(146) A "era do camelo": o início do enriquecimento da Igreja.
“É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus”, Mateus, 19:24.
Há muita riqueza que vem dos “negócios de Buda”, Jacques Gernet.
O que é que terá levado os romanos ricos a começarem a transpor a sua riqueza para o Céu, através de ofertas à Igreja ou aos pobres?
“Os ricos existem para suportarem as obrigações para com o mundo secular, sendo os pobres mantidos pela riqueza das igrejas”, édito de Constantino.
O estudo sobre o aparecimento e crescimento do cristianismo torna-se cada vez mais importante, na medida em que se vão estreitando as saídas para a atual sociedade. É urgente tentarmos saber como se formou aquela organização ultraminoritária dos confins do império romano, como vivia e escapava ao controle existente, como se relacionava com a população e como cresceu de forma a passar, em pouco mais de três séculos, de “um obscuro culto oriental” a religião do império.
A resposta normalizada e vulgarmente aceite e propalada, simples e mais ‘lógica’, é a de que tal aconteceu por ser desejo de Deus. Ponto. O que inibe o aparecimento de quaisquer novas organizações que se proponham lutar contra as injustiças, desigualdades, imoralismo, a não ser que tenham o Seu consentimento.
Nada, contudo, nos impede de tentar conhecer melhor esse tortuoso caminho seguido. Um dos indicadores que pode ser utilizado como prova de afirmação e crescente implantação da Igreja é o do seu enriquecimento, especialmente, ou por isso mesmo, no período instável em que se verificou.
Para o perceber, temos de nos livrar de três ideias-feitas que nos têm sido apresentadas como verdadeiras, e que não correspondem à realidade. A de que o Estado Romano era muito bem organizado, cobrindo todos os aspetos da sociedade; a de que a Igreja Cristã enriqueceu a partir da conversão do imperador Constantino; e a de que as Invasões Bárbaras foram horrorosas e destruíram tudo e todos.
Organização do Estado Romano
O Estado Romano era organizado de forma a assegurar que o Imperador vivesse dos impostos cobrados, deixando que as elites, senadores e outros, vivessem de rendas da terra.
Apenas o Exército e a Justiça Superior eram controlados e dirigidos pelo Estado. Quase todas as outras tarefas, nomeadamente a polícia, a manutenção de estradas, as fortificações, e especialmente a coleta de impostos, eram delegadas para a autoridade dos governos locais e municípios. Ou seja, a organização do Estado do Império Romano, quando comparada com a dos Estados atuais, assentava numa estrutura minimalista.
De acordo com esta delegação e autonomia, o principal dever dos municípios era serem agentes de extorsão em nome do império. A forma como o faziam, era problema deles. Podiam até serem tiranos.
O Império era constituído por cerca de 2.500 cidades estados, que se viam como repúblicas autónomas debaixo da proteção dos exércitos do império romano. Era como se agora a Europa fosse constituída por vários principados como o de Mónaco ou San Marino, com a diferença que enquanto hoje essas sobrevivências têm como finalidade propiciar a fuga de impostos, no império romano era precisamente o oposto: cooperavam obrigatoriamente com o império na recolha de impostos.
Fazer parte do corpo de uma administração local era importante e muito bem visto, pois tal significava que se pertencia àquele grupo que se “preocupava” com que o Imperador e Roma vivessem bem. Conseguir-se entrar para os quadros da ‘Câmara’ de uma cidade, ou seja, ter o dinheiro mínimo para comprar o lugar ou ter pago favores para o obter, era uma carreira desejável.
O Império dependia grandemente dos membros destes conselhos municipais. Contrariamente ao que acontece na sociedade moderna, em que o poder depende grandemente da riqueza, na sociedade romana é a riqueza que depende grandemente do poder.
A economia do Estado Romano
Na sociedade romana, os grandes senhores viviam de rendas das suas propriedades. A “riqueza” encontrava-se essencialmente ligada à terra; no caso dos ricos, essa riqueza era transformada em dinheiro suficiente para alcançarem privilégios e poder.
