(118) As Josefinas cantoras
Qualquer objeto poderá ser considerado arte, mesmo que desprovido de sentido, desde que seja ‘feito’ por alguém considerado artista.
“A nossa vida é muito desconfortável, cada dia traz surpresas, apreensões, esperanças e terrores, e seria por isso impossível a um indivíduo isolado suportá-la, sem contar dia e noite com o apoio dos seus companheiros; mas, mesmo assim, as coisas tornam-se com frequência muito penosas e mil ombros vacilam então sob o fardo que ameaçava apenas um de nós”, Kafka.
Josefina pensava que o povo a admirava por ela ser uma artista, mas esqueceu-se que ela só era uma artista por ser tratada como tal.
Normalmente, as últimas obras dos escritores cuja morte é amplamente anunciada pela idade que deixarão de ter, aparecem-nos como testamento daquilo que já foram. Mas um testamento literário não tem que ser forçosamente só sobre o passado que esses escritores foram. Pode muito bem ser antes um testamento sobre o futuro e a melhor obra que escreveram. Bem sei que nem todos podem ser génios e nem todos podem ter a ‘fortuna’ de morrerem antes do tempo de serem considerados antiquados.
Josefina, a Cantora, ou o Povo dos Ratos (“Josephine the Singer, or the Mouse Folk” em The Basic Kafka, Nova Iorque, Pocket Books, 1984, acessível online em www.kafka.org/pdfdocuments/JosephineMY.pdf) é a última obra de Franz Kafka (1883 – 1924) escrita no ano da sua morte, em que Kafka estava já sem voz devido à tuberculose laríngea (acabou por morrer de fome devido ao fecho da laringe).
Embora sabendo que chegara o seu fim, nada transparece neste conto que nos leve a suspeitar da sua dor ou de uma possível angústia existencial. Trata-se da ‘simples’ história de Josefina, uma rata cantora, e da sua relação com o povo dos ratos.
Apesar de Josefina ser muito apreciada, o narrador começa por colocar dúvidas sobre a qualidade do seu canto:
“Será sequer canto? Ou não será talvez somente uma espécie de assobio? E assobiar, todos sabemos o que é – é o dom artístico próprio do nosso povo, ou não um simples dom, mas antes a expressão caraterística da nossa existência. Todos nós assobiamos, mas nenhum de nós sonha, sem dúvida, fazer do assobiar uma arte: assobiamos sem pensar nisso ou, na realidade, sem dar por isso, e são muitos entre nós que nunca se deram conta de que assobiar é uma das nossas caraterísticas. Portanto, se fosse verdade que Josefina não canta, mas apenas assobia e talvez, como a mim pelo menos me parece, não muito melhor do que nós costumamos fazer – pois é possível que o seu assobio não tenha sequer a mesma força do nosso habitual assobiar, como o de um camponês que é capaz de manter o seu assobio o dia inteiro enquanto trabalha – se tudo isto fosse verdade, então o suposto talento musical de Josefina seria inexistente, o que, no entanto, tornaria ainda mais inexplicável o verdadeiro enigma que é a força do efeito que ela produz.”
O que nos coloca perante um problema e um enigma:
O problema é que ao considerar o seu assobio desprovido de sentido, então a sua ‘arte’ (o canto) provinha não das propriedades materiais intrínsecas – por si própria Josefina é como todos os do seu povo - mas do fato de ela ser considerada artista.
Quando Duchamp apresentou em 1917 o seu Urinol debaixo do nome de um outro pretenso artista desconhecido, R. Mutt (brincadeira com o nome do fabricante, JL Mott Iron Works Company), e chamando-o convencionalmente de Fonte, viu a “sua” obra ser recusada e impedida de figurar na exposição, que certamente não teria acontecido se tivesse concorrido com o seu nome.
Conforme escreveu na carta em que pediu a demissão da organização da exposição:
“A fonte do sr. Mutt não é imoral, o que seria absurdo, não mais do que seria imoral uma banheira. É um objeto que se vê todos os dias nas montras dos canalizadores.
Não tem qualquer importância saber se o sr. Mutt fez a fonte com as suas próprias mãos. Ele ESCOLHEU-a. Ele agarrou num artigo vulgar da vida e deu-lhe um novo nome para que o seu significado de utilização desaparecesse, criando assim um novo conceito para esse objeto”.
O que Duchamp pretendeu foi demonstrar a tese segundo a qual qualquer objeto poderia ser considerado arte, mesmo que desprovido de sentido, desde que fosse ‘feito’ por alguém considerado artista.
O enigma é a ‘voz’ de Josefina, que “sendo um assobio que não é um assobio” e não tendo nada de especial, mesmo assim conseguir causar admiração. Se Magritte tivesse lido o conto de Kafka não nos custa imaginar que teríamos hoje uma pintura de Josefina a assobiar intitulada: “Isto não é assobiar”.
A pergunta será então: se a voz da Josefina era igual à de todos os outros, porque se lhe dava importância? Porque se reunia o povo para a escutar?
