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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(149) Expulsos e Bastardos

Tempo estimado de leitura: 15 min.

 

“O homem é o ser vivo que não pode deixar de não pecar”, Santo Agostinho.

 

“Uma geração (presente) não tem direito a submeter as gerações futuras às suas leis”, artigo 28 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, junho de 1793.

 

O futuro aparece como espaço de tempo para efetuar o reembolso, para o pagamento de dívidas.

 

“Depois de nós, o dilúvio”, madame Pompadour.

 

 “Viva a liberdade, sobretudo a minha”, Jean Gabin.

 

 

 

 

 

 

A História, ou o que contam dela, não passa de mais uma tentativa para tentarmos compreender, explicar, o que poderá ter acontecido no passado, por forma a podermos atribuir uma certa coerência ao presente em que vivemos, tranquilizando-nos assim quanto à existência de futuro.

 Tal tentativa poderá assentar em factos ou estruturas que isolamos segundo nossa intenção, e/ou por acontecimentos ou conceitos (ou conjunto de conceitos) que julgamos aportarem uma melhor explicação.

 

Foi assim com a introdução do tempo de longa duração como conceito operativo que permitiu apercebermo-nos de grandes unidades coerentes onde antes só existiam variáveis conjunturais, foi assim com a utilização dos conceitos de vingança, remorso, estruturas de parentesco, ressentimento, religião, acaso, ambição, riqueza e outros, que foram permitindo explicar o desenrolar da história sobre outras perspetivas. Nenhuma delas, evidentemente, consegue a explicação total. São apenas, na melhor das hipóteses, caminhos possíveis.

 Peter Sloterijk aventurou-se na tentativa de fazer uma leitura dos acontecimentos tendo em conta o caminho das estruturas de parentesco, a filiação e a bastardia. Sigamo-lo.

 

 

Segundo a Bíblia, todos nós, humanos, somos, quase desde o início, seres que fomos expulsados. Se estamos neste mundo, é porque não fomos dignos de permanecer naquele lugar melhor. A situação do ser humano é, pois, uma consequência do “pecado original”.

 

Com Santo Agostinho, esse pecado passou a ser um “pecado hereditário”, segundo o qual todos continuamos ainda a pagar pela falta cometida pelos nossos antecessores: se Adão, o homem originário, corrompeu pelo primeiro pecado a sua substância intacta da criação, essa corrupção transmite-se a todos os seus descendentes, já que todos estão conluiados “em ele”. Todo o descendente de Adão é por isso co-corrupto “em Adão”.

Por isso, e ainda segundo Agostinho, a última verdade da condição humana é que não pode deixar de pecar (“non posso non peccare”): o homem é o ser vivo que não pode deixar de não pecar.

 

 O que faz do pecado uma doença sexualmente transmissível. O modo de transmissão, o ato sexual, inclui a repetição do primeiro pecado, porquanto nele é inerente a soberba, na medida em que mesmo sabendo que é pecado, não se coíbe, arrogante e desafiadamente, de o praticar, o que implica colocar-se em primeiro lugar face ao seu criador.

 

 

A modernidade via já essa herança do pecado original transmitida de pais para filhos, simultaneamente como uma carga e também como uma oportunidade. Mas, cada vez mais, os modernos se rebelavam contra esta herança que lhes aparecia como uma escravização, quer se tratasse de determinações biológicas ou de imposições da classe, escola, cultura e família.

Herança de uma situação de classe da qual não se podia libertar facilmente, a não ser por uma revolta política ou por uma subversão cultural. E, é isto que, mais tarde, vai levar a um certo entendimento entre liberalismo e socialismo. Embora aparentemente antagónicos, comportam-se como os melhores amigos quando se trata de arredar as premissas familiares e genealógicas.

Onde se notar este interesse contra essa herança e a favor de um novo começo, significa que estamos nos terrenos da modernidade.

 

Ao longo dos tempos, a forma de transmissão de reservas de valores de capital, de competência e de estatutos, a descendentes procriados ou adotados, tem sido feita geralmente de pais para os filhos (e menos vezes para as filhas). Esta “filiação” tem, contudo, constituído em todas as culturas um fator de risco fundamental.

