(144) A felicidade do absurdo
“À frente um precipício, atrás lobos: eis a vida”, provérbio latino.
“Imaginem homens acorrentados, todos condenados à morte, alguns dos quais sendo diariamente assassinados à frente dos outros; os que escapavam, viam-se na condição dos que tinham sido assassinados, e entreolhavam-se com desgosto e desespero, aguardando a sua vez. Esta é a imagem da condição humana”, Blaise Pascal.
“Primeiro viver, depois filosofar”, Aristóteles.
“Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível”, Píndaro.
Entre 1931 e 1938, Heidegger inicia os seus Cadernos negros perguntando:
“Que devemos fazer?
Quem somos?
Porque devemos ser?
Que é o ente?
Porque acontece o ser?”
Questões da mais alta importância, procura incessante do significado de vida e da vida, que são sem dúvida, as perguntas essenciais da filosofia. Questões sem resposta definitiva, fonte geradora de impotência racional.
Não é por se formular uma pergunta que forçosamente ela deverá ter resposta, ou mesmo que poderá ser considerada válida. Será que por algo ser pensado, que esse algo poderá ter uma correspondência no real. Será?
Pensar em dragões não significa que eles existam na realidade, mas já o facto de pensarmos em dragões significa que esse pensamento existiu. Trabalhemos esse pensamento do que é o pensamento que existiu ao infinito sem mesmo sabermos o que vamos concluir, isto se houver alguma conclusão. Exercício em futilidade?
Em termos racionais, esta questão do significado da vida dentro da filosofia tradicional do ocidente, só começou a ser equacionada nos finais do século XIX e século XX, com pensadores como Nietzsche e Schopenhauer.
Possivelmente porque para o Ocidente, ao ser dominado pela mundividência do cristianismo, tais questões sobre o significado da vida não eram consideradas problemáticas, na medida em que a resposta era óbvia e consensual. A finalidade da vida era conhecer, amar e servir a Deus, para vir a estar com Ele para sempre no Céu.
Quaisquer sofrimentos que viéssemos a ter neste mundo seriam sempre recompensados na outra vida após a morte, todas as dores porque tivéssemos passado teriam, no final, valido a pena, pois tinham-nos permitido a reunião em Deus.
Com o declínio da influência do cristianismo, esta questão do significado da vida, começa a pôr-se com cada vez maior urgência.
Albert Camus, abre assim o seu ensaio O Mito de Sísifo, ensaio sobre o absurdo:
“Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia”.
A vida só teria sentido se existisse um Deus ou uma crença numa outra vida ou ideias de valores eternos. A não ser assim, “a vida num universo subitamente privado de ilusões”, faz com que o homem se sinta estrangeiro. E, é este “divórcio entre o homem e a sua vida” que conduz ao sentimento do absurdo.
Que o mundo não tem sentido nem razão e que a vida é absurda e vã, é confirmado pelo primeiro sinal do que é o entediante e repetitivo dia a dia:
“Os gestos de levantar, o carro-elétrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, carro-elétrico, quatro horas de trabalho, refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta, quinta sexta e sábado no mesmo ritmo […] Só um dia o ‘porquê’ se levanta e tudo recomeça nessa lassidão tingida de espanto.”
Sendo este o futuro que nos espera, ansiamos pela morte. Mas, como ao mesmo tempo receamos a morte, caímos no absurdo. Perante esta inquietação da vida e a insensatez do sofrimento, ao olharmo-nos a nós próprios ou ao confrontarmo-nos com os outros, não é de admirar que tenhamos uma sensação de náusea. Tudo é absurdo.
E para os que acreditam poder alcançar a verdade, Camus socorre-se de Aristóteles quando este diz:
“A consequência muitas vezes ridicularizada dessas opiniões é que elas se destroem por si próprias. Porque se afirmarmos que tudo é verdadeiro afirmamos a verdade da afirmação oposta, e, em consequência, a falsidade da nossa própria tese (porque a afirmação oposta não admite que ela possa ser verdadeira). E, se dissermos que tudo é falso, essa afirmação também é falsa. Se declararmos que só é falsa a afirmação oposta à nossa, ou então que só a nossa é que não é falsa, somos, todavia, obrigados a admitir um número infinito de juízos verdadeiros ou falsos. Porque aquele que anuncia uma afirmação verdadeira, pronuncia ao mesmo tempo o juízo de que ela é verdadeira, a assim sucessivamente até ao infinito.”
