(121) O "senso comum" que nos tem permitido sobreviver
Conhecer é identificar realidades, quer seja através da experiência, quer seja através da elaboração de conceitos que levem ao entendimento dessa mesma realidade.
“Conhecer é trazer os objetos para dentro de nós”, M. Henriques.
O “senso comum” não é mais do que a aplicação da inteligência ao particular e ao concreto, para a resolução dos problemas práticos que se lhe apresentam e não para a sua teorização.
No pensamento mítico não há relação de causa-efeito, mas sim de simultaneidade; e é sincrético, não distinguindo os vários planos da realidade (o humano, o natural e o divino).
Quando vamos pela primeira vez a um aeroporto que desconhecemos, o que é que nos acontece? Ficamos com uma certa sensação de desconforto, de desorientação, por não conseguirmos encontrar as placas desinalização, os caminhos e as portas que nos são usuais, locais para comer, lojas de conveniência, e mais.
Idêntica sensação de desconforto temos quando vamos a um supermercado a que não estamos habituados: não encontramos os produtos que queremos nos locais “certos”, estranhamos a iluminação, perdemos tempo com a circulação e arrumação dos carrinhos de compras, entradas nas bichas erradas, sistema de pagamento diferentes. À segunda ou terceira vez que lá voltarmos, tudo se torna mais fácil, estamos já “habituados”, circulamos já com à vontade.
E isto acontece porque, à medida que formos conhecendo o que nos rodeia, tudo se torna mais compreensível, familiar e previsível. “Conhecer é trazer os objetos para dentro de nós”.
Conhecer é identificar realidades, quer seja através da experiência, quer seja através da elaboração de conceitos que levem ao entendimento dessa mesma realidade.
Os primeiros grandes sistematizadores do saber, Platão e Aristóteles, começaram por distinguir entre opinião ou senso comum (doxa) e ciência ou saber (episteme), considerando que o senso comum se aplica às coisas que se relacionam connosco e que são apreendidas empiricamente, e que a ciência ou saber se aplica à relação das coisas entre si e que são explicadas. Qualquer deles é conhecimento, sendo que um é saber fundamentado (episteme) e outro é saber não fundamentado (doxa).
Uma das características do ser humano é o seu desejo de compreender os outros e o mundo que o rodeia, ou seja, o desejo de conhecer.
As questões que o preocupam não são as relacionadas com as grandes sistematizações filosóficas, com as teorias, mas antes as que se relacionam com as respostas imediatas às coisas de interesse prático para o seu dia-a-dia. Para o concreto que se lhe apresenta.
Fá-lo através do que se chama “senso comum”, que não é mais do que a aplicação da inteligência ao particular e ao concreto, para a resolução dos problemas práticos que se lhe apresentam e não para a sua teorização.
Mas, não se creia que por isso a quantidade de pensamentos e intuições que envolve sejam menores e menos importantes que as presentes no pensamento científico ou metafísico.
Uma das características do senso comum é a de restringir-se ao mundo das coisas concretas. Pelo senso comum podemos fazer e decidir aquelas tarefas diárias, a começar pela escolha do que vamos comer, como vamos para o emprego, as compras para casa que vamos fazer, as pequenas conversas de ocasião, em resumo, todos os afazeres quotidianos.
As pessoas de senso comum estão sempre muito atarefadas a resolverem todos estes problemas. Tudo o que não esteja relacionado com o interesse imediato, não é para elas tido em consideração: nada de teorias, nada de respostas que não lhe sejam familiares.
O senso comum vai permitir fazer-nos sentir à vontade com o nosso meio, com base numa aprendizagem feita por raciocínios por analogia, em que a observação e as semelhanças têm lugar prioritário, dando lugar ao hábito e ao costume.
Não sai da cabeça de cada um já pronto, inserindo-se antes numa linha de tradição que nos transmite conselhos para a vida quotidiana, como por exemplo o que é expresso nos muitos provérbios que todos tomamos como certos, e que nos confortam na nossa vivência comunitária.
O senso comum procede de uma acumulação de observações que se repetem e de experiências de vidas, pelo que está sempre em evolução. Não é, pois, de estranhar o aparecimento de ditados para tudo e ainda para o seu contrário: “devagar se vai ao longe” ou “não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”; “quem espera, desespera” ou “quem espera sempre alcança” ou “o que não tem remédio remediado está”.
Mesmo as regularidades observadas são facilmente descartadas se não se vierem a verificar: alguém ficará mal visto ou incomodado se por acaso não chover em abril (o tal mês de “águas mil”), ou não houver instabilidade do tempo em março (“marçagão, de manhã inverno e à tarde verão”)? Até porque pode sempre desculpar-se: afinal, “errar é humano”!
As suas generalizações baseiam-se em conjuntos incompletos de apreensões, que normalmente perdem validade ao admitirem exceções e conclusões opostas, sem que daí venha qualquer mal ou provoque qualquer incómodo.
As suas generalizações não se preocupam em saber como as coisas acontecem, nem com o estabelecimento de regras que as expliquem, o que faz com que a realidade nos apareça como algo de estranho e poderoso que nos escapa.
Não é assim de admirar a continuada permanência e popularidade dos poderes ocultos, das crendices, feitiços e superstições, a possessão pelo demónio, a bruxaria, cartomancia, astrologia, os vampiros especialmente nas noites de lua cheia, os fantasmas, os mortos vivos e as almas penadas.
E não se creia que tal seja sintoma de sociedades passadas: basta catalogar as inúmeras séries de televisão e de filmes atuais, para se perceber melhor a permanência e popularidade de tal estado de obscurecimento da realidade. Quando não são os super-heróis e os mações que comandam o mundo, são os números mágicos que atraem e provocam as fatalidades (o 11 para as Torres Gémeas, o 13 e sexta-feira onde o azar nos persegue).
Uma muito breve referência sobre o pensamento mítico. Por mais elaborado que seja, também ele apresentará sempre um obscurecimento da realidade, tal acontecendo fundamentalmente, por duas ordens de razões:
a primeira, porque no pensamento mítico não há uma relação causa-efeito, mas antes uma relação de simultaneidade, o que lhe permite concluir que se um coiote uivou quando uma criança nasceu, então a criança nasceu porque o coiote uivou;
a segunda, porque o pensamento mítico é sincrético, não distinguindo, portanto, os diferentes planos da realidade (o humano, o natural, o divino).
Resumindo: ao senso comum não lhe interessa ser universalmente válido, exaustivo ou sistemático; procura apenas ser razoável e significativo. Além disso, não se preocupa com as relações das coisas entre si, mas das coisas na sua relação connosco.
Por tudo isto, ele não é um pensamento científico, mas é ele que nos tem permitido sobreviver.