 É que as culturas, tal como os genes, têm nas mutações um risco normal. Uma má cópia pode dar lugar ao velho “conservadorismo”, à preservação dos costumes de há dois mil e quinhentos anos. A reprodução de herdeiros, no sentido em que são portadores formalmente seguros de padrões culturais incorporados, é cada vez mais um compromisso entre genética, pedagogia e jogo de azar.

 

Assentando a cultura dos povos antigos na replicação, é facilmente entendível o seu afincado conservadorismo.  Como explicava Whitehead:

 “O começo da sabedoria é compreender que a rotina é o fundamento da vida social”.

 Sem esta vontade de repetição das gerações que se seguiam e sem a preocupação vigilante pela eliminação de qualquer variação maligna, não teria sido possível as suas permanências ao longo de muitos milhares de anos.

 

Sabe-se hoje que os caçadores de veados paleolíticos repetiram constantemente ao longo de dez mil anos os seus rituais de sacrifício da vítima (a extração do coração do veado e sua substituição por uma pedra redonda), o que significa que permaneceram assim durante quatrocentas gerações.

Ou seja, a sua civilização manteve-se três vezes mais tempo que as civilizações antigas de mais alta cultura do próximo e do extremo Oriente (cerca de cento e vinte e cinco gerações). Lembremos que o ritual da civilização americana-europeia-ocidental da missa/eucaristia tem até agora oitenta gerações, incluindo já o meio milénio ou quinze gerações de grandes discussões teológicas sobre essa celebração.

 

Todas estas culturas que conseguiram realizar durante estes três mil anos um número suficiente de processos de cópia entre velhas e novas gerações, exibem uma grande capacidade de adaptação que o surgimento de grandes individualidades poderia ter alterado.

As forças de coesão da ética do coletivo mantiveram-se através do efeito conservador de tábuas de leis e de escritos sagrados. O seu caráter escrito permitiu a instauração de um cânon, mesmo que a reinterpretação dos seus parágrafos acabasse por ser incompreensível.

Em todo este processo predomina o princípio implícito de queTens de ser o descendente dos teus predecessores, pelo que talvez seja correto inferir que toda a moral é em princípio uma moral de escravos.

 

Como a modernidade ocidental procura sistematicamente a inovação, o falho de cópia entre gerações, voluntário ou não, vai começar a surgir cada vez com maior frequência, a ponto de o coletivo não vir a ser mais que um agregado de desertores da tradição recebida.

Esta transformação pode ser possível de acompanhar através da evolução do patriarcado como transmissão cultural. O patriarcado é proveniente do compromisso entre estruturas de parentesco e imperativos de uma autoridade presente em coletivos pré-estatais ou estatais. Não se compreende a função dos pais e da paternidade nas grandes culturas, sem ver neles a vontade e necessidade de dar um rosto humano anónimo à autoridade transmissora de costumes anteriores.

Tal ainda hoje permanece quando nas eleições das modernas democracias os rostos se substituem aos programas.

 

Em qualquer das grandes civilizações antigas, ninguém se converte em pai apenas para dar origem a descendentes, mas para se erigir em portador da mais-valia ética inerente a esse papel. Nos patriarcados clássicos o pai é a máscara personalizada da moralidade. O que todos querem é mandar, terem autoridade, socorrem-se da personificação em pais e avós.

Daí que os atributos mais importantes do patriarca sejam a severidade, como personificação da ameaça de castigo para os casos de comportamento divergente, e a aversão para com a irregularidade e a exceção. Desde esse momento, autoridade e verdade passaram a valores intrínsecos e inseparáveis.

 

Estes rituais de transmissão nas culturas antigas de pais para filhos conseguem formalizar o intervalo entre as gerações e impedir ruturas nocivas.

 

Sempre que se corrompia este tecido da continuidade genealógica, abria-se a possibilidade da queda na animalidade, bem expressa na tragédia grega do rei Édipo.

Os romanos dão um passo em frente ao descobrirem que os interesses das grandes famílias se podiam, muitas vezes, expressarem-se melhor através de um sistema de filhos eleitos do que através de uma caprichosa descendência carnal.

Fizeram-no por duas vias: pela adoptatio, em que se acolhia um jovem na casa de família em lugar do filho, desde que aceitasse a subordinação à patria potestas do pai adotivo, ou pela adrogatio, em que o filho adotivo adulto tinha de ter o consentimento da cúria senatorial e do colégio de sacerdotes para se poder manter ao lado do pai não carnal com o estatuto de pessoa livre e direito a assumir o nome, os bens e clientela do adotante.

