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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(173) Como viver feliz, segundo Descartes

Tempo estimado de leitura: 5 minutos.

 

 

 Um mundo onde nada é seguro, e onde tudo é possível.

 

O homem nada sabe, porque o homem não é nada, Montaigne.

 

Só quando se quer o que se pode adquirir, é que se pode adquirir tudo o que se quer, segundo a filosofia estoica.

 

Quando não se tem o que se ama, ama-se o que se tem, Bernard Shaw. 

 

 

 

 

Em tempos de incerteza, confusão e grandes mudanças, em que temos dificuldade em saber onde nos apoiar, o que é certo ou errado, é normal que aos poucos as dúvidas se vão instalando. Tal acontece não só agora, como também aconteceu em vários outros períodos históricos anteriores, nomeadamente no século XVI, onde se assistiu à destruição da unidade política e religiosa da Europa, da autoridade da Bíblia e de Aristóteles, do prestígio da Igreja e do Estado, das “verdades” da fé pela nova ciência.

Privado das suas normas tradicionais de juízo e escolha, o homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. “Mundo onde nada é seguro, e onde tudo é possível”.

Montaigne, vai concluir que num mundo incerto, tudo não passa de mera “opinião”. E, na busca do equilíbrio que lhe permitisse minimamente entender-se, faz o balanço: “o homem nada sabe, porque o homem não é nada”.

 

Relembremos que esses foram os tempos em que Nicolau Copérnico (1473 – 1543) pôs a hipótese de ser a Terra que andava à volta do Sol, violando, assim, o princípio da física aristotélica aceite pela Igreja, segundo a qual toda a matéria da Terra convergia para o centro do universo, o que fazia da Terra um globo sólido rodeado de ar e água, que ocupava imóvel a posição central do universo.

Foram os tempos em que Galileu (1564 – 1642), olhando os céus através do recém-inventado telescópio, descobriu (1610) várias luas que circulavam à volta de Júpiter, pondo em dúvida o local privilegiado e único ocupado pela Terra. E, em que Kepler (1571 – 1630), publica novos trabalhos matemáticos no campo da ótica, explicando (1604 e 1611) que a lente do olho forma uma imagem na retina e como é que o telescópio funcionava.

 

Foram os tempos em que Descartes (1596 – 1650), após a sua formação em direito, afirma que o que lhe tinham ensinado não servia para nada, passa a dedicar-se à matemática e outras ciências, na tentativa de encontrar um método universal que permitisse, sem lugar a qualquer dúvida, separar o verdadeiro do falso. Estava convicto que poderia explicar “não apenas um único Fenómeno”, mas “todos os Fenómenos da natureza, ou seja, toda a Física”.

Com o trabalho quase concluído e pronto para publicação, chega-lhe a notícia que Galileu tinha sido condenado pela Santa Inquisição Católica (1633) por defender a hipótese de Copérnico, segundo a qual a Terra se movia à volta do Sol. Como nos seus trabalhos, Descartes, seguia a hipótese de Copérnico aplicada à Física, entendeu ser melhor suprimi-los, tendo mesmo considerado queimá-los.

 

Continuando, apesar de tudo, com o seu projeto de reformar as ciências, decide, quatro anos depois, tentar publicar apenas o prefácio dos três ensaios que se lhe seguiriam. Prudentemente e dissimuladamente, fá-lo como autor anónimo (apesar dos conhecidos saberem quem era o autor), e escrito em francês (à época, todas as obras científicas eram publicadas em latim). É o aparecimento do “Discurso do Método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências, mais a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria, que são os Ensaios deste método”, que, quando publicado na totalidade com os três ensaios, seria um volume de 527 páginas.

 

É na Terceira Parte deste famoso Discurso do Método, que Descartes vai tentar explicar-nos como se conseguir viver nos tempos de incerteza e ser feliz. Segundo ele, para “se não ficar irresoluto na sua conduta, enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos juízos, e para não deixar de viver o mais felizmente possível”, teve de formar para ele próprio uma “moral provisória”, constituída por três ou quatro máximas.

Eis o que nos diz na sua terceira máxima:

 

 

 

A minha terceira máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. E isto, por si só, parecia-me ser suficiente para me impedir, futuramente, de desejar algo que não pudesse adquirir e, assim, tornar-me contente.

Pois como a nossa vontade naturalmente só deseja as coisas que o entendimento lhe apresenta de algum modo como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que estão fora de nós com igualmente afastados do nosso poder, não lastimaremos mais a falta dos que parecem dever-se ao nascimento, quando deles privados sem nossa culpa, do que lastimamos por não possuirmos os reinos da China ou do México; e que, fazendo, como se costuma dizer, da necessidade virtude, não desejaremos mais ter saúde, quando doentes, ou ser livres, quando prisioneiros do que desejamos agora ter corpos de matéria tão pouco corruptível como os diamantes, ou asas para voar como as aves.

 Mas confesso que são necessários um longo exercício e uma meditação muitas vezes repetida para nos habituarmos a encarar assim todas as coisas; e creio que é sobretudo nisto que consistia o segredo desses filósofos que outrora puderam subtrair-se ao domínio da fortuna e, apesar dos sofrimentos e da pobreza, disputar a felicidade aos deuses. Porque, ocupando-se constantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos próprios pensamentos, que só isso bastava para os impedir de terem alguma afeição por outras coisas; e dispunham deles tão absolutamente que, de certo modo, tinham razão em considerarem-se mais ricos e poderosos, mais livres e felizes do que quaisquer outros homens que, não tendo essa filosofia, por muito favorecidos que fossem pela natureza e pela fortuna, nunca dispõem assim de tudo o que querem.

 

 

 

Em resumo, e tal como os filósofos estoicos já tinham exprimido, só quando se quer o que se pode adquirir, é que se pode adquirir tudo o que se quer. E só quando se quer que as coisas exteriores aconteçam como acontecem, é que acontecem sempre como queremos.

Na mesma linha, transpondo-a agora para o campo das relações amorosas, dizia Bernard Shaw (1856 – 1950), que “quando não se tem o que se ama, ama-se o que se tem”.

 

 

 

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