(114) Momentos de redescoberta da humanidade
“A humanidade comum existe a despeito da cultura e das suas diferenças”.
“É nas descontinuidades da História que as pessoas cuja cultura foi forçada até à rutura exprimem uma humanidade que vai para além dos limites culturais”.
Os homens da revolução são os homens que vivem entre o tempo do fim de um passado que “já não” satisfaz e o tempo de um novo começo que “ainda não” satisfaz porque se oferece como absolutamente imprevisível.
Vivia-se no presente revolucionário.
Na sua análise sobre o que é Revolução (On Revolution, 1963), Hannah Arendt, começa por definir aqueles fenómenos que considera estarem na sua génese: violência, libertação e desejo de liberdade política.
O início de um fenómeno revolucionário tem que ver com a vontade de terminar com o rumo dos acontecimentos que se vêm sucedendo desde o passado (libertação) e com a possibilidade de iniciar um novo começo que instaure a liberdade política (desejo de liberdade).
A libertação tem sempre como objetivo imediato a restituição de direitos civis (à vida e à propriedade), tendo sempre como finalidade última instaurar a liberdade que visa permitir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca de assuntos políticos.
A violência, que marca sempre o início de uma revolução, é um meio, um instrumento, para se alcançar um fim, que será sempre a libertação (quando a violência é um fim em si mesmo, quando não é um instrumento para se alcançar um fim, então estamos perante o terror). A violência é entendida como força libertadora que se tenta igualar à opressão sofrida, daí ela marcar sempre o início de uma revolução.
Das várias revoluções acontecidas no século XVIII, Arendt estuda em particular a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Vai concluir que elas são portadoras de duas grandes novidades: a convicção que era possível fundar uma nova história, e que tal seria acompanhado pela instauração de uma liberdade alargada para todos os que quisessem participar nos assuntos políticos.
Na sua atuação, aqueles revolucionários tinham a convicção profunda de que não era possível retroceder a um momento do passado onde a ordem ainda estaria estabelecida (ou seja, não havia nenhuma restauração). Tinham a consciência que teriam de fundar um novo corpo político que iria substituir a ordem do passado.
Confrontavam-se com um passado imediatamente anterior que não lhes dava quaisquer indicações sobre aquele tempo que estavam a viver, e com a imprevisibilidade de um futuro ainda por vir. Encontraram-se, assim, entre o tempo do fim de um passado que “já não” satisfaz e o tempo de um novo começo que “ainda não” satisfaz, porque se oferece como absolutamente imprevisível.
É como se o tempo se abrisse, se desligasse, entre a tranquilidade do passado e a incerteza do futuro: vivia-se, então, no presente revolucionário.
Viviam no tempo do “abismo da liberdade”, hiato entre um “já não” e um “ainda não”. Os homens da revolução são os homens que viveram no presente o próprio abismo.
E é a vivência neste medo fundamental que, definindo acima de tudo os homens que o viveram, vai conduzir, juntamente com as diferentes situações e realidades de partida, aos caminhos distintos seguidos pela Revolução Americana e pela Revolução Francesa.
A Revolução Americana (1775-83), vai procurar no passado longínquo, no conceito de autoridade (“auctoritas”) da Roma Antiga, a garantia para enfrentar a incerteza do futuro, através da elaboração de uma Constituição que assegure a durabilidade da liberdade política no futuro. Ou seja, em nome da estabilidade, a fonte da lei é a autoridade e não o povo. A autoridade da Constituição como promessa objetivada da liberdade política alargada.
A Revolução Francesa (1789-99), assente na filosofia da bondade natural do ser humano, vai originar a compaixão pelos miseráveis, inspirando a fraternidade e uma conceção ideal de um sistema de leis que traduzem a vontade geral de um povo.
Note-se que a fraternidade está ausente da Revolução Americana, pois eles não conheciam a miséria secular instalada em França. Assim, o “Peuple” da Revolução Francesa constituído por uma multidão nua e miserável não era o mesmo do “We, the people” da Revolução Americana, multidão que não estava unida pela miséria.
Daí que o objetivo da Revolução Francesa, em vez de ser fundar um corpo político que permitisse a liberdade, passa a ser a proclamação dos Direitos do Homem, reconhecidos pelo simples facto de se ter nascido. Em vez de se ocupar da igualdade ou emancipação dos cidadãos, passou a ocupar-se da emancipação da natureza humana.
Como consequência, a Revolução Francesa não reconheceu uma autoridade constitucional, o que acarretou uma instabilidade e sucessão de Constituições, fragilizando a autoridade.
Sintetizando: para Arendt, a finalidade da Revolução é a instauração de liberdade política que se assuma como durável, de forma a garantir às futuras gerações o direito de participarem numa esfera pública, de se pronunciarem acerca dos assuntos políticos.
A libertação da opressão deve ter com objetivo a liberdade, e a liberdade deve conduzir à constituição de uma república. A república deve ser identificada não apenas como um governo constitucional que garanta os direitos privados, mas também como forma de organização política na qual os cidadãos possam viver juntos sem qualquer divisão entre governantes e governados.
