(174) "Delirante Brasil"
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O futuro do Brasil é amanhã … mas amanhã é feriado, provérbio carioca.
Os negros fugiam, apesar dos castigos quando eram apanhados: orelhas, língua ou tornozelos cortados, castração, entranhas atulhadas de pólvora e depois o fogo chegado às nádegas.
Não há trabalho ou espécie de vida no mundo que mais se assemelhe à Cruz e à Paixão de Cristo do que a vossa, padre António Vieira.
Cada vez que 1 dólar vem dos Estados Unidos para o Brasil, partem 2 do Brasil para os Estados Unidos.
Em 1964, Pierre Rondière, escreveu uma das obras mais interessantes sobre esse enormemente diverso e rico país que é o Brasil, e que com ternura intitulou de Delirante Brasil. De Copacabana à Amazónia. Acabou de o escrever quando se deu o levantamento militar que fez cair o governo eleito do presidente João Goulart.
Revisitá-lo 54 anos depois, transcrevendo algumas das suas passagens, revela-se importante para a compreensão, não só do que passa no Brasil, mas para o que se passa neste nosso mundo.
Andar de autocarro no Leblon
“Mas o “lotação” bamboleante encanta-me. Mete passageiros a um simples sinal indolente que venha do passeio: o condutor trabalha à percentagem. E pára, para a saída, com a mesma simplicidade: uma sacudidela num fio que se alonga de um lado e de outro, só o tempo de travar e desce-se. Não há passageiros de pé. Proibido. Quando todos os assentos estão ocupados, não pára. É uma precaução elementar: nas curvas, os passageiros têm de agarrar-se ao assento da frente, e nos túneis, onde a corrida é da praxe, os trinta ocupantes têm a mesma atitude, na previsão de um choque possível. Nem um só carro particular se atreve a enfrentar este slalom violento, estes riscos perpétuos: encosta-se quanto pode. Toda a gente sabe no Rio o que pode a impetuosidade de um homem à percentagem. Era um prazer quotidiano que ainda hoje sinto a falta.”
Escala de preços e moeda nacional
“A escala de preços é vertical, no Brasil: desde 1957 os preços mais que quadruplicaram, 414 por cento exatamente. Só no ano de 1962, uma subida de 60 por cento. Um quilo de arroz saltou de 40 cruzeiros em 1956 para 600 cruzeiros atualmente […] em 1962, exasperados pela fome, (as famílias do Rio) invadiram lojas e armazéns e roubaram sacos de açúcar e de feijão, abandonando pelo chão quarenta e dois mortos e setecentos feridos.
[…] A moeda nacional afunda-se ainda mais depressa do que sobem os preços. […] E, contudo, o Brasil, em cinco anos, dobrou o volume das suas exportações. Façanha que não tem qualquer equivalente no mundo.”
Índices da miséria e riqueza
“Mais de 50 por cento dos habitantes do Rio morrem antes dos 19 anos. […] Na escola do Engenho de Dentro, no Estado do Rio, 4,3 por cento das crianças tomam leite uma vez por dia; 19,4 por cento uma vez dia sim, dia não; e 76,3 por cento jamais bebe uma gota que seja. O consumo médio, em todo o Brasil, não ultrapassa 20 g por dia, contra 1024 g na Suíça. […]
Segundo a estatística do último recenseamento do Brasil: 50 dos 70 milhões de brasileiros vivem no campo e 82 por cento deles não tem sequer uma jeira de terra. Em contrapartida, 1,6 por cento dos proprietários de terras possui 60,8 por cento das terras e, em 1950, só 10 por cento da superfície das propriedades era cultivada de maneira permanente.”
Ouro e Independência
“Para dar caça ao Índio e às pedras preciosas, punhados de aventureiros subiam e desciam os rios, e os Paulistas desbravavam os caminhos do interior. Em Ouro Preto um destes bandos, por acaso, como acontece em todas as grandes descobertas, encontrou uma mão-cheia de ouro. Era no ano da graça de 1700 e o século XVIII começava com este toque de trombeta.
Foi a inundação. O Brasil, que, entre 1600 e 1700, não registara mais de 30.000 entradas, viu afluírem mais de 3 milhões de voluntários. A tal ponto que o Governo de Lisboa teve de proibir a saída para o Brasil: o minúsculo Portugal esvaziava-se.
