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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(156) "Como fazer amigos e influenciar pessoas"

Tempo estimado de leitura: 9 minutos.

 

Não era ainda a “arte” de enganar, a “conversa de cigano” passada a computador.

 

A análise de dados e a sua utilização para atingir um público alvo, há muito que são usados e não constituem hoje qualquer novidade.

 

O negócio base da Facebook é a exploração dos dados pessoais dos seus utilizadores.

 

 Os algoritmos da Cambridge Analytica, além de usarem a segmentação demográfica para identificarem grupos de votantes (tal como a campanha de H. Clinton fazia, e como já a de Obama fizera nas suas eleições), entravam ainda em consideração com as definições de classe, educação, emprego, idade e outros. Muito mais elaborada.

 

 

 

 

Vinte e quatro anos após dar aulas avulso, Dale Carnegie (1888-1955), decidiu-se a publicar em 1937 o livro que entendia fazer falta aos seus alunos, fruto das suas experiências de vida e de professor, Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, (How to Win Friends and Influence People). A sua intenção era ajudar as pessoas a conseguirem resolver os problemas de relações humanas no seu dia a dia, explicando ao mesmo tempo  que as boas relações estabelecidas entre as pessoas poderia conduzir a melhores empregos e a empresas de sucesso http://images.kw.com/docs/2/1/2/212345/1285134779158_htwfaip.pdf).

 

Segundo ele, desde que conseguíssemos pôr-nos no lugar da outra pessoa, vendo o seu ponto de vista, podíamos levá-la a fazer aquilo que nós queríamos. Podíamos aprender a fazer com que a outra pessoa acabasse por concordar com a nossa maneira de ver as coisas, sem que elas se sentissem ofendidas ou ressentidas.

O livro iria permitir que os alunos adquirissem novos entendimentos sobre a vida, descobrissem novas ambições, fizessem amigos mais facilmente e mais rapidamente, aumentassem a sua influência, prestígio, que se tornassem melhores oradores, conversadores mais divertidos. Ensinava ainda como evitar discussões, como lidar com reclamações, mantendo as relações com as outras pessoas num registo tranquilo e agradável. E cumpria.

O livro estava dividido em quatro partes: Técnicas fundamentais para lidar com as pessoas; Seis maneiras que levem as pessoas a gostarem de si; Como levar as pessoas a concordarem com o que você pensa; Ser um líder, Como mudar as pessoas sem que elas se sintam ofendidas ou ressentidas.

A título de exemplo, transcrevo a sua última página:

 

“ SÊ UM LÍDER (um resumo)

A função de um líder inclui muitas vezes o ter de alterar as atitudes e comportamentos dos seus empregados. Algumas sugestões para o conseguir:

  • Comece com um louvor e com uma apreciação honesta.
  • Chame indiretamente a atenção para os erros do pessoal.
  • Fale sobre os seus próprios erros antes de criticar outra pessoa.
  • Faça perguntas em vez de dar ordens diretas.
  • Deixe a outra pessoa salvar a face.
  • Louve a mais pequena melhoria qualquer que ela seja.
  • Dê à outra pessoa uma reputação que ela não se esqueça.
  • Faça com que a falta pareça fácil de corrigir.
  • Faça a outra pessoa feliz por fazer aquilo que ela julga ter sido iniciativa dela quando foi aquilo que lhe suge

 

Este fabuloso livro, escrito com as melhores das intenções, acabou por se tornar na Bíblia prática de todos os vendedores, fazendo parte de todas as bibliografias dos cursos de marketing, vendas. Um manual das técnicas de um bom vendedor. Não era ainda a “arte” de enganar, a “conversa de cigano” passada a computador.

 

 

A 9 de abril de 2013, a revista PNAS, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, publicou um artigo de M. Kosinski, D. Stillwell e T Graepel, professores da Universidade de Cambridge, com o título “Private traits and attibutes are predictable from digital records of human behavior” (Como predizer atributos e traços privados do comportamento humano através de dados digitais) (http://www.pnas.org/content/110/15/5802).