Casos de adotados célebres foram os imperadores Nerva, Trajano, Marco Aurélio, Lúcio Vero, Adriano e Antonino Pio.

 

Contudo, o maior ataque a esta ordem patriarcal das coisas veio de uma pequena seita seguidora de um excêntrico jovem judeu educador dos pobres, curandeiro miraculoso e anunciante do reino de Deus, Jeshua ben Josef, que acabou justiçado pelos romanos segundo se crê no ano 30. Predicador excecional, após a sua morte outorgou-se lhe o título judeu de Messias, depois helenizado como Christós, o ungido.

 

É grande a cisão e o radicalismo que a sua ação e prédica pretendem introduzir naquela sociedade e naquele tempo.

Começando pela anunciação do anjo, que indicia um método alternativo de conceção, até às frases simbólicas que o dão como “nascido do pai antes de todo o tempo”.

Depois, aquela desconsoladora frase com que se dirige à sua mãe na boda de Caná, “Mulher, deixa-me” (João 2,4); a estranha referência, quando com doze anos passeando com seus pais, aponta o templo de Jerusalém como sendo a sua “casa paterna”; a ausência do pai José em toda a sua vida pública; a cena do batismo (Marcos 1, 11) em que se ouviu uma voz sobre o batizado, garantindo que: “Tu és o meu filho querido, no qual tenho posto toda a minha complacência”, modelo de adoção que aparece como o mais apropriado para justificar neste caso a relação híbrida pai-filho.

Culminando com dizeres bem explícitos atribuídos a Jesus:

 

E não deveis de chamar pai a ninguém na terra; pois só um é vosso pai, aquele que está no céu, (Mateus 13).

Pensais que vim trazer paz à Terra? Eu digo: não, apena discórdia […] O pai estará contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe, (Lucas 12, 51).

Se alguém vem a mim e não odeia o seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs, e a sua vida, não pode ser meu discípulo, (Lucas 14, 26).

Quem quer mais ao seu pai ou à sua mãe do que a mim não é digno de mim; e quem quer mais ao seu filho ou à sua filha do que a mim não é digno de mim, (Mateus 10, 37).

Quem faz a vontade a meu pai no céu, esse é o meu irmão, a minha irmã e mãe, (Mateus 12, 50).

 

Não admira que os seguidores do profeta se sentissem mais como pertencentes à nova comunidade de irmãos do que às suas famílias carnais. Eles são os primeiros a aderirem a este novo modelo de filiação em rutura com o existente, e nesse sentido foram os primeiros modernos.

 

A filiação pai-filho vai converter-se numa sucessão de filhos-mensageiros. Não é admissível que Pedro, com aproximadamente a mesma idade de Jesus, pudesse ser reconhecido como filho legítimo e seu herdeiro. Abre-se o caminho para uma cadeia sucessória não-genealógica que presidiria a toda a “história”, que passava a ser a história dos apóstolos, uma exposição das dificuldades vividas pelos mensageiros na expansão do evangelho sobre a Terra.

 

E, contudo, as forças da tradição continuavam muito presentes. É o que vai obrigar, por exemplo, à descrição tardia do batismo de Jesus como fruto da necessidade de legitimação e de explicação de uma descendência genealógica (não se assumindo como filho do pai José, teria de ter outro pai, que se fez ouvir para todos como voz vinda do céu).

E com a reapropriação do conceito de pai para os muito títulos de pais híbridos da Igreja (padres): são os padres do deserto, os padres da Igreja, os padres confessores, e demais figuras para-paternais como o sacerdote, o abade, o papa, e outros.    

É esta filiação espiritual de pais metafóricos que dá origem à eclesia, à Igreja cristã e católica.

 

Esta reapropriação do conceito do papel de pai, proibida por Jesus, acontece, entre outras razões, porque a realização do reino do céu na Terra e o fim do mundo não aconteceram tão depressa como os apóstolos esperavam (daí terem tardado em escreverem os Evangelhos: só considerando os canónicos, eles teriam sido escritos entre os anos 70 e 100) e também porque, com o enorme crescimento da organização, começava a ser necessário estabelecer a diferença entre os leigos cristãos e os religiosos de profissão (o que foi feito através do seu escalonamento entre cordeiros, pastores e pastores-mores, e que levou à reintrodução do conceito  de hierarquia paternal por ser a melhor aceite pela sociedade).