Cada ano, mais de 60 % da riqueza do império romano era gerada no tempo das colheitas por uma força de trabalho estimada em 80% da população total. A colheita de cereais começava no Médio Oriente durante a primavera e prolongava-se até ao fim do verão no norte da Europa.
Apesar da diferente estrutura fundiária das regiões, sabe-se que a maior fatia da riqueza tinha origem nas rendas pagas pelas inúmeras pequenas quintas: o minifúndio, e não o latifúndio, é que constituía a base dos campos romanos.
A ascensão social
Como se progredia socialmente, como se alcançavam riquezas, poder e privilégios? Por um sistema de Benfeitorias ou Patronagem, “através de favores pedidos ou concedidos, relacionando-se com quem estava no poder”.
Séneca descreve o sistema na sua obra De Beneficiis (que mil anos mais tarde – 1429 -- o “nosso” Infante D. Pedro, irmão do rei D. Duarte, vai em parte seguir no seu Livro da Virtuosa Benfeitoria).
Tomemos como exemplo a carreira de Agostinho, futuro bispo de Hipona e mais tarde santo.
Como jovem professor, foi suportado financeiramente por Romanianus, tendo ficado livre dos deveres que teria para com a cidade de Tagasta por ser filho de um conselheiro da cidade. Passando de ‘patrono’ em ‘patrono’, conseguiu chegar a Roma. Aí, em 384, com o apoio de um grupo sectário de maniqueus, entra ao serviço de Symmachus, senador pagão, que o coloca em Milão para ensinar. Um ano depois, através de “amigos colocados em posições elevadas”, vai procurar obter o cargo de governador.
Este mecanismo de patronagem era extremamente importante, pois era ele que ia permitindo manter a elite da sociedade romana dentro de uma certa estabilidade e sem grandes fraturas.
Constantino e o enriquecimento da Igreja
Com a conversão de Constantino em 312, são garantidos à Igreja privilégios para que ela intercedesse e rezasse pelo império e para que tomasse conta dos pobres.
Podemos ler no seu édito de 329: “Os ricos existem para suportarem as obrigações para com o mundo secular, sendo os pobres mantidos pela riqueza das igrejas”.
Na prática, os privilégios concedidos incluíam pouco mais que a isenção de prestação de certos serviços públicos e a isenção de alguns impostos.
Não foi, pois, essa conversão que fez com que a igreja cristã enriquecesse, nem que obtivesse um estatuto idêntico ou superior que distinguia os mandantes tradicionais da sociedade romana.
Com Constantino, o cristianismo passou a ser uma religião com privilégios, mas tal não significava que fosse socialmente dominante.
A maior parte dos habitantes da classe superior do Império Romano do Ocidente continuavam a seguir as normas da tradição que os levava a exibir a sua generosidade através de doações e construções para com as suas cidades e para com os seus cidadãos, e não para com as igrejas e ainda menos para com os pobres.
Para os romanos ricos, mesmo cristãos, o Cristianismo não introduzia uma tão grande alteração à sua vida: tratava-se apenas de adorar um deus único superior a todos os outros deuses. Além do mais, o seu reino não era deste mundo, pelo que os seus negócios na terra não sofriam qualquer alteração. A diferença foi que a partir de Constantino, Cristo passara a ser também o deus do imperador.
Mudanças a partir do final do século IV
Só após o final do século IV (a partir de 370) os mais ricos começaram a afluir à igreja em grande número, chegando mesmo alguns a virem a ser bispos e escritores cristãos.
Esta entrada da riqueza e dos ricos, provocou problemas e conflitos de doutrina que tiveram de ser acomodados. Grandes foram as controvérsias e atitudes radicais que esta entrada de ricos e das suas riquezas provocaram na altura, bastando lembrar as controvérsias de Prisciliano (380), Jerónimo (380, 390) e de Pelágio (400).
O que é que levou os romanos ricos a começarem a transpor a sua riqueza para o Céu, através de ofertas à Igreja ou aos pobres?
