(112) A outra história de Pi
A 15 de fevereiro de 1897, a Câmara de Representantes da Assembleia do Estado de Indiana, EUA, votou por unanimidade que o valor de Pi passaria a ser 3,2, substituindo o anterior 3,1416… considerado errado.
“O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para assim tornarem a indústria americana menos competitiva”, um chilreio de Donald Trump.
“Podem continuar a dizer que a Terra é chata porque nós temos liberdade de expressão, mas a nossa Constituição não lhes garante que tudo aquilo que disserem esteja certo”, Neil deGrasse Tyson.
A Vida de Pi é um romance escrito em 2001 por Yann Martel, que dizem ter sido baseado no livro brasileiro Max e Os Felinos de Moacyr Scliar, com adaptação ao cinema em 2012 por Ang Lee, tendo conquistado vários Óscares em 2013. Mas não é desse Pi que pretendo falar.
Em Matemática, ao número resultante do quociente entre o perímetro de uma circunferência e o seu diâmetro, chama-se Pi. É um valor fixo, ou seja, é sempre o mesmo, mas tem, contudo, outras características peculiares: é um número infinito e irracional, ou seja, tem um número infinito de decimais e não segue nenhum padrão.
O seu valor ‘fixo’, recordemos, é 3,14159265358979 … e julga-se ter sido encontrado há mais de dois mil anos por Arquimedes.
Como seria de esperar nestes nossos tempos, essas características de infinidade e irracionalidade propiciam o seu aproveitamento para a realização de concursos televisivos onde ganha quem conseguir dizer, sem se enganar, o maior número de dígitos seguidos de Pi. Parece que o recorde está em 70.000 dígitos, obtido por um jovem indiano, Rajveer Meena, em 21 de março de 2015 …
Mas há uma outra história do Pi dentro da história do Pi.
Tudo começou em 1888, quando Edward Johnston Goodwin, um médico americano do estado de Indiana, afirmou ter encontrado um novo método que permitiria resolver a quadratura do círculo.
Segundo explicou, no seu modelo, o quociente encontrado entre o diâmetro e a circunferência era equivalente a dividir cinco quartos por um quarto, o que, fazendo as contas, daria um Pi de 3,2.
Firmemente convencido da sua “descoberta”, Goodwin patenteia o seu método nos EUA e em mais sete países europeus. Todos aqueles que utilizassem este seu método nos seus trabalhos práticos, teriam de pagar direitos de autor pela sua utilização.
A 17 de janeiro de 1897, Goodwin consegue que seja presente à Assembleia Geral de Indiana, um projeto de lei, no qual esta “nova verdade matemática” era
“oferecida como uma contribuição para a educação que só poderia ser usada pelo estado de Indiana de forma gratuita, sem qualquer necessidade de pagar qualquer ipo de direitos de autor, sempre que seja aceite e adotada de forma oficial na legislatura de 1897”, como se pode ler nos Proceedings of the Indiana Academy of Science
(https://journals.iupui.edu/index.php/ias/article/view/8180/8139/).
A 15 de fevereiro de 1897, a Câmara de Representantes da Assembleia aprovou o projeto com 67 votos a favor e nenhum contra!
Um dos deputados explicava assim as razões da sua votação:
“O caso é muito simples. Se aprovarmos este projeto de lei que estabelece um novo valor mais correto para o Pi, o autor oferece ao nosso Estado, sem qualquer custo adicional, o uso da descoberta e a sua publicação gratuita em todos os livros de texto das nossas escolas, ao passo que todos os demais terão de lhe pagar direitos de autor”.
Ou seja, a partir de 15 de fevereiro de 1897, o valor de Pi passaria a ser 3,2, substituindo o anterior 3,1416… considerado errado.
Faltava apenas a aprovação pela outra câmara da Assembleia, o Senado. Mas Goodwin estava seguro da sua aprovação. Numa entrevista dada ao Sun, a 6 de fevereiro, não se coibiu em propagandear o novo valor de Pi que, quando aplicado, iria alterar o cálculo das órbitas dos corpos celestes:
“Se viver mais dez anos, tenham cuidado com Goodwin. A minha descoberta revolucionará as matemáticas. Todos os astrónomos estavam equivocados”.