 

Nesse artigo, os autores demonstravam como dados digitais facilmente acessíveis (como os “Likes” do Facebook) podiam ser usados para, automática e corretamente, predizerem uma panóplia de características pessoais sensíveis, tais como a orientação sexual, a raça, religião, política, traços pessoais, inteligência, satisfação com a vida, uso de substâncias aditivas (álcool, drogas, tabaco), idade e género.

Dos 58.000 voluntários observados, muito embora muitos escolhessem não revelar algumas informações, como a orientação sexual ou a idade, essas informações poderiam ser obtidas por previsões estatísticas a partir de outros aspetos das suas vidas já revelados e através de outras atividades feitas (espetáculos, compras, interações sociais) utilizando serviços digitais.

 Por exemplo, uma grande cadeia de vendas a retalho nos EUA utilizava a listagem de compras efetuadas pelos clientes para predizer a gravidez das clientes, para depois lhes enviar vales-oferta específicos (vitaminas e roupa de bebé).

A própria personalidade da pessoa podia ser conhecida através dos conteúdos de sítios da Web frequentados, escolha de coleções de música, perfis no Facebook ou Twitter, ou do idioma utilizado.

Neste estudo, os investigadores avisavam já que:

 

 “A possibilidade de se conseguir prever o comportamento dos indivíduos através dos seus registos digitais, pode ter consideráveis implicações negativas, porque permite com facilidade a sua aplicação a um grande número de pessoas sem que elas deem o seu consentimento e sem que de tal se apercebam”.

 

E, diziam mais:

 

As empresas comerciais, as instituições governamentais, ou até mesmo os seus amigos do Facebook, podem usar programas que lhes permitam inferir atributos como a orientação sexual, a inteligência ou as simpatias políticas de indivíduos que não tenham tido a intenção de partilharem tais informações”.

 

 

Para alguns, isto apareceu-lhes como uma oportunidade de negócio. Em 2014, o diretor executivo da Cambridge Analytica, Alexander Nix, propõe a Aleksandr Kogan, um dos colegas dos autores do estudo acima citado (aparentemente, os outros investigadores recusaram a ‘oportunidade’), a formação de uma empresa privada, Global Science Research, GSR, para passar à prática o estudo.

Kogan, com os conhecimentos adquiridos do estudo feito na Cambridge University e com o acesso aos data cedidos pelo Facebook (apenas para investigação científica segundo a versão do FB), começou por desenvolver uma aplicação (app) no Facebook em que oferecia, gratuitamente, um teste de personalidade, “thisisyourdigitalelife” (estaéasuavidadigital), apenas para os utilizadores do FB com conta nos EUA.

 

Cerca de 270.000 utilizadores responderam voluntariamente ao teste. Só que a aplicação gravava não só os resultados de cada questionário, colecionando os data da conta dos utilizadores do Facebook que respondessem, mas também o dos seus ‘amigos’ parte da sua conta.

Como cada utilizador tinha uma média de 200 ‘amigos’, estamos a falar de um universo de cerca de 50 milhões de pessoas. Se emparelhássemos estes milhões de perfis com as listas eleitorais, teríamos aqui um maná político para explorar.

 

Avançou-se então para uma nova fase: foram selecionados e pagos (2 a 5 dólares) 32.000 utilizadores para fazerem um teste mais detalhado de personalidade e política.

Combinando os resultados desses testes com os “likes” do utilizador e dos seus amigos, foi possível construírem um modelo de predição de personalidades (padrões psicológicos) com base no comportamento digital.

Cruzando todos esses dados com outras fontes, como os registos dos eleitores, os algoritmos desenhados permitiam obter uma coleção particularmente afinada (inicialmente de 2 milhões de pessoas em 11 estados-chave) com centenas de dados por pessoa.

Esses eram os indivíduos que passariam a serem alvo de campanhas de anúncios altamente personalizadas (micro-targeting). A intenção era de através de um constante afluxo de ‘informações’ (notícias, fotografias, gráficos, opiniões avalizadas, etc.) levar as pessoas a mudarem de opinião.

