(153) "Mas fazemos amor de relógio de pulso"
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É difícil provar que o sucesso das hipóteses de Copérnico tivesse feito abalar a crença dos homens em Deus, só porque a Terra deixasse de ser considerada como o centro do universo.
A partir de Einstein, o universo passou de novo a ser considerado curvo e finito, não só sobre o ponto de vista espacial, mas também sobre o ponto de vista temporal, calculando-se a sua duração em quinhentos mil milhões de anos.
” O homem nada sabe, porque o homem não é nada”, Montaigne.
A subjetividade, o critério mais sólido da verdade.
Das suas duas idas à Terra Santa em 1480 e 1483, o frade dominicano Felix Faber de Ulm, deixou-nos alguns conselhos práticos sobre o comportamento privado a ter durante as viagens:
“Como diz o poeta: merda que está presente é uma carga insuportável. Algumas palavras sobre a forma de urinar e de cagar num navio.
Cada peregrino tem perto de si, no seu beliche, um urinol – recipiente estreito de terracota – no qual urina e vomita. Mas como os lugares são apertados para a massa de pessoas que contém, e além disso escuros, havendo muitas idas e vindas, é raro que estes vasos não se vertam antes do amanhecer. Com efeito, regularmente, levado por uma premente necessidade que o obriga a levantar-se, um desajeitado, ao passar, vira cinco ou seis urinóis, espalhando um cheiro insuportável.
De manhã, quando os peregrinos se levantam e o ventre lhes pede misericórdia, sobem à coberta e dirigem-se para a proa, onde, de um lado e outro do talha-mar, estão organizados os locais para as necessidades.
Por vezes, à frente destes lugares forma-se uma fila de treze pessoas ou mais que esperam a sua vez, e não é a vergonha, mas a irritação que se exprime quando alguém se demora demasiado. Eu comparava naturalmente esta espera às das pessoas que se confessam na Quaresma, quando de pé se irritam com as confissões intermináveis e esperam de mau humor a sua vez.
De noite, aproximarmo-nos desses locais é uma aventura difícil, devido à quantidade de pessoas deitadas e a dormir, de uma ponta à outra da galera. Quem lé quiser ir tem de passar por cima de mais de quarenta pessoas, e a cada passo tem de encaixar as pernas por cima de alguém; em cada passo se arrisca a dar um pontapé a um passageiro ou a escorregar e cair em cima de algum adormecido. Se ao passar toca em alguém é logo coberto de injúrias.
Os que não têm medo nem vertigens podem subir à proa, trepando pela beira do navio e progredir, de cordame em cordame, coisa que fiz muitas vezes, apesar do risco e do perigo.
Mas é quando há mau tempo que as dificuldades se tornam consideráveis, quando as latrinas são constantemente cobertas pelos vagalhões e os remos se metem por cima dos bancos. Ir à sentina em plena tempestade, é arriscar-se a ficar completamente molhado, e assim muitos passageiros deixam as roupas e vão completamente nus.
Numa situação destas, o pudor sofre muito, o que dá ainda maior emoção às partes vergonhosas. Os que não querem desta forma dar nas vistas vão abaixar-se noutros sítios, que sujam, o que origina clamores, discussões, e desconsidera pessoas honradas.
Há também os que enchem os seus recipientes junto aos beliches, o que é infecto, envenena os vizinhos, e só se pode tolerar aos doentes, a quem não é possível criticar: algumas palavras não seriam suficientes para contar o que tive de suportar a um doente de um leito vizinho.
O peregrino deve ter cuidado em não se reter, levado por um falso pudor, nem tão pouco em descontrair o ventre: as duas atitudes são prejudiciais para o viajante embarcado. No mar é fácil ter prisão de ventre.
Darei ao peregrino um bom conselho de higiene, é o de ir duas ou três vezes aos lugares, mesmo se isso não for exigido por uma necessidade natural, a fim de, com esforços discretos, contribuir para desencadear a evacuação; e que não desespere se não acontecer nada à terceira ou quarta vez.