Alarico, o rei dos Visigodos, não atacou diretamente Roma. Tal qual qualquer outro general romano durante as muitas guerras civis, deambulou e estacionou o seu exército nos arredores das grandes cidades de Itália. E foi pedindo dinheiro através de resgates, ameaças e pilhagens. Chegou aos subúrbios de Roma em novembro de 408, e aí permaneceu sugando o Senado e os ricos proprietários. Só em agosto de 410 é que as suas tropas entraram em Roma.
É nesta época de grande instabilidade e pilhagem, com a invasão dos Visigodos e posterior saque a que a Itália estava a ser submetida, incluindo Roma, que levou a que grandes fortunas desaparecessem num instante, que se começaram a verificar casos de transferência de grandes riquezas da aristocracia romana para a Igreja.
Dois casos exemplares permitem-nos entender melhor o que estava em jogo:
O primeiro é o de um jovem casal cristão, Valerius Pinianus e Melania a Jovem, que decidiram verem-se livres da sua enorme fortuna, doando-a à Igreja.
Para se ter uma pálida noção sobre o que era a sua fortuna, ouçamos o que Melania escreve (conforme memórias escritas pela própria e recolhidas pelo padre Gérontius em 452, Laurence, Gérontius: La vie latine de sainte Mélanie):
“E mais uma vez arrecadámos uma enorme quantidade de ouro e doámo-la aos pobres e aos santos – 45.000 moedas de ouro. Quando entrei no átrio, pareceu-me que […] toda a casa se tornara resplandecente, como se estivesse em fogo, dado o imenso brilho que emanava da massa das moedas.”
A riqueza do casal era tão grande, que a própria sociedade romana não aceitava a sua decisão. Nunca acontecera que devido a um acidente de transmissão de duas grandes fortunas (terras em Espanha, Itália, Sicília e África) de duas grandes famílias de Roma, a herança fosse parar às mãos de um casal muito jovem que não queria ter herdeiros.
Devido a não serem ainda maiores de idade, a sua intenção de doar a herança à igreja, só podia ter efeito se contasse com a aquiescência dos seus pares e do apoio das autoridades imperiais. Por isto, a sua renúncia transformou-se num assunto público.
Eis o que aconteceu: por volta de 408, Pinianus e Melania resolveram vender as suas propriedades nos subúrbios de Roma. Propriedades dedicadas à agricultura intensiva para o abastecimento do mercado urbano, logo com muita mão de obra.
Resolveram também libertar 8.000 escravos. Acontece que os escravos recusaram a liberdade, e os que ficaram nas propriedades que eram para serem vendidas a outros donos também se revoltaram porque não queriam ser vendidos a outras pessoas.
Os escravos não queriam ser libertados numa época em que teriam de procurar trabalho que seria sempre trabalho forçado. À liberdade preferiam a proteção que lhes garantia comida. Por outro lado, para os proprietários romanos das terras, a quantidade de escravos libertados faria com que as terras ficassem incultas, e que a instabilidade reinasse entre os pequenos proprietários, numa época de invasões bárbaras.
Perante a oposição dos familiares à venda das propriedades, o jovem casal procurou, através de influências, “apelar” para o imperador. E souberam “apelar” bem. Este publicou um édito colocando as propriedades do casal como “posição proscritiva”, pelo que tecnicamente, as propriedades passavam a estarem confiscadas pelo imperador.
Tal significava que as propriedades passavam a poder serem vendidas apenas em ofertas públicas, o que responsabilizava os governadores, finanças e câmaras de cada província, pela sua venda. Só que o dinheiro arrecadado iria para o casal e não para os cofres do imperador.
Teoricamente, as propriedades pertenciam ao “divino” imperador. Mas, também podiam ser vistas como pertencendo a um “Imperador Maior”. Como uma propriedade dada a Cristo para os Seus pobres. O que as tornava invioláveis. Como diziam Pinianus e Melania: interferir com a disposição da riqueza dedicada desta forma aos pobres era “roubar os altares de Deus”.
Embora se dedicassem à “pobreza”, Pinianus e Melania conseguiram assim assegurar as suas propriedades, vivendo o resto das suas vidas recebendo as suas rendas que iam entregando aos monges e aos pobres.
