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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(152) A destruição do mundo finito

Tempo estimado de leitura: 6 min.

 

A Terra era a morada do homem, sendo Deus, fim último e primeiro motor, quem insuflava a vida e fazia movimentar o Cosmo.

 

 Ia-se espalhando na sociedade o sentimento de que alguma coisa não estava certa com a representação tradicional do mundo.

 

O mundo já não era finito, ordenado e harmonioso, sendo antes infinito e caótico.

 

“Da destruição do mundo concebido como um todo finito e bem ordenado … e da sua substituição por um Universo indefinido, e mesmo infinito”.

 

 

 

 

Os séculos XVI e XVII têm sido considerados como épocas de grandes alterações do pensamento filosófico, científico e espiritual, que vieram modificar os fundamentos e os quadros do nosso pensamento.

Há duas obras clássicas sobre este período, cujos títulos são só por si suficientemente elucidativos para o caracterizar: Paul Hazard, publica em 1930 um estudo a que dá o título de “A Crise da Consciência Europeia”, e em 1957, Alexandre Koyré, apresenta um trabalho a que chamou “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”.

 

Um mundo hierarquizado, belo, finito.

 

Uma das razões porque o Cristianismo se impôs à filosofia estoica prevalecente no Império Romano, foi por personalizar a salvação após a morte. Apesar do Estoicismo nos garantir a eternidade, em que a morte constituía uma simples passagem de um estado a outro, não havendo, portanto, um desaparecimento definitivo, essa eternidade não era, contudo, garantida a cada um de nós enquanto indivíduos, mas apenas aos nossos fragmentos inconscientes, que continuariam assim a fazer parte do logos universal.

Em contrapartida, o Cristianismo prometia a imortalidade pessoal, e a ressurreição das almas e dos corpos, ou seja, a minha imortalidade e a dos meus familiares. O amor em Deus era mais forte que a própria morte.

 

 Apesar destas diferenças, é o modelo de organização do mundo (o Cosmo) helénico-romano que vai ser absorvido pelo Cristianismo, mantendo-se inclusivamente ao longo da Idade Média.

 Era o modelo de um mundo ordenado, finito, disposto em círculos concêntricos dependentes do valor ou da perfeição, começando com o de mais baixo valor, progredindo para o de maior perfeição, onde se encontrava estabelecida uma hierarquia em que os próprios lugares dos seres correspondiam aos graus da sua perfeição, numa escala que ia da matéria para Deus.

Neste Cosmo, todas as coisas tinham o seu lugar determinado pelo grau do seu valor, daí a tendência para procurarem o seu lugar para nele repousarem (à ciência caberia revelar essas tendências). Nesse Cosmo, a Terra ocuparia o centro.

Para os cristãos, tratava-se de um mundo perfeito e feito para o homem: era para ele que os planetas e os céus giravam à sua volta, era para ele que o Sol se levantava. A Terra era a sua morada, sendo Deus, fim último e primeiro motor, quem insuflava a vida e fazia movimentar o Cosmo. Era, pois, um mundo penetrado de razão e beleza: como não o admirar, como não o adorar?

Este era o mundo que Koiré considerava como “o mundo fechado”.

 

Esta cosmologia antiga vai ser totalmente estilhaçada, e, como a Igreja se apegara a ela para defender posições que nada tinham que ver com a religião (a idade da Terra, a sua situação relativamente ao Sol, a data de nascimento do homem, etc.), vai também ser fortemente questionada.

É comum aceitar-se que esta grande revolução da modernidade se inicia com a publicação da obra de Copérnico em 1543, De Revolutionibus Orbium Coelestium (As Revoluções dos Orbes Celestes), seguida das teses de Galileu em 1632, o Dialogo sopra i due massimi systemi del mondo (Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas do Mundo), dos Principia Philosophiae (Princípios de Filosofia) de Descartes em 1644, e dos Principia Mathematica de Newton em 1687.

Se só considerarmos estas balizas de tempo, então a rutura ocorreu em 150 anos, como aliás é vulgarmente aceite. Terá sido assim?

 

A abertura.

 

As causas que levaram à passagem de um mundo fechado a um universo infinito, não podem ser atribuídas apenas ao aparecimento de uma nova astronomia e cosmologia, de uma nova ciência física e matemática, ou simplesmente aos progressos técnicos onde se inclui a invenção do telescópio. De certa forma, poderemos até dizer com mais propriedade, que tudo isso foram mais consequências do desenvolvimento que se foi verificando na sociedade.

 

Desde o século XIII que se vinham acumulando alterações sensíveis que apontavam nesse sentido. Sem procurar fazer uma análise exaustiva, podemos referir:

 o aparecimento e a demonstração de sentimentos humanos profundos na iconografia religiosa, já visíveis nos frescos de Giotto (“São Joaquim e Santa Ana na Porta Dourada”, “Lamentações sobre o corpo de Cristo”, “O massacre dos Inocentes”);

o aparecimento da perspetiva na pintura e escultura;

 o reaparecimento do retrato figurado, com uma descrição realista do rosto, exprimindo uma progressiva libertação do indivíduo do quadro social e religioso;

o aparecimento da tipografia, acelerando e revolucionando a transmissão do conhecimento;

o aparecimento da autobiografia, liberta de qualquer constrangimento, inventando uma narrativa do próprio, independente da história, sem, contudo, ser uma confissão;

o aparecimento dos diários, dos comentários, das memórias;

 o aparecimento dos anacoretas e dos cavaleiros errantes (não esqueçamos que na sociedade medieval, ninguém arriscava deslocar-se, viajar, a não ser que fosse em grupo de pelo menos dois: quem procurasse isolar-se do grupo, poderia ser atacado, uma vez que os que se expunham eram considerados como desviados, possessos ou loucos; e, a quem se expunha assim, oferecendo-se como presa, tinha-se o direito de tudo lhes roubar);

 o tratamento dado ao corpo, incluindo a evolução da nudez;

o crescimento económico em que a moeda começa a ter um papel primordial (espalha-se o uso da palavra “ganhar”, poupar moeda para se tornar menos dependente dos familiares, conquista de espaço para os empreendimentos individuais);

as melhorias da cartografia marítima devido aos descobrimentos e às inovações na astronomia.

