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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(177) A vida e a vida boa

Tempo estimado de leitura: 4 minutos.

 

 

Nós inventámos a felicidade”, Nietzsche.

 

“À política o que é da política, à economia o que é da economia”. Não é por acaso que tudo isso nos faça lembrar a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.

 

O empresário, por não estar sujeito a quem mande nele e o explore, julga-se ‘livre’. Ele passa a explorar-se a si próprio: o explorador é simultaneamente o explorado.

 

Continuamos a ser escravos do amo e amos do escravo, mas não somos homens livres.

 

A aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros, implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade.

 

 

 

 

            As Googles, Microsofts, Face Books, Intels, e outras similares, fazem parte de um conjunto de megaempresas onde se encontram os hackers/programadores modernos por elas contratados para que aí continuem a praticar os seus passatempos favoritos num ambiente legal e informal, sem restrições de maior, em espaços arquitetónicos e de grande envolvência que acrescentam sensações de bem-estar e liberdade, onde todos gostaríamos de estar.

 

 Podem continuar a ir para o emprego como se estivessem em casa, não há normas sociais de trajo e comportamento. Ténis, havaianas, skates, jeans, fato completo ou meio fato, camisa ou t-shirt, calções e sapatos, e tudo o mais que a imaginação à venda ditar, tudo serve para a realização dessa espécie de utopia proto socialista em que se pretende anular a oposição entre a atividade comercial alienada, mas pela qual se ganha dinheiro, e o passatempo privado que se leva a cabo por prazer.

 

A finalidade é fazer com que o trabalho apareça transformado em passatempo, fazendo assim que se passem longas horas no local de trabalho, sábados e domingos, à frente do computador: é que quando alguém é pago para desenvolver e finalizar o seu passatempo, fica exposto por ele próprio a uma maior pressão do que se estivesse a trabalhar segundo a ‘boa velha ética de trabalho protestante’.

 

No terceiro quartel do século passado, a transformação da sociedade começou a fazer-se sentir, nomeadamente no sistema económico. Há nitidamente uma alteração que vai levar a sociedade dita da ‘disciplina’, que formula proibições e onde o verbo é o ‘dever’, para uma sociedade de ‘rendimento’, em que o verbo passa a ser ‘poder’ (de possibilidade). Por várias razões (maior eficácia), o chicote e o mando são substituídos pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.

 

O ‘Estado mínimo’ proposto pelos neoliberais aparece como o epítome do ‘administrador da liberdade’, possibilitando enfim a liberdade do cidadão: ‘Vou procurar que tenhas a liberdade de seres livre!’.

O que acontece na prática é que por detrás desta aparente liberdade do indivíduo, este regime liberal esconde a sua estrutura coerciva: o ‘tu podes’ exerce muito mais coerção do que o ‘tu deves’.

Mais, se a pessoa fracassar no seu projeto, aparece (assume-se a si própria) como culpada. É que, como o sistema económico dominante (o capitalismo) não é nenhuma religião (onde há as categorias de ‘culpa’ e de ‘perdão’), a única categoria que nele existe é a de culpa (a dívida).

 

 

O neoliberalismo conduz à despolitização radical da economia. A necessidade de acabar ou reduzir ao mínimo a segurança social, a escola pública, os serviços de saúde públicos, as atividades culturais públicas, etc., são exemplos de como se pretende que a economia funcione: como simples manifestação do estado objetivo de coisas.

Ou seja, a aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade, que não exista qualquer forma de limitação radical da liberdade do capital, nem qualquer subordinação do processo de produção ao controle social.

À política o que é da política, à economia o que é da economia. Não é por acaso que tudo isso faça lembrar a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.

 

Na sua alegoria sobre o amo e o escravo, Hegel pretende demonstrar como o progresso histórico para a liberdade se torna possível através do jogo dialético entre o amo e o escravo: só com a libertação do escravo é que o amo se sentirá também libertado.

A história só chegaria ao fim quando fossemos na realidade livres de fato, quando não fossemos nem amos nem escravos, nem escravos do amo, nem amos do escravo.

 

O que acontece hoje é que nos encontramos numa fase histórica em que o amo e o escravo formam uma unidade. O escravo não trabalha para o amo, mas explora-se voluntariamente a si mesmo. Como empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.

Os empresários, os novos empreendedores, os free lancers, por não estarem sujeitos a quem mande neles e que os explorem, julgam-se ‘livres’. O que acontece é que passam a explorarem-se a eles próprios: o explorador é simultaneamente o explorado.

 

Ou seja, contrariamente ao jogo dialético das contradições imaginadas por Hegel, o que se alcançou foi um patamar superior onde a liberdade se encontra mais coartada.

 

Na Política, Aristóteles escreve:

 

Em consequência, algumas pessoas supõem que é uma função da administração doméstica o aumentar a propriedade e vivem continuamente com a ideia que é um dever salvaguardar as suas posses monetárias ou aumentá-los para um patamar ilimitado. A causa desta atitude da mente reside no fato de os seus interesses se concentrarem apenas na vida, e não na vida boa”.

 

Traduzido para a atualidade, tal significará que o sistema económico de hoje, com a sua compulsão para a acumulação e para o crescimento, absolutiza a mera vida. O seu fim não é a vida boa.

 

Perdida esta teleologia da vida boa, o processo do capital e da produção acelera-se até ao infinito, perdendo a sua direção, a sua finalidade. É a vida obscena.

 

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