(163) A Cultura como sujeição política
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O Iluminismo nasce a partir de um grande movimento que pretende combater todas as formas de autoritarismo, político, religioso, moral, etc., num combate contra a credulidade e os seus efeitos de dominação.
Saber, não é já aceder às verdades eternas de Deus, mas antes melhorar a nossa própria compreensão e relação com o mundo que nos rodeia.
Aos poucos, “melhorar” vai significar prosperar, e o progresso do género humano vai identificar-se com o aumento da riqueza.
Somos ilustrados e analfabetos ao mesmo tempo.
É hoje claro que o chamado “tempo moderno”, a “modernização”, foi um projeto histórico concreto das classes dominantes europeias, vinculado ao desenvolvimento do capitalismo industrial através da colonização.
E que esse seu processo civilizacional conduziu à partição (dualização) da realidade ente o antigo e o novo, o passado e o futuro, a raça branca e as outras, a tecnologia e os saberes menores, a tradição e a inovação, a razão e a superstição, nós e eles, o mundo natural e o humano, a natureza e a cultura.
Onde ela chegou, dividiu. Pelo que não é de estranhar que tenha deixado uma espécie de consenso anti moderno, uma certa ira e ressentimento, que muitas vezes se manifesta como um anti Iluminismo.
Ouçamos Pankaj Mishra:
“Os ambiciosos filósofos do Iluminismo deram à luz a ideia de uma sociedade perfectível, um Céu na terra mais que no mais além. Esta ideia foi adotada com entusiasmo pelos revolucionários franceses – Saint-Just, um dos mais fanáticos, comentou memoravelmente que “a ideia de felicidade é nova na Europa” - antes de se converter na nova religião política do século XIX. Introduzida até ao coração do mundo pós-colonial no século XX, converteu-se em fé na modernização imposta desde cima.”
É a acusação contra o Iluminismo, ainda hoje muito utilizada, de ter querido substituir a religião pela ciência, fazendo dela uma nova religião.
É a confusão premeditada entre o impulso emancipador que guia o desejo de uma vida feliz e digna na terra, que foi o Iluminismo, e o projeto de domínio sobre todos os povos e recursos naturais da terra. Como se tudo fosse o mesmo.
O Iluminismo nasce a partir de um grande movimento que pretende combater todas as formas de autoritarismo, político, religioso, moral, etc., nomeadamente contra a credulidade e os seus efeitos de dominação.
O ataque contra a credulidade não é um ataque a qualquer crença. As ‘crenças’ são necessárias, quer para a vida como para o conhecimento. Já a ‘credulidade’, é a base de toda a dominação porque implica uma delegação da inteligência e da convicção.
Como afirmavam os enciclopedistas: “a credulidade é a forma dos ignorantes; a incredulidade decidida, a dos meio-sábios; a dúvida metódica, a dos sábios.”
O que o Iluminismo exige é poder exercer a liberdade de submeter a exame qualquer saber e qualquer crença, venha de onde vier e de quem vier, sem pressupostos e sem argumentos de autoridade. Não se trata, portanto, de um ataque à religião.
Tornava-se necessário submeter a exame as verdades que produzíamos, da ciência, da lei, dos valores morais, e outras. Kant, vai ainda mais longe: a própria razão deveria ser submetida à sua crítica, suspeitar de si mesma e interrogar-se sempre a propósito dos seus próprios desejos e limites.
Os Iluministas, exatamente por saberem que a alma humana não pode aspirar a uma visão privilegiada, nem a uma inteligibilidade superior, nem a uma verdade eterna, aceitam a parcialidade e a precariedade das nossas verdades, mas também a perfetibilidade do que somos e do que fazemos de nós próprios.
Para eles, saber, não é já aceder às verdades eternas de Deus, mas antes melhorar a nossa própria compreensão e relação com o mundo que nos rodeia. O seu compromisso não é para com o progresso, mas sim para com a melhora do género humano contra tudo aquilo que o oprime e degrada.
Acontece que a partir do século XVIII, a experiência da prosperidade material, sobretudo na Inglaterra industrial e colonial, vem alterar profundamente o sentido desta exigência moral, política e científica de nos tornarmos melhores através do conhecimento.
Aos poucos, “melhorar” vai significar prosperar, e o progresso do género humano vai identificar-se com o aumento da riqueza. Começara a neutralização da radicalidade da aposta crítica do Iluminismo.
A dissolução do poder teocrático e da sociedade da linhagem e vassalagem, e a enorme necessidade de em pouco tempo se conseguirem “quadros” para desempenharem funções públicas e privadas que as imensas novas terras descobertas exigiam, levou à formação da escola pública, na qual o sistema da cultura aparecia como encarregue de forjar cidadãos livremente obedientes. Ou seja, com autonomia como sujeito e obediência como cidadão.
Vamos assistir à invenção do “contrato social e contrato laboral” por “livre adesão”, como forma de vínculo no estado moderno. Como consegui-lo? Que argumentos utilizar?
Coube à cultura moderna apresentar a resposta: com as ideias de identidade nacional e de prosperidade económica.
É a cultura que vai emancipar o trabalhador da arbitrariedade, despertando-o para o ponto de vista da universalidade, e do imediato da obrigação para a mediação: libertar o cidadão dos particularismos para assim o integrar como sujeito no Estado.
O que aconteceu foi que a autonomia se transformou em auto obediência. O que fez da cultura um sistema de sujeição política.
Nada que os Iluministas não previssem: longe de acreditarem que a ciência e a educação redimiriam por si sós o género humano do obscurantismo e da opressão, já então chamavam a atenção para a necessidade de se examinar quais saberes e que educação é que contribuiriam para a emancipação.
Rousseau, no seu Discurso das artes e das ciências, Diderot, em O sobrinho de Rameau, a própria Encyclopédie na sua entrada “Crítica”, e outros, avisavam sobre a velocidade, a arbitrariedade, a inutilidade e a impossibilidade de se compreender o que se estava produzindo.
Temiam que a saturação das bibliotecas, e a acumulação de conhecimento inútil, conduzissem à impossibilidade de um relacionamento adequado com o saber, acabando por neutralizarem o próprio saber.
Ou seja: não basta ter acesso ao conhecimento disponível, porque o importante é podermo-nos relacionar com ele por forma a contribuirmos para transformarmo-nos a nós próprios, e ao nosso mundo, para melhor.
Senão, o que nos acontece é exatamente o que nos está a suceder atualmente, o de em conjunto sabermos muito, mas podermos pouco. “Somos ilustrados e analfabetos ao mesmo tempo”.