Outro caso também muito célebre foi o da renúncia de Pontius Meropius Paulinus. Após a morte do seu único filho, ele e a sua mulher, Therasia, decidiram levar uma vida de abstinência e vender as suas muitas, enormes e antigas propriedades.
No dia de Natal de 394, Paulinus é ordenado padre em Barcelona (da mesma forma que Agostinho fora ordenado em Hipona três anos antes, por aclamação do povo Cristão, e por inspiração do Espírito Santo). Em 395, atravessam o Mediterrâneo para se fixarem na Campânia (Itália) onde já tinha sido governador, quedando-se em Nola.
Paulinus representa para os cristãos o símbolo das palavras de Jesus para o Jovem Rico que se Lhe dirigiu. Paulinus, seria o grande camelo, que tinha conseguido passar pelo buraco da agulha ao abandonar toda a sua fortuna. Eis como Agostinho o apresenta no primeiro livro da Cidade de Deus:
“O nosso Paulinus […] que, sendo rico como só os ricos podem ser se tornou voluntariamente extremamente pobre”.
Mas que pobreza era essa?
Já vimos que Pinianus e Melania viveram o resto das suas vidas recebendo as suas rendas que iam entregando aos monges e aos pobres.
Também Paulinus continuava a receber rendas das suas propriedades. Continuava a assumir que os seus arrendatários lhe deviam obediência. Continuou a doar para a construção de igrejas, como se tratasse de um dever cívico de um bom romano. Construiu uma basílica para os cristãos locais “como prova do meu amor pela cidade e em memória das propriedades que a minha família aqui tinha”. Ou seja, a sua renúncia tinha-lhe permitido regressar à terra natal, ainda que de forma diferente.
A sua pobreza, era uma pobreza relativa quando comparada com o seu estatuto anterior. Não tinha já o esplendor senatorial romano, não se tornava notado. A caraterística da ‘sua’ pobreza era a humildade. Não se exilara para uma ilha deserta, não vivia em reclusão. Estava no mundo. Citava Isaías 42:14:
“Tenho estado calado, mas certamente não ficarei calado para sempre”.
Não é de admirar que o historiador inglês, Peter Brown (Through the Eye of a Needle), chame a esta época, em que muitos ricos entram para os ‘quadros’ da Igreja, “a Era do Camelo”, glosando a resposta dada por Jesus ao jovem rico de que seria “mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus” (Mateus, 19:24).
A mudança de atitude da Igreja
As igrejas e outras instituições pias recebiam legados porque eram lugares nos quais todo o povo Cristão orava pedindo absolvição para os seus pecados.
A riqueza das igrejas desde a época de Constantino fora crescendo devido a pequenas doações feitas pelas populações locais às suas congregações.
Na sociedade da época, quer para pagãos, judeus ou cristãos, a dádiva religiosa era encarada como uma transação. A renúncia à riqueza não era o único modo de estar de bem com Deus. Ofertas aos pobres, doações à igreja, ofertas semanais, ofertas para pagamento de votos, tudo isto fazia parte desse universo que juntava o céu e a terra.
Mas as comunidades cristãs desejavam basílicas maiores, um clero mais bem pago, mais fundos para o alívio dos pobres, só que tudo isso só podia ser feito se se conseguissem atrair benfeitores ricos. Sem os donativos, os monges de cada mosteiro deveriam trabalhar para se suportarem a eles próprios. Acontece que os mosteiros nunca conseguiram a independência económica sem os donativos.
Este “realismo” da Igreja deu lugar a várias e profundas lutas que se estenderam ao longo de muitos anos.
Vejamos como Agostinho ‘resolveu’ o problema. Para ele, a grande divisão do mundo não era entre os ricos e os pobres, mas sim, entre os orgulhosos e aqueles que permitiam que a graça de Deus os tornasse humildes perante Deus e perante os seus.
Na prática, tal significava que se podiam aceitar essas desigualdades desde que elas estivessem ligadas ao abandono das coisas más que a riqueza trazia: arrogância, violência e abuso do poder.
A enfase era posta na renúncia ao orgulho e não na renúncia da riqueza. Em resumo: podiam ser ricos, desde que fossem generosos para com os ensinamentos da igreja.
