(177) A vida e a vida boa
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“Nós inventámos a felicidade”, Nietzsche.
“À política o que é da política, à economia o que é da economia”. Não é por acaso que tudo isso nos faça lembrar a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.
O empresário, por não estar sujeito a quem mande nele e o explore, julga-se ‘livre’. Ele passa a explorar-se a si próprio: o explorador é simultaneamente o explorado.
Continuamos a ser escravos do amo e amos do escravo, mas não somos homens livres.
A aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros, implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade.
As Googles, Microsofts, Face Books, Intels, e outras similares, fazem parte de um conjunto de megaempresas onde se encontram os hackers/programadores modernos por elas contratados para que aí continuem a praticar os seus passatempos favoritos num ambiente legal e informal, sem restrições de maior, em espaços arquitetónicos e de grande envolvência que acrescentam sensações de bem-estar e liberdade, onde todos gostaríamos de estar.
Podem continuar a ir para o emprego como se estivessem em casa, não há normas sociais de trajo e comportamento. Ténis, havaianas, skates, jeans, fato completo ou meio fato, camisa ou t-shirt, calções e sapatos, e tudo o mais que a imaginação à venda ditar, tudo serve para a realização dessa espécie de utopia proto socialista em que se pretende anular a oposição entre a atividade comercial alienada, mas pela qual se ganha dinheiro, e o passatempo privado que se leva a cabo por prazer.
A finalidade é fazer com que o trabalho apareça transformado em passatempo, fazendo assim que se passem longas horas no local de trabalho, sábados e domingos, à frente do computador: é que quando alguém é pago para desenvolver e finalizar o seu passatempo, fica exposto por ele próprio a uma maior pressão do que se estivesse a trabalhar segundo a ‘boa velha ética de trabalho protestante’.
No terceiro quartel do século passado, a transformação da sociedade começou a fazer-se sentir, nomeadamente no sistema económico. Há nitidamente uma alteração que vai levar a sociedade dita da ‘disciplina’, que formula proibições e onde o verbo é o ‘dever’, para uma sociedade de ‘rendimento’, em que o verbo passa a ser ‘poder’ (de possibilidade). Por várias razões (maior eficácia), o chicote e o mando são substituídos pela motivação, pela iniciativa, pelo projeto.
O ‘Estado mínimo’ proposto pelos neoliberais aparece como o epítome do ‘administrador da liberdade’, possibilitando enfim a liberdade do cidadão: ‘Vou procurar que tenhas a liberdade de seres livre!’.
O que acontece na prática é que por detrás desta aparente liberdade do indivíduo, este regime liberal esconde a sua estrutura coerciva: o ‘tu podes’ exerce muito mais coerção do que o ‘tu deves’.
Mais, se a pessoa fracassar no seu projeto, aparece (assume-se a si própria) como culpada. É que, como o sistema económico dominante (o capitalismo) não é nenhuma religião (onde há as categorias de ‘culpa’ e de ‘perdão’), a única categoria que nele existe é a de culpa (a dívida).
O neoliberalismo conduz à despolitização radical da economia. A necessidade de acabar ou reduzir ao mínimo a segurança social, a escola pública, os serviços de saúde públicos, as atividades culturais públicas, etc., são exemplos de como se pretende que a economia funcione: como simples manifestação do estado objetivo de coisas.
Ou seja, a aceitação pela sociedade que a economia, o capital, os mecanismos e instrumentos de mercado são neutros implica que não exista qualquer debate público sobre decisões a longo prazo para a sociedade, que não exista qualquer forma de limitação radical da liberdade do capital, nem qualquer subordinação do processo de produção ao controle social.
À política o que é da política, à economia o que é da economia. Não é por acaso que tudo isso faça lembrar a imagem do exteriormente higiénico Pilatos. Muitos outros depois dele lavam sempre as mãos.
Na sua alegoria sobre o amo e o escravo, Hegel pretende demonstrar como o progresso histórico para a liberdade se torna possível através do jogo dialético entre o amo e o escravo: só com a libertação do escravo é que o amo se sentirá também libertado.
A história só chegaria ao fim quando fossemos na realidade livres de fato, quando não fossemos nem amos nem escravos, nem escravos do amo, nem amos do escravo.
O que acontece hoje é que nos encontramos numa fase histórica em que o amo e o escravo formam uma unidade. O escravo não trabalha para o amo, mas explora-se voluntariamente a si mesmo. Como empresário de si próprio é amo e escravo à vez. Continuamos amos do escravo e escravos do amo, mas não somos homens livres, o que deveria ter acontecido.
Os empresários, os novos empreendedores, os free lancers, por não estarem sujeitos a quem mande neles e que os explorem, julgam-se ‘livres’. O que acontece é que passam a explorarem-se a eles próprios: o explorador é simultaneamente o explorado.
Ou seja, contrariamente ao jogo dialético das contradições imaginadas por Hegel, o que se alcançou foi um patamar superior onde a liberdade se encontra mais coartada.
Na Política, Aristóteles escreve:
“Em consequência, algumas pessoas supõem que é uma função da administração doméstica o aumentar a propriedade e vivem continuamente com a ideia que é um dever salvaguardar as suas posses monetárias ou aumentá-los para um patamar ilimitado. A causa desta atitude da mente reside no fato de os seus interesses se concentrarem apenas na vida, e não na vida boa”.
Traduzido para a atualidade, tal significará que o sistema económico de hoje, com a sua compulsão para a acumulação e para o crescimento, absolutiza a mera vida. O seu fim não é a vida boa.
Perdida esta teleologia da vida boa, o processo do capital e da produção acelera-se até ao infinito, perdendo a sua direção, a sua finalidade. É a vida obscena.