamento e se fazia vida familiar, com “superstições monstruosas” como o Cristianismo e o culto dos antepassados.

Era um lugar onde, segundo os guias turísticos explicavam, “pululavam doenças infeciosas, padres e lagartos venenosos”. Contudo, esses selvagens estavam totalmente domados, como resultado de terem sido sujeitos à tortura e à fome. E não tinham escapatória: os aí nascidos estavam condenados a aí morrerem, seguindo o caminho dos corpos que se viam amontoados jazendo junto à fronteira ao tentarem escalar os muros de contenção.

 

Na realidade, esse Admirável Mundo só existia porque o consentimento de uns era obtido devido à coerção de poderem vir a ser exportados para o outro mundo.

 

Quando Huxley escreve o Admirável Mundo Novo, situa-o no Estado Mundial de Londres, no ano 2540 (aliás, situa-o no ano AF 632, o que queria dizer 632 anos depois do aparecimento do primeiro modelo do Ford T, do Henry Ford que tanto o impressionara quando lera o My Life and Work, onde Ford explicava o seu sistema de montagem em cadeia e que serviria para o funcionamento de tudo).

Ainda lá não chegámos, faltam 400 anos e já quase tudo está realizado. Daí a nossa felicidade. Tivemos a sorte de ficar do lado de cá. Sermos brancos e homens.

 

 

 

Nota: Sobre distopias podem consultar o blog de 4 de julho de 2015, (https://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/a-distopia-do-presente-2547).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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