 

Para isso, a Cambridge Analytica desenvolveu dúzias de variantes de anúncios sobre diferentes temas políticos tais como imigração, economia, direito de porte de armas, segundo os diversos perfis de personalidade.

A título de exemplo podemos ver a campanha usada no Político, empresa jornalística de referência nos EUA (http://www.politico.com/sponsor-content/2016/08/inconvenient-truths-about-clinton-foundation).

E “criou” também uma grande quantidade de contas de utilizadores fictícios do FB, com a função de comentarem e manifestarem o seu apoio às ‘ideias’ das campanhas políticas gerais desenvolvidas, como “amigos” dos indivíduos alvo. Dar corpo à indignação.

 

 

Os algoritmos da Cambridge Analytica, além de usarem a segmentação demográfica para identificarem grupos de votantes (tal como a campanha de H. Clinton fazia, e como já a de Obama fizera nas suas eleições), entravam ainda em consideração com as definições de classe, educação, emprego, idade e outros. O que fazia todo o sentido.

Duas pessoas com o mesmo perfil demográfico (por exemplo, brancos, meia-idade, empregados, casados) podem ter opiniões e personalidades diferentes. Conseguir-se adaptar a mensagem à personalidade de uma pessoa (aberta, introvertida, argumentativa, etc.) é meio caminho para fazer passar a mensagem.

Pelo que a empresa de análises de data usada por Hillary Clinton em 2016, a ADA, se revelou bastante inferior à Cambridge Analytica.

 

 

 

Como se depreende pela dimensão do projeto, a Cambridge Analytica teve de ter grandes investimentos e cobertura, daí que nos seus corpos gerentes se encontrem nomes importantes da sociedade inglesa e americana, nomeadamente Robert Mercer que foi seu fundador (através dos seus filhos), e outros especialistas conhecedores como Steve Bannon (que foi seu vice-presidente).

Robert Mercer, além de ser um cientista em computação que participou nos primeiros desenvolvimentos sobre Inteligência Artificial, é um mais que multimilionário, grande investidor em fundos de risco, sendo um dos principais contribuintes para o Partido Republicano.

Financia várias organizações da considerada direita ‘alternativa’, como a Breibart News, de que Steve Bannon era representante. Teve também papel de destaque na campanha para o Brexit, com a doação dos serviços de análises de data da Cambridge Analytica ao UKIP. Do conselho de administração do seu ramo britânico, a SCL (Strategic Communication Laboratories), faziam parte membros dos Lords, doadores do Partido Conservador, ex-oficiais das forças armadas e empresas fornecedoras da Defesa. Segundo o jornal Observer, “para todos os fins e propósitos, SCL/Cambridge Analytica são uma e a mesma coisa”.

 

Nos EUA, ainda antes das eleições intermédias, a Cambridge Analytica desenvolveu para os candidatos suportados por John Bolton (embaixador nas NU de George Bush, e atual recém-nomeado secretário da Defesa de D. Trump), uma série de anúncios de TV dirigidos a diferentes tipos de personalidade e postos no ar nas alturas em que se previa que eles estivessem a ouvir.

 Durante a campanha para as presidências, a Cambridge Analytica começou por estar mais envolvida com a campanha de Ted Cruz, que era na altura a que parecia ser a mais promissora para Mercer. Depois acabou por colocar toda a sua ‘influência’ na eleição de D. Trump.

 

 

Pelo que acima ficou exposto, na senda de uma tradição de obter o maior lucro com um produto usando de todos os meios para o tornar mais apetecível para os compradores, nada ou quase nada, se passou.  A análise de dados e a sua utilização para atingir um público alvo, há muito que são usados e não constituem hoje qualquer novidade.

Repreender com base nesta realidade o Facebook e congéneres, e querer que eles se controlem, é não entender que o FB não tem qualquer possibilidade de se reformar sem alterar a sua natureza. Observa bem Om Malik:

 

No seu núcleo, na sua política base, no seu DNA, cada decisão, cada estratégia tem por base o crescimento (a qualquer custo) e o engajamento (a qualquer custo). Mais crescimento e mais engajamento significam mais data, o que significa que a companhia possa fazer mais dólares com a publicidade, o que fará aumentar o seu valor na bolsa, o que vai permitir que ela se mantenha competitiva e se mantenha à frente dos seus rivais”.