 

Mas esta reapropriação do sistema da paternidade, estende-se também à família nuclear, onde o filho era levado a entender a sua existência como a de um bastardo criado por Deus, cujo destino estava para além do interesse da família. E leva também à criação de um novo laço assexual entre marido e mulher que impõe uma abstinência até então desconhecida.

Ou seja: já não se acredita num futuro que resida nos filhos próprios, preparamo-nos para um mundo totalmente diferente, que virá depois deste. Já não procriamos mais, antes batizamos e ensinamos. Não nos reproduzimos, ensinamos e convertemos. Isto é uma lógica totalmente diferente de sucessão.

Este esquema da Sagrada Família põe em lados antagónicos as legitimidades das sucessões hereditárias e das sucessões apostólicas, especialmente nas casas senhoriais cristãs.

 

E, contudo, esta cisão na maneira em que temos de estar afirmada pelo cristianismo, em que todo o ser humano desde o nascimento tem o direito inalienável de não seguir a maioria, em poder não estar de acordo com os costumes, com opiniões e mentiras do seu povo apenas porque os seus antecessores assim o entenderam, esta “sacralidade da pessoa”, vai acabar por servir de base ao conceito de liberdade incluído nos direitos humanos modernos.

 

As culturas mais desenvolvidas da Antiguidade, nomeadamente a helénica e a judaica, sabiam já bem que o aparecimento de figuras corrosivas poderia pôr em risco as simetrias normalizadas em que essas sociedades assentavam, pelo que tendiam sempre para a eliminação de tudo quanto fossem variações não desejadas.

A ética mais antiga das tribos “primitivas” regulava a maior parte das coisas com a ajuda de costumes ultra estáveis que ficavam fora de discussão:

 

 “Era assim que as formas de vida como ritos, mitos, danças, festas, fórmulas mágicas, serviços funerários e outros usos que foram integrados mediante o recurso a instituições de reciprocidade, intercambio de prendas, exogamia e proibição de incesto, e a atribuição unilateral do parentesco por linha paterna ou materna, exerciam efeitos estabilizadores”, por forma a garantir a constância dos processos seguros de cópia.

 

Mas, apesar da imposição e da resistência, a rigorosa linha cristã não se conseguiu impor à tendência liberal. Quer da parte da aristocracia, quer da parte do próprio clero, especialmente quanto às transmissões da “herança” familiar e cultural à geração seguinte.

É assim que assistimos por parte das aristocracias europeias até à véspera da Revolução Francesa, à proliferação de instituições como o amancebamento, o concubinato, os matrimónios de mão esquerda ou morganáticos, quase sempre a coberto da crítica clerical, e isto apesar do casamento ter passado a ser considerado como sacramento a partir de1100, com confirmação no Sínodo de Verona de 1184.

 

A superabundância de bastardos na nobreza era informalmente integrada na vida quotidiana dos nobres, até através de prebendas eclesiásticas ou de colocações em posições militares. Os “filhos naturais” tinham sempre visibilidade própria, embora sobre o ponto de vista hereditário fossem sempre preteridos relativamente aos legítimos.

A existência dos bastardos do clero, de príncipes-bispos, cardeais, papas curas e monges, pôs ainda problemas muito maiores que o dos filhos ilegais da nobreza, devido à falsa ou dupla moralidade que lhe era inerente. Basta pensar na quantidade enorme de prostitutas que acompanhavam a celebração de sínodos e concílios, nas relações com concubinas estabelecidas, com mulheres solteiras ou casadas, com amigas espirituais, com pecadoras ad hoc.

 

Como regra geral as comunidades monacais recusavam a admissão de curas e monges bastardos, a não ser que conseguissem obter uma “dispensa papal”, ou seja, havia a regra e a exceção, sendo esta obtida por pagamentos de multas para tudo que enchiam os cofres da Santa Sé.

A argumentação baseava-se no defectus natalium, segundo o qual o desbragamento dos pais recaía sobre os filhos. Tal como o pecado de Adão era hereditário, o bastardo filho da depravação moral do monge que vive em concubinato, conservará essa mancha hereditária.