“Uma vez que assobiar é um dos nossos hábitos irrefletidos, podemos pensar que os membros da audiência de Josefina também assobiam; a sua arte faz que nos sintamos felizes e, quando nos sentimos felizes, assobiamos – mas a sua audiência nunca assobia, instala-se num silêncio de ratos; ficamos silenciosos, com se tivéssemos alcançado a paz que ansiamos há muito e da qual o nosso assobio bastaria para nos afastar. Será o seu canto que nos encanta, ou antes o silêncio solene que envolve a sua pequena e frágil voz?”
Daqui várias coisas podemos concluir. Primeira: O canto-assobio é um pretexto. Segunda: O povo reúne-se tendo por fim reunir-se. Terceira: O que importa não é a voz, mas o “silêncio solene” que permite o vivenciar de um momento de paz face à dureza do trabalho.
“A nossa vida é muito desconfortável, cada dia traz surpresas, apreensões, esperanças e terrores, e seria por isso impossível a um indivíduo isolado suportá-la, sem contar dia e noite com o apoio dos seus companheiros; mas, mesmo assim, as coisas tornam-se com frequência muito penosas e mil ombros vacilam então sob o fardo que ameaçava apenas um de nós…Esse assobio, que se ergue enquanto todos os demais observam o silêncio, chega quase como uma mensagem de todo o povo a cada um de nós: o ténue assobio de Josefina no meio das graves preocupações é quase como a existência precária do nosso povo no meio do tumulto de um mundo hostil. Josefina afirma-se, com o nada da sua voz, o nada do seu desempenho, afirma-se e abre caminho até nós – faz-nos bem pensar que assim é.”
Perante uma vida difícil e dura de suportar, sujeita a uma existência precária e ameaçada, a voz de Josefina não transmite qualquer conteúdo espiritual, funcionando antes como uma representação da existência precária do povo dos ratos. Sem ela, o povo não se reuniria em silêncio. É ela que reflete e o remete para a identidade coletiva de todos, levando-o a perceber-se a si próprio.
E, no entanto, Josefina não é venerada como um Génio, pois o seu público tem plena consciência que ela é um deles cuja função é apenas de os reunir, daí tratarem-na com uma indiferença igualitária como se vai verificar quando ela for pedir “privilégios especiais” para compensação pelo seu trabalho.
“Desde há muito tempo, talvez desde os começos da sua carreira artística, que Josefina luta por ser dispensada de todo o trabalho quotidiano em razão do seu canto – devia ser aliviada de quaisquer preocupações com o pão de cada dia e dos cuidados da luta pela existência, pensando, ao que parece, que caberia a todo o povo garantir-lho. Um entusiasta fácil, e casos desses existem, poderia concluir da mera estranheza desta exigência, da atitude espiritual donde ela decorre, a justificação interior da reclamação. Mas o nosso povo entende de outro modo e recusa-a tranquilamente. Também não cuida demasiado de responder aos argumentos de Josefina. Esta sustenta, por exemplo, que o esforço é mau para a sua voz, que o esforço do trabalho nada é, sem dúvida, por comparação com o esforço de cantar, mas que a impede do repouso necessário depois de cantar e da recuperação necessária antes de voltar a cantar, que esgota todo o seu vigor e que essa circunstância não lhe permite dar a plena medida dos seus dons. Os outros ouvem os seus argumentos e não lhes prestam atenção. O nosso povo que se comove com tanta facilidade, mostra-se por vezes inacessível à comoção. Outra vezes a sua recusa é tão decidida que Josefina, colhida de surpresa, parece submeter-se, faz a sua parte do trabalho comum, canta o melhor que pode – mas por um momento só, antes de, com energia renovada, como se o vigor do seu propósito fosse inexaurível, recomeçar a sua luta.”
Quando Josefina resolve desaparecer, esperando, tal como uma criança que foge de casa dos pais por não se sentir suficientemente amada, que os pais sentindo a sua falta a vão procurar, vai verificar que avaliou mal a situação.
“Ela é um pequeno episódio na história eterna do nosso povo, e este superará a sua perda. Não que isso no seja fácil – como faremos as nossas reuniões no meio de um silêncio completo? E contudo, não é verdade que todos se mantinham silenciosos também quando Josefina estava presente? Seria o seu assobio real sensivelmente mais forte e mais vivo do que será a nossa memória? Se, na sua sabedoria, o nosso povo exaltou tanto o canto de josefina, não terá sido precisamente para nada perder quando o perdesse? Talvez, portanto, a nossa privação não seja muito grande, mas Josefina, livre do tormento desse exílio que, no entanto, em seu entender é apanágio dos eleitos, perder-se-á alegremente na inumerável multidão dos heróis do nosso povo, e em breve, uma vez que não somos gente historiadora, acederá aos cumes da redenção e será esquecida como o foram todos os seus irmãos.”
Nesta sua sociedade radicalmente democrática e pretensamente igualitária, Josefina esqueceu-se que apesar de ser tratada como uma celebridade, os seus admiradores tinham perfeita consciência de que nela não havia nada de especial e que ela era apenas um deles. "Josefina pensava que o povo a admirava por ela ser uma artista, mas esqueceu-se que ela só era uma artista por ser tratada como tal."