A libertação, será uma fase sempre associada ao drama e à violência, com o objetivo imediato da restituição dos direitos civis (à vida e à propriedade), devendo seguir-se a fase da liberdade, onde se procederá à calma fundação de um corpo político.
A Revolução Americana teve como objetivo a construção de um governo representativo baseado no consentimento do povo, numa moldura constitucional no qual os poderes se balanceavam de forma a garantirem os direitos privados e os direitos de propriedade, à luz da Carta dos Direitos (Bill of Rights), que veio a ser incluída na Constituição três anos depois da aprovação.
Na Revolução Francesa, Arendt não conseguiu entrever um espaço público de liberdade consistente. A direção da Revolução Francesa sofreu uma deflexão quase desde o princípio, devido às exigências impostas à libertação, não tanto da tirania, mas mais da miséria.
Arendt reconhece que não é possível qualquer revolução quando as massas vivem submergidas em miséria, uma vez que o prioritário será a libertação da necessidade urgente e não a construção da liberdade, e que nada é pior que a pobreza para a exclusão da “luz da felicidade pública”, problema que, embora não estivesse resolvido, não se punha na América, pois, tal como acontecia com a escravatura, estava escondido dos olhos do público.
Por tudo o acima exposto, não surpreende que para Arendt, o modelo de Revolução conseguida fosse o da Revolução Americana.
E, contudo, é a Revolução Francesa que mais vai inflamar o espírito dos povos, de todos os povos europeus e não só, saudada por quase todas as classes, e na qual um povo inteiro vai afirmar, sem temor, a sua liberdade e igualdade.
Ouçamos a apreciação do ultra racional Kant:
“A revolução de um povo espiritualmente rico, a que assistimos nestes dias, bem pode vencer ou falhar, acumular misérias e atrocidades, mas produz no coração de todos os espetadores (que não se encontram, esses, envolvidos nela) uma tomada de posição segundo os desejos de cada um, confinando com o entusiamo e que, não podendo exprimir-se sem perigo, só pode ser causada por uma disposição moral no interior da espécie humana.”
E Hegel, vem corroborar esse momento de entusiamo generalizado, que considera único:
“As emoções mais altas arrebataram o espírito dos homens nesse momento; um entusiasmo espiritual fez vibrar o mundo, como se a reconciliação entre o divino e o secular se tivesse agora consumado”.
O caso mais espantoso desse momento de libertação da humanidade vai, contudo, acontecer em São Domingo (Haiti), colónia francesa nas Caraíbas. Três anos depois do início da Revolução Francesa, dá-se a primeira revolta de escravos negros que querem aderir aos ideais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, abolindo a escravatura, e libertando-se da opressão colonial. A chamada Revolução Haitiana (1791-1804).
É a única revolta de escravos que se conhece que vai dar lugar à fundação de uma nova nação, o Haiti, dirigida e administrada por não-brancos e escravos auto emancipados, abalando fortemente a convicção generalizada da ‘época’ (!) sobre a inferioridade da raça negra, por ela não ser capaz de organizar-se, e da convicção generalizada que se tinha que os escravos eram pessoas sem qualquer capacidade para conseguirem alcançar e manterem a sua própria libertação.
É que na altura ninguém pensava que as palavras de ordem revolucionárias francesas fossem tomadas à letra pelos negros e escravos do Haiti. Na ideologia do Iluminismo, a “liberdade” não tinha sido pensada para ser aplicada a selvagens e imaturos, que deveriam ser primeiramente sujeitos a um processo de educação antes de merecerem a liberdade e a igualdade. Por tudo isso, a Revolução Haitiana, era uma revolução impensável. Ela vai forçar até às últimas consequências os ideais da Revolução Francesa.
E, aconteceram momentos únicos, como aquele em que o exército francês enviado por Napoleão para lutar contra o exército negro dos escravos, começou a ouvir ao longe aquilo que lhes parecia ser um cântico tribal. Continuando a aproximarem-se, os soldados acabaram por se aperceberem de que o que eles pensavam ser um cântico tribal, era afinal A Marselhesa, a ser cantada pelos haitianos negros e escravos que eles iam combater.
Sigamos o que nos diz Susan Buck-Morss no seu livro, Hegel, Haiti, and Universal History:
“…mais do que dar um lugar igual às múltiplas culturas diferentes, mais do que reconhecer as pessoas como parte da humanidade através da mediação indireta de identidades culturais coletivas, a universalidade humana emerge no ponto de rutura do acontecimento histórico. É nas descontinuidades da História que as pessoas cuja cultura foi forçada até à rutura exprimem uma humanidade que vai para além dos limites culturais.
[…] A humanidade comum existe a despeito da cultura e das suas diferenças. A não-identidade de uma pessoa com o coletivo permite solidariedades subterrâneas que têm uma possibilidade de apelar para o sentimento moral universal […].