 

A estes filhos do “pecado” devemos ainda juntar todos aqueles que começaram voluntariamente a renegarem a ascendência paterna, com foi o caso de Francisco de Assis e seus seguidores, e todos aqueles que tentavam imitar cristo (De imitatione Christi, de Tomás de Kempis, publicado em 1418, com mais de 3000 edições, é a obra mais difundida da civilização cristã a seguir à Bíblia), que punham a questão perturbante de “para quê continuar com a reprodução física se na realidade sendo filhos de Deus o que deveríamos fazer era regressar a Ele o mais depressa possível” num desejado retorno à origem transcendente.

 

Para estes místicos era claro que a identidade cristã do filho com o pai não criava um continuo genealógico, antes o quebrava. A paixão para com Deus não era compatível com o cuidado pela transmissão da herança familiar ou de um carisma dinástico.

Este pensamento místico vai promover a cisão entre os que se consideram autónomos, livres de descendência corporal, para os quais não conta a interação física da procriação, e que devem a sua existência espiritual a um reacender do conceito de Deus no seu intelecto, e os outros engendrados mundanamente. A cisão entre o homem interior e o homem exterior.

 

Curiosamente, desde o princípio da sua constituição, a Inquisição olhava com desconfiança para estes homens espirituais perfeitos, temendo que o cristianismo organizado eclesiasticamente pudesse vir a ser considerado como supérfluo.

 

Segundo esta nova ideia de legitimidade, o sujeito místico aparece como portador de direitos inalienáveis como filho de Deus, superiores aos direitos humanos. Quem não quisesse ou não pudesse ser considerado como descendente, herdeiro ou sucessor de pais e avós reais, encontrava neste conceito de “homem interior” uma forma para acabar ou reduzir a árvore genealógica a um mínimo.

A comunidade místico-cristã tinha apenas um, e o mesmo Pai. Quanto aos pais reais, suportava-os ou prescindia deles. De certa maneira, uma sociedade precursora da sociedade do século XX: uma “sociedade sem pai”, de indivíduos autónomos.

É como se Deus originasse exclusivamente “filhos naturais” engendrados ou nascidos por emanação direta: Deus Pai seria o progenitor dos bastardos mais nobres.

 

Não é, pois, de estranhar que durante o Renascimento se começasse a notar um papel dinamizador de alguns dos bastardos que, ao apoderarem-se da “política cultural”, irão provocar uma alteração nas relações de legitimação. Fazendo ressaltar o “génio”, a “ideia”, o “furor heroico” em vez das palavras dos padres da Igreja, da sagrada Escritura e dos seus ascendentes, faziam antes o apelo à “nobreza do espírito” como a única digna de sucessão. É o renascer da ideia que relaciona destino excecional com ascendência irregular.

Exemplo por excelência é Leonardo da Vinci (1452-1519), filho ilegítimo de um notário toscano e de uma escrava rural de ascendência árabe. É o aparecimento do ser humano criador cujo estatuto já não se determina apenas pela sua ascendência, mas pelo seu rendimento efetivo.

 

É o aparecimento de uma nova categoria de nobreza: a “nobreza de espírito”, “de mérito” ou “de coração”, conforme veio a ser chamada. Ascende-se a ela exclusivamente pelo “engenho”, por “obras” ou “feitos”. É o culto da Idade Moderna ao génio do “homem novo”.

Aqui se unem mística e qualidade de génio na elevação transcendente do indivíduo. Não interessa já se provêm ou não de pais profanos, porquanto certamente foram ambos agraciados pelas fontes de luz e de prestígio que incidem verticalmente sobre eles.

 

Essa charneira do século XVI na Europa ficou conhecida como o “século dos bastardos”: basta olharmos para a Inglaterra, o reinado de Henrique VIII, as suas amantes, as suas filhas Maria e Isabel, ora legítimas ora ilegítimas, bastardas alternadamente por decreto real ou papal (o próprio papa Clemente VII, 1478-1534, também ele bastardo da casa dos Médici) sempre na procura de um macho vivo possível de lhe suceder; para a França  de Antoine de Bourgogne (1421-1504), por ele mesmo autocognominado le Grand Bâtard de Bourgogne, um dos nove filhos naturais de Filipe III, o Bom, e da sua amante Jeanne de Lizy; para João da Áustria (mandado assassinar por Isabel I de Inglaterra), filho natural do Imperador Carlos V e da atrativa Barbara Blomberg, irmão do que veio depois a ser Filipe II de Espanha, primeiro de Portugal.

