(127) "Mississipi Goddam"
“O que é a liberdade? A liberdade é não ter medo”, Nina Simone.
Uma pianista de música clássica com a cor de pele equivocada no país equivocado.
“Artista é o que reflete o que está a acontecer na sociedade”, Nina Simone.
“Lamento, mas eu não sou pacifista, não acredito na não violência”, Nina Simone.
“Quero champanhe, cocaína e salsichas”, Nina Simone.
Que o problema do racismo contra os negros não é de hoje, nem recente na sociedade americana, é facto sabido. Tem, portanto, razão Trump quando diz exatamente isso, ou melhor, de acordo com o seu narcisismo, quando diz que a culpa não é dele.
Curiosamente, esta nova fase de erupção de violência racista tem tanto a sua origem no incitamento anti-islâmico feito por Trump (e que uma vez passado, revelou o seu verdadeiro objeto de ódio de estimação, a raça negra), como no facto de a Casa Branca ter sido ocupada durante oito anos por um negro, com a sua mulher negra e as suas filhas negras.
Era a Casa Negra, a casa da vergonha desses americanos, daí nem o considerarem como americano. A eleição de Trump foi como que a válvula de escape para todo este racismo que estava latente, mas muito vivo.
Os reflexos desse desarrolhar da garrafa sentem-se até aqui em Portugal, neste povo amorfo, e por isso não racista. Basta ler os comentários nos vários órgãos de comunicação social: de repente, António Costa passou a ser “o monhé”, o “satiagrai”, etc. De repente, sentiram-se protegidos pelas ondas gravíticas.
A 21 de fevereiro de 1933 nasceu Eunice Kathleen Wamon, em Tyron, Carolina do Norte, e, vá-se lá saber porquê, tinha um dom para tocar piano. Aos quatro anos, tocava já piano na igreja onde a sua mãe predicava. Muriel Mazzanovich, antiga professora de piano, resolve acolhê-la com protegida, com a intenção de fazer dela a primeira concertista afro-americana, ou seja, americana negra, de música clássica.
E, lá passa ela toda a sua infância e adolescência nas infindáveis aulas de piano, aprofundando o conhecimento em Bach e outros.
Em 1955, com doze anos, vai dar um recital na igreja local. Os seus pais, Mary Kate e John, sentam-se na primeira fila para escutar a filha.
Evidentemente (este constitui um primeiro grande choque para Eunice, como que o despertar para a questão social que então se vivia, segundo escreve na sua autobiografia I Put a Spell on You ,1992 e 2003), foram obrigados a irem para as últimas filas, as “reservadas” aos negros. Dito de outra forma: as filas da frente é que estavam “reservadas” para os brancos. Eunice nega-se a tocar até ver de novo os pais na primeira fila.
Aos dezanove anos encontra-se pronta para entrar para o Instituto Curtis de Filadélfia. A 7 de abril de 1951 faz a sua audição, incluindo peças e Czerny, Rachmaninov, Liszt e Bach. A primeira afro-americana, ou seja americana negra, a intentá-lo. Evidentemente, foi recusada. Uma pianista clássica com a cor de pele equivocada no país equivocado.
Com a necessidade de se sustentar, começou a tocar piano numa cave em Atlantic City, trabalhando da meia noite às sete da manhã, por noventa dólares. Não era de facto um local nem um horário para uma Eunice decente, pelo que aí algures morreu Eunice e surgiu Nina Simone, Nina (“niña”) como lhe chamavam quando era miúda, e Simone em homenagem à atriz francesa Simone Signoret que ela vira no filme “Casque d’Or”, 1952.
Segundo ela: “Nunca foi uma opção, era tocar ou não comer”.
As suas interpretações como cantante eram tão pessoais e únicas que mesmo músicas que não escreveu ficaram conhecidas como sendo dela. É o caso de “I Put a Spell on You” de Screamin’ Jay Hawkins que apesar de interpretadas por muitos, ficou como sendo a canção de Nina (https://www.youtube.com/watch?v=ua2k52n_Bvw)
Em 1960 é convidada para o Festival de Jazz de Newport, onde vai apresentar a sua música, uma mistura de folk, gospel e jazz. Em 1963 vai finalmente tocar no Carnegie Hall de Nova Iorque, não as suas tão queridas sonatas de Bach, mas a sua música.
Por essa altura, dá uma entrevista em que diz que “liberdade é não ter medo”. E confessa que “muitas poucas vezes fui livre”. O seu passado e vida presente a falarem.
A 15 de setembro de 1963, racistas brancos põem uma bomba na igreja de Birmingham, e matam quatro meninas afro-americanas, evidentemente. Nina não aguenta e, em uma hora, compõe música e letra da canção “Mississipi Goddam” (Maldito Mississípi)
(https://www.youtube.com/watch?v=LJ25-U3jNWM):
“Oh, este país está cheio de mentiras
Todos vamos ser mortos e morremos como moscas
Já não confio mais em ti
Vocês continuam dizendo-me “Vai devagar!”
“Vai devagar!”
Esse é o único problema
“Fá-lo devagar!”.
As rádios e restante comunicação negaram-se a passar a canção por conter blasfémias. De repente deixou de ser a diva da canção passando a ser a negra que grita “Maldito Mississípi!”. Os contratos desapareceram.
Para Nina, ela “não tinha opção; como podes chamares-te de artista e não refletires o que está acontecendo, isso é que para mim é ser artista”.
Ela, que tanto queria cantar canções de amor, via-se na necessidade de cantar canções de protesto. Não era o tempo para o romantismo, havia uma revolução à espera.
A seu radicalismo acentua-se. As letras das suas canções assim o dizem. Era sua intenção “golpear a minha audiência (que era maioritariamente branca) tanto e tão fortemente que, quando saiam dos meus concertos, saiam destroçados”.
É a época em que diz o seu amigo, Martin Luther King: “Lamento, mas eu não sou pacifista, não acredito na não violência”.
O assassinato de Luther King em 1968 leva-a a escrever “Why? The King of Love is Dead” (https://www.youtube.com/watch?v=d3jiFbOMr8E), e a ir para a Libéria (país que fora fundado pela Sociedade Americana de Colonização com escravos americanos libertados em 1947).
Começam a aparecer alguns sintomas de doença mental, que incluem episódios de fúria, ataques de pânico, e alucinações. Manifestações do que mais tarde vem a ser diagnosticado como sendo maníaco-depressivas e transtorno bipolar, mas que na altura (anos sessenta) eram vistas como tendo mais que ver com uma questão de caráter do que com desequilíbrios químicos, o que levou a que de imediato começassem a referi-la com louca. Negra, cantora de jazz, insulta brancos nos espetáculos, só pode ser drogada ou louca.
Das suas relações com os intelectuais da “negritude”, deixa-nos em 1967/8 duas canções/interpretações inesquecíveis:
“Backlash Blues” (https://www.youtube.com/watch?v=SxX6pYrvGy4)
“Ain’ got no …” (https://www.youtube.com/watch?v=L5jI9I03q8E)
A partir de 1976, volta ao Festival de Jazz de Montreux. Mas começa a confrontar elementos do público, tornando os espetáculos penosos. Regressa a Paris, mas o cenário agrava-se. Acaba a tocar em bares de secunda, por poucos dólares.
Finalmente diagnosticada a doença, os medicamentos entorpecem-na. Nick Cave, conta esta história passada em 1999, quando teve de a apresentar em palco. Quando lhe perguntou como o deveria fazer, ela disse-lhe:
“Como Doutora Simone”.
Já antes, quando um dos assistentes lhe perguntara se desejava algo, ela respondera:
“Quero champanhe, cocaína e salsichas”.
Continuando a relatar, diz Cave que ela “apareceu completamente perdida no palco, mascando chiclete, tirou-o da boca e colou-o à parte lateral do piano”.
Dizem que esse foi um dos melhores concertos de Nina.
Dois dias antes de morrer, a escola de música de Filadélfia, aquela que cinquenta anos antes não a tinha aceite, entregou-lhe um diploma honorário. Morreu em 2003 em Bouc-Bel-Air, no sul de França. É que os negros também morrem.
Nota: para ouvirem as canções, basta sombrear com o rato a indicação dada do site, e carregar simultaneamente na tecla ctrl enquanto clica com o rato.