(133) A nudez das elites
“A paixão pelo meu país contribuiu para a minha infidelidade conjugal”, Newt Gingrich.
“Cheguei a adulto nos anos 60 e 70, quando todas as regras sobre comportamento e local de trabalho eram diferentes. Essa era a cultura de então”, Harvey Weinstein.
“Elas vão para Hollywood para serem estrelas de cinema de primeira grandeza e acabam como amantes de gangsters”, Mickey Spillane.
“Há uma mulher que apanha e cala, porque hoje é sábado”, Vinicius de Moraes.
Todos conhecemos a história de “o Rei vai nu” ou do aforismo “quem não quer ser lobo não lhe veste a pele”, que se vai sempre reproduzindo, aparentemente sem fim à vista e com agrado geral, na medida em que, independentemente dos julgamentos, dá-nos aquele conforto e segurança de que somos humanos inscritos, segundo nos contaram, numa história muito antiga e da qual não vemos saída.
A necessidade de chefes a quem seguir, de artistas a quem adorar, de pertencer a instituições sem as quais a vida não seria possível, leva-nos sempre a olhar para cima com reverência, na esperança que os de cima, por crermos que nos são superiores, nos apontem o caminho.
Mas, se essa nossa esperança, embora incorreta e com consequências, se possa compreender devido à nossa crendice, boa fé e preguiça, já a apropriação dessa crendice e boa fé por parte dos nossos mandantes não tem qualquer outra justificação que não seja a vaidade, a prepotência, o egoísmo, o narcisismo, a cupidez, a chulice, julgando que tudo lhes é permitido como raça superior que pensam ser.
Por vezes, vá-se lá saber porquê (a rotação da terra aumentou, o polo magnético desviou-se, as ondas gravíticas chegaram mais cedo, os livros dos Deuses escritos com a tinta invisível e indelével das almas imaculadas de branco evidentemente assim o dizem, ou porque há mais chineses a defecarem para a esquerda, etc.), acontece um acumular de acontecimentos, não que eles não acontecessem na mesma, mas porque se tornam conhecidos, que põe a nu a vestimenta dessas elites. Foi o que aconteceu neste outubro.
Por uma votação de 75-20, o Senado dos EUA propôs a nomeação de Callista Gingrich para o lugar de embaixador dos EUA junto da Santa Sé, Vaticano.
Callista Gingrich é a terceira mulher de Newt Gingrich, o republicano speaker da Assembleia entre 1995 e 1999, que atacou violentamente o então presidente Bill Clinton devido ao caso que este manteve com Monica Lewinsky, sendo um dos principais proponentes do impeachment. Ao mesmo tempo que conduzia ativamente esse processo contra Clinton, Gingrich enganava a sua segunda mulher, Marianne, com a então Callista Bisek, assistente republicana no congresso.
Para além de ser casada com Newt Gingrich, Callista parece ter várias qualificações para o cargo que vai ocupar, pois além do seu catolicismo é também católica. Callista tem bastante experiência a lidar com a igreja, uma vez que ela e o seu marido conseguiram persuadir a instituição a anular os casamentos anteriores de Newt Gingrich (http://www.patheos.com/blogs/geneveith/2011/12/newt-wasnt-married-after-all/).
Gingrich, que já se divorciara da sua primeira mulher, Jackie Battley, enquanto esta se encontrava a ser tratada por câncer, invocou perante a Arquidiocese Católica de Atlanta, que o seu segundo casamento com Marianne Ginther, que durava há 18 anos, devia ser anulado porquanto a sua mulher tinha sido anteriormente casada. A Igreja deu-lhe razão.
Segundo Marianne, Gingrich tentou que ela concordasse e consentisse em ter com ele uma relação aberta, de maneira a poder viver com ela e com outra mulher, que seria Callistta com quem já andava há seis anos (http://abcnews.go.com/Blotter/exclusive-gingrich-lacks-moral-character-president-wife/story?id=15392899).
Após ter falhado a tentativa de candidatar-se a Presidente, Gingrich acabou por se demitir. Mais tarde explicou que “a paixão que tinha pelo seu país” tinha contribuído para a sua infidelidade conjugal com Callista (http://www.chicagotribune.com/news/sns-ap-us-newt-gingrich-2012,0,624356.story). Uma relação sexual patriótica.
Quase ao mesmo tempo em que o Senado propunha Callista para embaixador na Santa Sé, um outro congressista republicano, Tim Murphy, viu-se forçado a pedir a sua resignação, e isto porque se descobriu que na mesma altura em que tinha votado a favor da proibição de aborto depois das 20 semanas, ele tinha pressionado uma mulher a fazer um aborto.