Lá se vai aquele desejo de compreender o mundo através do pensamento humano. Da mesma forma que “o universo do gato não é o universo do papa-formigas”, também o pensamento do homem não corresponde ao pensamento do universo: é que “todo o pensamento não é antropomórfico”.
A única forma possível de reconciliação com o universo seria pensarmos que o universo também pode amar e sofrer, o que não deixa de ser estranho porquanto tal equivaleria afirmarmos a unidade total para com ele, para com o “Uno (qualquer que ele seja)”, o qual, por definição, é indiferente a tudo. Novo circulo vicioso no caminho da esperança.
O existencialismo de Sartre, ao afirmar que no homem a existência precedia a essência, queria significar que ele era sobretudo um projeto e não um objeto, que era, como se diz em filosofia, um ‘ser-para’ e não um ‘ser-em’. O homem era assim abertura e não fechamento, existência possível em lugar de existência definida.
Diante de um futuro em aberto, o homem projeta-se como uma existência cuja essência se concretizava à medida que o homem vai sendo e fazendo as suas escolhas. É por esta ausência de uma essência prévia à existência do homem que Sartre afirma que “o homem é liberdade”, “o destino do homem está nas suas mãos”.
A afirmação do homem como abertura, como liberdade, traz a evidência da responsabilidade inerente às suas escolhas. Não há desculpas, diz Sartre, para os nossos atos. Eles são escolhidos por cada um de tal forma que mesmo não escolher significa já uma escolha.
A única condição que não podemos evitar é o facto de sermos livres, é a nossa liberdade. O homem é responsável por tudo aquilo que faz, porque a única responsabilidade que não tem é a sua condição de ser livre. Daí Sartre afirmar que “o homem está condenado a ser livre”.
Mas para Camus, este problema da liberdade não lhe interessava. Interessava-lhe antes o que fazer com ela.
Para além da liberdade de espírito e de ação que o absurdo lhe proporciona, a perda da eternidade vai acrescentar-lhe uma maior disponibilidade para viver: é que os objetivos para viver passam a estar nele próprio. E é isso que lhe permite agir de uma forma inteiramente livre, pois o amanhã não existe.
A morte é a única realidade. A nossa vida é uma vida sem apelo. Não havendo Deus também não há qualquer ordem de valores. “Este mundo, absurdo e sem deus, povoa-se de homens que pensam claramente e que já nada esperam”.
Como diz no seu “Mito de Sísifo”, “os deuses tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança”.
Para esta vida absurda não há quaisquer princípios éticos, o homem absurdo deve estar pronto a responder palas suas ações e a sofrer as suas consequências.
Pelo que a vida não precisa de sentido para ser vivida. Daí que “Uma das suas únicas posições filosóficas coerentes é assim a revolta”.
Contudo, mesmo sem se considerar a questão da finalidade da vida como a questão mais importante, tal não significa que passemos toda a vida a pensar nela, ou que não consigamos fazer outras coisas importantes ou viver uma vida feliz.
Muitas pessoas viveram vidas felizes e boas sem nunca terem pensado profundamente sobre o seu significado, ou, até mesmo se puserem a questão, sem conseguirem encontrar resposta.
Aliás, se passarmos todo o tempo a pensar compulsivamente nela, poderemos acabar por afetar a nossa saúde mental. A vida é por demais curta para que se gaste todo o seu tempo a pensar nela.
Em resumo, os filósofos não devem sobrestimar a importância das suas ruminações. Como poeticamente escrevia Píndaro:
“Ó minha alma, não aspires à vida imortal, mas esgota o campo do possível”.
Na mesma linha, mais redutor e pragmático, dizia Aristóteles: “Primeiro viver, depois filosofar”.
Quando Camus, sabendo que na vida todos os caminhos estão abertos e que não levam a nenhuma parte, escolhe a figura de Sísifo para o seu ensaio sobre o absurdo, talvez nos esteja a apontar uma saída para a sensação de angústia.
Por um lado, porque Sísifo, sempre conhecido pelas suas artimanhas, quando é condenado à morte por Zeus consegue convencê-lo a mudar a pena para aquele trabalho sem fim nem propósito de carregar montanha acima com um pedregulho que uma vez chegado lá acima escorregaria montanha abaixo para que Sísifo voltasse a carregá-lo montanha acima. Mas Sísifo sente-se contente porque o seu destino fora por ele traçado. Ele “sabe-se senhor dos seus dias”.
E por outro, porque Camus escolheu terminar o seu ensaio deste modo:
“Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.