Que aí vá muitas vezes, desfaça o cinto, desfaça todos os nós das roupas, no peito e no ventre, e conseguirá a evacuação mesmo que os intestinos tenham pedras.
Este conselho foi-me dado por um velho marinheiro, uma vez em que estive com uma terrível prisão de ventre por vários dias; e tomar pílulas ou supositórios no mar não é um meio seguro, porque purgar-se em excesso pode ter inconvenientes tão graves como a prisão de ventre.”
Por volta de 1370, um pintor de Siena, Mino, surpreendeu a esposa a cometer adultério. Desse episódio, aqui fica a cena tal como aparece descrita por Franco Sacchetti (1332 – 1400) nas Il Trecentonovelle:
“ELE. – Maldita puta, tratas-me por bêbado, mas és tu quem escondes o teu companheiro por detrás dos meus crucifixos [ele é pintor de crucifixos].
ELA. – É para mim que falas?
ELE. - Não, é para a merda do burro.
ELA. – Não mereces melhor.
ELE. – Estupor, tu não tens vergonha! Não sei o que me impede de te atirar com este tição a um sítio que eu cá sei.
ELA. – Não tentes … pela cruz do Senhor. Se me tocas vais pagar bem caro.
ELE. – Porca ignóbil e o teu companheiro.
ELA. – […]. Malditos sejam todos os que levam uma rapariga a casar com um pintor, tão doidos e tarados vocês são todos, sempre a embebedarem-se, bando de desavergonhados!”
Estes dois textos de há quase seis séculos, poderiam ter sido escritos hoje por um cronista de viagens e por um autor teatral da boémia intelectual. O que nos pode levar a concluir que, nos seus aspetos básicos, os homens são os mesmos.
Sabe-se hoje que a partir de Einstein, o universo passou de novo a ser considerado curvo e finito, não só sobre o ponto de vista espacial, mas também sobre o ponto de vista temporal, calculando-se a sua duração em quinhentos mil milhões de anos!
E olhando em volta, ninguém se parece importar com isso: não há comoção, nem desvario (o mais parecido foi o que aconteceu na passagem para o ano 2000, para se assegurar que os computadores entravam no milénio…). Será que as pessoas mudaram?
Ou será que o estado de dúvida, descrença e desespero que tem sido atribuído às pessoas no Renascimento e pós-Renascimento tem sido exagerado?
Não há dúvida que os avanços científicos dessa época devem ter tido um grande impacto, abrindo novos caminhos e propiciando novos interesses. Já é, contudo, mais difícil de provar que o sucesso das hipóteses de Copérnico tivesse feito abalar a crença dos homens em Deus, só porque a terra não pudesse ser considerada como o centro do universo.
O que o desenvolvimento da astronomia e da mecânica originaram foi a promoção do crescimento da visão mecânica do mundo, com reflexos no campo da filosofia.
O próprio Descartes, que considerava que todo o mundo material e suas alterações poderiam ser explicados pela extensão geométrica e pelo movimento (segundo ele, a quando da criação do mundo, Deus dera-lhe uma certa quantidade de movimento ou energia, que depois se iria transmitindo de corpo em corpo, obedecendo às leis da mecânica; e tratava os animais como sendo máquinas, obedecendo apenas aos princípios mecânicos), nunca duvida da existência de Deus (adiciona duas provas que testemunham a Sua existência) nem da Sua infinidade, reservando para o universo o termo de “indefinibilidade”!
Se aceitarmos o paradigma de Kuhn, poderemos compreender melhor como se deu a abertura do dito “mundo fechado”, como processo que se foi desenrolando lentamente ao longo de vários séculos até à sua entrada num período de crise que vai durar 150 anos, cinco gerações.
Cabe aqui lembrar que este período coincide com as grandes descobertas, que levam os seus aventureiros e viajantes a percorrerem todos os mares e continentes, e com os relatos das suas viagens que vão alterar a conceção da geografia e da etnografia.