O Estado de Minas forneceu então quase a metade de todo o ouro do mundo: 1.500.000 kg num século […] A fome tinha acompanhado esta horda que não viera para fixar-se, mas para fazer fortuna. E ali, como no Lavrador um século mais tarde, um frasco de sal valia um frasco de ouro. O ouro só enriquece os traficantes de segunda mão, tal como nos exércitos só os fornecedores fazem fortuna.
[…] a corte de Portugal tinha retirado o máximo dessa fortuna inesperada. Logo que fora prevenida, Lisboa instituíra o imposto. O ‘quinto’ do ouro e das pedras preciosas pertencia-lhe por direito divino. Mas o ouro, como as pedras preciosas, é uma mercadoria facilmente escamoteável, e por isso se fixou um mínimo: 1.500 kg por ano. Quando o ‘quinto’ não atingia esse mínimo vital para a corte longínqua, era o terror, as rusgas, a prisão. […]
Contra esta pesada opressão levantaram-se os Mineiros. As conspirações sucederam-se, selvaticamente reprimidas. […] A opressão portuguesa chegava ao ponto de proibir a instalação de ourives na colónia. Tudo, absolutamente tudo, deveria chegar da metrópole e para lá seguir […] Em Minas, um médico, alguns poetas, militares, padres e um tenente, Joaquim da Silva Xavier, um pouco dentista também e poeticamente alcunhado de “Tiradentes”, conspiravam para implantar a república.
Denunciados e presos, o movimento abortou. Tiradentes […] foi enforcado a 21 de abril de 1792, às 11 horas”.
Bloqueio à reforma agrária
“Setenta por cento do Brasil está no campo e praticamente todos os deputados que de lá vêm são latifundiários, evidentemente. Isto constitui um grande naco deles na Câmara. Eles compram votos, forçam a votar à sua vontade, misturam os boletins … toda uma culinária que bloqueia as reformas. Um deputado de S. Paulo representa aqui 60.000 votos, um deputado de Maranhão vale 20.000 votos. E o Maranhão são 75 por cento de analfabetos, um médico para cada 5.000 habitantes no interior e, em todo o Estado, uma única cidade com esgotos: o reino absoluto dum punhado de grandes proprietários, de algumas famílias que se metralham de temos a tempos”.
Capitais estrangeiros
“Os capitais estrangeiros […] que são essencialmente americanos […] controlam o Brasil: 50 por cento do ferro e dos laminados; 50 por cento da indústria de carnes; 56 por cento da indústria têxtil; 72 por cento da produção de eletricidade; 80 por cento da produção de aço; 80 por cento da produção de cigarros; 80 por cento da produção farmacêutica; 98 por cento da indústria automóvel; 100 por cento da distribuição de petróleo e de gasolina.”
A drenagem do capital do Brasil
“O montante de subsídios norte-americanos ao Brasil não é grande nem pequeno: é negativo […] Segundo Andrew Gunder Frank, especialista de economia internacional, diplomado pela Universidade de Chicago, e investigador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, vieram dos Estados Unidos 1 bilião 814 milhões de dólares para investimentos no Brasil e daqui saíram 3 biliões 481 milhões, quase o dobro […] pode daqui concluir-se que cada vez que 1 dólar vem dos Estados Unidos para o Brasil, partem 2 do Brasil para os Estados Unidos.”
Brasília funcional
“Aprecio sobretudo a diligência administrativa, a rapidez dos serviços da Presidência […] Brasília funciona! apesar de ter sido necessário, de princípio, que o ex-presidente Kubitschek, oferecesse a cada deputado e senador um apartamento gratuito para conseguir despega-los do Rio […].”
A fome no polígono da seca
“Quando a seca se instala, geral e progressiva, alargando-se por vários anos, como em 1876, 1915, 1932, 1951, o gado tenta primeiro arrancar, com os seus cascos e com a boca ensanguentada, os espinhos dos catos aquosos e acalmar, por algum tempo, fome e sede. Depois, aniquiladas pela inação, pela sarna e pela peste, as bestas caem e morrem às centenas, aos milhares, e os cursos de água secos transformam-se em jazigos, mais tarde num amontoado de esqueletos.