 

Quando Copérnico, na sua astronomia, retira a Terra do centro do mundo, para a colocar no céu entre os outros planetas, vai minar os alicerces da ordem cósmica tradicional. Contudo, estas ideias tinham-se vindo a desenvolver na sociedade.

 Cento e três anos antes, Nicolau de Cusa (1401 – 1464) na sua obra De docta ignorantia (Douta Ignorância) de 1440), conclui, sem ser através de experimentação ou cálculo, mas por puro raciocínio, que

 

se bem que o mundo não seja infinito, ele não pode apesar de isso ser concebido como finito …Por conseguinte, a terra, que não pode ser o centro, não pode estar privada de todo o movimento… resulta de tudo isso, que a terra se move.”

 

 Não pretendo com isto dizer que Nicolau de Cusa tenha sido um precursor da reforma da astronomia ou de Copérnico, mas apenas chamar a atenção para o sentimento que se ia espalhando na sociedade de que alguma coisa não estava certa com a representação tradicional do mundo.

É bom notar que todos esses pensadores e homens de ciência acima citados, eram homens de fé, crentes, fazendo mesmo alguns deles parte das estruturas da Igreja (Nicolau de Cusa era Cardeal).

 

Em 1609, Johannes Kepler, baseando-se nas detalhadas observações dos movimentos planetários pacientemente coligidas no século XVI por Tycho Brahe, formula as primeiras leis sobre o movimento planetário.

 A primeira lei confirma o modelo heliocêntrico de Copérnico, mas calculando de forma matemática as suas órbitas, passa-as de circulares a elípticas. A segunda lei vai dizer-nos que os planetas não se movem sempre com a mesma velocidade durante as suas órbitas: aceleram quando se aproximam do Sol e desaceleram quando se afastam.

 Em 1618, avança com mais uma lei: o tempo que um planeta leva a dar a volta ao Sol – um ano para a Terra – depende da distância a que se encontra do Sol, sendo que o quadrado do período da revolução varia com o cubo da distância do planeta ao Sol.

Brilhante Kepler, que considerava que o telescópio em nada modificava a sua apreciação: permitir-nos-ia apenas ver mais estrelas do que víamos antes da sua invenção, ultrapassar os limites efetivos da nossa perceção visual, mas não era por isso que a estrutura da astronomia e do universo seria alterada.

 Pelo que concluía que, com ou sem telescópio, as coisas situadas a uma distância infinita não poderiam à mesma serem percebidas pela visão, pois o mundo ótico era um mundo finito.

 

Só que uma coisa é calcular e apresentar a teoria, outra muito diferente é verem-se os resultados desses cálculos. Assim, quando Galileu consegue com o seu telescópio (ao ter conhecimento da invenção do telescópio, o perspicillum, feita por um jesuíta holandês, resolveu construir um para si) ver que a Lua tinha montanhas (o que o levou a concluir que a Lua seria feita de idêntico material ao da Terra), que Júpiter tinha satélites, que Vénus tinha fases, e que o Sol produzia manchas solares (o que significava que a sua matéria era alterável), vai desacreditar toda a astrologia Aristotélica, provocando uma enorme perturbação nos espíritos por pôr em causa a imutabilidade celeste, um dos dogmas que presidia ao mundo de então: a perfeição absoluta do cosmos vinha do facto de ele ser eterno e imutável, em que nada poderia ser alterado.

 

Astrónomos, físicos e matemáticos, revelavam com factos que o mundo já não era finito, ordenado e harmonioso, sendo antes infinito e caótico. O universo já nada tinha que ver com o cosmos, não podendo, portanto, ser tomado como modelo a ser imitado.

 

Para Alexandre Koyré, esta revolução científica está na origem

“da destruição da ideia de cosmos […], da destruição do mundo

concebido como um todo finito e bem ordenado, no qual a estrutura espacial encarnava uma hierarquia de valores e de perfeição … e da sua substituição por um Universo indefinido, e mesmo infinito, que não possui já nenhuma hierarquia natural, unida apenas pela identidade das leis que regem em todas as suas partes bem como pelas suas últimas componentes situadas, todas elas, ao mesmo nível ontológico …Hoje, já ninguém pensa nisso, mas os espíritos da época foram literalmente abalados pelo surgimento desta nova visão do mundo como o exprimem estes versos célebres que John Donne escreveu em 1611 (Anatomy of the World), depois de ter tomado conhecimento dos princípios da ‘revolução coperniciana’:

 

“A Nova Filosofia tudo põe em dúvida,

O Elemento de fogo extinguiu-se completamente:

O Sol perdeu-se e a terra; e o entendimento de homem algum

O pode dirigir com acerto até onde a buscar.

E francamente os homens confessam que este mundo está exausto

Enquanto nos Planetas e no Firmamento

Tanto procuram de novo; vêem depois que este       

Está de novo espalhado pelas suas Atomias.                          

Tudo está em pedaços toda a coerência se afastou;

Tudo é mero suprimento e tudo Relação.”

 

 

Mas, terá mesmo sido assim? Terão mesmo os povos ficado abalados pelo surgimento desta nova visão?

 

 

 

Att: continua na próxima semana com o título “Mas fazemos amor de relógio de pulso”.

 

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