(183) A burca, segundo Platão
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O caminho para a inteligibilidade além de ser penoso, não é voluntário.
A realidade aparece diferentemente ao ser humano, conforme o grau de saber esforçado e constante por ele empregue para se aproximar do bem.
Devido á luz de que vinha imbuído, o sábio não conseguia acomodar a sua nova visão cheia de luz à penumbra da caverna. Como poderão os prisioneiros acreditar em alguém que nem consegue discernir as sombras que existiam na caverna?
Não é de admirar, que os prisioneiros ponham a hipótese de matarem o sábio.
Todos somos prisioneiros dos nossos sentidos, dos nossos e dos outros. Constatar este facto põe sempre várias interrogações, começando pelas tentativas para compreender o que é ser humano. Das respostas possíveis, algumas são mais abrangentes, outras mais elaboradas, muito poucas permanecem perenes, o que não significa que sejam as corretas.
Um dos textos fundamentais para esta compreensão do que é o ser humano, é o escrito por Platão (c. 429 – 347 a.C.) no livro VII de A República (514 a 517c), que ficou conhecido como “A Alegoria da Caverna”. Passados 2.500 anos, concordando-se ou não, a sua importância mantém-se profundamente atual e influente.
Excelente escritor e contador de histórias, “o melhor prosador grego” segundo Maria Helena da Rocha Pereira, os escritos de Platão aparecem-nos sob a forma de diálogos ou dramas filosóficos, em que a discussão dialética se encontrava sempre presente.
Esta modalidade, que parece ter sido praticada por todas as escolas socráticas,
“tem a vantagem de ligar as ideias aos homens que as enunciaram (Protágoras, Parménides), de fazer pressentir os conflitos latentes (Górgias, Ménon, onde intervém Anito, um dos acusadores de Sócrates), dar variedade e vida à exposição (como no Górgias e no Banquete, e no Protágoras com as suas mudanças de cenário)”.
Para não correr o risco de deixar de fora qualquer pormenor ou nuance do seu pensamento, torna-se indispensável transcrevê-lo na íntegra. Ouçamos um pouco como conversava connosco esse homem do século V antes de Cristo:
“Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estendesse a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente: são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência; por detrás deles entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos ‘robertos’ colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
- Estou a ver – disse ele.
- Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de valor; como é natural, os que os transportam, uns falam, outros seguem calados.
- Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que falas – observou ele.
- Semelhantes a nós – continuei. – Em primeiro lugar, pensa que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
- Como não – respondeu ele -, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?
- E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?
- Sem dúvida.
- Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam?
- É forçoso.
- E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da coisa que passava?
- Por Zeus, que sim!
- De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensariam que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.
- É absolutamente forçoso – disse ele.
- Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das correias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados a sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
- Muito mais – afirmou.
- Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?
- Seria assim – disse ele.
- E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?
- Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
- Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidos na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de comtemplar o que há no céu, e no próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
- Pois não!
- Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
- Necessariamente.
-Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.
- É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
- E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?
-Com certeza.
- E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com melhor agudeza os objetos que passavam, e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele iria ter saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo ‘servir junto de um homem pobre, como servo da gleba’ e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões de viver daquele modo?
- Suponho que seria assim – respondeu -, que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.
- Imagina ainda o seguinte – prossegui eu -: se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
- Com certeza.
- E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele, que por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até acima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
- Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
- Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirá a minha expectativa, já que é o teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.
- Concordo também, até onde sou capaz de seguir a tua imagem”.
Neste fabuloso texto, Platão pretende basicamente dizer-nos que a realidade aparece diferentemente ao ser humano, conforme o grau de saber esforçado e constante por ele empregue para se aproximar do bem, (‘bem’, como fonte de toda a inteligência e da possibilidade do ser).
Para alem das ilações óbvias que têm sido retiradas desta Alegoria, será interessante atentar em alguns pormenores, tais como:
A caverna não ser fechada (se o fosse, então todo o mundo possível seria só aquele que a caverna pretende representar, sem qualquer razão de existência para além dele, portanto sem qualquer possibilidade de transcendência).
Na caverna haver luz (o que implica uma possibilidade de ver, uma possibilidade da inteligência humana se poder manifestar, portanto a possibilidade de um ato do espírito humano).
Na caverna os prisioneiros ouvirem vozes (como os prisioneiros não sabem que essas vozes são as dos carregadores dos objetos, vão relacionar esses sons que ouvem com as sombras que veem, concluindo que são as sombras que falam; este é um ponto particularmente importante, pois trata-se da introdução da possibilidade do erro, com origem numa relação que não pode ser dada pelos sentidos: ver as sombras é verdadeiro, ouvir os sons é verdadeiro, mas ver sombras e conjugá-las com sons já não depende do conhecimento direto dado pelos sentidos, mas de uma mediação operada por meio de um juízo que escapa às possibilidades do que é possível naquelas circunstâncias apreender).
Ser na caverna que a libertação do prisioneiro se inicia, sendo ele obrigado a voltar-se para a luz (a luz como fonte de salvação, do bem, do conhecimento, mas que ao ser contemplada por quem vivia na escuridão causava dor aos olhos do prisioneiro; ele tem de ser obrigado a contemplá-la, porque por ele próprio nunca poderia desejar algo de que não tinha tido nenhum conhecimento: é que o caminho para a inteligibilidade além de ser penoso, não é voluntário).
O prisioneiro ter de ser arrastado caverna acima para contemplar a luz do sol, significando que nenhum ser humano deixa por si só uma qualquer condição de menoridade lógica em que esteja instalado.
Após a contemplação do sol e do que o sol ilumina, o prisioneiro compreende infinitamente, torna-se sábio, e por isso mesmo resolve descer ao mais fundo da caverna para ajudar os outros prisioneiros a libertarem-se, não ficando com a sabedoria só para si.
E vai tentar libertá-los, não à força como consigo fora feito, mas através da persuasão (será esta a função da filosofia), tentando tocar na inteligência dos seres humanos prisioneiros para que eles caminhem para a descoberta das possibilidades do conhecimento.
Para tal, era necessário que os prisioneiros acreditassem no que o sábio lhes vem propor, o que se torna manifestamente difícil: como poderão os prisioneiros acreditar em alguém que nem consegue discernir as sombras que existiam na caverna (devido á luz de que vinha imbuído, o sábio não consegue acomodar a sua nova visão cheia de luz à penumbra da caverna)?
E dada a radicalidade da proposta do sábio (que altera na totalidade a maneira de estar, o modo do que se conhece e o que se conhece, a saída da caverna), se ela for seguida e não resultar, tal poderá resultar na morte dos prisioneiros; não é de admirar, que os prisioneiros ponham a hipótese de matarem o sábio!
Há todo um mundo de problemas que se podem pôr. Aquele que as interpretações clássicas consideram mais importante é o seguinte: se, enquanto estivermos na caverna, não soubermos o que é a verdadeira realidade, o que nos leva a rejeitar ou a matar quem nos disser que possui o conhecimento para nos conduzir para fora da caverna, como poderemos alguma vez vir a obter o conhecimento?
Ao longo destes 2.500 anos que transcorreram, variadas foram as tentativas de respostas ensaiadas, umas melhores que outras, mas todas elas tiveram, e têm, sempre como ponto de partida o problema posto por Platão.
Nota: ensinamentos colhidos nas aulas do professor Américo Pereira, da UCP.