As chamadas “invasões bárbaras”
Este período só poderá ser entendido se retirarmos a carga ideológica com que as “invasões bárbaras” têm sido descritas. Se elas tivessem sido aquilo que nos têm dito que foram, não se percebe como é que em Itália, e nas outras partes do mundo romano ocidental, se conservassem os imperadores em Roma e Ravena com as suas cortes senatoriais, e como é que os campos se mantiveram povoados e produtivos.
Quando a 31 de dezembro de 405, uma grande confederação de grupos bárbaros, Vândalos, Suevos, e Alanos, atravessam o Reno, fazem-no para pilharem e procurarem trabalho. Para que os bárbaros sejam contidos no norte da Gália, os exércitos da Bretanha elegem um imperador, Constantino III.
Mas Constantino III queria mais, tencionava vir a ser imperador do ocidente, e em 407, deslocou-se rapidamente para sul, para Itália, invadindo-a literalmente, querendo aparecer como o salvador que a protegia do medo que tinham dos bárbaros. Nada que não se continue a fazer agora com os refugiados, com os islamitas, com os ciganos, com quem for preciso: os ‘papões’ para os civilizados.
Esta sua movimentação fez com que a confederação bárbara se deslocasse para sul, para a rica Aquitânia, onde se instalaram. Ou seja, Constantino III o que fez foi, implicitamente ou explicitamente, dar-lhes como pagamento autorização para pilharem a Aquitânia.
Em outubro de 409, alguns desses grupos atravessam os Pirenéus em direção a Espanha. Mais uma vez, a convite de um pretendente a imperador, em Saragoça. Seguiram-se as pilhagens habituais. Pilhagens em tudo iguais às que apareciam nas províncias de Roma sempre que havia desordens, quer originadas pelas guerras civis, quer pelos bandos dos mercadores de escravos.
Os próprios Godos, depois de terem saqueado Roma em 410, dirigiram-se para o sul da Gália. Os seus homens e os seus serviços militares eram muitas vezes postos à disposição de presumíveis futuros imperadores. Aí permanecem, com direito a pilhagem, por terem participado com as suas milícias de bárbaros do lado de quem ganhou a década da guerra civil (e não esquecer que as guerras civis são sempre épocas de grandes confiscos e de acerto de contas entre os notáveis locais).
O fato mais importante desta época dá-se quando em 429, os vândalos de Genserico atravessam, a partir de Espanha, para o norte de África. Tal conduziu à tomada de Cartago em 439. Foi o fim de uma época.
A guerra civil tinha desestabilizado as províncias da Bretanha, Espanha e Gália. Mas a conquista de Cartago foi o quebrar da coluna dorsal do abastecimento de cereais e da coleta maior dos impostos do império ocidental.
Em resumo: o fim do império é a história da destruição do poder romano central. Mas o que o substituiu não foi a barbárie dos bárbaros, mas um poder romano local, uma ordem social que se implantou e em que as elites regionais romanas optaram por chefes locais, exércitos locais, sistemas locais de patronagem, muitos dos quais oferecidos por reis bárbaros e seus seguidores.
Os séculos V e VI
As igrejas cristãs, tendo passado de uma fase de relativa sobrevivência para uma fase de afluência, à medida que o século V se vai desenrolando e se vai verificando a crise do desmembramento do Império, acabam por se encontrarem num mundo de pobreza generalizada, pelo que as críticas radicais contra a riqueza vão sendo abandonadas. Aquele primeiro enriquecimento da Igreja foi-se evaporando.
Em vez de denunciarem as origens malévolas da riqueza e de insistirem na sua renúncia total, passaram a ver a riqueza como uma possibilidade para se consolidar a comunidade cristã.
Acresce ainda um conjunto de fatores que vieram favorecer essa mudança de atitude.
As classes altas romanas seguiam normalmente nos seus processos de herança o chamado “captatio”, a caça à herança, segundo a qual o testamentário era encorajado a incluir os seus amigos entre os beneficiários do testamento. Como tal, os membros da família do quase defunto, desconhecendo que parte da herança lhes seria atribuída, viviam num permanente estado de ansiedade não fossem virem a ser “roubados” pelos amigos do defunto.