A fome ataca os homens: roendo-lhes as vísceras, abrindo-lhes buracos e chagas na pele, destruindo-lhes a mente […] Quando toda a esperança está perdida, então milhares de foragidos flagelados pregam portas e janelas e fogem, em longas filas, cambaleantes. Comem raízes, farinha de madeira, cascas muitas vezes tóxicas e mortais.; e torturados, vacilantes, destroçados pela diarreia e vomitando os horrores que ingurgitam, cabeça e pés escaldantes, avançam ofegando e gemendo. Crianças de 5 anos voltam então a gatinhar. Avançam esqueléticos, perdendo dentes e cabelo, a pele enegrecida e grudada aos ossos salientes, toa a carne digerida semeando de cruzes o caminho do sertão para o mar. Só no Ceará, em 1877-1879, houve mais de 500.000 mortos, metade da população […]
Em 1951-1953, a especulação multiplicou a tragédia. Os transportadores oferecem os seus ‘poleiros de papagaios’ aos flagelados. Famílias inteiras foram vendidas aos fazendeiros de Goiás, num total de 2.500 camiões carregados a transbordar.”
A escravatura
“Toda a gente se meteu no negócio: os Portugueses (subindo o rio Níger ao longo de 800 léguas, reuniam, só por si, e anualmente, 12.000 a 15.000 cativos, só em Angola), os Holandeses, os Dinamarqueses, os Franceses (só em Nantes, entre 1713 e 1792, foram feitas 1313 partida e 284.155 negros ‘oficialmente’ encaminhados) e os Ingleses (cuja Companhia Real embarcou em 10 anos 46.000 ‘fardos’ e os comerciantes particulares, em 3 anos 42.000 ‘cabeças’). Num único ano, 100 navios partiram de Londres e Liverpul, para percorrerem o triângulo. Primeiro lado: Europa-África com a bugiganga a bordo; segundo lado: África-América com o carregamento de carne; terceiro lado: América-Europa com o açúcar e, mais tarde, o algodão ou qualquer outro produto raro. Nada é mais lucrativo naquela época: o empate inicial fica multiplicado por dez. […]
Como outros diários de bordo assinalam: ‘700 cativos, 300 mortos’; ou ‘640 cativos, 105 mortos e 200 doentes’ […] O Atlântico é o ‘cemitério marinho’ da África.
[…] Por uma simples suspeita, escreve La Roncière, uma preta foi condenada à morte:
‘Suspenderam-na num mastro para chicoteá-la e depois, com as facas, cortaram-lhe cem filetes de carne até que os ossos ficassem a nu’.
[…] Nos Estados Unidos, quando a lei federal proibiu, em 1808, a importação de novos escravos, certas plantações do Estado de Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Tennessee e Missouri, praticaram a criação humana (‘breeding states’, ‘fazendas de criação’) para fornecer de mão de obra escrava a cultura algodoeira em plena expansão.
[…] Os negros fugiam, apesar de vigiados e perseguidos por toda a polícia, apesar das emboscadas mortais da floresta, apesar do direito de todo o homem livre de abatê-los sem aviso, apesar dos castigos quando eram apanhados: orelhas, língua ou tornozelos cortados, olhos furados, castração, entranhas atulhadas de pólvora e depois o fogo chegado às nádegas.
[…] E a mulher do senhor acrescentava uma nota histérica de sadismo: quebrando com os tacões, os dentes demasiados brancos duma mulata, fazendo-lhe arrancar as unhas, queimar as orelhas ou as feições demasiado regulares, cortar os seios demasiado tentadores …. Ciumenta uma vez por todas, ela mandava que à mulher demasiado amada do senhor fossem arrancados os olhos e que lhos trouxessem, sangrentos, à sobremesa.
Mas os negros fugiam para todo o interior do Brasil e chegaram mesmo a fundar uma república, a República dos Palmares […] uma república que viveu de 1630 a 1695, 65 anos, apesar de 16 expedições armadas … para a subjugar.
[…] Em 1865 foi necessária a artilharia. O que se seguiu, ninguém ousou escrevê-lo. Zumbi, o seu chefe, suicidou-se. O Banco de Inglaterra havia sido fundado no ano anterior e Luís XIV dava festas em Versalhes.
[…] Em 1839 um levantamento apaixonado agita o Maranhão, mas logo no começo á abafado. Jamais se saberá o nome dos heróis nem o número de pés cortados por uma pretensa fuga, ou de crânios esmagados por um olhar menos humilde.
Por epitáfio, uma frase do padre António Vieira num sermão aos escravos: “Não há trabalho ou espécie de vida no mundo que mais se assemelhe à Cruz e à Paixão de Cristo do que a vossa”.
Em tempo: este artigo continua no próximo blog, “Para lá do Equador não há pecado”.