 

A este século dos bastardos seguiu-se a erupção dos órfãos, dos abandonados e dos expostos que tiveram de reconstruir o seu lugar no mundo dando provas da sua valia. A estes acrescentam-se mais tarde os usurpadores políticos, os empresários e os homens que se fizeram a si próprios (os self-made men) que em qualquer dos lugares deixaram a sua marca, a partir dos finais do século XVIII, sobretudo no novo mundo.

 

Curiosamente dessas personagens que foram tidas como importantes (grandes industriais, inventores, banqueiros) nem uma só mulher figura.

 Teríamos de aguardar mais cento e cinquenta anos para aparecer como rainha-mor do espetáculo a bastarda Oprah Winfrey, filha ilegítima de pais de menor idade e confessa ex-dependente de drogas. Mesmo assim ela não pode ser considerada como uma mulher que se fez a si própria porquanto a fabricação da sua carreira só é imaginável como efeito de teamworks estratégicos.

 

Com o Renascimento assistimos à mistura de antigos privilégios herdados com os novos senhores que se enobreceram a si próprios com títulos e talentos, com base nos mecenatos, repartição administrativa do trabalho e primeiras associações familiares.

Esta tendência corrosiva de atribuição de honrarias, privilégios e títulos legítimos prossegue imparavelmente até que com o Iluminismo e a Revolução Francesa se dá uma alteração brusca na transmissão de legitimidade e soberania das famílias aristocráticas para a burguesia, autodenominada de “povo”.

O que aliás já se fazia prever, porquanto na prática a aristocracia estava cronicamente endividada para com os seus financiadores da alta burguesia. “A aristocracia e o seu “Estado” tinham perdurado como um império milenar do défice”.

 

Para ajudar a proporcionar a conexão entre direito e a maioria, a única saída para a criação de uma nova legitimidade passava pela introdução do sufrágio universal.

É curial o exemplo da Revolução Americana, na medida em que remete para um papel subalterno as origens dos cidadãos pertencentes a culturas mais antigas, sejam elas oriundas da Europa (ingleses, irlandeses, alemães, polacos) ou da Ásia.

Aquilo que vão chamar de “pais fundadores” não passam de “bastardos fundadores”. São apelidados de “pais” apenas porque romperam com as ligações com o passado. São figuras fundadores só na medida em que repudiam direitos anteriores e abrem o debate sobre as novas regras.

 

O “igualitarismo” tão de moda, não passa da luta da ofensiva dos bastardos e outros sujeitos arcando com desvantagens hereditárias contra o sistema existente de discriminações solidificadas. Sem a componente jurídica, e apenas só sob o ponto de vista cultural, a igualdade só tem sentido como categoria aristocrática ou meritocrática: todos têm de ter direito a pertencer aos melhores, e a nenhum se pode jamais negar esse privilégio.

 

Cabe a Ralph Waldo Emerson (1803-1882) afirmar o significado da independência intelectual da América, quando diz:

 

Recuso a pai e mãe, a mulher e a irmão, quando o meu génio me chama […] Nada é em definitivo mais sagrado que a integridade do teu próprio espírito […] Nenhuma lei me pode ser sagrada, a não ser a da minha própria natureza […] Porque haveria de olhar sempre para o passado que esteja para além das minhas costas? Porque levar contigo o cadáver da tua memória? […] São os pais mais do que o filho no qual depositaram o seu ser maduro? Porque então essa veneração para com o passado? […] mantém-te sempre em ti mesmo; nunca imites … todo o grande ser humano é uma unicidade […]

 

A nação americana assume-se, assim, coletivamente como bastarda que conscientemente deserdada acabará por descobrir o princípio da fortuna autodeterminada. Se tiveres sorte, não conheces pais. Se te encontrarem, coloca-os na sombra. A luz cai apenas no teu presente.