 

A grande verdade é que o negócio base da Facebook é a exploração dos dados pessoais dos seus utilizadores. Querer que ela prescinda deles, no todo ou em parte, é como querer que a ExonMobil prescinda do negócio de petróleo e gás.

A realidade é que a ‘moral’ e o respeito pela ‘democracia’ nestas grandes companhias inclui, segundo o ex-diretor dos noticiários da BBC, James Hardings:

 

a facilitação do discurso de ódio e terrorismo, o permitir a pornografia infantil e os círculos de pedofilia, o resguardar a criminalidade e a corrupção defendendo a opacidade, o deitar abaixo a privacidade através da recolha de informação pessoal, […] a perseguição online; o dar empregos a robôs, tirando-os dos humanos; o esconder biliões em impostos, não os pagando por forma a com isso resolver os problemas da política pública; o concentrar de fortunas nas mãos de uns poucos e dominar o espaço da internet; o investir na IA que continua sem regulamentação, e que poderá vir a dirigir parte das nossas vidas. E isto é apenas uma pequena lista” (https://www.theguardian.com/media/2018/mar/22/james-hardings-hugh-cudlipp-lecture-in-full).

 

 

Das muitas questões possíveis de levantar perante a ‘descoberta’ destes acontecimentos, há uma que a todas se sobrepõe: a da destruição da privacidade.

A privacidade é uma conquista relativamente recente da humanidade, e, de certa forma teve que ver com a melhoria das condições materiais da vida. Não há privacidade numa vida nas barracas, na vida numa só divisão comum a todos (“feios, porcos e maus”). A privacidade é essencial para o desenvolvimento da personalidade, da individualidade, que posteriormente conduzirá ao apreço e luta pela liberdade, e outros valores que se crê serem intrinsecamente humanos.

O que estamos a assistir é à destruição deste conceito a troco de missangas (a facilidade de ‘tudo’ se conseguir pelo toque de um botão), com a consequente uniformização da personalidade. Um retrocesso civilizacional intencional, a bem de alguns muito poucos megalómanos que, no melhor, se julgam indicados pelo Senhor.

 

 

Aos adultos que se expõem nos Facebooks sem ser por razões profissionais, lembro-lhes a entrevista dada ao Playboy por um artista pornográfico (dava dois a três espetáculos por dia, em que se mantinha com uma ereção permanente), na qual confessava que a sua mulher tinha pedido o divórcio por ele não conseguir desempenhar em casa as suas funções de macho. Explicava a psicóloga, que o artista só conseguia a ereção se tivesse público: sem público a ver, ficava murcho.

 

 

 Então, e os russos? Se acreditarem que a empresa de análise de data fundada e apoiada por capitalistas americanos e ingleses, com técnicos americanos e ingleses, com segurança americana e inglesa, com a finalidade de fazerem eleger candidatos que lhes viessem a ser prestáveis, afinal é dirigida por russos, então os americanos e os ingleses são russos.

Não esquecer: a Rússia é um país de economia capitalista, onde o partido comunista (como aqui) tem 10% de votantes. Não é a URSS!

 

As ‘guerras’ são apenas guerras pela conquista de mercados, presentes ou futuros, cada vez mais futuros do que presentes, disputadas entre os vários oligarcas em presença, em que nós somos apenas peões, por enquanto necessários. Não tem qualquer sentido dizer que são americanos ou russos, as suas finalidades são as mesmas e os meios de que servem não divergem.

Por isso, os governos inglês e americano não expulsaram os milionários russos que lá estão. Pena os refugiados não serem todos ricos: era um ver se te avias para os receber, fossem africanos, islamistas, iranianos, sírios. Acabava-se o problema das quotas. Até mandavam iates para atravessarem o Mediterrâneo, escoltados pela marinha, para que nada lhes acontecesse. 

 

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