Também Dennis Haster, republicano que ficara a substituir Bob Livingston na condução do processo de impeachment que estava a ser movido a Clinton, veio agora a ser indiciado por encobrimento de pagamentos de $1,7 milhões em proveito próprio, para esconder “abusos sexuais a um seu aluno masculino durante a época em que ensinava em Yorkville”. Foi condenado a 15 meses de prisão, tendo o juiz considerado que se estava na presença de um “abusador em série de crianças”.
Já agora, lembremos que Bob Livingstone, que fora eleito representante do partido republicano para o processo que deveria conduzir ao impeachment de Clinton, e que ficara no lugar de Gingrich, acabou por renunciar ao cargo por terem sido publicamente reveladas as relações extramatrimoniais que mantivera com quatro mulheres nos últimos 10 anos.
Também este mês se revelou que Harvey Weinstein, contribuinte maior do Partido Democrata, o manda tudo e todos de Hollywood, cofundador da Miramax, produtor, entre outros, de Pulp Fiction, Shakespeare in love, O paciente inglês, A vida é bela, Chicago, O senhor dos anéis, e promotor agressivo dos Óscares para Meryl Streep, Kate Winslet, Penélope Cruz, Jennifer Lawrence ou Gwyneth Paltrow, foi acusado de abuso de poder e de ao longo de três décadas molestar mulheres da indústria cinematográfica e dos media.
A sua desculpa foi que:
“Cheguei a adulto nos anos 60 e 70, quando todas as regras sobre comportamento e local de trabalho eram diferentes. Essa era a cultura de então”.
Trump, o tal que as domestica agarrando-as pela abertura, disse:
“Há muito que conheço Harvey Weinstein. Não estou nada surpreendido”.
Evidentemente, tal como a Igreja, calou-se.
Todos estes acontecimentos, aparentemente tão diferentes e por isso quase sempre tratados separadamente, são na realidade idênticos. Todos eles são meras manifestações de poder.
Poder, que em vez de ser exercido a cuidar e tratar das pessoas é utilizado para que se sintam como superiores, como raça aparte, a quem tudo é devido, e que de tudo pode dispor. Acabadas todas as mentiras que os colocavam como representantes de deuses, são agora apenas humanos que utilizam as suas posições para abusarem de outros humanos. Fazem-no porque podem. E podem, porque têm poder.
Em vez de intermediários para a conquista do Céu, são agora intermediários para a falsa conquista de promessas vãs de pequenos sonhos e empregos.
Como não querem ver o que é, nem como se utiliza o poder na sociedade em que vivemos, a solução mais fácil é sempre a de apontar um ‘malfeitor’, de preferência dentro dos costumeiros, fazer-se o julgamento mais ou menos público, e seguir-se em frente. Neste último caso, Hollywood expulsou-o das suas fileiras: problema resolvido. Seguem-se as indemnizações, dentro ou fora dos tribunais.
Certamente Hollywood e congéneres, bem como as televisões, não irão acabar com as séries de moral, comportamentos e nudez duvidosas, nem com aqueles concursos em que os papás levam os meninos a rebolarem-se languidamente e aloiradamente para ver se são descobertos por quem se interesse pelo seu crescimento ou dos seus apêndices, sejam eles cordas vocais, glúteos ou glândulas mamárias. E isto se for até à meia-noite.
Um dia perguntaram a Mickey Spillane (1918/2006, 250 milhões de livros vendidos), considerado escritor de segunda ordem por quse só escrever histórias policiais de gangsters, por que é que ele apresentava sempre os gangsters acompanhados com mulheres lindíssimas. Ele explicou:
“Elas vão para Hollywood para serem estrelas de cinema de primeira grandeza e acabam como amantes de gangsters”.
Lembram-se daquela mãe que inchava de orgulho pela filha aparecer na capa de uma revista pornográfica, dos “Feios, porcos e maus” de E. Scolla?
Outubro sempre foi o meu mês favorito. O mês das novas passagens de modelos, das novas séries de televisão, das Kardashians, das novas épocas de bailados e óperas, da beleza da arte mesmo que ela seja feita para honrar infanticídios não importa porque é bela. O poder que é a liberdade de poder carregar no botão. Gosto mesmo de outubro e de todos os outros meses.
Esta é a “cultura” instalada e propagandeada. Como dizia Vinicius de Moraes no seu portentoso “Dia da Criação” (https://www.vagalume.com.br/vinicius-de-moraes/dia-da-criacao.html):
“Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado”