(150) Os bosões de Saramago
Tempo estimado de leitura: 6 min.
Se não acrescentarmos energia a um sistema aberto ele vai acabar por ‘desaparecer’.
“Não seria mais fácil dissolver o povo e fazer com que o governo elegesse outro?”, Brecht.
“É melhor não fazermos nada do que contribuirmos para a invenção de formas de tornar visível aquilo que o Império já reconhece como existente”, Alain Badiou.
Diz-nos a termodinâmica física que se não acrescentarmos energia a um sistema aberto ele vai acabar por ‘desaparecer’, pois a sua energia irá diminuindo até se chegar a um estado de vazio em que a energia é zero.
Na física quântica (das muito pequenas partículas), quando se submete um sistema à temperatura de zero absoluto diz-se que se atingiu o “ponto zero”. Teoricamente, esse ponto zero corresponderia a um sistema sem energia, contudo, o que se verificou foi que, mesmo após se retirar toda a energia do sistema, o sistema fica sempre com uma energia remanescente que se mantém.
Por exemplo, se baixarmos a temperatura do hélio líquido para zero absoluto, o hélio deveria solidificar. Só que isso não acontece devido à impossibilidade de remover os movimentos atómicos das suas partículas no seu ponto de energia zero.
Teoricamente, deveria ser suficiente arrefecer o espaço até ao zero absoluto (atingir-se o ponto zero) para que tudo deixasse de vibrar. Só que não é isso que acontece.
Teorizou-se e concluiu-se então que todo o espaço se deveria encontrar cheio destas flutuações/vibrações de ponto zero, criando assim como que um oceano universal de pontos zero de energia: o chamado campo de Higgs.
Da mesma forma que a água está cheia de moléculas de OH2 que não vemos, também o campo de Higgs deveria estar formado por umas partículas de força chamadas “bosões de Higgs”.
Quando um sistema no ponto zero entra em contato com o campo de Higgs, a sua energia reduz-se para valores abaixo de zero. Para que esse sistema se mantenha, vai ser necessário ‘fornecer-lhe’ mais energia. Ou seja, o sistema desapareceria se não lhe fosse fornecida energia.
Se fosse possível adaptar o que se passa neste campo da física ao social, poderíamos teorizar que para transformar ou fazer desaparecer um sistema social bastaria não lhe fornecer energia, não fazer nada?
No Ensaio sobre a Lucidez, José Saramago situa a ação inicial do seu romance num chuvoso dia de eleições na capital de um país democrático. A preocupação do governo perante a muito fraca participação às urnas é alterada durante a parte da tarde quando constata que a população acorre em massa a votar.
Só que quando se procede à contagem dos votos se verifica que mais de 70 por cento são votos em branco. Incomodado por aquilo que considera ser falta de civismo dos cidadãos, o governo entende mandar repetir a votação uma semana depois. Os resultados são ainda piores, 83 por cento de votos em branco.
Os maiores partidos políticos entram em pânico, considerando que se está perante uma conspiração organizada para derrubar, não só o governo, mas o próprio sistema democrático. Assim, o governo considera os votos em branco como fazendo parte de um movimento de “terrorismo puro e duro” declarando o estado de sítio, suspendendo todas as garantias constitucionais.
Aleatoriamente são presos e interrogados quinhentos cidadãos, que serão mantidos em “grau máximo de segredo, vermelho/vermelho, que havia sido atribuído à delicada operação”.
A fim de “garantir a segurança” dos presos, o seu paradeiro não é comunicado às famílias, avisando-as para que nada dissessem.
Como a população continuava a manter-se calma, o governo optou por uma série de medidas como a declaração de estado de sítio, a proibição de entradas e saídas da cidade, a retirada da polícia, tentativas de provocar motins, fazer explodir a estação ferroviária em nome de pretensos terroristas vindos do exterior, a criação de um falso dirigente revolucionário que estaria a comandar uma insurreição não existente. Inteligentemente unida a população resiste tranquilamente a tudo.
Na sua excelente crítica com o título «The Election with No Results», (www.slate.com/id/2139519), o professor americano Michael Wood estabelece o paralelo com um poema de Brecht de 1953 onde ele cita um contemporâneo que lhe diz que o povo perdeu a confiança no governo.
Como resposta Brecht pergunta maliciosamente se não seria mais fácil dissolver o povo e que o governo elegesse outro. No caso do romance de Saramago estamos perante “uma parábola do que acontece quando nem o governo nem o povo podem ser dissolvidos”.
Não será bem assim. O governo só existe porque, e desde que, aqueles que lhe estão sujeitos o reconheçam, mesmo que este reconhecimento se faça sob a forma de rejeição, de voto de desconfiança. Por isso, ao abster-se de votar o que o povo faz não é só derrubar o governo, é muito mais radical: é dissolvê-lo. Daí o pânico do governo perante a abstenção dos votantes.
Já muito antes (novembro 1853) Hermann Melville (autor de Moby Dick) nos presenteara com Bartleby, empregado de um escritório de Wall Street que a tudo o que o patrão lhe pedia respondia com um “preferia não ter de o fazer” ( “Fazer ou não fazer, é sempre fazer” http://otempoemquevivemosotempoemquevivemos.blogs.sapo.pt/fazer-ou-nao-fazer-e-sempre-fazer-7097).
É que muitas das ações em que nos empenhamos localmente, além de serem limitadas, ainda contribuem mais para que o sistema se mantenha oleado, pelo que o melhor é não fazermos nada.
Esta ‘mania’ de ‘participarmos’, de ‘estarmos ativos’, serve apenas para mascaramos que algo (nada) se move. Esta ‘mania’ de ‘intervirmos em tudo’, de ‘fazer alguma coisa’, de ‘participarmos em debates’ sem sentido, serve apenas para dar aos que governam a sensação de que há uma participação, mesmo que ela seja crítica e contrária.
Dá-lhes a sensação que há ‘diálogo’: o que eles menos querem é que haja silêncio.
Por tudo isto, a abstenção é um verdadeiro ato político que nos confronta com o vazio das democracias atuais. “Por vezes, não fazer nada é a coisa mais violenta que temos a fazer”.
É do conhecimento geral que os átomos são constituídos por protões, neutrões e eletrões. Ao longo do século XX foi-se, contudo, descobrindo que os protões e os neutrões eram por sua vez constituídos por partículas ainda mais pequenas a que foram chamando quarks, muões, bosões, neutrinos, etc.
Estas partículas classificam-se em dois grandes tipos, partículas de matéria e partículas de força. As partículas de matéria (fermiões) constituem a chamada parte ‘sólida’ dos átomos, como os quarks, neutrinos, eletrões, muões e o tau. As partículas de força (bosões) são as que transmitem as forças entre as partículas ‘sólidas’: o fotão que está associado à força eletromagnética, o gluão associado à força nuclear forte que mantém unidos os protões e neutrões no centro do átomo, os bosões W e Z associados à força nuclear débil também dentro do núcleo atómico.
Surgiu então um problema: como explicar que algumas partículas como o fotão não possuíssem massa, outras como o eletrão tivessem muito pouca massa, e outras como os quarks tivessem muita massa? Porque é que um quark pesa muito mais que um eletrão? O que é que ‘dá’ massa às partículas? O que é a massa?
Peter Higgs, François Englert e Robert Brout aventaram em 1964 a seguinte hipótese: tal como para um mergulhador dentro de água ao deslocar a mão na vertical vai sentir uma maior resistência do que se movimentar a mão na horizontal, será que também se poderia admitir que no nível subatómico existisse um meio que oferecesse mais resistência a umas partículas que a outras? Um meio em que quanto mais fossem travadas as partículas maior massa teriam?
Isto explicaria que a massa dum fotão fosse zero por não interagir com o meio. Que a massa de um eletrão fosse mínima por interagir muito pouco. Já um quark encontraria grande resistência, daí a sua massa ser muito grande.
Concluindo: a massa não é uma propriedade intrínseca da partícula, sendo antes o resultado da sua interação com esse meio a que se deu o nome de “campo de Higgs”. A massa não depende do ‘tamanho’ ou ‘densidade’ das partículas, mas do modo como estas são travadas no campo de Higgs.
Para que esta resistência se verificasse seria necessário que o campo de Higgs fosse formado por umas partículas de força que não se conheciam. A essas “partículas” deu-se-lhes o nome de “bosões de Higgs”. Mas será que existiriam esses tais bosões? A sua existência acabou por ser comprovada na prática no ciclotrão do CERN em julho de 2012.
Parece simples, mas mesmo depois de se conhecer, é tudo muito mais complicado: o bosão não é propriamente uma partícula, mas uma vibração que aparece e desaparece quase instantaneamente no campo de Higgs, e, para além disto, o campo de Higgs não é o único campo que existe (há ainda a considerar o campo gravítico, o campo eletromagnético e outros).
Se fosse possível adaptar o que se passa neste campo da física ao social, poderíamos teorizar o quê? Veremos.