Esse espírito da descoberta leva os seus eruditos a vasculharem todos os textos deixados nas bibliotecas monásticas, tudo leem e editam, trazendo de novo à luz os velhos filósofos, de Platão a Plotino, o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo, o pitagorismo, na tentativa de fundarem uma física nova, uma nova astronomia, uma ciência nova. “Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo”.
A outra face da moeda trouxe “crítica, abalo, dissolução, destruição e morte das antigas crenças, das antigas conceções que davam ao homem a certeza do saber”.
O mundo tornou-se incerto, onde nada é seguro, mas ao mesmo tempo onde tudo é possível. E se tudo é possível, então nada é verdadeiro.
Montaigne (Michel de, 1533 – 92) concluirá que se nada é seguro, só o erro será certo! Para além da dúvida, instala-se o pessimismo.
As próprias ciências são vãs, incertas: Não se sabe nada, nada se pode conhecer, nem o mundo nem a nós próprios. E faz o balanço:” O homem nada sabe, porque o homem não é nada”. Ufff!
De certa maneira, pode-se dizer que Montaigne foi o verdadeiro mestre de Descartes, sendo também o seu adversário. O combate interrompido de Montaigne contra as superstições, contra as opiniões feitas, contra a falsa racionalidade escolástica, é levado até ao fim por Descartes, transformando a dúvida em método (dúvida metódica) como poderoso instrumento de crítica que lhe permitiria discernir entre o verdadeiro e o falso.
Em Descartes vamos poder encontrar a charneira a partir da qual se define o pensamento moderno. Com o seu “penso, logo existo” vai aparecer um novo critério da verdade como sendo aquilo que resiste à dúvida, aquilo de que um ser humano está absolutamente seguro: a certeza passa a ser um estado da nossa consciência subjetiva. A subjetividade como o critério mais sólido da verdade.
Por outro lado, ao colocar radicalmente em dúvida todas as ideias feitas, rejeitando conceitos e crenças vindas do passado, quer sejam as herdadas da família ou transmitidas pelas autoridades, quer sejam a dos professores ou da Igreja, fazendo tábua rasa do passado, Descartes está a definir o conceito moderno de revolução.
Era intenção expressa de Descartes fazer tábua rasa de tudo o que se tinha feito até então, de começar de novo, de filosofar “como se ninguém o tivesse ainda feito”, e, de construir, pela primeira vez, e de uma vez por todas, o verdadeiro sistema das ciências.
Mais: ao indicar que era preciso rejeitar todos os “argumentos de autoridade”, está a definir o conceito de liberdade de pensamento e o de espírito crítico. A partir daí ninguém mais era obrigado a aceitar uma opinião só porque ela fosse oriunda de uma autoridade.
Não podemos esquecer que tudo isto se passou pouco tempo depois do processo contra Galileu, numa época em que era a Igreja que decretava como a Terra se movia ou não.
No último parágrafo do livro citado de Alexandre Koyré pode ler-se:
“O universo infinito da nova cosmologia, infinito na duração e na extensão, no qual a matéria eterna, de acordo com leis eternas e necessárias, se move sem fim e sem objetivo no espaço eterno, havia herdado todos os atributos ontológicos da divindade. Mas somente estes: quanto aos outros, Deus, ao partir do mundo, levou-os com Ele”.
Sabendo os homens do mundo moderno que são mortais e que o cosmos ou a divindade já não estão presentes, ou seja, que não existe qualquer princípio exterior e superior à humanidade, então o problema da salvação não se põe. Provavelmente por isso é que para os contemporâneos lhes é indiferente que o universo seja fechado e limitado na duração, contrariamente ao que se verificou com os homens renascentistas.
Em apenas duas frases, Rui Knopfli, nas suas Mangas Verdes com Sal, tudo isto sintetiza no seu curtíssimo poema intitulado “Progresso”:
“Estamos nus como os gregos na Acrópole
e o sol que nos mira também os fitou.
Mas fazemos amor de relógio de pulso.”
Nota: este artigo é a continuação do blog 152, “A destruição do mundo finito” (http://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/152-a-destruicao-do-mundo-finito-40466).