Assim, a renúncia a favor da igreja, aparecia-lhes como não sendo uma má ideia, na medida em que reduzia os competidores. Para começar, as raparigas eram obrigadas a tornarem-se freiras. Os rapazes iam juntar-se ao clero da igreja, ou seguiam para monges, na condição de perderem a sua parte da herança a favor dos seus irmãos e irmãs casados.
O passar as propriedades para a igreja era, como vimos, uma forma de as assegurar para a família e obterem proteção da igreja Romana, numa época de mudanças violentas de regime. As terras só estariam seguras quando protegidas por privilégio imperial.
Todos aqueles que trabalhassem nessas terras tinham certas imunidades no pagamento de corveias e outras imposições. A igreja reclamou também para si esses e outros privilégios. Assim, os exércitos que se encontravam de passagem não podiam requisitar bens da terra nem trabalho de quem trabalhava nessas terras.
Estes foram também garantidos pelos reis. Muito depois do império ter desaparecido, estes privilégios da “casa de Deus” como eram chamados, privilégios fiscais herdados da época imperial, foram renovados pelos reis locais.
A renúncia dos nobres a favor da Igreja punha, contudo, alguns problemas. É que a legislação romana, embora reconhecesse a existência de corporações, conselhos municipais, organizações de comércio e outras, não as reconhecia como elementos com riqueza própria. As igrejas cristãs do quarto e quinto século, herdaram esta lacuna.
Apesar de em 321, Constantino ter feito publicar um édito segundo o qual “qualquer pessoa deve ter a liberdade de deixar, após a sua morte, qualquer propriedade que deseje ao mais sagrado e venerável conselho da Igreja Católica”, a aplicação deste édito foi sempre legalmente contestada, porque, perto da morte, permitia que fossem excluídos da herança muitos dos familiares.
Por outro lado, a referência a “conselho da Igreja” era demasiado vaga. Salviano tentou ultrapassar o problema, pedindo aos cristãos que deixassem as suas heranças no nome de Cristo.
A ambiguidade só vai ser ultrapassada pelos advogados romanos quando, na interpretação da legislação de Justiniano segundo a qual o recetor devia ser “uma pessoa com reconhecidos méritos e conhecimentos, conhecedora das leis e da retórica”, vão indicar como recetores os bispos.
A partir daí, os bispos passam a não serem só os gestores da riqueza de outros, mas também a serem senhores, domini, com posses e deveres senhoriais atribuídos.
Há medida que a nobreza foi empobrecendo e a igreja enriquecendo, as posses dos dois grupos foram-se nivelando. As terríveis guerras em Itália como consequência da invasão do imperador Justiniano depois de 535 muito contribuíu para esse nivelamento.
Com o colapso das aristocracias tradicionais, os esforços administrativos e ideológicos de grande parte dos muitos bispos e clérigos, transforma-os em grandes administradores e construtores.
É assim, que nos finais do século V, os chefes das igrejas passam a ser senhores de grandes riquezas. Depois dessas guerras, a igreja passou a ser a grande possuidora de terras de Itália.
Foi Jacques Gernet que notou que estes ou outros mecanismos de transmissão de riqueza para a Igreja, foram também acontecendo com outras religiões noutras partes do mundo, o que o levou a dizer que havia muita riqueza que vinha dos “negócios de Buda” (Buddhism in Chinese Society: An economic History from the Fifth to the Tenth Centuries).
Se por um lado podemos pensar com algum desencantamento, perplexidade, num certo declínio moral da Igreja devido ao afastamento das suas retas intenções iniciais, podemos também, por outro lado, encarar a situação com uma certa complacência se entendermos que tal poderá ter sido um fenómeno mundialmente aceite pelos povos.
Há ainda uma outra interpretação alternativa: a de que a parábola do rico reflita antes uma verdadeira preocupação pela sua salvação. O que significa que Deus queria salvar os ricos da sua riqueza. Evidentemente apenas em intenção. De que dizem estar o inferno cheio.