 

Toda a “geração” possui o direito à produção da descontinuidade histórica, na medida em que a procura permanente de um novo começo torne necessário a interrupção ou posta entre parêntesis a neutralização da ascendência. É Thomas Jefferson (1743-1826) quem o diz:

 

A terra pertence aos vivos, não aos mortos […]. Devemos considerar cada geração como uma nação diferente […] mas sem o direito de vincular a geração seguinte, da mesma forma que o não poderia fazer com os habitantes de outro país.

 

 A constituição da nação é feita a partir de bastardos, que lutam constantemente para que as regras se ajustem ao espaço atual de reunião: isto é, o american way of life.

 

Também na Europa em meados do século XIX se forma a figura de proletariado, invocada como um nobre coletivo de bastardos que, não tendo emigrado nem cruzado a Atlântico, iriam fazer a revolução no seu próprio lugar. A ideia era que devido à privação de direitos e ao facto de serem constante e diariamente deserdados de tudo, fossem levados a concluir que seria imprescindível a eliminação revolucionária do “existente”.

 

O coletivo bastardo dos “trabalhadores” deveria voltar as costas aos donos das fábricas, constituindo-se como os verdadeiros senhores e possuidores do mundo.

Curiosamente, o novo coletivo bastardo trabalhador do século XIX leva alusão à sua falta de ascendência no próprio nome: proletariado é quem não possui mais nada que a sua proles, descendência, e a sua própria força de trabalho que tem de colocar no mercado para poder manter-se com vida, a ele e aos seus.

 

O aparecimento destes novos bastardos, quer tenham ou não cruzado a Atlântico, conduziu, não a uma sociedade de trabalhadores, mas a uma sociedade de empregados ou desempregados à procura de serem empregados.

Conduziu a um difuso híper-proletariado pós-industrial, cheio de desejos, de bens e marcas, parado e ativo, rebelde e conformista, vivendo no centro ou na periferia, prostituído ou autónomo, ao lado do qual a “classe dos trabalhadores” do marxismo parecerá uma dinastia venerável.

Em qualquer dos casos já não provêm de famílias que se empenhem em prosseguir o “objetivo incalculavelmente valioso da transmissão”.

 

Expulsados Deus e o Estado, aparece o individualista egoísta confesso que nada toma com seriedade e que se crê superior a tudo e que a tudo tem direito. São várias as formas com que nos aparecem: “anarquista, fascista, génio, paranoico, boémio, satânico, existencialista, individualista, terrorista, membro da classe média, crítico do totalitarismo, solipsista, profeta, niilista, metafísico …”.

Como dizia Jean Gabin: “Viva a liberdade sobretudo a minha”.

 

Temos assim, em resumo, que o processo de legitimação cultural por filiação ou sucessão hereditária que se tem baseado na expansão de um efeito anti genealógico, para o qual contribuíram os impulsos anti genealógicos do Novo Testamento, as várias correntes místicas cristãs, e o impulso de cada vez maiores estratos da sociedade europeia ao acesso livre a posições de poder e influência, a que se seguiu  uma revolução permanente das ambições em nome da igualdade de direitos devido à confrontação direta entre prejudicados e privilegiados num espaço de conciliação reduzido, acabou por conduzir nestes começos do século XXI a um agregado de indivíduos, mais que a uma sociedade, para os quais o futuro perde cada vez mais o encanto como espaço de acolhida de projetos de civilização. O futuro aparece quando muito, como espaço de tempo para efetuar o reembolso, para o pagamento de dívidas.

 

É assim, que frases do passado recente, voltam hoje a serem profundamente atuais. Lembro a exclamação da madame de Pompadour em 1757:

 

Après nous le déluge” (Depois de nós o dilúvio).

 

E de Leticia Ramolino, mãe de Napoleão, falando dobre a carreira do filho:

 

Pourvu que cela dure” (Desde que ela dure).

 

 

 

 

 

Para quem estiver interessado em aprofundar o tema:

Peter Sloterijk, Los Hijos Terribles de la Edad Moderna, Madrid, 2015.

Pierre Legendre, L’inestimable object de la transmission. Étude sur le principe généalogique en Occident, Paris, 1993.

 

Sobre o egoísmo contemporâneo:

Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio, Ensaio sobre o individualismo contemporâneo, Lisboa, s. d., Relógio d’Água.

Max Stirner, The Ego and Its Own, Cambridge, Cambridge University Press, 2009.

 

 

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