Na altura da conclusão das votações, encontrando-se o matemático Clarence Waldo de visita à assembleia com o propósito de conseguir um aumento de financiamento para a sua universidade, foi-lhe sugerido uma visita a Goodwin, não só para o conhecer como para lhe dar a boa nova da aprovação do projeto de lei. Waldo escusou-se “cortesmente, afirmando que já conhecia loucos suficientes”.
É a Waldo que devemos que o valor de Pi seja ainda hoje o que é, pois foi ele que conseguiu convencer os senadores a atrasarem a publicação da lei, retirando-a definitivamente da ordem de trabalhos.
Goodwin morreu em 1902 com 77 anos. O seu obituário, que se pode ler no New Harmony News, diz:
“Final de um homem que queria beneficiar o mundo”.
Estas tentativas de estabelecer “verdades científicas” por decreto andam a par com a menorização e negação da Ciência, surgindo cada vez mais como uma forma de afirmação de um certo direito da liberdade de pensar.
É o caso recente do conhecidíssimo basquetebolista americano e com vários programas na televisão, Shaquille O’Neal, quando vem afirmar que a Terra não é redonda, porque nas suas deslocações de carro entre Chicago e San Francisco não notava a existência de qualquer curvatura, pelo que a Terra devia ser plana.
Perante várias tomadas de posição idênticas, cada vez mais frequentes por parte de outros leaders da opinião pública e de importantes dirigentes políticos, o famoso astrofísico Neil deGrasse Tyson entendeu vir a terreiro, para lembrar aos que negam que a Terra é redonda, que o podem fazer com toda a liberdade, desde que não sejam promovidos a chefes da NASA:
“Podem continuar a dizer que a Terra é chata porque nós temos liberdade de expressão, mas a nossa Constituição não lhes garante que tudo aquilo que disserem esteja certo”
(três séculos antes já Voltaire dissera “Não aprovo aquilo que você diz, mas defenderei até à morte o seu direito a dizê-lo”, e não precisou de nenhuma Constituição).
E, explica Tyson:
“As verdades científicas aparecem por consenso – não por opinião, mas como resultado de observações e medições – tornando toda a pesquisa que fique fora do consenso como um terreno movediço que será perigoso para servir de base a uma política”.
“A política não é a base em que a ciência possa assentar. A ciência é que é a base em que a política se deve apoiar”.
E, termina:
“Mostrem-me um País com um governo hostil à ciência, e eu mostrar-lhes-ei uma sociedade na qual a saúde, riqueza e segurança, estão a desaparecer”.
Sendo certo que os métodos científicos, através de observações e medições, permitem o aparecimento do consenso, já a escolha do que se estuda e investiga não depende desse consenso, mas de outros poderes que o determinam.
Não existe a Ciência como ideal aí fora à espera que alguém esforçadamente a alcance para que o progresso e o bem-estar da humanidade caminhem na direção certa, razão porque também não se faz ciência pela ciência, por muito que excelentes e bem-intencionados cientistas o acreditem.
Os muitos cientistas que participaram nos variados projetos e realizações nazis, soviéticos, capitalistas (da construção de armas de guerra até às experiencias em seres humanos), embora o tenham feito quase sempre em nome da Ciência, não deixaram de estar submetidos aos desejos e desígnios do poder de estado em nome dos poderes económicos ou, dos poderes económicos em nome do estado.
Para além disso, devido à vaidade, ganância ou mesmo incompetência, muitos desses cientistas escamotaram resultados, interpretando-os à sua maneira, emitiram opiniões contraditórias, seduzidos pelo caminho mais fácil do agradar a quem controla a sociedade.
Não é, pois, de admirar que, de vez em quando, a voz do dono se faça ouvir.
Transcrevo um chilreio de Donald Trump sobre o aquecimento global. Diz ele que:
“O conceito de aquecimento global foi criado pelos chineses para assim tornarem a economia dos EUA menos competitiva.”
Donald J. TrumpVerified account @realDonaldTrump
- The concept of global warming was created by and for the Chinese in order to make U.S. manufacturing non-competitive.
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11:15 AM - 6 Nov 2012
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