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Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

Os Tempos em que Vivemos

Um olhar, uma tentativa de compreensão sobre algumas coisas que são vida.

(135) Vida como "Arte de Perder"

“A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.”
Elizabeth Bishop.

 

Literatura é literatura, independente de quem a produz”.

 

Deve-se ser capaz de alargar a visão através da simples concentração, absorção, auto esquecimento, etc. -sem ser preciso comer cogumelos ou tomar LSD”.

 

“Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados”.

 

 

 

 

 

Quando ainda jovens jogávamos no tabuleiro das damas ao “perde-ganha”, mal sabíamos que estávamos a jogar a um verdadeiro jogo da vida. Quando muito, alguns conseguiam-se aperceber que quem ganhava perdia, o que, de certa maneira, já era uma elaboração rebuscada. Só mais tarde se consegue aprender do ganho que pode ser o perder, e só muito mais tarde conseguimos integrar o perder que é a vida no viver.

 

 

Coube à escritora americana Elizabeth Bishop (1911-1979), dar forma, nos últimos anos de vida, a este modo de viver.  Considerado um dos melhores poemas do século XX, eis “One Art, (A Arte de Perder, na tradução junta):

 

 

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

 

Elizabeth Bishop, “One Art” from The Complete Poems 1926-1979. Copyright © 1979, 1983 by Alice Helen Methfessel.

 

A tradução, especialmente de poesia, põe problemas de difícil resolução, o menor dos quais será o de tentar fazer corresponder aquilo que o autor quis dizer na forma em que o escreveu, com os sentimentos e emoções de uma outra sociedade. Acresce que neste caso, a maior parte das traduções são feitas para o Brasil, o que se presta a equívocos linguísticos.  Decidi-me por uma tradução mais literal, talvez menos poética, mas que me pareceu mais adequada.


A arte de perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

 

 Perca um pouco a cada dia. Aceite a incomodidade
 da perca das chaves de casa, do tempo gasto inutilmente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, ou para onde vai ser a viagem não feita.

Nada disso é sério.


Perdi o relógio da minha mãe. Ah! E por último perdi três queridas

casas que tive.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E outras coisas mais vastas que eram minhas,
dois rios, e mais um continente.
Tenho saudades deles, mas não é nada sério.

Mesmo perder-te (a voz jocosa, o menear
que eu amo), não altera nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério,
por muito que pareça (Toma nota!) muito sério.

 

 

 


Nascida em 1911 em Worcester, Massachusetts,  numa família com posses, o pai morreu quando ela tinha oito meses, e a mãe foi internada quatro anos depois devido a doença mental, pelo que Elizabeth passou os anos seguintes em casas de parentes, primeiro com os avós maternos na Nova Escócia, Canadá, depois com a os avós paternos em Worcester e mais tarde nos arredores de Boston, à beira mar, com as tias e o tio  que insistia em lhe dar banho mesmo aos doze anos, garantindo assim que era ela bem lavadinha em todas as suas cavidades e certificando-se que os dois pequenos altos que lhe apareciam no peito eram mesmo naturais.

 

Desde muito cedo contraiu asma e eczema, que a levou várias vezes à cama e a faltar às aulas. Valeram-lhe os cuidados das suas tias, uma delas enfermeira. Mesmo assim conseguiu entrar para a faculdade, o Vassar College, Poughkeepsie, Nova Iorque, em 1929, pouco antes do crash da bolsa.

 

 Terminou o bacharelato em literatura inglesa em 1934, ano em que morre a mãe. Esse é o ano em que começa a beber, talvez influenciada pela morte da mãe que nunca visitara, talvez por julgar que a doença da mãe fosse hereditária ou talvez ainda por um amor não correspondido de uma colega de faculdade.

 

Depois, inscreve-se para a licenciatura no curso de medicina, na Cornell Medical School. Vai ser a respeitada poetisa Marianne Moore que a convence a desistir da inscrição, incentivando-a e ajudando-a antes a publicar alguns dos seus poemas.

 

Bishop opta então, uma vez que a herança que o pai lhe deixara permitia-lhe levar uma vida independente e desafogada sem necessitar de arranjar emprego, por viajar pelo mundo, vivendo em várias cidades e países que irá descrever nos seus poemas.

 

Fixa-se em França por vários anos a partir de meados dos anos 30, com Louise Crane, uma colega de Vassar, herdeira de fábricas de papel (do qual se faziam os dólares).

Em 1938 regressam aos EUA e compram uma casa em Key West, Florida, onde continuam a viver juntas. A posterior separação do casal, por infidelidade de Crane, é sofridamente sentida por Bishop como uma rejeição.

O seu consumo de álcool descontrola-se, o que a leva a internar-se num hospital de Connecticut durante dois meses.

 

Em 1949 muda-se para Georgetown, Washington, D.C., trabalhando como consultora em poesia para a Biblioteca do Congresso.

Em 1951 recebe uma bolsa da Bryn Mawr College, e resolve fazer uma viagem de circum-navegação pela América do Sul. Aporta a Santos, Brasil, em novembro, esperando lá permanecer duas semanas.

 

Acabou por lá ficar mais vinte anos, com o segundo grande amor da sua vida, Maria Carlota (Lota) de Macedo Soares. Primeiro no Rio de Janeiro, depois em Petrópolis e mais tarde em Ouro Preto, na propositadamente restaurada Casa Mariana. Lota constrói-lhe um lindíssimo estúdio nessa região luxuriante, onde Bishop se sente finalmente em segurança, em casa, um santuário, um lugar para respirar e escrever.

 

Lota Soares nascera em Paris, numa proeminente família política do Rio de Janeiro. Conhecida como arquiteta paisagista e urbanista autodidata, acabou por ser convidada pelo governador Carlos Lacerda para desenhar e supervisionar a construção do Parque Flamengo do Rio de Janeiro.

 

Em 1956, Bishop recebe o Prémio Pulitzer de Poesia com o seu livro North & South, A Cold Spring, depois o National Book Award em 1969 com o livro The Complete Poems, e o National Book Critics Circle Award, e aindaduas bolsas Guggenheim e uma da Fundação Ingram Merrill.

 

 

Mas a relação foi-se deteriorando devido às sucessivas ausências de Lota, embrenhada no trabalho que estava a desenvolver no Rio, o que levou a um crescente alcoolismo por parte de Bishop.

 

Em 1966, Bishop vai passar uns meses a ensinar em Seattle, onde acaba por iniciar uma relação com uma jovem mulher de vinte e três anos, Roxanne Cumming, grávida de um artista local. A relação prolongou-se por carta, o que fez com que após o regresso ao Brasil, Lota descobrisse.

 

Tal descoberta, coincidindo com o fato de Lota ter ficado sem o trabalho no Rio devido a mudanças políticas, acabam por levar Lota a ter de ser hospitalizada, com ataques de ciúme e fúria. Quando no verão seguinte Lota volta a ter novos ataques, Bishop, a conselho do médico, afasta-se e parte para os EUA por uns meses.

 

Algumas semanas depois, Lota comunica-lhe que já saíra do período de internamento hospitalar, e que a ia visitar a Nova Iorque. Bishop vai buscá-la ao aeroporto no dia 19 de setembro de 1967, jantam e vão dormir. Quando Bishop acorda, verifica que Lota tomara uma sobredose de sedativos. Levada para o hospital, acaba por morrer dias depois.

 

Em 1969 é-lhe atribuído o National Book Award com o livro The Complete Poems, bem como o National Book Critics Circle Award, duas bolsas Guggenheim e uma da Fundação Ingram Merrill.

 

Bishop decide regressar definitivamente aos EUA em 1970, ano em que começa a lecionar em Harvard. Com 59 anos, foi a primeira mulher a lecionar a disciplina de estudos avançados de escrita, posição que manteve até aos 66 anos.

 

Alice Methfessel, então com vinte e sete anos, assistente administrativa de Harvard, vai ser quem vai auxiliar Bishop a ajustar-se à vida universitária, ajudando-a ainda com as doenças que ela ia exibindo: a asma crónica agravada pelo fumo dos cigarros, o aparecimento de reumatismo, a disenteria recorrente contraída no Brasil, ossos quebrados devido a quedas provocadas por embriaguez.

Começa assim em fins de 1970 a sua última relação amorosa, que duraria até à sua morte a 6 de outubro de 1979, aos 68 anos, motivada por aneurisma cerebral.

 

Nos finais de 1975, Alice comunica-lhe que andava a sair com um homem, Peter, o que deixa Bishop totalmente devastada. Refugia-se na Florida em dezembro, e em meados de janeiro de 1976 toma uma sobredose de comprimidos com álcool. Sobrevive, devido a ter sido socorrida por vizinhos. Envergonhada, pede desculpa, e como que para conseguir dominar o sentimento de perca, escreve rápida e sucessivamente dezassete esboços do que viria a ser o seu poema mais famoso, um resumo do que era a vida e de como vivê-la: “One Art” (A Arte de Perder).

 

No final do inverno, Alice regressa, ficando com Bishop até ao fim.

Nesse ano de 1976, para além do regresso de Alice, Bishop viu-lhe ser atribuído o Prémio Literário Internacional Neustad pelo conjunto da sua obra, sendo a primeira mulher a recebê-lo, viu ainda a aclamação do seu último livro de poemas, Geography III que contém “One Art”.

 

Com o dinheiro do prémio, vai fazer uma viagem à Europa para visitar o seu amigo Lowell em Inglaterra, passando por Lisboa, e percorrendo o país num carro alugado.

 

Em 1977, no fim do primeiro semestre, o seu contrato com universidade e dado por findo devido a ter atingido os 66 anos. Contudo, os seus dias de ensino não terminaram: vão continuar no Massachusetts Institute of Technology.

 

Methfessel foi por Bishop nomeada única herdeira de todos os seus bens (royalties dos seus livros, Casa Mariana e do condomínio Lewis Wharf onde residiam, e uma renda do fundo Bishop), com exceção da sua biblioteca que deixou a Frank Bidart, jovem poeta que a ajudara nas revisões da sua obra.

 Embora Bishop tenha instruído Methfessel para retirar do espólio tudo o que pudesse revelar a relação entre elas, porque “era da escola antiga e acreditava na discrição e privacidade”, Methfessel guardou as cartas escritas, que só foram descobertas em 2010, um ano depois da sua morte com sessenta e seis anos em 2009.

 

 

Têm as mulheres maior sensibilidade que os homens? Serão fatores contributivos para essa sensibilidade as dificuldades emocionais tidas na infância e juventude? Uma vida economicamente desafogada pode contribuir para essa sensibilidade especial? São as mulheres melhores poetisas que os homens? Há uma forma de escrever das mulheres que as diferencia dos homens? O álcool e as drogas ajudam a uma interpretação poética do mundo? A homossexualidade?

 

Algumas destas questões foram abordadas por Bishop. É assim, que tendo sido por várias vezes convidada para participar em antologias poéticas femininas, como The Women Poets in English (Mulheres Poetisas em Inglês), recusou sempre porque para ela “Os homens e as mulheres não escrevem de maneiras diferentes”.

Além disso “imaginam o ridículo que seria o aparecimento do título Men Poets in English?” […] Eu não gosto das coisas compartimentadas dessa forma, gosto do preto & branco, amarelo & vermelho, jovem & velho, rico e pobre, e macho & fêmea, todos misturados”.

A segregação, seja ela artística ou social, acabará sempre por ser contra a aceitação da igualdade entre as mulheres e os homens:

 

Literatura é literatura, independente de quem a produz”.

 

 

Embora Bishop bebesse frequentemente até ao ponto de colapsar, o seu comentário à novela de Aldous Huxley, A Ilha, é interessante. Acha-a “mal escrita, com um final muito triste, ele estava desencorajado”, e não a impressionava o final em que Huxley se dizia “iluminado pelo uso de drogas”. Para ela:

 

Deve-se ser capaz de alargar a visão através da simples concentração, absorção, auto esquecimento, etc. -sem ser preciso comer cogumelos ou tomar LSD”.

 

Sobre a felicidade, Bishop escreve que “é uma questão de sorte, mesmo para quem tenha tão boa disposição como tu”. No seu caso, ela considerava-se como uma pessoa que atraía “a má sorte, mas não posso ser ajudada”. E que “até recentemente, penso que consegui lidar com os desastres, etc. bastante bem”.

 

Sobre as relações com o outro sexo, pergunta-se, surpreendida, como é que “quando estava na idade em que devia ser louca por rapazes, tinha medo de falar com eles, etc., e sofrera o inferno”, quando agora “quarenta anos mais tarde” se sentia perfeitamente à vontade convivendo com eles.

 

 

 

E depois há outras perguntas mais específicas: segundo os especialistas, “One Art” é o único poema, e logo o último, dos muitos que escreveu ao longo da sua vida, que assume a forma de vilancete (poema construído a partir de um mote de dois ou três versos; se o último verso do mote é repetido no último verso do poema, é um vilancete perfeito. No caso presente, cinco tercetos e uma quadra a concluir). Porque se decidiu Bishop pela utilização dessa forma?  

 

Aqueles para os quais a racionalidade e a lógica constituem o epítome de beleza, fazem-nos notar que “One Art” começa com uma consideração geral e aplicável a todos, passando depois para referências gerais aplicáveis a uma pessoa, terminando com uma consideração muito particular sobre a vida vivida daquela só pessoa. Ou seja, passa do geral e universal para o particular.

 

 

Da mesma forma que Elizabeth Bishop não é só o que as várias biografias dizem, é certamente muito mais, na sua afirmação de pessoa como ser humano coxo como não poderia deixar de ser exatamente por ser humano, também “A Arte de Perder” ultrapassa a simples superfície lisa da folha em que foi impressa para se inscrever no éter espacial dando significado ao pouco que existe.

 

 



Notas: para mais informação, consultar Megan Marshall, Elizabeth Bishop: A Miracle for Breakfast, Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

 

Há ainda um filme que foca o poema “One Art”. Trata-se do “Still Alice” de 2014, de Richard Glatzer e Wash Westmoreland, baseado na novela de Lisa Genova de 2007 com o mesmo título, no qual Julianne Moore desempenha o papel de uma professora de linguística (Alice Howland) a quem é diagnosticada doença de Alzheimer aos 50 anos (http://www.imdb.com/title/tt3316960/).

 

 

Da relação de Lola Soares com Elizabeth Bishop e com o político Carlos Lacerda, bem como do seu envolvimento no golpe militar brasileiro de 1964, há um filme brasileiro de 2013, “Flores Raras”, (Reaching for the moon) de Bruno Barreto, baseado no livro de Cármen Lúcia de Oliveira, Flores raras e banalíssimas, e com Glória Pires e Miranda Otto como Elizabeth Bishop (http://www.imdb.com/title/tt2217458/).

 

 

 

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